7
COLEÇÃO O HOMEM E A HISTÓRIA €I Braudel, F. - o Espaço e a História no Mediterrâneo Braudel, F. - Os Homens e a Herança no Mediterrâneo Duby, G. - A Europa na Idade Média i' AEuropana IdadeMédia G. Duby Próximo lançamento Wolff, P. - Outono da Idade Média ou Primavera dos Tempos Modernos Tradução: Antonio de Padua Danesi Martins Fontes Vanderlei Amboni RO 31021114-7 CE) Tancredo de A. Neves EFM

Georges Duby - O Ano Mil

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Georges Duby - O Ano Mil

COLEÇÃO O HOMEM E A HISTÓRIA €I

Braudel, F. - o Espaço e a História no MediterrâneoBraudel, F. - Os Homens e a Herança no MediterrâneoDuby, G. - A Europa na Idade Média i'

AEuropanaIdadeMédia

G. Duby

Próximo lançamento

Wolff, P. - Outono da Idade Média ou Primavera dos Tempos Modernos

Tradução: Antonio de Padua Danesi

Martins FontesVanderlei Amboni

RO 31021114-7

CE) Tancredo de A. Neves EFM

Page 2: Georges Duby - O Ano Mil

XII A EUROPA NA IDADE MÉDIA

land Darbois se pôs a recolhê-Ias, e reuniu-as. Junto a essa primeiramontagem apus um comentário. Em função do texto falado, o textovisual foi remanejado uma última vez. E ali a obra terminou.

Devo-lhe muito. Os meios empregados nas rodagens revelaramantes de mais nada o que eu não pudera ver: os detalhes, por exem-plo, do tímpano de Conques, das naves de catedrais esvaziadas deseu mobiliário moderno, Cangrande a dormir seu derradeiro sonosobre as alturas do túmulo que fez edificar em Verona. O proveito,todavia, veio principalmente do fato de se lançar um novo olharàs obras de arte: a meio caminho, outras escolhas se impuserame as montagens sucessivas, justapondo de forma inesperada algumasimagens, provocaram confrontos, suscitaram reflexões novas'. Issomostra a sensível distância entre o texto do livro de que partimose este.

Apresento-o sem retoque, tal como foi elaborado sob o efeitode uma primeira impressão visual, tal como foi dito.

GEORGES DUBY'".;

, ~.

o ano mil

Imaginemos, É o que os historiadores sempre se vêem obrigados

~a fazer. Seu papel é o de recolher vestígios, os traços deixados peloshomens do passado, de estabelecer, de criticar escrupulosamenteum testemunho. Esses traços, contudo, principalmente aqueles dei-

\xados pelos pobres, pelo cotidiano da vida, são tênues, descontínuos.Para tempos muito remotos, como o de que tratamos aqui, eles sãoraríssimos, Sobre eles podemos construir uma armadura, que no en-tanto é muito frágil. Entre esses poucos esteios permanece abertaa incerteza. A Europa do ano mil, portanto, é preciso imaginá-Ia../

Poucos homens em primeiro lugar, pouquíssimos. Dez vezes,vinte vezes menos que hoje, talvez. Densidades populacionais quecorrespondem atualmente às do centro da África. O agreste domina,tenaz. Torna-se mais denso à medida que nos afastamos da orla medi-terrânea, quando transpomos os Alpes, o Reno, o mar do Norte.Termina por sufocar tudo. Aqui e ali, formando alguns aglomerado

~,

clareiras, cabanas de camponeses, aldeias cercadas de hortas e poma-res, de onde vem a maior parte dos alimentos; campos cujo SOI

Jrende muito pouco, apesar dos longos repousos a que são subme-tidos; e logo a seguir, desmesuradamente extensa, a área de caça,da colheita, da pastagem divagante. De longe em longe uma cidade.

IQuase sempre o resíduo de uma cidade romana; monumentos antigogrosseiramente remendados e convertidos em igrejas, fortalezas; sa-cerdotes e guerreiros; a criadagem que Ihes serve, fabricando as ar-mas, a moeda, os adornos, o bom vinho, todos os devidos símbolose instrumentos do poder. Em toda parte as pistas se embaralham.

