[Gersem Dos Santos Luciano] O Indio Brasileiro o

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  • Edies MEC/Unesco

    Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a CulturaRepresentao no BrasilSAS, Quadra 5, Bloco H, Lote 6, Ed. CNPq/IBICT/Unesco, 9 andar Braslia, DF, CEP: 70070-914Tel.: (55 61) 2106-3500Fax: (55 61) 3322-4261Site: www.unesco.org.brE-mail: [email protected]

    SECAD Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e DiversidadeEsplanada dos Ministrios, Bl. L, sala 700Braslia, DF, CEP: 70097-900Tel: (55 61) 2104-8432Fax: (55 61) 2104-8476

  • O ndio Brasileiro:

    o que voc precisa saber

    sobre os povosindgenas no

    Brasil de hoje

    EDUCAO PARA

    TODO

    S

    C

    O

    L E O

    Gersem dos Santos Luciano Baniwa

    Braslia, novembro de 2006

  • 2006. Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco) e Projeto Trilhas de Conhecimentos LACED/Museu Nacional

    Conselho Editorial da Coleo Educao para TodosAdama OuaneAlberto MeloClio da CunhaDalila ShepardOsmar FveroRicardo Henriques

    Coordenao EditorialAntonio Carlos de Souza Lima

    Reviso: Malu ResendeProjeto Grfico e Diagramao: Andria ResendeAssistentes: Jorge Tadeu Martins e Luciana RibeiroApoio: Rodrigo Cipoli Cajueiro e Francisco das Chagas de Souza / LACED

    Tiragem: 5000 exemplares

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    O ndio Brasileiro: o que voc precisa saber sobre os povos indgenas no Brasil de hoje / Gersem dos SantosLuciano Braslia: Ministrio da Educao, Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade;

    LACED/Museu Nacional, 2006.

    ISBN 85-98171-57-3

    224 p. (Coleo Educao para Todos; 12)1. ndios do Brasil. 2. Polticas Indigenistas. 3. Sociedades Plurais. 4. Indigenismo. I. Luciano, Gersem dos Santos.

    CDU 39(=1.81-82)

    Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidos neste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as da Unesco e do Ministrio da Educao, nem comprometem a Organizao e o Ministrio. As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo deste livro no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da Unesco e do Ministrio da Educao a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regio ou de suas autoridades, nem tampouco a delimitao de suas fronteiras ou limites.

  • Parceiros

    Este livro integra a srie Vias dos Saberes, desenvolvida pelo Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indgenas no Brasil / LACED Labora-trio de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento / Museu Nacional UFRJ, em parceria com a Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (Secad), e contou com o financiamento do fundo Pathways to Higher Education Initiative da Fundao Ford e da Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura (Unesco).

    A iniciativa Pathways to Higher Education (PHE) foi concebida para comple-mentar o International Fellowships Program IFP da Fundao Ford, e tem como proposta investir recursos em vrios pases at o ano de 2010 para promover pro-jetos que aumentem as possibilidades de acesso, permanncia e sucesso no En-sino Superior de integrantes de segmentos educacionalmente sub-representados em pases nos quais a Fundao Ford mantm programas de doaes. Enquanto o IFP apia diretamente indivduos cursando a ps-graduao por meio da con-cesso de bolsas de estudo, a PHE tem por objetivo fortalecer instituies educa-cionais interessadas em oferecer formao de qualidade em nvel de graduao a estudantes selecionados para o programa, revendo suas estruturas, metas e rotinas de atuao. Na Amrica Latina, a PHE financia projetos para estudantes indgenas do Brasil, do Chile, do Mxico e do Peru.

  • Sumrio

    ApresentaoRicardo Henriques ............................................................................................. 9

    PrefcioAntonio Carlos de Souza Lima ........................................................................ 11

    Introduo ..................................................................................................... 17

    Captulo 1 I Quem so e quantos so os ndios no Brasil ........................................................................... 261.1 Por que ndios ou indgenas ................................................................ 291.2 O que pensam os brasileiros sobre os ndios brasileiros ..................... 341.3 Identidade indgena: o orgulho de ser ndio ......................................... 381.4 Organizao social indgena ................................................................ 431.5 Diversidade cultural indgena ............................................................... 461.6 ndios isolados ou ndios resistentes ................................................... 51

    Captulo 2 I Movimento indgena etnopoltico: histria de resistncia e luta ....................................... 562.1 Movimento indgena ou movimentos indgenas? .................................. 572.2 O que movimento indgena? ............................................................. 582.3 O que organizao indgena? ........................................................... 612.4 Organizao tradicional ........................................................................ 622.5 Organizao indgena formal ............................................................... 642.6 Lideranas indgenas tradicionais e polticas ....................................... 65

  • 2.7 Organizao ou associao indgena .................................................. 662.8 Quais so as principais funes das organizaes indgenas ............. 682.9 Processo histrico de construo do movimento indgena .................. 702.10 Movimento indgena contemporneo .................................................... 762.11 Possveis causas da ascenso das organizaes indgenas ............... 772.12 O movimento indgena brasileiro nos ltimos 25 anos ....................... 782.13 Consequncias diretas do processo de protagonismo indgena no Brasil ................................................................................ 80 2.14 Os principais desafios enfrentados pelos povos indgenas .................. 82

    Captulo 3 I Da cidadania autonomia indgena: um desafio diversidade cultural ................................... 863.1 Autonomia e autodeterminao ............................................................ 933.2 Terra, territrio e meio ambiente indgena ........................................... 993.3 Situao poltica das terras indgenas no Brasil ................................ 1043.4 A riqueza das lnguas indgenas ........................................................ 117

    Captulo 4 I Educao indgena ...................................................... 1284.1 Situao da educao escolar indgena no Brasil ............................. 1364.2 Os povos indgenas e a escola .......................................................... 150 4.3 Educaco escolar indgena: avanos, desafios e possibilidades ....... 156 4.3.1 Professores indgenas como agentes polticos e educativos ............. 1574.3.2 Escolas indgenas diferenciadas como projetos-piloto estratgicos ................................................................. 1584.3.3 Ensino Bsico .................................................................................... 1594.3.4 Ensino Superior .................................................................................. 1624.8 A cincia e os conhecimentos tradicionais ......................................... 169

    Captulo 5 I Sade indgena ............................................................. 1725.1 Sade e medicina tradicional ............................................................. 1735.2 Breve histrico da poltica de sade indgena no Brasil .................... 1775.2.1 A experincia dos Distritos Sanitrios Especiais Indgenas ............... 179 5.2.2 Avanos e desafios dos DISEIs ......................................................... 183

  • Captulo 6 I Economia indgena ...................................................... 1886.1 Algumas caractersticas das economias indgenas ............................ 1936.2 Economias indgenas e os modernos projetos de etnodesenvolvimento .......................................................................... 198

    Captulo 7 I Gnero ............................................................................. 208

    Captulo 8 I Contribuies dos povos indgenas ao Brasil e ao mundo ........................................................................... 216

    Referncias ................................................................................................ 226

  • 9Apresentao

    A Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (SECAD/MEC) tem enorme satisfao em publicar, em parceria como o Laboratrio de Pesquisas em Etnicida-de, Cultura e Desenvolvimento (LACED), ligado ao Departamento de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o presente livro, parte da srie Vias dos Saberes.

    Uma de nossas mais importantes misses propor uma agenda p-blica para o Sistema Nacional de Ensino, que promova a diversidade sociocultural, extrapolando o seu mero reconhecimento, patamar j afirmado em diversos estudos sobre nossa sociedade, os quais derivam, em sua grande maioria, de celebraes reificantes da produo cultural de diferentes grupos sociais, que folclorizam manifestaes produzidas e reproduzidas no dia-a-dia das dinmicas sociais e reduzem os valores simblicos que do coeso e sentido aos projetos e s prticas sociais de inmeras comunidades.

    Queremos interferir nessa realidade transformando-a, propondo questes para reflexo que tangenciem a educao, tais como: de que modo reverteremos a histrica subordinao da diversidade cultural ao projeto de homogeneizao que imperou ou impera nas polticas p-blicas, o qual teve na escola o espao para consolidao e disseminao de explicaes encobridoras da complexidade de que se constitui nossa sociedade? Como convencer os atores sociais de que a invisibilidade dessa diversidade geradora de desigualdades sociais? Como promover cidadanias afirmadoras de suas identidades, compatveis com a atual construo da cidadania brasileira, em um mundo tensionado entre plu-

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    ralidade e universalidade, entre o local e o global? Como transformar a pluralidade social presente no microespao da sala de aula em estmulo para rearranjos pedaggicos, curriculares e organizacionais que com-preendam a tenso gerada na sua positividade, a fim de ampliar e tornar mais complexo o dilogo entre realidades, perspectivas, concepes e projetos originados da produo da diversidade sociocultural? Como superar a invisibilidade institucionalizada das diferenas culturais que valida avaliaes sobre desempenho escolar de crianas, jovens e adul-tos sem considerar as suas realidades e pertencimentos sociais?

    O impulso pela democratizao e afirmao dos direitos humanos na sociedade brasileira atinge fortemente muitas das nossas instituies es-tatais, atreladas a projetos de estado-nao comprometidos com a anu-lao das diferenas culturais de grupos subordinados. Neste contexto, as diferenas culturais dos povos indgenas, dos afro-descendentes e de outros povos portadores de identidades especficas foram sistema-ticamente negadas, compreendidas pelo crivo da inferioridade e, desse modo, fadadas assimilao pela matriz dominante.

    A proposta articular os atores sociais e os gestores para que os de-safios que foram postos estabeleam novos campos conceituais e prti-cas de planejamento e gesto, renovados pela valorizao da diversidade sociocultural, que transformem radicalmente posies preconceituosas e discriminatrias.

    Esperamos contribuir no s para difundir as bases conceituais para um renovado conhecimento da sociodiversidade dos povos indgenas no Brasil contemporneo, como tambm para fornecer subsdios para o fortalecimento dos estudantes indgenas no espao acadmico, e tornar mais complexo o conhecimento dos formadores sobre essa realidade e sobre as relaes que se estabelecem no convvio com as diferenas culturais. Finalmente, esperamos que a sociedade aprofunde sua busca pela democracia com superao das desigualdades sociais.

