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“Geotecnologias” e Geografia: cinco teses para debate Marcelo Lopes de Souza Departamento de Geografia/UFRJ O pretexto imediato para o conjunto de reflexões que vai a seguir é o processo de reforma curricular do Bacharelado em Geografia que, assim se espera, seja em breve finalmente deflagrado no Departamento de Geografia da UFRJ. No entanto, há muito tempo (na verdade, desde os anos 1980) me ocupo e me preocupo com as questões que envolvem os (ab)usos de tecnologias como o geoprocessamento, a cartografia digital e correlatas no âmbito da pesquisa geográfica e, na base, da formação do geógrafo. O formato de “teses” deste texto tem a finalidade de facilitar a exposição e permitir maior clareza. O intuito destas linhas é, realmente, suscitar um debate, em um patamar e em um estilo acadêmico em outras palavras, evitando que problemas meramente conjunturais ou até mesmo pessoais turvem as águas de uma discussão que, por seu alcance e suas consequências, não deve ser amesquinhada. I Não se faz pesquisa científica sem o emprego de técnicas de pesquisa (que abrangem desde as muitas técnicas de geração de dados primários até as técnicas de representação de dados e informações, passando pelas técnicas de manuseio de dados secundários). Tampouco se pode pensar na pesquisa científica contemporânea sem o uso direto ou indireto de tecnologias modernas que, justamente, permitem a aplicação de técnicas de geração, análise ou representação de dados e informações: dos antigos balões que serviam de plataformas de observação e registro fotográfico à aerofotogrametria baseada em sofisticados aviões e às atuais plataformas orbitais; das primeiras máquinas de escrever (para não falar, por que não?, nos instrumentos de desenho e pintura utilizados por um Von Humboldt para representar a natureza durante suas pesquisas de campo) aos atuais computadores e programas de computador; das velhas (e ainda essenciais) cadernetas de campo aos gravadores digitais que nos permitem registrar confortavelmente depoimentos, facilitando também a sua transcrição; e por aí vai. Mesmo quando nos dedicamos à reflexão teórico-conceitual temos de nos nutrir, de alguma forma, dos resultados das pesquisas empíricas (o que não é o mesmo que dizer empiristas); por conseguinte, a importância e o

Geotecnologias e Geografia_cinco Teses Para Debate

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  • Geotecnologias e Geografia: cinco teses para debate

    Marcelo Lopes de Souza Departamento de Geografia/UFRJ

    O pretexto imediato para o conjunto de reflexes que vai a seguir o processo de reforma curricular do Bacharelado em Geografia que, assim se espera, seja em breve finalmente deflagrado no Departamento de Geografia da UFRJ. No entanto, h muito tempo (na verdade, desde os anos 1980) me ocupo e me preocupo com as questes que envolvem os (ab)usos de tecnologias como o geoprocessamento, a cartografia digital e correlatas no mbito da pesquisa geogrfica e, na base, da formao do gegrafo.

    O formato de teses deste texto tem a finalidade de facilitar a exposio e permitir maior clareza. O intuito destas linhas , realmente, suscitar um debate, em um patamar e em um estilo acadmico em outras palavras, evitando que problemas meramente conjunturais ou at mesmo pessoais turvem as guas de uma discusso que, por seu alcance e suas consequncias, no deve ser amesquinhada.

    I No se faz pesquisa cientfica sem o emprego de tcnicas de pesquisa (que abrangem desde as muitas tcnicas de gerao de dados primrios at as tcnicas de representao de dados e informaes, passando pelas tcnicas de manuseio de dados secundrios). Tampouco se pode pensar na pesquisa cientfica contempornea sem o uso direto ou indireto de tecnologias modernas que, justamente, permitem a aplicao de tcnicas de gerao, anlise ou representao de dados e informaes: dos antigos bales que serviam de plataformas de observao e registro fotogrfico aerofotogrametria baseada em sofisticados avies e s atuais plataformas orbitais; das primeiras mquinas de escrever (para no falar, por que no?, nos instrumentos de desenho e pintura utilizados por um Von Humboldt para representar a natureza durante suas pesquisas de campo) aos atuais computadores e programas de computador; das velhas (e ainda essenciais) cadernetas de campo aos gravadores digitais que nos permitem registrar confortavelmente depoimentos, facilitando tambm a sua transcrio; e por a vai. Mesmo quando nos dedicamos reflexo terico-conceitual temos de nos nutrir, de alguma forma, dos resultados das pesquisas empricas (o que no o mesmo que dizer empiristas); por conseguinte, a importncia e o

  • papel das tcnicas e tecnologias a servio da cincia assunto no nos pode, nunca, ser indiferente. E, no entanto, as tcnicas e a tecnologia no so a pesquisa cientfica. Do ponto de vista do desenvolvimento de tecnologia, a cincia o substrato que, conjugado com a tcnica, lhe d origem; da perspectiva da prpria cincia, porm, a tcnica e a tecnologia so meios para obteno de resultados, jamais fins em si mesmos.