Page 3: Georges Duby - O Ano Mil

2 A EUROPA NA IDADE MÉDIA

Por toda parte o movimento: peregrinos e mascates, trabalhadoresitinerantes, aventureiros, errantes. A mobilidade de um povo tãodesp..Qjadoéespantosa. - -- ----- Ele tem fome. Cada grão de trigo semeado produz pouco maisde três ou quatro, quando o ano é realmente bom. Uma miséria.A obsessão: passar o inverno, agü~ntar até a primavera, até o mo-mento em que se possa, correndo os pântanos e as matas, colhero alimento na natureza livre, preparar armadilhas, lançar redes, pro-curar as bagas, as ervas, as raízes. Enganar a fome. Com efeito,esse mundo parece vazio; na verdade é superpovoado. Há três sécu-los, desde que amorteceram as grandes vagas de pestilência que,durante a alta Idade Média, devastaram o mundo ocidental, a popu-lação se pôs a crescer. O impulso foi ganhando vigor à medida quedesaparecia a escravatura - a verdadeira, a da Antigüidade. Restaainda uma grande quantidade de não-livres, homens e mulheres cujocorpo pertence a alguém, que se vendem, que se dão, e que devemobedecer a todos. Mas já não ficam amontoados em chusmas. Seussenhores, e justamente para que se reproduzam, concordaram emvê-Ios estabelecidos numa terra. Vivem em suas casas como maridoe mulher. Proliferam. Para alimentar os filhos devem desbravar, alar-gar os velhos terrenos, criar outros no meio dos ermos. A conquistacomeçou. Mas ela é ainda demasiado tímida: os utensílios são irrisó-rios; subsiste uma espécie de respeito perante a natureza virgem,que impede de atacá-Ia com excessiva violência. A inesgotável ener-gia da água corrente, a inesgotável fecundidade da boa terra, profun-da, livre há séculos, desde a retirada da colonização agrícola romana,tudo ali se oferece. O mundo está pronto para ser conquistado.

Qual mundo? Os homens desse tempo, os homens de grande

1

cultura, que refletiam, que liam nos livros, imaginavam a Terra plana.Um vasto disco sobre o qual se abaulava a cúpula celeste, cercadopelo oceano. Na periferia, a noite. Povos estranhos, monstruosos,unípedes, homens-lobo. Dizia-se que eles surgiam de tempos em

\\ tempos, em hordas aterradoras, precursores do Anticristo. Com efei-\.; to, os húngaros, os sarracenos e os homens do Norte, os normandos,\ f.II acabavam de devastar a cristandade. Essas invasões são as últimas

f. iéonhecidaspelaEuropa. Esta ainda não havia selibertado totalmente\ I no ano mil, e a grande vaga de medo provocada por essas incursões

não diminuíra. Diante dos pagãos, havia-se fugido. O cristianismoe as formas frágeis, preciosas, veneradas onde ele se introduzira du-rante o Baixo Império, a língua latina, a música, o conhecimentodos números, a arte de construir em pedra, permaneciam como quesepultados nas criptas. Os monges que construíram a de Tournus

O ANO MIL 3

haviam sido expulsos para cada vez mais longe pela invasão norman-da, desde o oceano, desde Noirmoutier, e não encontrariam a pazsenão no interior das terras, na Borgonha.

Nesse mundo plano, circular, cercado de pavores, Jerusalémfigura como o centro. A esperança e todos os olhares voltam-se parao lugar onde o Cristo morreu, de onde o Cristo subiu aos céus. Mas,no ano mil, Jerusalém se encontra cativa, dominada pelos infiéis.Uma fratura dividiu em três porções a parte conhecida do espaçoterrestre: aqui, o Islã, o mal; ali, o meio-mal: Bizâncio, uma Cristan-dade, mas de língua grega, estrangeira, suspeita, e que deriva lenta-mente para o cisma; e enfim o Ocidente. A cristandade latina sonhacom uma idade de ouro, do império, isto é, com a paz, a ordeme a abundância. Essa lembrança obsedante se liga a dois lugaresimportantes: Roma - naquele tempo, porém, Roma é uma cidademarginal, mais da metade grega; Aix-Ia-Chapelle, a nova Roma.