    Ricardo HenriquesSecretrio de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade do Ministrio da Educao (Secad/MEC)

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    Prefcio

    Nas trilhas das universidades: os ndios no Brasil contemporneo

    Vias dos Saberes uma srie de livros destinada a fornecer subsdios formao dos estudantes indgenas em cursos de nvel superior. Os textos visam agregar experincia de cada um pontos de partida para a composio dos instrumentos necessrios para aguar a percepo quanto aos amplos desafios sua frente, diante de metas que tm sido formuladas pelos seus povos, suas organizaes e comunidades. Entre as metas esto: a da sustentabilidade em bases culturalmente diferencia-das, em face do Estado nacional, das coletividades indgenas no Brasil do sculo XXI; a da percepo de seus direitos e deveres como integran-tes de coletividades indgenas e enquanto cidados brasileiros; a de uma viso ampla dos terrenos histricos sobre os quais caminharo como partcipes na construo de projetos variados de diferentes futuros, na qualidade de indgenas dotados de saberes tcnico-cientficos postos a servio de seus povos, mas adquiridos por meio do sistema de Ensino Superior brasileiro, portanto, fora de suas tradies de conhecimentos.

    A estas devemos agregar ainda duas outras metas fundamentais: a da conscincia poltica da heterogeneidade das situaes indgenas no Brasil, diante da qual se coloca a total impropriedade de modelos nicos para solucionar os problemas dos ndios no pas; e a da pre-sena, em longa durao, que vem desde os alvores das conquistas das Amricas, dos conhecimentos tradicionais indgenas em meio construo dos saberes cientficos ocidentais, no reconhecida e no

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    remunerada, todavia, pelos mecanismos financeiros que movem o mundo capitalista contemporneo, e sem qualquer valorizao posi-tiva que no beire o folclrico.

    Num plano secundrio, os volumes de Vias dos Saberes buscam tambm servir tanto formao dos formadores, isto dos docentes do sistema universitrio brasileiro, quanto dos estudantes no-ind-genas, em geral bastante ignorantes da diversidade lingstica, dos mo-dos de vida e das vises de mundo de povos de histrias to distintas como os que habitam o Brasil e que compem um patrimnio humano inigualvel, ao menos para um mundo (Oxal um dia o construamos assim!) que tenha por princpio elementar o respeito diferena, o cul-tivo da diversidade, a polifonia de tradies e opinies e que se paute pela tolerncia, como tantos preconizam no presente. Como denomi-nador comum que aproxima os quase 220 povos indgenas falantes de 180 lnguas, com cerca de 734 mil indivduos (0,4% da populao brasileira) apontados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estats-tica (IBGE), no Censo de 2000, como indgenas h a violncia da colonizao europia com suas variadas histrias, desde os mais crus episdios de guerras de dizimao e de epidemias em perodos recu-ados da histria desse nosso pedao do continente americano at as mais adocicadas formas de proteo engendradas pelo republicano (e colonialista) Estado brasileiro contemporneo.

    Os quatro volumes desta srie foram especialmente pensados para atender aos debates em classes de aula em cursos regulares ou em cursos concebidos, de forma especfica, para os estudantes indgenas, como as licenciaturas interculturais e s discusses em trabalhos de tutoria, grupos de estudos, classes de suplementao, cursos de extenso, alm de muitos outros possveis espaos de troca e de dilo-go entre portadores de tradies culturais distintas, ainda que alguns deles indgenas e no-indgenas j tenham sido submetidos aos processos de homogeneizao nacionalizante que marcam o sistema de ensino brasileiro de alto a baixo.

    Se reconhecemos hoje, em textos de carter primordialmente pro-gramtico e em tom de crtica, que a realidade da vida social nos

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    Estados contemporneos a das diferenas socioculturais ainda que estas se dem em planos cognitivos muito distintos e em escalas tam-bm variadas de lugar para lugar e que preciso fazer do conflito de posies a matria de um outro dia-a-dia, tenso e instvel mas rico em vida e em possibilidades para um novo fazer escolar, na prtica, esta-mos muito longe de amar as divergncias e de construir as aproxi-maes provisrias possveis entre mundos simblicos apartados. Que fique claro: no apenas uma espcie de mea culpa bem-intencionada e posturas simpticas e pueris que poro termo a prticas geradas por estruturas de dominao colonial de longo prazo, de produo da de-sigualdade a partir das diferenas socioculturais, estas consideradas como signo de inferioridade. Tal enunciao prescritiva da busca de novas posturas mal disfara o exerccio da violncia (adocicada que seja), nica cauo de uma verdade tambm nica e totalitria. preciso ir bem mais adiante.

    Estes livros sobre a situao contempornea dos povos indgenas no Brasil, seus direitos, suas lnguas e a histria de seus relacionamentos com o invasor europeu e a colonizao brasileira no se pretendem pioneiros em seus temas, j que so tributrios de iniciativas impor-tantes que os precedem. Mas por algumas razes marcam, sim, uma ruptura. Em primeiro lugar, dentre seus autores figuram indgenas com-prometidos com as lutas de seus povos, pesquisadores nas reas de co-nhecimento sobre as quais escrevem, caminhando nessas encruzilhadas de saberes em que se vo inventando os projetos de futuro dos povos autctones das Amricas. Em segundo lugar, inovam por referencia-rem-se s lutas indgenas pelo reconhecimento cotidiano de suas his-trias diferenciadas e dos direitos prprios, bem como luta contra o preconceito, as quais tm agora na arena universitria seu principal campo de batalhas. Em terceiro lugar, porque estes livros desejam abrir caminho para muitos outros textos que, portadores de intenes seme-lhantes, venham a discordar do que neles est escrito, e a retificar, a ampliar, a gerar reflexes acerca de cada situao especfica, de cada povo especfico, de modo que, se surgirem semelhanas nesse processo, sejam elas resultantes da comparao entre os diferentes modos de vida

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    e histrias especficas dos povos indgenas, e no do seu aniquilamento pela submisso dessa diversidade a uma idia geral do que ser um ge-nrico cidado brasileiro.

    Finalmente, em quarto lugar e, sobretudo, por serem publicados pelo Governo Federal e distribudos amplamente no pas, espera-se ainda que esses livros abram novas trilhas a conhecimentos essenciais hoje enclausurados nos cofres das universidades a um importante e cres-cente nmero de estudantes indgenas, de modo que eles possam re-combin-los em solues prprias, singulares, inovadoras, fruto de suas prprias pesquisas e ideologias. Assim, talvez pela preservao da dife-rena em meio universalidade e pela busca da ruptura com os efeitos de poder totalitrio de saberes dominantes e segregadores, vivique-se a idia da universidade, em seu sentido mais original e denso, livre das constries amesquinhadoras com as quais a sua apropriao tem sido brindada por projetos de Estado. Quem sabe a a to atual e propalada incluso dos menos favorecidos venha a perder o risco de ser, para os povos indgenas, mais um projeto massificante e etnocida, e se possa reconhecer e purgar que muitas desigualdades se instauram na histria a partir da invaso e das conquistas dos diferentes.

    *

    O ndio Brasileiro: o que voc precisa saber sobre os povos in-dgenas no Brasil de hoje, do professor Gersem dos Santos Luciano Baniwa, primeiro ndio Mestre em Antropologia Social no Brasil, representante indgena no Conselho Nacional de Educao e ator de primeira grandeza do movimento indgena, uma preciosa apresenta-o do cenrio indgena contemporneo no Brasil. O livro confronta-nos com aspectos da experincia de vida de povos contemporneos cujos desafios se colocam vis--vis aos preconceitos, aos esteretipos e s vises parciais que os prprios jovens estudantes indgenas tm que enfrentar na escola ao procurarem ver-se de forma positiva e livres dos clichs que os reportam mais s imagens construdas pelos coloni-zadores do que ao seu modo atual de ser.

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    Trata-se, pois, de um texto que parte das imagens de si mesmo e dos outros com as quais lidam os ndios no Brasil de hoje, na luta para se projetarem no futuro e construrem um presente melhor, luz de suas tradies culturais diferenciadas e das constries colocadas pelas ml-tiplas realidades do nosso pas no presente. Ao faz-lo, Gersem Luciano no apenas nos apresenta baseando-se nos dados mais confiveis para isso um retrato bastante claro das condies de vida dos povos ind-genas na atualidade, como tambm nos mostra o quanto tem sido fun-damental a atuao do movimento indgena no pas e as perspectivas que sua atuao ajuda a traar para que jovens indgenas, em processo de formao universitria, possam sentir-se portadores de uma riqueza que se os distingue, no pode inferioriz-los nem faz-los necessitados de uma proteo infantilizadora e tutelar.

    Em suma, este texto, nico em seu intento, coloca para o seu principal pblico destinatrio o desafio de seguir seus argumentos especficos um dentre muitos outros com ele interagindo, debatendo e participando na construo de novas maneiras de interveno no mundo contempo-rneo, conseqentemente, de afirmao positiva dos diversos modos de ser indgena com os quais dialoga. Para os brancos, por sua vez, uma lio imprescindvel a nos lembrar dos muitos projetos que vivem nesses diversos Brasis que, irrefletidamente, cremos ser um nico.

    Antonio Carlos de Souza LimaLACED / Departamento de Antropologia

    Museu Nacional / UFRJ

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    Introduo

    H uma grande diferena entre os milhes de povos nativos que habitavam as terras que hoje chamamos de Brasil desde mi-lhares de anos antes da chegada dos portugueses e as poucas centenas de povos denominados indgenas que atualmente compem os 0,4% da populao brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE, 2001). A diferena no s de tempo nem de populao, mas principalmente de cultura, de esprito e de viso do mundo sobre o passado, o presente e o futuro. Estimativas apontam que no atual territrio brasileiro habitavam pelo menos 5 milhes de pessoas, por ocasio da chegada de Pedro lvares Cabral, no ano de 1500. Se hoje esse contingente populacional est reduzido a pouco mais de 700.000 pessoas, muitas coisas ruins as atingiram.

    De fato, a histria testemunha de que vrias tragdias ocasionadas pelos colonizadores aconteceram na vida dos povos originrios dessas terras: escravido, guerras, doenas, massacres, genocdios, etnocdios e outros males que por pouco no eliminaram por completo os seus ha-bitantes. No que esses povos no conhecessem guerra, doena e outros males. A diferena que nos anos da colonizao portuguesa eles fa-ziam parte de um projeto ambicioso de dominao cultural, econmica, poltica e militar do mundo, ou seja, um projeto poltico dos europeus, que os povos indgenas no conheciam e no podiam adivinhar qual fosse. Eles no eram capazes de entender a lgica das disputas territo-riais como parte de um projeto poltico civilizatrio, de carter mundial e centralizador, uma vez que s conheciam as experincias dos conflitos territoriais intertribais e interlocais.

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    A partir do contato, as culturas dos povos indgenas sofreram pro-fundas modificaes, uma vez que dentro das etnias se operaram im-portantes processos de mudana sociocultural, enfraquecendo sobre-maneira as matrizes cosmolgicas e mticas em torno das quais girava toda a dinmica da vida tradicional. No incio do contato, apesar de serem uma maioria local adaptada culturalmente ao meio em que habi-tavam, no contavam com uma experincia prvia de intensas relaes intertnicas e com os impactos provocados pela violncia dos agentes de colonizao, que foram por demais severos.

