Gestão Compartilhada de Recursos Pesqueiros

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Gestão compartilhada do uso sustentável de recursos pesqueiros:refletir para agir.Organizadores:Daniela KalikoskiJosé Dias NetoAna Paula Glinfskoi ThéMauro Luis RuffinoSimão Marrul Filho

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  • OrganizadoresOrganizadores

    Daniela KalikoskiJos Dias Neto

    Ana Paula Glinfskoi ThMauro Luis RuffinoSimo Marrul Filho

    Gesto compartilhadado uso sustentvel derecursos pesqueiros:

    refletir para agirG

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    eiros: refletir para agir

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  • Gesto compartilhadado uso sustentvel derecursos pesqueiros:

    refletir para agir

  • Ministrio do Meio AmbienteCarlos Minc

    Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais RenovveisRoberto Messias Franco

    Diretoria de Biodiversidade e FlorestasJos Humberto Chaves

    Coordenao-Geral de Autorizao do Uso e Gesto da Fauna e Recursos PesqueirosCosette Barrabas Xavier da Silva

    As definies empregadas e a apresentao do material neste produto informativo no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao acerca da situao jurdica ou do nvel de desenvolvimento de quaisquer pases, territrios, cidades ou reas, das respectivas autorida-des ou relativamente delimitao das suas fronteiras ou limites. A meno de companhias especficas ou produtos de manufatureiros, patenteados ou no, no implica tambm seu endosso ou recomendao pela Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao, de preferncia a outros de natureza similar no mencionados. As opinies expressas nesta publicao so exclusivamente dos autores e no refletem necessariamente as posies da Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao.

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste produto informativo pode ser reproduzida, total ou parcialmente, por quaisquer mtodos ou processos, eletrnicos, mecnicos, de cpia fotosttica ou outros, sem a autorizao escrita do detentor da sua propriedade intelectual. Os pedidos para tal autorizao, especificando a extenso do que se deseja reproduzir e o seu objetivo, devero ser dirigidos a

    Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO) Diretor ia da Subdiviso de Polticas e de Apoio em matria de Publicaes Eletrnicas Diviso de Comunicao Viale delle Terme di Caracalla, 00153, Roma, Itliaemail [email protected]

    ou ao

    Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama)Diretoria de Biodiversidade e FlorestasCoordenao-Geral de Autorizao de Uso e Gesto de Fauna e Recursos PesqueirosAv. L4 norte, Edifcio-sede do Ibama, Bloco B, Subsolo70800200 Braslia DFFones: (61) 3316-1685 e 3316-1434

    FAO, Ibama, 2008

  • Ministrio do Meio AmbienteInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    Organizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao

    Organizadores

    Daniela KalikoskiJos Dias Neto

    Ana Paula Glinfskoi ThMauro Luis RuffinoSimo Marrul Filho

    Braslia, 2009

    Gesto compartilhadado uso sustentvel derecursos pesqueiros:

    refletir para agir

  • Produo Editorial

    Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis IbamaCentro Nacional de Informao Ambiental CniaSCEN Trecho 2, Bloco C, Subsolo, Edifcio-Sede do Ibama70818-900 Braslia, DF Telefone (61) 3316-1191http://www.ibama.gov.br/cnia/

    Centro Nacional de Informao Ambiental CniaVitria Maria Bulbol Colho

    Coordenao EditorialPaulo Luna

    Edio de textoVitria Rodrigues

    RevisoMaria Jos TeixeiraEnrique CalafCleide PassosAna Clia Luli

    Projeto grficoLavoisier Salmon Neiva

    Normalizao bibliogrficaHelionidia C. Oliveira

    Catalogao na FonteInstituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis

    G389 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir / Daniela Kalikoski...[et al.], organizadores. Braslia: Ibama, 2009.

    184p.; il. color.; 18 cm.

    Bibliografia ISBN 978-85-7300-288-1

    1. Gesto ambiental. 2. Recursos pesqueiros. I. Kalikoski, Daniela. II. Dias-Neto, Jos. III. Th, Ana Paula Glinfskoi. IV. Ruffino, Mauro Lus; V. Marrul Filho, Simo. VI. Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis. VII. Diretoria de Biodiversidade e Florestas. VIII. Ttulo.