Com efeito, dois séculos antes, o Império Romano do Ocidenteressuscitara. Uma renascença. As forças que haviam suscitado talcoisa não vinham das províncias do Sul, onde a marca latina se mos-trava mais profunda. Brotavam em plena selvageria, numa regiãoferocíssima, muito vigorosa, terra de missão, frente de 'conquista -na região dos francos do Leste, na junção da Gália com a Germânia.Aqui nascera, vivera e fora sepultado o novo César, Carlos Magno.Um momento capital lhe garante a memória: ~ capela d~_~ÍX:)A.§sal-tada pelos saqueadores, reparada, ela permanece comQ O.-Aeloindes-trutível da renovação inicial, como um convite a prosseguir o esforço,a manter a continuidade, a renovar perpetuamente, a renascer. Os

construtores desse edifício quiseram-no imperial e romano. Servi-Iram-se de dois modelos: um da própria Roma, o Panteão, temploerigido na época de Augusto e agora dedicado à Mãe de Deus; ooutro de Jerusalém, o santuário erigido no tempo de Constantino )no lugar onde se deu a ascensão do Cristo. Jerusalém, Roma, Aix:esse lento deslocar-se do leste para o oeste do pólo, .do centro dacidade de Deus sobre a terra, resultou assim nessa nova igreja redon-da. As disposições de seu volume interno significam a conexão dovisível e do invisível, a passagem ascensional, libertadora, do carnalao espiritual, desde o quadrado, signo da terra, até o círculo, signodo céu, por meio de um octógono. Semelhante arranjo convinha aolugar onde vinha orar o imperador. Este tinha a missão de ser umintermediário, um intercessor entre Deus e o seu povo, entre a ordemimutável do universo celeste e a perturbação, a miséria e o medodeste mundo. A capela de Aix tem dois pavimentos. No plano infe-rior fica a corte, as pessoas que servem ao soberano pela prece,pelas armas ou pelo trabalho; são os representantes da multidão

{Ó-()VJe-A

Page 4: Georges Duby - O Ano Mil

4 A EUROPA NA IDADE MÉDIA

imensa que o ~enhor rege, a quem ele ama e que deve conduzirem direção ao bem mais alto, à sua pessoa. Ele próprio toma lugarno plano superior. É lá que ele toma assento. Os hinos de louvorque se entoam nas grandes cerimônias do poder o dizem elevado,não, claro, ao nível do Senhor Deus, mas pelo menos ao dos arcanjos.Essa tribuna abria-se para o exterior, para o grande pátio cobertoonde Carlos Magno promovia a justiça, voltada para as coisas daterra. Mas, para um diálogo solitário entre o Criador e o homemque Ele fizera o guia do seu povo, o trono imperial olha na direçãodo santuário, do lado dessas formas arquitetônicas que falam ao mes-mo tempo de concentração e de ascensão.

Ainda existe, no limiar do século 2Q, um imperador do Ocidenteherdeiro de Carlos Magno, que quer igualar-se a esse novo Constan-tino, a esse novo Davi. Roma o atrai. Desejaria residir ali. A indoci-lidade da aristocracia romana, os sutis emaranhados de uma culturademasiado requintada e os miasmasque povoam essa cidade insalu-'ybre o afastam dela. A autoridade imperial permanece, pois, ancoradana Germânia, na Lotaríngia. Aix continua a ser a sua raiz.Jho-llDo imperador do ano mil, manda procurar o sepulcro de Carlos Mag-no, quebrar o pavimento da igreja e cavar até encontrá-Io; abertoo sarcófago, ele toma a cruz de ouro que pendia do pescoço do esque-leto e adorna-se simbolicamente com ela. Depois, como tinham feitoos seus ancestrais, como hão defazer os seus descendentes, depositao mais brilhante dos seus tesouros na capela de Aix. E assim objetosmaravilhosos vão se acumulando ali, preparados por liturgias ondese misturam o sagrado e o profano. Os signos que os revestem expri-mem a união entre o império e o divino. Mostram o imperador pros-ternado aos pés do Cristo, minúsculo e não obst'ante presente, sozi-nho com sua esposa, novo Adão, representante único de toda a hu-manidade; ou então tendo nas mãos, como o faz Cristo no céu, oglobo, imagem do poderio universal. Na catedral de Bamberg conser-va-se ainda hoje o manto com o qual o imperador Henrique II secobria por ocasião das grandes festas. Nele estão bordadas as figurasdas constelações e das doze casas do zodíaco. Essa capa representao firmamento, a parte do universo mais misteriosa e melhor orde-nada, que se move numa 'ordem inelutável, que se projeta sobretudo, que não tem limite. O imperador se mostra, aos olhos deslum-brados de seus fiéis, envolto pelas estrelas. Para mostrar que eleé o senhor supremo do tempo, do passado, do futuro - que é osenhor do bom tempo, portanto das colheitas abundantes, o vencedor