    Foram 506 anos de dominao e, em que pesem as profecias de ex-tino definitiva dos povos indgenas no territrio brasileiro, previstas ainda no milnio passado, os ndios esto mais do que nunca vivos: para lembrar e viver a memria histrica e, mais do que isso, para res-gatar e dar continuidade aos seus projetos coletivos de vida, orientados pelos conhecimentos e pelos valores herdados dos seus ancestrais, ex-pressos e vividos por meio de rituais e crenas. So projetos de vida de 222 povos que resistiram a toda essa histria de opresso e represso. Viver a memria dos ancestrais significa projetar o futuro a partir das riquezas, dos valores, dos conhecimentos e das experincias do passado e do presente, para garantir uma vida melhor e mais abundante para todos os povos. Mas essa abundncia de vida, buscada por todos os povos do mundo, para os povos indgenas passa necessariamente pela manuteno dos seus modos prprios de viver, o que significa formas de organizar trabalhos, de dividir bens, de educar filhos, de contar his-trias de vida, de praticar rituais e de tomar decises sobre a vida cole-tiva. Dessa maneira, os povos indgenas no so seres ou sociedades do passado. So povos de hoje, que representam uma parcela significativa da populao brasileira e que por sua diversidade cultural, territrios, conhecimentos e valores ajudaram a construir o Brasil.

    certo que no Brasil de hoje ainda muitos brasileiros nos vem como ndios preguiosos, improdutivos, empecilhos para o desenvolvimen-to. Outros nos vem como valiosos protetores das florestas, dos rios, e possveis salvadores do planeta doente em funo da ambio de alguns homens brancos que esto devastando tudo o que encontram pela fren-

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    te. E ns ndios, o que pensamos de ns mesmos? Ou melhor, como nos identificamos ou nos posicionamos diante de ns mesmos e diante da sociedade brasileira e da humanidade?

    Este livro uma tentativa de abordar questes que envolvem auto-identificao, auto-estima, auto-representao e autoprojeo dos n-dios diante de si mesmos e da sociedade de uma maneira geral. As idias esto baseadas na experincia de vida e de trabalho junto a centenas de lideranas, comunidades e povos indgenas com os quais tive a opor-tunidade e o privilgio de partilhar desafios e conquistas, tristezas e alegrias, derrotas e vitrias, como foram as importantes conquistas re-lativas aos direitos indgenas na Constituio Brasileira em vigor.

    Desde 1986, ano importante para o incio da mobilizao indgena no processo de discusses na Constituinte que visava garantia dos direitos indgenas, tenho dedicado minha vida luta indgena, acom-panhando e participando de todo o processo de mudana do Brasil e dos povos indgenas. Pude vivenciar o ltimo perodo de represso mi-litar contra os nossos povos, principalmente contra aqueles habitantes das faixas de fronteiras, como o que aconteceu na minha regio, no rio Iana, no comeo da dcada de 1980. Mas tambm acompanhei e participei de importantes avanos no tocante aos direitos dos povos indgenas, como os conquistados na Constituio de 1988, aps longo processo de luta, mobilizao e presso dos ndios e de seus aliados. A conquista histrica dos direitos na Constituio promulgada em 1988 mudou substancialmente o destino dos povos indgenas do Brasil. De transitrios e incapazes passaram a protagonistas, sujeitos coletivos e sujeitos de direitos e de cidadania brasileira e planetria.

    Acompanhei e participei de todo o processo de surgimento e de con-solidao do chamado movimento indgena organizado, nas dcadas de 1970 e 1980. Foi um perodo histrico da luta de resistncia indgena no Brasil, por um lado, caracterizado pelo surgimento e pela atuao de lideranas indgenas carismticas que, com coragem e determinao, enfrentaram as foras colonialistas e integracionistas (Estado e Igreja) que subjugavam os povos indgenas; por outro lado, os povos indgenas, apoiados por alguns importantes aliados (missionrios, indigenistas e

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    intelectuais), iniciavam uma longa e bonita caminhada de reorganiza-o, mobilizao e articulao poltica pan-indgena de resistncia e de defesa de seus direitos e interesses coletivos poca herica que marcou a principal mudana no curso da histria brasileira. At ento, acredi-tava-se que a existncia dos povos indgenas era uma questo de tempo; eram tidos como um contingente social transitrio. Por isso mesmo, nos fins da dcada de 1970, o prprio Estado tentou consumar esse ideal poltico com um projeto de emancipao dos ndios: por meio de uma lei que deveria transformar os ndios sobreviventes em cidados comuns. Assim estaria decretada a extino final dos povos indgenas do Brasil.

    Em grande medida, a emergncia do movimento indgena na luta articulada pelos seus direitos e interesses foi uma reao e uma respos-ta aos propsitos do Estado de emancipao dos ndios. Desde ento, iniciou-se um longo processo de superao do fantasma do desapareci-mento dos povos indgenas, de reafirmao das identidades tnicas e da reconstruo dos projetos socioculturais dos povos sobreviventes. Este processo est em curso com horizontes ainda incertos, mas bem mais esperanosos por causa do protagonismo cada vez mais forte dos povos indgenas.

    Os resultados dessa mudana de perspectiva histrica na luta de re-sistncia indgena so expressos por alguns dados, como o crescimento demogrfico que est em torno de 4% ao ano contra 1,6% da popu-lao brasileira, o que possibilitou um aumento de 250.000 ndios no incio da dcada de 1970 para 700.000 em 2001. Por ter acompanha-do e participado ativamente de todo esse processo, no tenho dvidas sobre os avanos conquistados, alm dos novos e dos velhos desafios que os povos indgenas do Brasil enfrentam na atualidade. Um destes como pensar polticas para os ndios urbanos, cuja demanda est em franco crescimento. Outro deles a questo da terra, que cada dia mais est ficando insuficiente para assegurar sobrevivncia adequada e digna principalmente aos povos indgenas das regies Sul, Nordeste e Cen-tro-Oeste, sem levar em considerao as mais de 600 terras que ainda precisam ser garantidas e regularizadas pelo Estado brasileiro.

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    De todo modo, as perspectivas indgenas de agora so outras em relao s de vinte anos atrs, quando iniciei a luta junto ao meu povo. Hoje, os ndios conseguiram recuperar algo que naquela poca se imagi-nava impossvel ou indesejvel: a auto-estima. Junto com a auto-estima foi sendo recobrada a identidade tnica, como uma realizao individu-al e coletiva, mas tambm como cidadania reconhecida pela sociedade e pelo Estado. Hoje, quando vejo os povos indgenas cada vez mais presentes em todos os aspectos da vida nacional cultura, agenda de governo, mdia nos seus diversos segmentos, pesquisa, vida universit-ria, esportes, poltica parlamentar e partidria comeo a acreditar que a questo indgena pode ter no somente maior visibilidade e relevncia na vida nacional mas, sobretudo, um espao prprio de autonomia e de liberdade para que se decida como viver nesse mundo atual com todas as suas vantagens e desvantagens.

    Durante dez anos, de 1987 a 1997, fui dirigente da minha comuni-dade baniwa de Cararapoo, no rio Iana, perodo em que tambm fui dirigente da primeira organizao indgena baniwa, denominada Asso-ciao das Comunidades Indgenas do Rio Iana ACIRI, e da Federa-o das Organizaes Indgenas do Rio Negro FOIRN. Ambas foram criadas em 1987 e eu, como um dos fundadores, fui tambm um dos quatro diretores eleitos para as primeiras diretorias das duas organiza-es. A FOIRN, nesses 18 anos de luta, consolidou-se e hoje uma das principais e das maiores organizaes indgenas do Brasil. No Rio Iana rio dos Baniwas existem atualmente 10 organizaes indgenas, e a ACIRI tornou-se a Organizao das Comunidades Indgenas do Dis-trito de Assuno do Iana, tendo como sede a mesma comunidade de Cararapoo.

    Em 1989 foi fundada a Comisso de Articulao dos Povos e Orga-nizaes Indgenas do Brasil CAPOIB, com sede em Braslia, e desde ento passei a compor a Comisso de Coordenao que era formada por 15 lideranas indgenas do Brasil. Seu objetivo elaborar e acom-panhar o planejamento de atividades da Organizao, implementado por uma coordenao executiva. Esta insero no movimento indgena nacional me permitiu conhecer um pouco mais a diversidade de realida-

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    des indgenas do pas e as diferentes estratgias adotadas pelos distintos povos e pelas organizaes indgenas. Pude acompanhar, por exemplo, o processo de organizao dos povos indgenas do Nordeste, de Minas Gerais e do Esprito Santo atravs de uma organizao hoje conheci-da como APOINME (Articulao dos Povos Indgenas do Nordeste, Minas Gerais e Esprito Santo), o que contribuiu decisivamente para o processo de reafirmao tnica e para a retomada da luta pela terra, denominada de etnognese, em franco processo de expanso e de con-solidao poltica nas referidas regies.

    Em 1996 fui eleito coordenador geral da COIAB para um perodo de dois anos, mas em 1997, interessado em estender a minha experin-cia para o campo de polticas pblicas, aceitei o convite para dirigir a Secretaria Municipal de Educao do meu municpio, So Gabriel da Cachoeira/AM, feito pelo ento primeiro prefeito petista eleito no es-tado do Amazonas, o que foi possvel graas a uma ampla aliana com as principais lideranas indgenas da regio. As experincias adquiridas na coordenao da COIAB e na CAPOIB possibilitaram-me uma viso mais ampla das realidades e das problemticas vividas pelos povos ind-genas da Amaznia e do Brasil. Essas vivncias, somadas experincia local, foram decisivas para o profundo e incondicional compromisso com a luta indgena no Brasil e no mundo.

    Em 1999 fui indicado pelo Conselho Deliberativo e pela Coorde-nao Executiva da COIAB para coordenar o processo de implantao do Projeto Demonstrativo dos Povos Indgenas PDPI no mbito do Ministrio do Meio Ambiente. O PDPI um dos subprojetos do Pro-grama de Proteo das Florestas Tropicais do Brasil PPG7, criado em 1992 durante a realizao da grande conferncia mundial sobre meio ambiente, no Rio de Janeiro mais conhecida por RIO 92 ou ECO 92 como resultado de muita presso e da articulao da sociedade civil brasileira organizada, inclusive do movimento indgena. O PDPI conta com recursos financeiros e tcnicos do governo alemo e do governo britnico para apoiar iniciativas dos povos indgenas da Amaznia que visam proteger as terras indgenas, a valorizao das culturas tradicio-nais, o fortalecimento das organizaes indgenas e as atividades eco-

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    nmicas sustentveis. A fase preparatria do projeto, que consistiu em amplas consultas aos povos indgenas sobre a concepo, o perfil, as reas temticas, os formulrios para apresentao dos projetos e o nvel de participao indgena, recebeu apoio financeiro do governo japons. Esse perodo corresponde aos anos de 1999 a 2001.