    CDU(2.ed.)639.2.053

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

  • Organizadores

    Daniela KalikoskiConsultora do Programa FishCodeDiviso de Economia e Polticas para a Pesca e AquiculturaOrganizao das Naes Unidas para Agricultura e Alimentao (FAO)

    Jos Dias NetoCoordenador-Geral de Autorizao do Uso e Gesto da Fauna e Recursos PesqueirosInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama)

    Ana Paula Glinfskoi ThProfessora do Departamento de GeocinciasUniversidade Estadual de Montes Claros (Unimontes)

    Mauro Luis RuffinoDiretor de Ordenamento, Controle e Estatstica de Aquicultura e Pesca (Dicap)Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca (Seap)Presidncia da Repblica Federativa do Brasil

    Simo Marrul FilhoAnalista AmbientalInstituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama)

  • Apresentao

    Este livro foi elaborado como material de apoio ao Projeto Cursos de Capacitao Especializados (CTC) do Programa de Coparticipao Global para a Pesca Responsvel (FishCode), desenvolvido em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis (Ibama). O Projeto CTC visa trabalhar com instrutores dos pases beneficirios, apropriadamente qualificados, para desenvolver cursos de capacitao de curta durao, preparar os materiais didticos e oferecer o curso a um pblico-alvo selecionado. Ao trabalhar conjuntamente com instrutores locais, uma capacitao tcnica customizada desenvolvida no pas beneficirio, contribuindo, tambm, para a capacitao do pblico-alvo selecionado, para o aprimoramento na capacidade de treinamento em reas que possam auxiliar, de imediato, as necessidades do Pas. Por meio dessa parceria, o curso intitulado Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir foi oferecido trs vezes, com durao de uma semana cada um, para um total de 105 participantes (35 participantes por curso) entre eles pescadores e pescadoras, lderes de colnias, sindicatos ou associaes de pesca e de organizaes no-governamentais que trabalham com desenvolvimento comunitrio de diversas regies do Pas. O curso foi oferecido nos seguintes locais/datas: (1) Santarm (PA) no perodo de 2 a 8 de dezembro, 2007; (2) Florianpolis (SC) no perodo de 9 a 15 de dezembro, 2007; e (3) Tamandar (PE) no perodo de 31 de maro a 5 de abril, 2008.

    A necessidade de capacitao em gesto do uso dos recursos naturais no Brasil surge com o aumento da crise no setor pesqueiro que piora consideravelmente a cada ano com a situao de colapso e sobre-explorao de muitas espcies, o que afeta diretamente os meios de vida das populaes de pescadores que dependem de tais recursos para a sua sobrevivncia, segurana alimentar e reduo da pobreza. Na ltima dcada, em decorrncia de preocupaes com a gesto convencional, com a sobrepesca e a degradao ambiental, os objetivos, abordagens e polticas dos sistemas de gesto pesqueira comearam a mudar. As abordagens convencionais existentes de gesto da pesca no vm conseguindo limitar o esforo pesqueiro ou administrar conflitos, e no acompanham a tecnologia ou as foras da economia, do crescimento populacional, da demanda por alimento e da pobreza. Essa crise no setor demonstra que no Brasil, e tambm ao redor do mundo, a gesto e a governana no uso dos recursos pesqueiros necessitam de uma reforma urgente. Com base nessa reforma, o curso Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir apresenta a abordagem da gesto compartilhada como uma nova possibilidade na forma de fazer gesto do uso dos recursos pesqueiros no Brasil, em que a participao e o envolvimento dos pescadores e dos usurios dos recursos na tomada de deciso conjunta e compartilhada ganham papel fundamental. Essa nova forma de fazer gesto compartilhada requer um processo de capacitao dos usurios j que os arranjos institucionais de gesto compartilhada implementados ao longo das bacias hidrogrficas e da zona costeira brasileira mostram que, embora

  • tais regimes estejam sendo criados com certa facilidade, os principais desafios so atribudos implementao e manuteno dessas iniciativas ao longo do tempo.