_<i'!1ome -, que ele é a garantia da ordem, o vitorioso do medo.Admiremos a incomensurável distância entre essa ostentação de po-der, na qual semelhantes pretensões se enunciavam por formas

O ANO MIL 5

,

fascinantes, e, ao redor do palácio, a dois passos dele, a floresta '

)

~'y1cU ("

as tribos selvagens de criadores de porcos, um campesinato para ele v \~(J

quem o próprio pão, e o pão mais preto, era ainda um luxo. O impé- "'-.( y1l'Jfrio? Mero sonho.

Na Europa do ano mil, a realidade é o que chamamos de feUda-

l

lismo. Ou seja, maneiras de comandar adaptadas às condições reais, Cm"..

!H

..

::!t'\

ao estado real, tosco, pouco aprimorado pela civilização. Tudo se nh." ~

agita nesse mundo, já o dissemos; mas, sem estrada, sem moeda, Â,e_ ~ou quase, quem poderia fazer executar suas ordens muito longe do. ~Ol~t;" Ilugar onde se encontra sua pessoa? O chefe obedecido é aquele quese vê, que se ouve, que se toca, com quem se come e se dorme.)~ invasão dos pagão~Qersiste, ameaçadora; o medo que ela inspirasobrevive ao progressivo afastamento do perigo: o chefe obedecidoé, portanto, aquele cujo escudo está ali, bem perto, que protegee vela por um refúgio em que o conjunto do povo pode buscar abrigo,encerrar-se ali enquanto durar a tormenta: o feudalismo é, por conse-qüência, em primeiro lugar~Q casteTol Fortalezas inumeráveis, disse-minadas por toda parte. De terra, de madeira, algumas já de pedras,especialmente no Sul. Rudimentares: uma torre quadrada, uma pali-çada, elas são o símbolo da segurança. Mas são também ameaças.Em cada castelo se aninha um enxame de guerreiros. Homens acavalo, cavaleiros, os especialistas na guerra eficaz. O feudalismoafirma sua primazia sobre todos os outros homens. Os cavaleiros ,- vinte, trinta - que, cada qual por sua vez, montam guarda na c"" ,",,,,')torre, dali saem, espada em punho, a exigir, da planície desarmada,como preço da proteção que asseguram, sustento, alimento. Acavalaria impera na Europa dos camponeses, dos pastores e dos bate-dores dos bosques. Ela vive do povo, dura, selvagemente, aterrori- /zando-o: um exército de ocupação.

Em face do manto de Henrique lI, cujas constelações falamde uma paz imaginária, coloco pois um outro bordado: o "pano daconquista", como o chamavam no seu tempo, a "tapeçaria" deBayeux, como dizemos hoje. Mulheres bordaram, na Inglaterra queos normandos acabavam de sujeitar, essa longa faixa de tecido histo-riado, cujas imagens, na altura de 1080, sessenta anos após a capade Bamberg, contradizem o sonho imperial. Mostra um rei da Ingla-terra, Eduardo, o Confessor, sentado num trono semelhante ao deAix, acreditando-se ele também mediador, e em posturas que sãoainda as de Carlos Magno. Na verdade, toda a força foi retiradado rei rodeado pelos bispos. Ela pertence ao duque dos normandos,Guilherme, o Conquistador, príncipe feudal. Em torno dele, homensde guerra. Seus homens - os que lhe renderam homenagem. Estãoligados, não pela escrita, à romana, mas pelo gesto, pela palavra,