    Com o incio da fase de implementao do projeto em 2001, fui confirmado como gerente tcnico do projeto, funo que exerci at de-zembro de 2003, quando decidi enfrentar o mestrado em antropologia social na UNB, com apoio de uma bolsa de estudo da Fundao Ford, a qual acabara de conquistar aps longo processo de seleo. A deciso de continuar os estudos baseou-se nas limitaes pessoais vivenciadas durante as duas experincias: na Secretaria Municipal de Educao e na coordenao do PDPI. Senti a necessidade de ampliar minha capacidade de entendimento e compreenso do complexo universo cientfico, tcni-co e tecnolgico do mundo moderno. Entendo que o maior domnio e a apropriao adequada desses poderosos instrumentos de trabalho e luta do mundo de hoje no me tornaram menos ndio, ao contrrio, pro-porcionaram-me maior capacidade de interveno e contribuio para o fortalecimento da luta histrica do meu povo Baniwa e dos povos indgenas do Brasil.

    Esta autobiografia inicial foi traada para demonstrar a base de ex-perincia que fundamenta e orienta o olhar, a leitura e a interpretao do mundo indgena e no-indgena, expressa nas prximas pginas com o intuito de produzir debate e, principalmente, o to falado e pouco praticado dilogo intercultural. No se trata, portanto, de verdades ab-solutas ou argumentos certos, mas de um ponto de vista sobre a vida e sobre o mundo, a partir das mltiplas experincias de pessoas que participaram e participam de uma realidade concreta e o fizeram em determinado perodo da longa histria da humanidade e do mundo.

    O compromisso do dilogo travado aqui com os ndios reais, aque-les que vivem no mundo de hoje, em um esforo de mostrar de forma mais ampla a situao nacional e os desafios que aguardam a gera-o de graduados indgenas, alm das expectativas do movimento, das organizaes e das comunidades indgenas em relao a esses novos

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    atores, potenciais lideranas de suas respectivas comunidades e povos. Esperamos que os diversos temas abordados sirvam para compor novos programas de trabalho, de estudos e de pesquisas que levem em consi-derao as demandas, as necessidades e os desejos concretos e legtimos dos povos indgenas do Brasil.

    Por fim, devo chamar a ateno para um desafiante tema os ndios urbanos um caminho novo e longo que precisa ser aprofundado e valorizado em todos os campos de ao do movimento indgena e in-digenista. De incio, as perspectivas dos ndios urbanos no so e no podem ser as mesmas dos ndios aldeados. O simples fato de os ndios urbanizados viverem em condies que no dependem de territrio para sobreviverem j suficiente para se ter certeza de que no podem ser tratados de forma homognea, o que no significa excluso. Os ndios aldeados vivem dos recursos oferecidos pela natureza, enquanto os n-dios que moram em centros urbanos vivem geralmente de prestaes de servios e como mo-de-obra do mercado de trabalho. Disso resulta que a perspectiva dos ndios aldeados estar mais focada para a valorizao dos seus conhecimentos tradicionais de produo, consumo e distribui-o de bens, enquanto os ndios de centros urbanos estaro propensos a apostar na qualificao profissional e na capacidade de insero no mercado local e global. O fato demonstra, por exemplo, a necessidade de se pensarem projetos de escolas e de formao diferenciada para as duas realidades indgenas distintas.

    Tal diferena de perspectivas de vida, no entanto, no pode justificar o estabelecimento de fronteiras rgidas entre as duas realidades, o que seria uma outra forma de excluso e de discriminao, porque ambas as perspectivas so, na verdade, parte de uma mesma referncia socio-cultural e no existe nada que impossibilite que os diferentes horizontes de vida se reencontrem em algum momento da histria. Queremos com isso destacar que os jovens indgenas que, por alguma razo histrica, se distanciaram aparentemente de suas comunidades e culturas tradi-cionais podem restabelecer com elas e isto sempre possvel e desej-vel seus vnculos afetivos, culturais e polticos, ainda que distncia. Existem inmeros casos em que jovens indgenas que saram h muito

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    tempo de suas aldeias para estudar fora, ou mesmo para se aventurar mundo afora, voltaram e se tornaram lideranas de muito prestgio nas suas comunidades, colocando a servio do seu povo toda a experincia acumulada e as lies aprendidas no mundo exterior.

    Sabemos que hoje existem muitos jovens indgenas que esto saindo de suas comunidades e aldeias para estudar, principalmente no mbito da formao universitria, o que muito salutar para seus locais de origem. importante que se tenha noo de que qualquer sada desse gnero fragiliza, de incio, o vnculo identitrio com a sua comunidade, mas absolutamente possvel administrar tal distanciamento e conver-ter a inquietude quanto a isso, colocando a servio de seu povo tudo o que aprendeu, assim se sentindo realizado e feliz, individual e coletiva-mente. A rigor, isso que as comunidades, os povos e as organizaes indgenas esperam dos jovens quando partem para estudar. No entanto, ficam muitas vezes decepcionados quando eles, ao conclurem seus estu-dos, trocam sua gente e seu espao de origem por salrios de empresas ou de rgos pblicos e se esquecem de retribuir a confiana que neles foi depositada.

  • Captulo 1

    Quem so e quantos so os ndios no Brasil

    Grupo Nambikwara, Rondnia Coleo Comisso Rondon, 1912

    Setor de Etnologia, Museu Nacional/UFRJ

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    Falar hoje de ndios no Brasil significa falar de uma diversidade de povos, habitantes originrios das terras conhecidas na atualidade como continente americano. So povos que j habitavam h mi-lhares de anos essas terras, muito antes da invaso europia. Segundo uma definio tcnica das Naes Unidas, de 1986,

    as comunidades, os povos e as naes indgenas so aqueles que, contando com uma continuidade histrica das sociedades an-teriores invaso e colonizao que foi desenvolvida em seus territrios, consideram a si mesmos distintos de outros setores da sociedade, e esto decididos a conservar, a desenvolver e a transmitir s geraes futuras seus territrios ancestrais e sua identidade tnica, como base de sua existncia continuada como povos, em conformidade com seus prprios padres culturais, as instituies sociais e os sistemas jurdicos.

    Entre os povos indgenas existem alguns critrios de autodefinio

    mais aceitos, embora no sejam nicos e nem excludentes:Continuidade histrica com sociedades pr-coloniais.

    Estreita vinculao com o territrio.

    Sistemas sociais, econmicos e polticos bem definidos.

    Lngua, cultura e crenas definidas.

    Identificar-se como diferente da sociedade nacional.

    Vinculao ou articulao com a rede global dos povos indgenas.

    Estimativas demogrficas apontam que por volta de 1500, quando da chegada de Pedro lvares Cabral terra hoje conhecida como Bra-sil, essa regio era habitada pelo menos por 5 milhes de ndios. Hoje, essa populao est reduzida a pouco mais de 700.000 ndios em todo Brasil, segundo dados de 2001 do IBGE. A Fundao Nacional do n-dio (FUNAI) e a Fundao Nacional de Sade (FUNASA) trabalham com dados ainda muito inferiores: pouco mais de 300.000 ndios. Essa diferena ocorre em funo de diferentes mtodos utilizados para a ob-teno de dados. A FUNAI e a FUNASA, por exemplo, trabalham ape-nas com as populaes indgenas reconhecidas e registradas por elas, geralmente as populaes habitantes de aldeias localizadas em terras

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    indgenas reconhecidas oficialmente. Nos dados da FUNAI e da FU-NASA, portanto, no est contabilizado o grande nmero de indgenas que atualmente reside nas cidades ou em terras indgenas ainda no de-marcadas ou reconhecidas, mas que nem por isso deixam de ser ndios. O IBGE utilizou o mtodo de auto-identificao para chegar aos seus nmeros, o que parece ser mais confivel e realista. Alm disso, ainda existem povos indgenas brasileiros que esto fora desses dados, inclu-sive os do IBGE, e que so denominados ndios isolados, ou ndios ainda em vias de reafirmao tnica aps anos de dominao e repres-so cultural.

    Os dados da FUNASA so importantes no que se refere s infor-maes sobre as populaes indgenas que vivem nas terras indgenas. Segundo dados do Sistema de Informao de Ateno Sade Indgena/SIASI/FUNASA, o contingente populacional habitante das terras ind-genas reconhecidas pelo governo brasileiro e cadastrado pelo Sistema de 374.123 ndios, distribudos em 3.225 aldeias, pertencentes a 291 etnias e falantes de 180 lnguas divididas por 35 grupos lingsticos (FUNASA, Relatrio DESAI, 2002:3). Dos 374.123 indgenas atendi-dos pela FUNASA, 192.773 so homens e 181.350 so mulheres.

    Ainda segundo os dados da FUNASA, a populao indgena est dispersa por todo o territrio brasileiro, sendo que na regio Norte con-centra-se o maior contingente populacional indgena, com 49%, e na regio Sudeste est o menor contingente populacional indgena do pas, com apenas 2%.

    Desde a ltima dcada do sculo passado vem ocorrendo no Brasil um fenmeno conhecido como etnognese ou reetinizao. Nele, povos indgenas que, por presses polticas, econmicas e religiosas ou por terem sido despojados de suas terras e estigmatizados em funo dos seus costumes tradicionais, foram forados a esconder e a negar suas identidades tribais como estratgia de sobrevivncia assim amenizan-do as agruras do preconceito e da discriminao esto reassumindo e recriando as suas tradies indgenas. Esse fenmeno est ocorrendo principalmente na regio Nordeste e no sul da regio Norte, precisa-mente no estado do Par.

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    A criao de organizaes indgenas formais que representem os seus interesses perante a sociedade nacional e global e por meio das quais possam ser construdas alianas para resolverem suas demandas cons-titui um passo importante na redefinio do lugar dos povos indgenas no Brasil. A consolidao do movimento indgena, a oferta de polticas pblicas especficas e a recente e crescente revalorizao das culturas indgenas esto possibilitando a recuperao do orgulho tnico e a rea-firmao da identidade indgena.

    Neste sentido, os povos indgenas brasileiros de hoje so sobre-viventes e resistentes da histria de colonizao europia, esto em franca recuperao do orgulho e da auto-estima identitria e, como desafio, buscam consolidar um espao digno na histria e na vida multicultural do pas.

    1.1 Por que ndios ou Indgenas

    Este captulo abordar a utilizao das categorias ndio e parente nas relaes intra e intertnicas vistas como fundamentais para que se entendam as novas formas de relaes sociais, polticas e econmicas dos povos indgenas do Brasil alm de outros termos e conceitos pr-prios do universo indgena e indigenista, no esforo de contribuir para a superao das confuses mais gerais que surgem por causa da falta de esclarecimento a respeito das denominaes e dos conceitos tomados muitas vezes como absolutos. O que se pretende valorizar, relativizan-do as denominaes e os conceitos, toda a riqueza histrica e cultural dos povos indgenas do Brasil.