    II Os gegrafos se esforam, desde o sculo XIX, para afirmar o campo de conhecimento denominado Geografia como um tipo de saber respeitado e respeitvel. Ainda que se discutam e rediscutam pressupostos, condies, dualismos/dicotomias, contradies e problemas diversos, uma coisa parece ter sido comum s mais diversas correntes do pensamento geogrfico: o desejo e a inteno de colaborar para construir um corpo de conhecimentos que seja reconhecido como cientificamente relevante.

    No se trata, aqui, de endossar qualquer cientificismo ou qualquer diminuio da importncia de outras formas de saber (Filosofia, artes etc.). Trata-se apenas de admitir, por exemplo, que, se a pesquisa em Geografia pode (e muitos diriam: deve) alimentar-se do debate filosfico (Filosofia da Cincia, tica, Filosofia Poltica), nem por isso faria qualquer sentido ela pretender se passar por algum novo ramo da Filosofia ou coisa que o valha; assim como, mesmo quando a pesquisa pode (e alguns diriam: deve e precisa) valorizar e dialogar com a dimenso esttica da realidade (dos textos aos mapas, dos esquemas grficos s fotografias), no isso, por si s, que justificaria que o gegrafo se considerasse um artista. Similarmente, o gegrafo no e no deveria pretender ser um tecnologista ou tecnlogo, como se engenheiro fosse. Como se engenheiro pretendesse ou pudesse ser. Como se engenheiro devesse almejar ser.

    Ao transformar em fim aquilo que , de direito, um meio e um meio dos mais relevantes, disso no se duvida , o gegrafo se apequena e corre o risco de, superestimando atividades-meio e descaracterizando sua atividade-fim, no ser mais reconhecido como um pesquisador cientfico, sem que, necessariamente, venha a ser aceito por engenheiros (e tecnologistas em geral) como um igual. Perdido entre dois mundos, corre o risco de desgarrar-se dos esforos mais consistentes de pesquisa emprica e reflexo terica, conceitual e metodolgica para, navegando deriva, confundir a sua valorizao eventual como aplicador de tcnicas e operador de tecnologias (mormente tcnicas de representao cartogrfica, entre outras) com uma genuna valorizao da Geografia. Ledo engano. Autoengano.

  • III Curiosamente, no por se sobrevalorizar um meio, ao ponto de torn-lo um fim em si mesmo, que o meio em questo, necessariamente, ser assimilado de maneira eficaz. Ao mesmo tempo em que a cartografia digital, o sensoriamento remoto etc., agora reunidos sob o rtulo geotecnologias, disseminam-se velozmente e avanam na direo de se tornarem uma especialidade parte no interior da Geografia (interior, vale frisar, em termos institucionais), constata-se a pobreza da formao do gegrafo em matria de cartografia temtica, de capacidade de organizar e interpretar mapas, de discutir os aspectos culturais (vieses etnocntricos, por exemplo) e polticos envolvidos na escolha de projees cartogrficas, e assim sucessivamente. Ironia do destino: o gegrafo tornado (ou retornado condio de) cartgrafo (ou aprendiz de cartgrafo) mostra-se cada vez menos apto a lidar com mapas, cartas, cartogramas e plantas. Hoje em dia, abrimos artigos e livros assinados por gegrafos e raramente encontramos mapas ou plantas, modelos grficos etc. isso para no falar em fotografias e ilustraes diversas. claro que isso varia bastante com o tipo de pesquisa a que estejamos nos referindo; em alguns casos, mapas e cartogramas, assim como imagens de satlite, fotografias e outras formas de representao visual da superfcie terrestre continuam a se fazer presentes com elevada frequncia, ao passo que em outras situaes a pura expresso verbal reina quase absoluta. Entretanto, pode-se perceber que, mesmo nos tipos de trabalho em que a linguagem cartogrfica ainda bastante valorizada, muitas vezes topamos com um material relativamente pobre, no raro um tanto descuidado na forma e no contedo. Isso tudo para no mencionar as salas de aula de graduao, das quais os mapas, especialmente aqueles em escala cartogrfica pequena e muito pequena, quase desapareceram. Como discutir o mundo sem explorar, a todo momento, as formas e interaes espaciais concretas? Como pudemos (como podemos) esquecer que um mapa-mndi, o mapa de um continente ou subcontinente nos sussurra (ou grita) muitas coisas, do ngulo geopoltico, geoeconmico? Como pudemos (como podemos) desaprender a valorizar (e o que dir organizar) bons mapas temticos e, por extenso, bons atlas temticos?