fI Ilrt! ,U "." ~

Page 5: Georges Duby - O Ano Mil

6 A EUROPA NA IDADE MÉDIA

pelos ritos de boca e de mão, mágicos. Esses guerreiros, perante,os quais tremem os camponeses e os padres, vieram um dia ajoe-lhar-se, de cabeça descoberta aos pés do senhor dos mais fortes caste-los do país. Puseram as mãos nuas entre as dele. Este fechou suasmãos sobre as deles. Depois as retirou, restabelecendo-os assim naigualdade, na honra, adotando-os como seus filhos suplementares,e beijou-os na boca. Em seguida esses cavaleiros juraram, a mãosobre os relicários, servi-Io, ajudá-Io e jamais atentar contra suavida, contra seu corpo, tornando-se assim seus vassalos (a palavraquer dizer "rapazinho"), seus meninos, obrigados a se conduziremcomo bons filhos em relação a esse patrão a que chamam o senhor(ou seja, o velho, o ancião), que, por sua vez, fica obrigado a alimen-tá-Ios, a diverti-Ios e, se puder, a arranjar-Ihes bons casamentos.E, antes de tudo, a muni-Ios de armas.

O forte do progresso técnico, cujos primeiros movimentos sediscernem, volta-se para o aperfeiçoamento da armadura militar, ~para a metalurgia do armamento. Há ainda falta de ferro para ascharruas. Com ele ferreiros fazem capacetes e malhas que tornamo co~batente invulnerável. Os utensílios em que esse tempo colocao,maior empenho em modelar, aqueles cujo peso simbólico era omaior de todos, são as espadas. Insígnia de um "ofício", de umaprofissão reputada nobre, instrumento da repressão, da exploraçãodo povo, o gládio, mais que o cavalo, distingue o cavaleiro dos outroshomens. Proclama-lhe a superioridade social. Acredita-se que as es-padas dos príncipes são fabricadas num passado lendário, muito ante-rior à evangelização, por semideuses artesãos. Elas são envolvidaspor talismãs. Têm os nomes deles. A espada do ano mil é comouma pessoa. Na hora de sua morte, sabemos, a primeira preocupaçãode Rolando foi para com Durandal.

O cavaleiro satisfaz seu corpo. A função que exerce o autorizaa passar o tempo em meio a prazeres que são também modos defortificar-se, de se exercitar. A caça - e as florestas a ela destinadas,as áreas reservadas a esse esporte de aristocratas, estão fechadasaos desbravadores. O banquete: empanturrar-se com carne de caçaenquanto o povo comum morre de fome, beber do melhor vinho,cantar, festejar entre camaradas para que se estreite, em torno decada senhor, o grupo de seus vassalos, bando altercador que é neces-sário manter sempre alegre. E, antes de tudo, a alegria primeira:combater. Carregar sobre um bom cavalo com seus irmãos, seusprimos, seus amigos. Gritar durante horas a fio em meio à poeirae ao suor, fazer uso de todas as virtudes dos seus braços. Identificar-secom os heróis das epopéias, com os antepassados cujas proezas épreciso igualar. Suplantar o adversário, capturá-Io para exigir o resga-

O ANO MIL 7

I

li'

te. Arrebatado pela cólera, por vezes permitir-se matá-Io. Embria-guez da carnificina. O gosto pelo sangue. Destruir, e, à noite, ocampo coberto de cadáveres: eis a modernidade do século XI.