    A denominao ndio ou indgena, segundo os dicionrios da ln-gua portuguesa, significa nativo, natural de um lugar. tambm o nome dado aos primeiros habitantes (habitantes nativos) do continen-te americano, os chamados povos indgenas. Mas esta denominao o resultado de um mero erro nutico. O navegador italiano Cristvo Colombo, em nome da Coroa Espanhola, empreendeu uma viagem em 1492 partindo da Espanha rumo s ndias, na poca uma regio

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    da sia. Castigada por fortes tempestades, a frota ficou deriva por muitos dias at alcanar uma regio continental que Colombo imagi-nou que fossem as ndias, mas que na verdade era o atual continente americano. Foi assim que os habitantes encontrados nesse novo con-tinente receberam o apelido genrico de ndios ou indgenas que at hoje conservam. Deste modo, no existe nenhum povo, tribo ou cl com a denominao de ndio. Na verdade, cada ndio pertence a um povo, a uma etnia identificada por uma denominao prpria, ou seja, a autodenominao, como o Guarani, o Yanomami etc. Mas tambm muitos povos recebem nomes vindos de outros povos, como se fosse um apelido, geralmente expressando a caracterstica principal daquele povo do ponto de vista do outro. Ex.: Kulina ou Madj. Os Kanamari se autodenominam Madj, mas os outros povos da regio do Alto Juru os chamam de Kanamari.

    Desde a primeira invaso de Cristvo Colombo ao continente americano, h mais de 508 anos, a denominao de ndios dada aos habitantes nativos dessas terras continua at os dias de hoje. Para mui-tos brasileiros brancos, a denominao tem um sentido pejorativo, resultado de todo o processo histrico de discriminao e preconceito contra os povos nativos da regio. Para eles, o ndio representa um ser sem civilizao, sem cultura, incapaz, selvagem, preguioso, traio-eiro etc. Para outros ainda, o ndio um ser romntico, protetor das florestas, smbolo da pureza, quase um ser como o das lendas e dos romances.

    Com o surgimento do movimento indgena organizado a partir da dcada de 1970, os povos indgenas do Brasil chegaram concluso de que era importante manter, aceitar e promover a denominao ge-nrica de ndio ou indgena, como uma identidade que une, articula, visibiliza e fortalece todos os povos originrios do atual territrio bra-sileiro e, principalmente, para demarcar a fronteira tnica e identit-ria entre eles, enquanto habitantes nativos e originrios dessas terras, e aqueles com procedncia de outros continentes, como os europeus, os africanos e os asiticos. A partir disso, o sentido pejorativo de n-dio foi sendo mudado para outro positivo de identidade multitnica

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    de todos os povos nativos do continente. De pejorativo passou a uma marca identitria capaz de unir povos historicamente distintos e rivais na luta por direitos e interesses comuns. neste sentido que hoje todos os ndios se tratam como parentes.

    O termo parente no significa que todos os ndios sejam iguais e nem semelhantes. Significa apenas que compartilham de alguns interesses comuns, como os direitos coletivos, a histria de colonizao e a luta pela autonomia sociocultural de seus povos diante da sociedade global. Cada povo indgena constitui-se como uma sociedade nica, na medida em que se organiza a partir de uma cosmologia particular prpria que baseia e fundamenta toda a vida social, cultural, econmica e religiosa do grupo. Deste modo, a principal marca do mundo indgena a di-versidade de povos, culturas, civilizaes, religies, economias, enfim, uma multiplicidade de formas de vida coletiva e individual.

    A deciso qualificada tomada pelos povos indgenas do Brasil quan-to valorizao positiva da denominao genrica de ndio ou ind-gena, expressa por meio do termo parente, simboliza a superao do sentimento de inferioridade imposto a eles pelos colonizadores durante todo o processo de colonizao. notrio que a qualificao estratgica dada categoria social e poltica destes termos tenha impulsionado a emergncia das reafirmaes de identidades tnicas particulares de cada povo com fora e clareza nunca antes vistas, ou seja, enquanto a deno-minao ndio ou indgena era negada pelos povos indgenas por ser pe-jorativa e desqualificadora, as identidades tnicas particulares tambm eram negadas ou reprimidas.

    Antes da dcada de 1970, chamar algum de ndio, fosse ele nativo ou no, era uma ofensa. E como a denominao estava associada aos povos nativos, conseqentemente as denominaes e as autodenomi-naes tnicas eram igualmente indesejveis. Por isso, muitos ndios negavam suas identidades e suas origens, ou melhor, tentavam negar suas origens tnicas, pois na maioria dos casos a negao era uma verdadeira iluso, uma vez que ningum consegue esconder aparncia fsica, usos, costumes e modos de vida e de pensamento. A denomina-o original de caboclo na Amaznia, por exemplo, est fortemente

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    relacionada a essa negao das identidades tnicas dos ndios. Foi uma inveno daqueles que no queriam se identificar como ndios, mas tambm no podiam se reconhecer como brancos ou negros (pois no pareciam), como se fosse uma identidade de transio de ndio (ser inferior ou cultura inferior) para branco (ser civilizado e superior). Neste sentido, o caboclo seria aquele que nega sua origem nativa, mas que por no poder ainda se reconhecer como branco se identificava com o mais prximo possvel do branco.

    importante destacar que essa mudana de superao da autonega-o identitria imposta trouxe outros constrangimentos para os povos indgenas, ainda hoje presentes no dia-a-dia de muitos ndios. Como exemplo, podemos citar o caso de uma parcela da populao Baniwa habitante do baixo rio Iana, no alto rio Negro, que desde a dcada de 1950 foi substituindo a lngua baniwa pela lngua nheengatu ou lngua geral. poca essa substituio era sinnimo de grande conquista de valor social, na medida em que significava se afastar da identidade ba-niwa para incorporar a identidade cabocla, portanto, mais prxima da identidade branca como etapa superior da civilizao humana. Naquela poca, os falantes de nheegatu na regio do alto rio Negro eram consi-derados caboclos, portanto, civilizados.

    O nheegatu ou lngua geral uma variao da lngua tupi-guarani falada por diversos povos indgenas do litoral brasileiro, que foi siste-matizada por missionrios e levada a outros povos indgenas do Brasil como uma lngua de comunicao pan-indgena.

    Com a emergncia do movimento indgena no incio da dcada de 1980, essa realidade sociocultural mudou completamente. O valor so-ciocultural passou a ter outra referncia. Comearam a ser valorizados os povos que falavam suas lnguas originrias e praticavam suas tradi-es. Ser um Baniwa falante da lngua e praticante das tradies baniwa tornou-se um valor mximo, ao passo que ser caboclo transformou-se em um contravalor, isto , na ausncia ou na negao de identidade, ou ainda, como se diz na regio, um z-ningum, um warix (significa prvulo em nheegatu)). Por conta disso, os Baniwa que s falavam o nheegatu passaram a ser menosprezados e discriminados e entraram

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    numa relativa crise de identidade individual e coletiva transitria que os forou a lutar por resgate e recuperao de suas origens e tradies, o que no fcil e, muitas vezes, nem desejvel.

    O processo de reafirmao das identidades tnicas, articulado no plano estratgico pan-indgena por meio da aceitao da denominao genrica de ndios ou indgenas, resultou na recuperao da auto-estima dos povos indgenas perdida ao longo dos sculos de dominao e escra-vido colonial. O ndio de hoje um ndio que se orgulha de ser nativo, de ser originrio, de ser portador de civilizao prpria e de pertencer a uma ancestralidade particular. Este sentimento e esta atitude positiva esto provocando o chamado fenmeno da etnognese, principalmente no Nordeste. Os povos indgenas, que por fora de sculos de represso colonial escondiam e negavam suas identidades tnicas, agora reivin-dicam o reconhecimento de suas etnicidades e de suas territorialidades nos marcos do Estado brasileiro.

    Para estes povos, denominados tambm de ressurgidos ou re-sistentes, no fazer parte do arco de aliana poltica e identitria de parentes indgenas pode ser atualmente o pior castigo. Neste sentido, eles representam hoje o segmento indgena mais ativo e mais combativo na busca por reconhecimento e visibilidade poltica, buscando marcar posio e fronteira tnica que lhes garantam um espao sociocultural e poltico num mundo que ilusoriamente se pretende cada vez mais mo-nocultural e global.

    Deste modo, foi sendo possvel construir uma nova conformao po-ltica pan-indgena em torno de direitos e interesses comuns, superando a maior inimiga interna dos povos indgenas durante os sculos de colo-nizao e to bem aproveitada pelos colonizadores europeus: as guerras intertribais. De inimigos tornaram-se parentes, companheiros, irmos de histria na luta por direitos e interesses comuns contra um inimigo comum, aquele que os quer indistintos, portanto, extintos, enquanto povos etnicamente diferenciados.

    A nova estratgia de aliana poltica pan-indgena a responsvel pelas mais importantes conquistas dos povos indgenas do Brasil: a superao do trgico projeto de extino dos ndios e a arrojada pro-

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    messa de construo de uma unidade poltica dos povos indgenas que no signifique igualdade ou homogeneidade sociocultural e poltica, mas sim uma unidade articulada de povos culturalmente distintos, na defesa de seus direitos e interesses comuns. Dentre esses direitos e interesses encontra-se a prpria continuidade das diferenas de pro-jetos societrios, de garantia das territorialidades e da conquista de cidadania global diferenciada.

    1.2 O que pensam os brasileiros sobre os ndios brasileiros

    Historicamente os ndios tm sido objeto de mltiplas imagens e con-ceituaes por parte dos no-ndios e, em conseqncia, dos prprios ndios, marcadas profundamente por preconceitos e ignorncia. Desde a chegada dos portugueses e outros europeus que por aqui se instalaram, os habitantes nativos foram alvo de diferentes percepes e julgamen-tos quanto s caractersticas, aos comportamentos, s capacidades e natureza biolgica e espiritual que lhes so prprias. Alguns religiosos europeus, por exemplo, duvidavam que os ndios tivessem alma. Outros no acreditavam que os nativos pertencessem natureza humana pois, segundo eles, os indgenas mais pareciam animais selvagens. Estas so algumas maneiras diferentes de como os brancos concebem a totali-dade dos povos indgenas a partir da viso etnocntrica predominante no mundo ocidental europeu.