    IV Outro problema que, com frequncia, a prpria tecnologia assimilada de modo limitado e limitante. As potencialidades de certas tecnologias no que diz respeito possibilidade de ajudar na integrao de diferentes tipos de dados, com a finalidade de subsidiar levantamentos e estudos diversos (anlises de riscos ambientais, por exemplo), nem sempre

  • so percebidas. interessante notar como, embora o termo geoprocessamento se tenha difundido enormemente nas trs ltimas dcadas, muitas vezes de cartografia digital que se trata: o essencial passa a ser a representao dos dados ou informaes, muito mais que a sua anlise. Esta , no raro, objeto de discusses banais, revelando um conhecimento superficial da literatura especializada, pouca ou nenhuma experincia de campo e, sem dvida, um forte despreparo no que concerne aos problemas conceituais, tericos e metodolgicos envolvidos. Tambm, pudera: em no poucas situaes pode-se ter mesmo a impresso de que o tema no passa de uma ilustrao do uso de uma tcnica e ora, ilustraes acabam, afinal de contas, tendo pouco ou pouqussimo valor em si mesmas. Desnecessrio dizer que a potencialidade desse tipo de aplicao ou estudo no que diz respeito a retroalimentar o debate cientfico , na melhor das hipteses, modesta. Se as preocupaes quanto a uma certa fetichizao do geoprocessamento e dos sistemas geogrficos de informao (ou, como preferem alguns, sistemas de informaes geogrficas) enquanto ferramentas de anlise e integrao de dados merecem ser sempre postas e repostas (diante do risco de que a construo do objeto de conhecimento e todo um conjunto de condicionantes e problemas terico-conceituais e metodolgicos sejam negligenciados ou excessivamente simplificados), to grandes ou maiores que elas devem ser as preocupaes com a transformao do emprego e desenvolvimento de ferramentas de representao espacial em atividade-fim do gegrafo. J os gegrafos clssicos sabiam que uma correta explicao pressupe uma boa descrio, mas no confundiam uma coisa com a outra.

    V Mas isso que o mercado demanda! No podemos ignorar o mercado de trabalho! Ouvimos isso tantas e tantas vezes que alguns de ns esquecemos que no existe uma entidade (quase mstica) chamada mercado, homognea, sem fissuras e sem contradies. O que existe uma pluralidade de demandas algumas manifestas, outras ainda latentes. A cincia no existe e no pode ser explicada sem as condies externas e histricas (econmicas, institucionais, ideolgicas etc.) que afetam o trabalho dos pesquisadores. Por outro lado, os pesquisadores no so uma mera massa de modelar na palma da mo invisvel do mercado. Por razes as mais variadas, grupos de cientistas constroem ou tentam construir agendas de pesquisa que, se exitosas, se mostraro influentes, inclusive no tocante a ter efeitos sobre debates pblicos da mais alta importncia. Pesquisadores no so, evidentemente, todo-poderosos, mas tampouco so escribas destitudos de pensamento prprio, voz prpria e capacidade de influncia.

  • Isso justifica que lhes seja lembrada a sua responsabilidade, que, por ser limitada, no pequena. O prprio mercado de trabalho no , insista-se, homogneo. Gegrafos com perfis diversos trabalham, hoje em dia, nos ambientes os mais variados. Se questes de ordem poltico-filosfica e tica podem nos induzir a ter mais simpatia por certos ambientes que por outros, o fato mesmo de que gegrafos podem ser encontrados em diferentes espaos de atuao profissional algo significativo e sintomtico de uma salutar complexidade da profisso. Complexidade essa conquistada ao longo de muitas geraes, na base do acmulo no linear e da sucesso de controvrsias epistemolgicas, tericas, conceituais, metodolgicas e, obviamente, empricas em torno da interpretao/construo da realidade. No parece sensato exagerar o papel atribudo por uma certa fatia do mercado de trabalho aos gegrafos habilitados para lidar com geotecnologias. Mais importante ainda, no parece nem um pouco sensato descontextualizar essa suposta (e em parte ilusria) valorizao, como se, por existir uma real demanda pelo domnio de certas tcnicas e tecnologias, o gegrafo pudesse desobrigar-se de levar em conta tudo aquilo que dele faz um... cientista. No se est aqui, portanto, a advogar nenhuma negligncia do gegrafo com relao cartografia digital, ao sensoriamento remoto, e assim sucessivamente; o que se defende que as geotecnologias sejam valorizadas em sua justa e legtima medida, no mbito de currculos e processos de treinamento profissional (em nvel de graduao e ps-graduao) equilibrados. Quando os meios viram fins, os fins findam. Essa bem pode ser a antessala de um crescente desprestgio profissional, ainda que travestido, aos olhos de alguns, de prestigiamento.

    Abril de 2015