Na aurora de um crescimento que não mais cessará, o surtoque se inaugura da civilização ocidental é revelado em primeiro lugarpor essa veemência militar; e as primeiras vitórias alcançadas contraa natureza Íõdócil dos camponeses, curvados sob as exigências senho-riais, obrigados enfim a arriscar a vida entre os matagais e os pânta-nos, a drenar, a criar novas terras de cultivo, resultam antes de maisnada em trazer ao primeiro plano da cena, arrasando tudo, a figurado cavaleiro. Grande, corpulento, pesado, apenas o corpo impor-tando, com o coração - e não com espírito: aprender a leÜhe_e.stra-garia a alma. Na guerra, ou no torneio, que a substitui e prepara,-sÍtua-se o ato central, aquele que faz o sabor da vida. Um jogo onde -r.tudo se arrisca, a existência e, o que é talvez mais precioso, a honra. ~'Um jogo em que os melhores saem vencedores. Desse jogo eles

)voltam ricos, carregados de despojos, e por isso generosos, espa-lhando o prazer ao seu redor, despreocupadamente. O século XIeuropeu é dominado por esse sistema de valores, fundado inteira-mente no gosto de encantar e de dar, e no assalto.

O assalto, a rapina, a guerra - e no entanto alguns lugarespoupados. O feudalismo dissociou totalmente a autoridade do sobe-rano na Itália, na Provença e na Borgonha. Ele a corrói na maior

parte do reino da França e da Inglaterra. No ano mil, ainda não rI 'J-atingiu as províncias germânicas. Estas permanecem ~rolín~ias, isto

(

",11/' 'I

é-, imperiais. Na Germânia não é o senhor feudal, é o imperador, ~ainda, que assume a missão de paz, que afasta a turbulênclã dos Q ~

bispados e dos mosteiros ou que, de tempos em tempos, vem renderhomenagem a Cristo, seu único Senhor.

Nessa parte menos evoluída da cristandade latina se prolongaassim a empresa da renascença. O esforço que mantém e vivificaaquilo que a Roma antiga deixou de si não esmorece. Essa herançase enriquece então com aquilo que, através de Veneza ou das exten-sões eslavas, chega bem fresco de Bizâncio. Os imperadores dessetempo têm por esposa, por mãe, princesas bizantinas. Através devínculos menos tênues com as cristandades orientais, muito mais civi-lizadas, há então uma espécie de segunda primavera, uma floraçãoluminosa em Reichenau, Echternach, Liege, Bamberg, Hildesheim.

Esses lugares não são capitais. O império não as tem. Para cum-prir su~ missão de ordenador, para mostrar em toda parte a imagemda paz, o rei da Alemanha deve cavalgar sem cessar, sempre a cami-nho, de um palácio a outro. De tempos em tempos, nas grandesfestas da cristandade, que são também as festas do seu poder, ele

Page 6: Georges Duby - O Ano Mil

8 A EUROPA NA IDADE MÉDIAO ANO MIL 9

vem, não obstante, sentar-se por um momento, revestido de todosos seus ornamentos, junto aos bispos e aos abades, nos santuários.Ali, perto das catedrais, sobre as quais se apóia seu poder semidivino,nos grandes mosteiros onde se reza por sua alma e de seus pais,estão instaladas as escolas, as oficinas de arte. Ali se reúnem homenscuja visão do mundo difere totalmente da dos cavaleiros da França,da Inglaterra ou da Espanha. Perfeitamente conscientes da barbárieque invade os costumes à sua volta. Resistindo com todas as suasforças à degradação de uma cultura que eles veneram. Tomam pormodelo o legado dos tempos antigos, onde, segundo eles, reside todaa perfeição. Como o próprio Carlos Magno, de quem se diz quese levantava à noite, estudioso, para aprender a ler o latim, os pinto-res, os escultores, os gravadores de marfim, os fundidores de bronze,os que trabalham sob encomendas imperiais os materiais mais nobres,os únicos dignos de celebrar a glória de seu senhor, ou seja, a glóriade Deus, todos têm atitudes de alunos, atentos, aplicados, empe-nhando-se em aproximar-se o máximo possível dos clássicos. Porseus cuidados respeitosos, amorosos, sobrevivem no coração da maisespessa rusticidade as formas que fazem eco ao verso da Eneida,uma arte que recusa as abstrações da arte em jóias bárbaras, nãose permitindo deformar a aparência das coisas, a aparência corporaldo homem, uma estética da figuração, do volume equilibrado, daharmonia, uma estética de arquiteto e de escultor. Clássica.