    Participaram dos cursos pescadores e pescadoras do Frum da Lagoa dos Patos (RS); Frum de Ibiraquera (SC); APA da Baleia Franca (SC), Frum de Canania e Iguape (SP) e Reserva de Desenvolvimento Sustentvel da regio Amaznica, e representantes dos Comits de Gesto de Uso Sustentvel da Lagosta e Sardinha. A preparao e o desenvolvimento deste livro, bem como o oferecimento do curso, envolveram dois workshops preparatrios organizados para debater as necessidades de capacitao do pblico-alvo no tema gesto compartilhada do uso dos recursos pesqueiros e para discutir as modalidades de preparao e organizao do curso. Os workshops foram organizados pela FAO e pela Coordenao-Geral de Autorizao do Uso e Gesto da Fauna e Recursos Pesqueiros (CGFAP/DBFLO/Ibama) como parte de um memorando de entendimento entre essas duas instituies. O curso foi coordenado por Daniela Kalikoski (Consultora FishCode/FAO), Peter Manning (Coordenador do projeto CTC/FishCode/FAO) e por Jos Dias Neto (Coordenador-Geral CGFAP/DBFLO/Ibama). Os instrutores do curso foram Ana Paula Th (Professora /Universidade Estadual de Montes Claros); Simo Marrul Filho (Analista Ambiental /Ibama) e Mauro Ruffino (Diretor de Ordenamento, Controle e Estatstica de Aquicultura e Pesca/Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidncia da Repblica).

    Este projeto foi financiado pelo governo da Islndia que trabalha em parceria com o Programa de Capacitao na rea de Pesca da Universidade das Naes Unidas, com sede em Reykjavik (Islndia).

    O curso teve como objetivo geral a capacitao para a problematizao de premissas, necessidades, desafios, limites e possibilidades para a prtica da gesto compartilhada do uso de recursos pesqueiros visando construir sustentabilidade em suas diferentes dimenses no acesso e uso de recursos pesqueiros no Brasil.

    Este livro foi adaptado para tal finalidade, esperando ser utilizado como referncia para outros cursos de formao em gesto compartilhada no Brasil.

  • Agradecimentos

    Agradecemos a todos que contriburam para a elaborao deste livro e para a realizao do curso Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pes-queiros: refletir para agir, em especial a Peter Manning, coordenador do Projeto de Cursos de Capacitao Especializados (CTC), Susana Siar (Servio de Tecnologia de Pesca, Departamento de Pesca, FAO), Rebecca Metzner (Diviso de Economia e Poltica, Departamento de Pesca, FAO) a Blaise Kuemlanganos (Departamento Le-gal, FAO) por suas sugestes e indispensvel ajuda durante o desenvolvimento deste projeto. Finalmente, expressamos a nossa profunda gratido e apreo ao Ministrio das Relaes Exteriores do Governo da Islndia, que, por intermdio do Projeto Cur-sos de Capacitao Especializados (CTC) do Programa de Coparticipao Global para a Pesca Responsvel (FishCode), financiou esse curso no Brasil.

  • Sumrio

    Mdulo 1Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e usodos recursos pesqueiros ........................................................................... 15

    Simo Marrul Filho1.1. Conceito e contexto histrico....................................................................... 17 1.1.1 Conceito .......................................................................................... 17 1.1.2 Por que temos de fazer gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros? ....................................................................................... 18 1.1.2.1 Devido s caractersticas dos recursos pesqueiros como recursos de uso comum .............................................. 19 1.1.2.2 Devido aos conflitos entre projetos e interesses dos grupos sociais ................................................................ 24 1.1.2.3 Devido s prticas de uso ou ao abuso ................................ 29 1.1.3 A quem cabe fazer e como feita a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros .................................................................... 31 1.1.3.1 A questo da propriedade .................................................... 32 1.1.3.2 Como a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros feita? ................................................................................. 33 1.1.4 O processo de gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros no Brasil .......................................................................................... 34 1.1.4.1 A questo da propriedade dos recursos pesqueiros no Brasil ............................................................................... 34

    Mdulo 2 Gesto compartilhada do uso dos recursos pesqueiros: uma nova possibilidade ............................................................................. 39 Ana Th e Mauro Ruffino 2.1 Introduo .......................................................................................... 41 2.2 Governana e gesto do uso de recursos pesqueiros .............................. 42 2.2.1 A crise da pesca mundial e no Brasil ............................................. 43 2.2.2 Relao entre recursos pesqueiros e recursos humanos ............... 45 2.2.3 O que gesto compartilhada? ..................................................... 51 2.2.4 Participao na gesto compartilhada: diferentes experincias .................................................................. 55 2.2.5 Exemplos de gesto compartilhada de recursos pesqueiros no Brasil ...................................................................... 59 2.2.6 Desafios e possibilidades da gesto compartilhada de recursos pesqueiros no Brasil ................................................... 74 2.3 Dimenses fundamentais da gesto compartilhada ................................. 80 2.3.1 Participao e organizao social .................................................. 80 2.3.1.1 Reunindo as pessoas ........................................................ 81