    Dessa viso limitada e discriminatria, que pautou a relao entre ndios e brancos no Brasil desde 1500, resultou uma srie de ambigi-dades e contradies ainda hoje presentes no imaginrio da sociedade brasileira e dos prprios povos indgenas. A sociedade brasileira majo-ritria, permeada pela viso evolucionista da histria e das culturas, continua considerando os povos indgenas como culturas em estgios inferiores, cuja nica perspectiva a integrao e a assimilao cul-tura global. Os povos indgenas, com forte sentimento de inferioridade, enfrentam duplo desafio: lutar pela auto-afirmao identitria e pela conquista de direitos e de cidadania nacional e global.

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    As contradies e os preconceitos tm na ignorncia e no desco-nhecimento sobre o mundo indgena suas principais causas e origens e que precisam ser rapidamente superados. Um mundo que se autode-fine como moderno e civilizado no pode aceitar conviver com essa ausncia de democracia racial, cultural e poltica. Como se pode ser civilizado se no se aceita conviver com outras civilizaes? Como se pode ser culto e sbio se no se conhece e o que bem pior no se aceita conhecer outras culturas e sabedorias? Enquanto isso no acontece, continuamos convivendo com as contradies em relao aos povos indgenas, as quais podemos resumir na atualidade em trs distintas perspectivas sociais.

    A primeira diz respeito antiga viso romntica sobre os ndios, pre-sente desde a chegada dos primeiros europeus ao Brasil. a viso que concebe o ndio como ligado natureza, protetor das florestas, ingnuo, pouco capaz ou incapaz de compreender o mundo branco com suas regras e valores. O ndio viveria numa sociedade contrria sociedade moderna. Essa viso criada por cronistas, romancistas e intelectuais, desde a chegada de Pedro lvares Cabral em 1500, perdura at os dias de hoje e tem fundamentado toda a relao tutelar e paternalista entre os ndios e a sociedade nacional, institucionalizada pelas polticas indi-genistas do ltimo sculo, inicialmente, por meio do Servio de Prote-o ao ndio (SPI) e, atualmente, pela Fundao Nacional do ndio (FU-NAI). Aqui o ndio percebido sempre como uma vtima e um coitado que precisa de tutor para proteg-lo e sustent-lo, isto , sem tutor ou protetor os ndios no conseguiriam se defender, se proteger, se desen-volver e sobreviver. Da a idia da FUNAI como pai e me, ainda muito presente entre vrios povos indgenas do Brasil.

    A segunda perspectiva sustentada pela viso do ndio cruel, br-baro, canibal, animal selvagem, preguioso, traioeiro e tantos outros adjetivos e denominaes negativos. Essa viso tambm surgiu desde a chegada dos portugueses, atravs principalmente do seguimento econ-mico, que queria ver os ndios totalmente extintos para se apossarem de suas terras para fins econmicos. As denominaes e os adjetivos eram para justificar suas prticas de massacre, como autodefesa e defesa dos

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    interesses da Coroa. Ainda hoje essa viso continua sendo sustentada por grupos econmicos que tm interesse pelas terras indgenas e pelos recursos naturais nelas existentes. Os ndios so taxados por esses gru-pos como empecilhos ao desenvolvimento econmico do pas, pelo sim-ples fato de no aceitarem se submeter explorao injusta do mercado capitalista, uma vez que so de culturas igualitrias e no cumulativis-tas. Dessa viso resulta todo o tipo de perseguio e violncia contra os povos indgenas, principalmente contra suas lideranas que atuam na defesa de seus direitos.

    A terceira perspectiva sustentada por uma viso mais cidad, que passou a ter maior amplitude nos ltimos vinte anos, o que coincide com o mais recente processo de redemocratizao do pas, iniciado no incio da dcada de 1980, cujo marco foi a promulgao da Constitui-o de 1988. Eu diria que a viso mais civilizada do mundo moderno, no somente sobre os ndios, mas sobre as minorias ou as maiorias socialmente marginalizadas. Esta viso concebe os ndios como sujeitos de direitos e, portanto, de cidadania. E no se trata de cidadania co-mum, nica e genrica, mas daquela que se baseia em direitos especfi-cos, resultando em uma cidadania diferenciada, ou melhor, plural. Aqui os povos indgenas ganharam o direito de continuar perpetuando seus modos prprios de vida, suas culturas, suas civilizaes, seus valores, garantindo igualmente o direito de acesso a outras culturas, s tecnolo-gias e aos valores do mundo como um todo.

    Direitos especficos e cidadania plural indicam teoricamente que os povos indgenas tm um tratamento jurdico diferenciado. Por exemplo, concedido a eles o direito de terra coletiva suficiente para a sua repro-duo fsica, cultural e espiritual, e de educao escolar diferenciada baseada nos seus prprios processos de ensino-aprendizagem e produ-o, reproduo e distribuio de conhecimentos. Dessa nova perspec-tiva, do ponto de vista dos povos indgenas, trataremos de forma mais aprofundada nos prximos captulos.

    Por ora, interessa saber um pouco mais sobre como os brasileiros no-ndios percebem e concebem o futuro de vida dos povos indgenas do Brasil. Para isso, utilizaremos uma interessante pesquisa realizada

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    pelo IBOPE a pedido do Instituto Socioambiental (ISA) em 2000, por ocasio das comemoraes dos 500 anos do Descobrimento do Brasil e publicada por Povos Indgenas no Brasil (ISA, 2000). uma pesquisa de opinio pioneira desta natureza, envolvendo povos indgenas. Segun-do o IBOPE, foram ouvidos 2.000 homens e mulheres entre 24 e 28 de fevereiro daquele ano.

    Imagem dos ndios: 78% dos entrevistados revelaram ter interes-se no futuro dos ndios sobre os quais prevalece uma viso positiva; 88% concordam que os ndios ajudam a conservar a natureza e vivem em harmonia com ela, e que no so pregui-osos, mas encaram o trabalho de forma diferente da sociedade branca ocidental; 89% afirmaram que os ndios no so igno-rantes, mas possuem uma cultura diferente da cultura branca e que s so violentos com aqueles que invadem as suas terras para tomar-lhes.

    As terras indgenas: Apenas 22% dos entrevistados consideraram que os 11% das terras do Brasil de posse dos ndios sejam muita terra para eles, enquanto que 68% entendem que a extenso das terras indgenas adequada ou suficiente; 70% dos brasileiros entrevistados consideraram que os ndios, mesmo falando por-tugus e se vestindo como os brancos, devem ter seus direitos territoriais garantidos.

    O direito diferena: H quase um consenso nacional quanto ao reconhecimento dos direitos dos ndios de serem diferentes dos brancos, nos modos de viver, de pensar e de trabalhar; 92% dos brasileiros acham que os ndios devem ter os direitos de continu-ar vivendo de acordo com os seus costumes e suas culturas; 67% discordam que os ndios devam ser preparados para abandonar suas aldeias e selvas para viver como e com os brancos.

    Futuro: Em razo do trgico processo histrico vivido durante os 500 anos de colonizao, a garantia do futuro dos povos in-dgenas continua, na opinio de muitos brasileiros, a ser muito incerta; 45% expressaram otimismo quanto ao futuro dos povos indgenas do Brasil, tanto com relao a continuarem vivendo nas suas terras quanto preservao da sua cultura, enquanto 21% manifestaram pessimismo quanto a isso.

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    Papel do governo: A maioria dos brasileiros entrevistados acha que o papel do governo brasileiro garantir a efetividade dos direitos indgenas para que continuem vivendo de acordo com seus modos de vida desejada, implantando programas de sade e educao adequados (48%), demarcando as suas terras (37%) e estimulando a produo de bens voltados para o mercado (31%); 82% acham que o governo federal deveria atuar para evitar a sua extino. Os entrevistados apontaram trs principais problemas enfrentados pelos povos indgenas: invaso das terras indgenas (57%), desrespeito cultura (41%) e doenas transmitidas pelo contato com os brancos (28%).

    A opinio pblica brasileira, expressa por meio da pesquisa acima mencionada, confirma uma tendncia percebida na prtica cotidiana dos povos indgenas: a do aumento progressivo de pessoas e de segmen-tos sociais que vo superando a viso estereotipada sobre os primeiros habitantes do Brasil. Dito de outra forma, h uma conscincia cada vez maior de que os povos indgenas constituem, sim, um dos pilares da sociedade brasileira e uma referncia importante, seno central, da identidade nacional, assim como o negro, sem os quais o Brasil no possvel ser ele mesmo. Este caminho para o reencontro com sua histria e sua origem pode significar um reencontro consigo mesmo, nica possibilidade de seu desenvolvimento pleno, justo, democrtico e igualitrio diante da diversidade tnica e cultural de seu povo.

    1.3 Identidade Indgena: o orgulho de ser ndio

    O reconhecimento da cidadania indgena brasileira e, conseqente-mente, a valorizao das culturas indgenas possibilitaram uma nova conscincia tnica dos povos indgenas do Brasil. Ser ndio transfor-mou-se em sinnimo de orgulho identitrio. Ser ndio passou de uma generalidade social para uma expresso sociocultural importante do pas. Ser ndio no est mais associado a um estgio de vida, mas qualidade, riqueza e espiritualidade de vida. Ser tratado como

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    sujeito de direito na sociedade um marco na histria indgena brasi-leira, propulsor de muitas conquistas polticas, culturais, econmicas e sociais.

    Os povos indgenas do Brasil vivem atualmente um momento espe-cial de sua histria no perodo ps-colonizao. Aps 500 anos de mas-sacre, escravido, dominao e represso cultural, hoje respiram um ar menos repressivo, o suficiente para que, de norte a sul do pas, eles possam reiniciar e retomar seus projetos sociais tnicos e identitrios. Culturas e tradies esto sendo resgatadas, revalorizadas e revividas. Terras tradicionais esto sendo reivindicadas, reapropriadas ou reocu-padas pelos verdadeiros donos originrios. Lnguas vm sendo reapren-didas e praticadas na aldeia, na escola e nas cidades. Rituais e cerim-nias tradicionais h muito tempo no praticados esto voltando a fazer parte da vida cotidiana dos povos indgenas nas aldeias ou nas grandes cidades brasileiras.