Foi antes de tudo através do livro que a tradição do classicismose manteve. Para os homens de quem falamos, os dirigentes dasigrejas imperiais, o livro era sem dúvida o mais precioso dos objetos.Não encerrava ele a palavra, as palavras dos grandes escritores daRoma antiga, e sobretudo as palavras de Deus, o verbo pelo qualo Todo-Poderoso estabeleceu o seu poder neste mundo? Cabia-lhesornar esse receptáculo mais suntuosamente do que os muros do san-tuário ou o altar e seus vasos sagrados, velando para que a imageme a escrita se mantivessem na mais estreita consonância. Nos armáriosonde se conservavam os livros litúrgicos havia grandes quantidadesde bíblias, lecionários que haviam sido ilustrados no tempo de Luís,o Piedoso, ou de Carlos, o Calvo. Suas páginas eram adornadas compinturas quc imitavam, quase todas, exemplos romanos. O vigor plás-tico das figuras de evangelistas, os simulacros de arquitetura erigidosà volta delas, a decoração das iniciais respondiam às lições de huma-nismo que os escritos sempre relidos de Sêneca, Boécio ou Ovídiodistribuíam. Copiaram-se esses livros, no ano mil, nas igrejas ondeo imperador vinha orar. Desejou-se fazer melhor, ainda mais magní-fico. Os tecidos, os marfins, os livros importados de Bizâncio, ondeas letras se inscreviam em ouro sobre fundo púrpura, convidavam

a uma maior fidelidade na representação da figura humana, a ummaior luxo no desdobramento dos adereços. Sobre o pergaminhodas Perícopes, confeccionados por volta de 1020 para o imperadorHenrique 11, o ouro, esse ouro que os príncipes feudais de entãoesbanjavam nos torneios e festins, o ouro é estendido como panode fundo de uma representação sagrada. Sobre as cintilações dessesegundo plano, que os transporta para o irreal, desenrolam-se osepisódios de um espetáculo, desfilam os personagens do drama, oCristo e seus discípulos. Pessoas. Espantosamente vivas. E que sevêem reaparecer no ouro, revestidas pelo relevo de maior presença,nas paredes dos altares, na capela de Aix, na catedral da Basiléia.Livros, altares, cruzes. Na arte da qual o imperador do ano mil é oinspirador, a cruz não é mostrada como o instrumento de um suplício.É o emblema de um triunfo, de uma vitória sobre as forças de subver-são de todo o universo, de norte a sul, de leste a oeste, nos dois eixosde que a cruz representa o necessário encaixe. Sobre ela está pregadaa imagem de um Cristo coroado, ainda vivo, de quem o imperador,lugar-tenente do céu, arcanjo, é neste mundo o delegado. A cruz éo símbolo dessa investidura. Assim como a espada serve de emblemaà cavalaria e a todas as forças de agressão de que é portadora, a cruz,falando de ordem, de luz e de ressurreição, torna sensível o que cons-titui a essência do poder imperial. Para essas cruzes, enriqueci das comas mais soberbas jóias herdadas da glória romana, para essas cruzesbrandidas como estandartes para repelir o mal, isto é, o tumulto ea morte, convergia toda a empresa de renovação.

Dessa empresa um dos melhores artesãos foi Bernward, bispode Hildesheim. Um bispo. Sagrado como o eram os soberanos. Im-pregnado pelos ritos do sagrado, de uma sabedoria vinda do céu;designado para difundi-Ia cá embaixo, para iluminar. Educador, por-tanto; foi ele o preceptor dos filhos imperiais. Bernward, junto desua sé episcopal, fez erigir uma réplica da coluna de Trajano, quetinha visto em Roma. Também ela historiada, envolta por uma longafaixa desenhada, semelhante à tapeçaria de Bayeux, não bordadacomo esta, mas fundida, à antiga, no bronze. Bernward fez tambémfundir no bronze, em Hildesheim, os dois batentes de uma portapara uma igreja consagrada a São Miguel, o outro arcanjo. Abrindopara o interior do santuário, isto é, para a verdade. Em cada umdos batentes, anéis, aos quais os criminosos fugitivos vinham se agar-rar, agarrando-se ao sagrado na esperança de tornarem-se intocáveiscomo os suplicantes da Antigüidade clássica - e os donos do poder,cuja paixão desviava do caminho reto, por vezes Ihes cortavam asmãos à espada, para poder apanhá-Ios. Sacrilégio.