  • 2.3.1.2 Participar para agir, agir para transformar ....................... 82 2.3.1.3 Coletividade e diversidade ............................................... 84 2.3.1.4 Liderana .......................................................................... 85 2.3.1.5 Alguns princpios do trabalho colaborativo em grupo ....... 87 2.3.1.6 Caractersticas importantes das lideranas e dos grupos ..................................................................... 88 2.3.2 Conflitos e negociao .................................................................. 90 2.3.2.1 Ferramentas para resoluo de conflitos .......................... 90 2.3.2.2 Negociao para o consenso ............................................ 91 2.3.2.3 O que fazer se o consenso falhar? ................................... 92 2.3.3 Poder e equidade ........................................................................... 93 2.3.3.1 Poder ................................................................................ 95 2.3.3.2 Participao e poder ......................................................... 95 2.3.3.3 Participao dos atores na gesto compartilhada ............ 96 2.3.3.4 Descentralizao de poder e gesto compartilhada ......... 97 2.3.3.5 Equidade e gesto compartilhada da pesca ..................... 98 2.3.4 Dilogo de saberes ........................................................................ 99 2.3.4.1 Comunicao .................................................................... 100 2.3.4.2 O saber cientfico e o saber popular ................................. 101

    Mdulo 3 Refletir para agir: identificao de prticas que fortalecem a gesto compartilhada ............................................................................. 111 Ana Th 3.1 Introduo .......................................................................................... 113 3.2 Roteiro teatral 1: organizao e poder ..................................................... 114 3.3 Roteiro teatral 2: informao e participao ............................................ 118 3.4 Roteiro teatral 3: Informao e dilogo de saberes .................................. 124

    Glossrio ........................................................................................................ 131

    Referncias bibliogrficas .................................................................... 135

    Anexo 1 Sumrio das atividades desenvolvidas no curso Gesto Compartilhada do Uso Sustentvel de Recursos Pesqueiros: refletir para agir .................................................................. 141

    Anexo 2 Gesto Pesqueira o papel do Estado no Brasil ................................ 177

  • Lista de Ilustraes

    Figura 1. Estado de explotao dos estoques pesqueiros mundiais de acordocom a FAO (2004) ....................................................................................... 44

    Figura 2. Distribuio dos principais estoques pesqueiros na costa brasileira .......... 45

    Figura 3. Ameaas aos ecossistemas aquticos ........................................................ 47

    Figura 4. Viso convencional de gesto (ecossistema separado do sistema humano)e nova possibilidade de gesto (sistema da pesca integrado com o sistema humano) ...................................................................................................... 48

    Figura 5. Interao entre o ambiente, os recursos e o homem ................................... 49

    Figura 6. A gesto compartilhada da pesca uma parceria ....................................... 52

    Figura 7. Graus de envolvimento dos usurios na gesto da pesca ........................... 55

    Figura 8. Distribuio de sistemas de gesto comunitria e compatilhada na RegioSul do Brasil, incluindo o Frum da Lagoa dos Patos ...................................... 61

    Figura 9. Distribuio de sistemas de gesto comunitria e compatilhada na RegioNorte do Brasil.................................................................................................. 70

    Figura 10. Distribuio de sistemas de gesto comunitria e compatilhadana Regio Nordeste do Brasil ........................................................................... 72

    Figura 11. Tipos de educao ....................................................................................... 99

    Figura 12. Sistema de trocas entre os diferentes conhecimentos na gestocompartilhada da pesca............................................................................... 101

    Figura 13. Sistema de partilha de saberes na gesto compartilhada da pesca ............ 105

  • Mdulo 1

    Conceito e contextohistrico da gestodo acesso e uso dosrecursos pesqueiros

    Simo Marrul Filho

  • 17Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    1.1 Conceito e contexto histrico

    Neste mdulo introdutrio apresentaremos o conceito de gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros. Veremos por que temos que faz-lo; a quem cabe faz-lo e como feito. Concluiremos com uma abordagem rpida sobre como a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros feita no Brasil. Para tanto, este livro conta com diversas ativi-dades prticas que serviro de base para uma discusso mais conceitual sobre a questo.