    Isto um retorno ao passado ou puro saudosismo? De modo algum. Isto identidade indgena e orgulho de ser ndio. ser o que se , como acontece com todas as sociedades humanas em condies normais de vida. Passado um longo perodo institucionalizado de represso (pois ainda forte no Brasil a represso cultural no-institucionalizada, no-oficial, percebida, por exemplo, na implementao das polticas pbli-cas e no reconhecimento pleno dos direitos garantidos, como o direito terra, educao e sade adequada), as novas geraes de jovens indgenas parecem carentes de uma identidade que os identifique e lhes garanta um espao social e identitrio em um mundo cada vez mais global e, ao mesmo tempo, profundamente segmentrio no que diz res-peito cultura, ancestralidade, origem tnica, a partir das quais os direitos econmicos, sociais, culturais contemporneos se articulam e se fundamentam.

    notrio o interesse das novas geraes indgenas, mais do que aquele dos velhos ancios, pela recuperao do valor e do significado da identidade indgena, como afirmou um ndio bororo certa vez: desejo de todo ndio entrar e fazer parte da modernidade e seu passaporte pri-mordial a sua tradio. Parece ser esta a razo principal da revalori-

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    zao da identidade indgena. Entrar e fazer parte da modernidade no significa abdicar de sua origem nem de suas tradies e modos de vida prprios, mas de uma interao consciente com outras culturas que leve valorizao de si mesmo. Para os jovens indgenas, no possvel viver a modernidade sem uma referncia identitria, j que permaneceria o vazio interior diante da vida frentica aparentemente homogeneizadora e globalizadora, mas na qual subjazem profundas contradies, como a das identidades individuais e coletivas.

    As geraes indgenas mais antigas parecem oferecer maior resistn-cia reafirmao das identidades tnicas, em grande medida ainda in-fluenciadas pelas seqelas do perodo colonial repressivo. E no por menos. Eles foram forados a abdicar de suas culturas, tradies, de seus valores e saberes porque eram considerados inferiores, satnicos e brbaros (ou seja, eram considerados como sinnimo de atraso, o que os impedia de entrar no mundo civilizado, moderno e desenvolvido) e para poderem se tornar gente civilizada, moderna e desenvolvida. Eles foram obrigados a acreditar que a nica sada possvel para o futuro de seus filhos era esquecer suas tradies e mergulhar no mundo no-ind-gena sem olhar para trs. Mas mesmo assim, muitos velhos sbios e an-cios indgenas esto superando esse trauma psicolgico, e embarcando no caminho que est sendo traado e construdo pelas geraes mais jovens, onde prevalece a recuperao da auto-estima, da autonomia e da dignidade histrica, tendo como base a reafirmao da identidade tnica e do orgulho de ser ndio.

    importante destacar que quando estamos falando de identidade indgena no estamos dizendo que exista uma identidade indgena ge-nrica de fato, estamos falando de uma identidade poltica simblica que articula, visibiliza e acentua as identidades tnicas de fato, ou seja, as que so especficas, como a identidade baniwa, a guarani, a terena, a yanomami, e assim por diante. De fato no existe um ndio genri-co, como j dissemos no incio deste livro. Talvez exista no imaginrio popular, fruto do preconceito de que ndio tudo igual, servindo para diminuir o valor e a riqueza da diversidade cultural dos povos nativos e originrios da Amrica continental. Os povos indgenas so grupos

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    tnicos diversos e diferenciados, da mesma forma que os povos euro-peus (alemo, italiano, francs, holands) so diferentes entre si. Seria ofensa dizer que o alemo igual ao portugus, da mesma maneira que ofensa dizer que o povo Yanomami igual ao Guarani.

    Os povos indgenas, ao longo dos 500 anos de colonizao, foram obrigados, por fora da represso fsica e cultural, a reprimir e a negar suas culturas e identidades como forma de sobrevivncia diante da sociedade colonial que lhes negava qualquer direito e possibilidade de vida prpria. Os ndios no tinham escolha: ou eram exterminados fisicamente ou deveriam ser extintos por fora do chamado processo forado de integrao e assimilao sociedade nacional. Os ndios que sobrevivessem s guerras provocadas e aos massacres planejados e executados deveriam compulsoriamente ser forados a abdicar de seus modos de vida para viverem iguais aos brancos. No fundo, era obri-g-los a abandonarem suas terras, abrindo caminho para a expanso das fronteiras agrcolas do pas. O objetivo, portanto, no era tanto cultural ou racial, mas sobretudo econmico, guiando toda a poltica e as prticas adotadas pelos colonizadores. este o ressentimento das geraes indgenas mais antigas, ou mesmo das geraes mais novas que ainda vivem sob essa represso, como nas regies Nordeste e Cen-tro-Oeste do Brasil.

    A dinmica e a intensidade da relao com a identidade variam de povo para povo e de regio para regio, de acordo com o processo histrico de contato vivido. Na Amaznia, por exemplo, onde o conta-to com os colonizadores brancos aconteceu mais recentemente, muitos povos indgenas continuam conservando integralmente suas culturas e tradies, como a terra, a lngua e os rituais das cerimnias. Para esses povos, a prioridade fortalecer a identidade e promover a valorizao e a continuidade de suas culturas, de suas tradies e de seus saberes. At pouco tempo pairava na cabea de muitos brasileiros serem esses os verdadeiros ndios, porque falavam suas lnguas, viviam nas sel-vas nus e pintados e praticavam danas exticas estranhas s danas do mundo no-indgena. Atualmente, algumas poucas pessoas menos informadas e esclarecidas ainda pensam assim, fruto da imagem pejora-

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    tiva e preconceituosa de ndio veiculada ao longo de sculos pela escola e pelos meios de comunicao de massa.

    O Nordeste uma regio emblemtica para que se entendam hoje os meandros do que foi o processo colonizador enfrentado pelos povos indgenas. Por estar localizada ao longo do litoral brasileiro, a regio foi alvo primeiro da ocupao colonial pelos portugueses. Essa ocupa-o violenta resultou em profundas perdas territoriais e na submisso, por absoluta necessidade de sobrevivncia, aos poderes econmicos coloniais, marca dos diversos povos da regio, como os Xucuru, os Fulni, os Cariri-Xoc, os Tux, os Aticum, os Tapeba, os Potiguara, entre outros. As lnguas nativas foram substitudas pelo portugus e o modo de vida desses povos pouco se distingue dos camponeses no-ndios. As reas que ocupam dificilmente possibilitam uma vida autnoma de produo e reproduo de suas culturas, tradies e va-lores para as quais necessitariam de um resgate e de uma reorganiza-o social. No entanto, a identidade indgena entre os povos da regio marcada por rituais especficos, como as festas do Tor (dos Tux) e o Uricuri (dos Fulni), nos quais proibida a presena de no-ndios, como marca da fronteira identitria tnica. Neste sentido, a identida-de indgena, negada e escondida historicamente como estratgia de sobrevivncia, atualmente reafirmada e muitas vezes recriada por esses povos.

    O processo de reafirmao da identidade indgena e o sentimento de orgulho de ser ndio esto ajudando a recuperar gradativamente a auto-estima indgena perdida ao longo dos anos de represso coloni-zadora. Os dois sentimentos caros aos povos indgenas esto possibi-litando a retomada de atitudes e de comportamentos mais positivos entre eles, diante de um horizonte sociocultural mais promissor e es-peranoso. As atuais geraes indgenas nascem, crescem e vivem com um novo olhar para o futuro, potencialmente possvel e alentador, diferente das geraes passadas que nasciam e viviam conscientes da tragdia do desaparecimento de seus povos. A reafirmao da identi-dade no apenas um detalhe na vida dos povos indgenas, mas sim um momento profundo em suas histrias milenares e um monumento

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    de conquista e vitria que se introduz e marca a reviravolta na histria traada pelos colonizadores europeus, isto , uma revoluo de fato na prpria histria do Brasil.

    1.4 Organizao social indgena Os povos indgenas no Brasil conformam uma enorme diversidade

    sociocultural e tnica. So 222 povos tnica e socioculturalmente di-ferenciados que falam 180 lnguas distintas. verdade que essa diver-sidade o resultado de uma drstica reduo ao longo da histria de colonizao, uma vez que j havia alm de 1.500 povos falando mais de 1.000 lnguas indgenas distintas quando Pedro Alvarez Cabral chegou ao Brasil em 1500.

    Os lingistas organizam as lnguas indgenas do Brasil em trs tron-cos: Tupi, Macro-J e Aruak. Mas existem algumas lnguas que no se enquadram em nenhum desses troncos lingsticos.

    Cada povo indgena possui um modo prprio de organizar suas re-laes sociais, polticas e econmicas as internas ao povo e aquelas com outros povos com os quais mantm contato. Em geral, a base da organizao social de um povo indgena a famlia extensa, entendida como uma unidade social articulada em torno de um patriarca ou de uma matriarca por meio de relaes de parentesco ou afinidade poltica ou econmica. So denominadas famlias extensas por aglutinarem um nmero de pessoas e de famlias muito maior que uma famlia tradicio-nal europia. Uma famlia extensa indgena geralmente rene a famlia do patriarca ou da matriarca, as famlias dos filhos, dos genros, das no-ras, dos cunhados e outras famlias afins que se filiam grande famlia por interesses especficos.

    Toda organizao social, cultural e econmica de um povo indgena est relacionada a uma concepo de mundo e de vida, isto , a uma determinada cosmologia organizada e expressa por meio dos mitos e dos ritos. As mitologias e os conhecimentos tradicionais acerca do mundo natural e sobrenatural orientam a vida social, os casamentos,

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    o uso de extratos vegetais, minerais ou animais na cura de doenas, alm de muitos hbitos cotidianos. a partir dessas orientaes cos-molgicas que acontecem a organizao dos casamentos exogmicos (casamentos cujos cnjuges pertencem a grupos tnicos ou sibs di-ferentes) ou endogmicos (casamentos cujos cnjuges pertencem ao mesmo grupo tnico ou sib) e as divises hierrquicas entre grupos (sibs, fratrias ou tribos), que implicam o direito de ocupao de de-terminados territrios especficos e o acesso a recursos naturais, bem como o controle do poder poltico.

    A organizao poltica de um povo indgena geralmente est base-ada na organizao social feita atravs de grupos sociais hierrquicos denominados sibs, fratrias ou tribos. Fratria ou sib uma espcie de linhagem social dentro do grupo tnico, que est relacionada direta ou indiretamente origem do povo ou origem do mundo, quando os gru-pos humanos receberam as condies e os meios de sobrevivncia. Os sibs ou fratrias so identificados por nomes de animais, de plantas ou de constelaes estelares que, por si s, j indicam a posio de hierarquia na organizao sociopoltica e econmica do povo. Da mesma maneira, os nomes dados aos indivduos indgenas esto diretamente relaciona-dos ao sib ou fratria a que pertencem, ou seja, posio hierrquica que cada indivduo ocupa dentro do grupo.

    Essa diversidade cultural dos povos indgenas demonstra a multi-plicidade de povos e das suas relaes com o meio ambiente, com o meio mtico religioso e a variao de tipos de organizaes sociais, po-lticas e econmicas, de produo de material e de hbitos cotidianos de vida. Pode-se afirmar que os modos de vida dos povos indgenas variam de povo para povo conforme o tipo de relaes que estabele-cido com o meio natural e o sobrenatural. Em razo disso, os lugares e os estilos de habitao variam de povo para povo. Alguns escolhem para morar as margens dos rios, outros, o interior da floresta e outros mais, as montanhas. Alguns deles vivem em grandes malocas comu-nitrias, outros habitam aldeias ovais compostas por vrias casas ou pequenas malocas, ou ainda, casas separadas e dispersas ao longo dos rios e das florestas. Do mesmo modo, alguns praticam preferencial-

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    mente a pesca, outros, a caa e outros ainda, a agricultura ou a coleta de frutos silvestres.