Bernward também imitava. Seguia o exemplo de Carlos Magno

Vanderlei Ambot'fRG 3102111c-7

.;:~ ...:~~:--:: < '; ~ . ~~; .

CE1 Tanc:redocl8A.NOV@!~Ft..

Page 7: Georges Duby - O Ano Mil

10 A EUROPA NA IDADE MÉDIA O ANO MIL 11

e dos grandes dignitários da Igreja carolíngia. Até ele, entretanto,os bronzes dos portais não traziam imagens. Os de Hildesheim estãopovoados delas, tanto quanto as páginas de evangeliários. Colocadasà vista do povo, diante do mundo corrompido, mergulhadO na barbá-rie, essas portas tinham a função de ensinar o bem, a verdade, asabedoria. Desenvolviam uma exortação baseada na justaposição dedezesseis cenas. Cumpre deter-se em sua disposição, pois ela revelaa visão de mundo dos homens cuja cultura era nesse tempo a maisalta, sua maneira de pensar, de enunciar uma mensagem que elesse julgavam na obrigação de difundir para toda uma sociedade cujasestruturas as primeiras fases de desenvolvimento modificavam, cujasestruturas se feudalizavam, resvalando insensivelmente para odomí-nio dos guerreiros, ou seja, da violência. Dois batentes: o da esquer-da, o da direita. O mal, o bem. O desespero, a esperança. A históriade Adão, a história de Jesus -e dois movimentos inversos. O discur-so deve ser lido de cima para baixo na parte esquerda, que fala dedegradação, de decadência, de queda. E de baixo para cima na partedireita, a boa, já que proclama o resgate possível, já que convocaà ressurreição, já que assinala o caminho ascendente, que é precisoseguir. Com grande habilidade, a retórica visual tira igualmente pro-veito das analogias entre cada um dos episódios dessas duas narrativasjustapostas. Insiste nas concordâncias, que, duas a duas, ligam entresi as cenas da direita e da esquerda. Propõe uma leitura horizontalpara designar com mais clareza onde se encontra o bem, onde omal. Conduzindo o olhar desde Adão e Eva excluídos, expulsos doParaíso, condenados à morte, até Jesus apresentado no templo, rece-bido, admitido; da árvore da morte até a cruz, árvore da vida; dopecado original até a crucificação que o suprime; da criação da mulheraté essa espécie de gestação cujo lugar foi o túmulo da ressurreição.É assim que Bernward ensina. Não por palavras, mas por signosabstratos. Por uma encenação que prenuncia a dos grandes mistériosque, três séculos mais tarde, atores vivos virão representar nas cate-drais. Já se vêem aqui homens e mulheres a agir. Presença do homem.Trata-se claramente do homem, do destino de cada homem. Do ho-mem decaído, arrastado para baixo, para a terra, pelo peso de suaculpa, humilhado até essa condição desprezível a que o feudalismorebaixa os camponeses subjugados, aviltados, obrigados a trabalharcom suas próprias mãos, impelidos enfim, última etapa, assassínio,a essa violência, a essa obstinação no destruir de que dão prova,nesse tempo, os cavaleiros que, como se sabe, derramam diariamenteo sangue dos justos. Ao mesmo tempo, no outro batente, a vidade uma mulher, a vida de um homem, Maria, nova Eva, Jesus, novoAdão, afirmam que o gênero humano há de ser finalmente salvo.

Fraqueza, redenção. História imóvel, imediata, atual. No limiardo século XI, a humanidade se reergue de sua degradação. Ela sepõe a caminho, sob a direção do imperador. A obra de arte ali estápara orientar sua marcha. Indicativa, e empregando para isso a lin-guagem mais clara, a da Roma antiga. A mensagem, porém, é lança-da muito longe de Roma. Nos limites extremos da era civilizada.Bem perto dos santuários e dos sacrifícios humanos do paganismoescandinavo. Nas primeiras linhas do combate que o povo de Deusdeve travar contra as trevas.