    Os tipos e as condies em que as relaes acontecem com o meio natural e sobrenatural tambm influenciam a qualidade de vida. Povos que vivem em terras mais extensas e abundantes em recursos naturais tm a possibilidade de uma vida mais rica, baseada em valores como a solidariedade, a reciprocidade e a generosidade. Ao passo que os povos que ocupam terras reduzidas e com recursos naturais escassos vivem conflitos internos maiores, o que dificulta muitas vezes as prticas tra-dicionais de reciprocidade e o esprito comunitrio e coletivo.

    As relaes sociais mais fortes entre os povos indgenas so as de parentesco e de alianas. Como j vimos, as relaes de parentesco estendem-se ao escopo de uma famlia extensa e so a base de toda a estrutura social de um povo. As relaes de alianas estabelecem-se a partir de necessidades estratgicas comuns entre os aliados e so muitas vezes temporais. Deste modo, as alianas constituem a base de interesses comuns compartilhados e recprocos, uma espcie de troca. Esses interesses freqentemente esto relacionados troca de mulheres, ao compartilhamento de espaos territoriais privilegiados em recursos naturais, aos interesses comerciais (trocas) ou s alianas de guerras contra inimigos comuns.

    So essas relaes de parentesco e as alianas que dinamizam e orga-nizam as festas, as cerimnias, os rituais, as pescas ou as caas coletivas, os trabalhos conjuntos de roa e a produo, o consumo e a distribuio de bens e servios, principalmente de alimentos. As festas, por exemplo, so nada mais do que a comemorao de vitrias e conquistas, e podem advir de uma boa coleta ou servem para festejar o sucesso dos pajs que impediram qualquer castigo ou mal-feito dos inimigos. A participao nas festas e nas cerimnias revela explicitamente as fronteiras das rela-es de amizade ou de inimizade entre grupos ou povos, sempre com uma lgica de reciprocidade, ou seja: aos amigos, cabe a reciprocidade da amizade; aos inimigos, a reciprocidade da inimizade e a conseqente vingana. So as relaes de alianas e de inimizades que constituem o equilbrio social dos grupos e dos povos, uma espcie de contrato

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    social. Sem elas, o mundo indgena seria um caos, ou melhor ainda, o mundo da lei do mais forte.

    De forma sucinta podemos afirmar que a base da complexa or-ganizao social indgena est centrada nas relaes de parentesco e nas alianas polticas e econmicas que cada povo ou grupo familiar estabelece. Os grupos de parentesco e de aliados formam potencial e concretamente os grupos de organizao que se constituem em ver-dadeiros grupos de produo de bens e servios. A distribuio e o consumo de bens so orientados a partir de tais grupos. Quando um caador consegue uma caa, sua obrigao distribu-la em primeiro lugar entre os membros da sua famlia extensa e somente satisfeita essa obrigao que ele poder atender a outros membros ou mesmo comunidade inteira.

    1.5 Diversidade cultural indgena

    A riqueza da diversidade sociocultural dos povos indgenas repre-senta uma poderosa arma na defesa dos seus direitos e hoje alimenta o orgulho de pertencer a uma cultura prpria e de ser brasileiro ori-ginrio. A cultura indgena em nada se refere ao grau de interao com a sociedade nacional, mas com a maneira de ver e de se situar no mundo; com a forma de organizar a vida social, poltica, econmica e espiritual de cada povo. Neste sentido, cada povo tem uma cultura distinta da outra, porque se situa no mundo e se relaciona com ele de maneira prpria.

    Estima-se que quando Cristvo Colombo chegou pela primeira vez ao continente americano, em 1492, ele era habitado pelo menos por 250 milhes de pessoas, que passaram a ser denominados de ndios, distri-budos e organizados por milhares de grupos tnicos ou povos autc-tones. Apenas na regio do atual Mxico, estima-se que ali habitavam naquela poca mais de 30 milhes de ndios, segundo relatos de cronis-tas e historiadores de ento. Apesar do grande massacre implementado pelos invasores europeus, os povos indgenas ainda somam atualmente

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    mais de 50 milhes de pessoas espalhadas por todos os pases da Am-rica do Norte, da Amrica Central e da Amrica do Sul. Segundo as Naes Unidas, os povos indgenas constituem hoje uma populao de 300 milhes de pessoas em 70 pases.

    So povos que representam culturas, lnguas, conhecimentos e cren-as nicas, e sua contribuio ao patrimnio mundial na arte, na msica, nas tecnologias, nas medicinas e em outras riquezas culturais incalculvel. Eles configuram uma enorme diversidade cultural, uma vez que vivem em espaos geogrficos, sociais e polticos sumamen-te diferentes. A sua diversidade, a histria de cada um e o contexto em que vivem criam dificuldades para enquadr-los em uma definio nica. Eles mesmos, em geral, no aceitam as tentativas exteriores de retrat-los e defendem como um princpio fundamental o direito de se autodefinirem.

    Lideranas indgenas se preparam para

    festa tradicional

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    Contrariamente ao que costumamos ler nos livros escolares, pensa-dos e escritos a partir da tica dos brancos invasores, os povos nativos do continente americano haviam desenvolvido grandes e avanadas civilizaes milenares muito semelhantes s indo-europias e, em mui-tos aspectos, at mais sofisticadas que elas. As civilizaes astecas, maias e incas em nada so inferiores s europias, exceto no domnio da arma de fogo. Elas criaram sistemas polticos muito semelhantes aos do continente europeu, com grandes imprios, cidades-estados e monarquias, com reis, imperadores e governos democrticos ou mo-nrquicos. Muitas dessas civilizaes indgenas tinham alcanado o ponto mximo de desenvolvimento e a sua conseqente decadncia muito antes da chegada dos europeus ao continente; outras foram des-trudas por esses invasores.

    Esta constatao histrica desconstri a idia predominante no sen-so comum de que os povos nativos do continente americano eram in-feriores e primitivos em relao aos colonizadores europeus, pois no pertenciam a nenhuma civilizao. Desconstri tambm a idia de que foram os europeus que aniquilaram todas essas grandes civilizaes in-dgenas. verdade que algumas foram destrudas pela barbaridade dos invasores, que se aproveitaram da superioridade que tinham na arte da guerra com armas de fogo, cidades indgenas sendo completamente arrasadas e queimadas. Mas muitas civilizaes, como a asteca e a za-poteca no Mxico, desenvolveram-se e entraram em decadncia muito antes da chegada dos europeus. Os motivos desse declnio pr-contato com o Ocidente ainda so desconhecidos, mas pode-se supor que tenha acontecido por causa de guerras intertribais, tragdias ecolgicas ou ainda por limitaes naturais.

    No Brasil, no h indcios de que tenham sido desenvolvidas civi-lizaes indgenas semelhantes s grandes da Amrica Central e das Terras Altas da Amrica do Sul ou da Regio Andina (na Cordilheira dos Andes). O Brasil est localizado nas denominadas terras baixas da Amrica do Sul, onde os povos nativos expandiram outras formas de civilizao igualmente milenares e sofisticadas, como a marajoara, na Ilha do Maraj, no estado do Par. Os povos indgenas habitantes do

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    territrio brasileiro so caracterizados por terem criado sistemas polti-cos baseados em grandes redes de alianas polticas e econmicas, cha-madas confederaes. Uma das mais conhecidas, a Confederao dos Tamoios, ficou famosa por sua resistncia e bravura no perodo inicial da colonizao portuguesa.

    Estimativas menos otimistas indicam que em 1500, quando da che-gada de Pedro lvares Cabral, viviam no Brasil pelo menos 5 milhes de ndios. H dados histricos e cientficos suficientes para se afirmar que eram muito mais, uma vez que somente os Guarani representavam pelo menos 1 milho de pessoas poca.

    Desta constatao histrica importa destacar que, quando falamos de diversidade cultural indgena, estamos falando de diversidade de civilizaes autnomas e de culturas; de sistemas polticos, jurdicos, econmicos, enfim, de organizaes sociais, econmicas e polticas construdas ao longo de milhares de anos, do mesmo modo que outras civilizaes dos demais continentes: europeu, asitico, africano e a oce-ania. No se trata, portanto, de civilizaes ou culturas superiores ou inferiores, mas de civilizaes e culturas equivalentes, mas diferentes.

    Deste modo, podemos concluir que no existe uma identidade cultu-ral nica brasileira, mas diversas identidades que, embora no formem um conjunto monoltico e exclusivo, coexistem e convivem de forma harmoniosa, facultando e enriquecendo as vrias maneiras possveis de indianidade, brasilidade e humanidade. Ora, identidade implica a alte-ridade, assim como a alteridade pressupe diversidade de identidades, pois na interao com o outro no-idntico que a identidade se cons-titui. O reconhecimento das diferenas individuais e coletivas condi-o de cidadania quando as identidades diversas so reconhecidas como direitos civis e polticos, conseqentemente absorvidos pelos sistemas polticos e jurdicos no mbito do Estado Nacional.

    A compreenso dessa diversidade tnica e identitria importante para a superao da viso conservadora da noo clssica de Unidade Nacional e Identidade Nacional monoltica e nica, na qual se pretende que a identidade seja uma sntese ou uma simplificao das diversas cul-turas e identidades que constituem o Estado-nao, o que aconteceria a

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    partir dos processos denominados de hibridismo ou mestiagem. Fazem parte de qualquer dinmica cultural os intercmbios e as interaes com outras culturas, quando acontecem perdas e ganhos de elemen-tos culturais, inclusive biolgicos, mas que no resultam em perdas das identidades em interao. Dito de outra forma, no existe cultura estti-ca e pura, ela sempre o resultado de interaes e trocas de experincias e modos de vida entre indivduos e grupos sociais.

    As culturas indgenas em grande medida tm conservado sua singu-laridade em face do mundo moderno, sem isolamento. At hoje exis-tem cdigos culturais autctones pouco conhecidos das civilizaes europias, como so as medicinas tradicionais. A conscincia de uma cultura prpria em si um ato libertador, na medida em que vence o sentimento de inferioridade diante da cultura opressora. As culturas indgenas so concretas, como concretos so os que do vida a elas. Os ndios conservam suas lnguas, suas experincias e sua relao com a natureza e com a sociedade. Eles mantm a tradio oral e os rituais como manifestao artstica e maneira de vinculao com a natureza e o sobrenatural. Mantm o papel socializador e educador da famlia, aplicam os sbios conhecimentos milenares e praticam o respeito