    Atividade 1 (Ver respostas no Anexo 1)O grupo foi dividido em cinco subgrupos que leram com ateno as seguintes manchetes adaptadas de vrias notcias de jornais, acrescentaram outras e refletiram juntos:

    pescadores de fora vm pescar no Lago Azul; pescadores ribeirinhos se sentem prejudicados pela pesca dos pescadores de

    fora; frigorficos e empresas de pesca diminuem o preo pago ao produtor; mata ciliar desmatada por plantadores de soja; pescadores amadores (esportistas) dizem que soltam a maioria dos peixes

    capturados e que pescadores profissionais pescam de forma irregular; grande mortalidade de peixes causada por poluio gerada pelo curtume; esgoto da cidade de Alvorada no tratado e jogado no Rio Verde causando

    poluio; discusso entre pescadores: a maioria respeita a piracema, outros pescam em

    qualquer poca do ano. prefeitura aterra rea de mangue para a construo de casas populares; ecologistas denunciam pesca com redes ilegais.

    Depois da leitura e da reflexo, cada grupo formar e registrar sua opinio sobre: o que essas frases tm em comum? qual a razo para a existncia desses problemas ou conflitos que as frases

    descrevem? como poderamos evitar esses problemas?

    1.1.1 Conceito

    Existe enorme quantidade de conceitos para o que seja gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros. E no h um que seja de aceitao geral. Portanto, ser ado-tado um bem simples para que possamos trabalhar neste curso: um conjunto de regras formais ou informais, ou seja, criadas e adotadas por lei ou pelos costumes, para que o acesso e uso dos recursos pesqueiros (as pescarias) sejam realizados de maneira a no comprometer os estoques e, ao mesmo tempo, gerar empregos e ren-

  • 18 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    da, e permitir que aspectos culturais e modos de vida das comunidades pesqueiras sejam transmitidos de gerao em gerao (Box 1).

    Box 1 Sobre o que significa costumes tudo que se estabelece por fora do uso e do hbito. uma regra no escrita, que se introduziu pelo uso, com o consentimento tcito de todas as pessoas que admitiram sua fora como norma a ser seguida na prtica de determinados atos. a prtica social reiterada e considerada obrigatria.As normas de gesto de acesso e uso dos recursos pesqueiros criadas pelos costumes, assim como aquelas criadas por lei, tm sempre uma conduta a ser observada, ou prtica a ser cumprida, e uma sano ou pena para quem no cumpre o que a norma estabelece. Geralmente, as normas criadas pelos costumes tomam como base as crenas religiosas, os mitos, ou prticas que resultaram em bom uso dos recursos.Um exemplo: a ministra Marina Silva nos contou a seguinte prtica: quando criana, no seringal em que morava, l no Acre, tinha a tarefa de pescar os peixes para o almoo. Quando ia sair para pescar seu pai sempre dizia: no pesque mais que tantos peixes (que era a quantidade necessria para aquele almoo, dependendo de quantas pessoas iam almoar naquele dia), e pesque s essa quantidade, pois se pescar mais a me-dgua no vai gostar e vai virar sua canoa.

    Fonte: De Plcido e Silva (1996); Acquaviva (1992).

    Mas, por que criar regras para o acesso e uso dos recursos pesqueiros?

    1.1.2 Por que temos de fazer gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros?

    Atividade 2 (Ver respostas no Anexo 1)Em grupo, foram discutidas e emitidas opinies sobre algumas caractersticas dos recursos pesqueiros. No pode ser respondido apenas sim ou no. E cada opinio deve ser acompanhada de uma justificativa.

    Os recursos pesqueiros, como seres vivos, tm o poder de se reproduzirem. Assim, pode-se pensar que por mais que se pesque eles nunca acabaro. Isso verdade? Por qu?

    possvel proibir que qualquer pessoa pesque? Por qu?Todos j ouvimos alguns pescadores dizerem: posso capturar a quantidade que quiser, pois tem peixe para todos. Isso verdade? Por qu?

  • 19Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    1.1.2.1 Devido s caractersticas dos recursos pesqueiros como recursos de uso comum

    Os recursos pesqueiros so recursos naturais, tais como a gua, o ar, as flores-tas. Uma das principais caractersticas de tais recursos a imensa dificuldade de se excluir usurios do seu uso e explorao, pois muitas pessoas dependem deles para a sua sobrevivncia. Na teoria, isso se chama princpio da excluso.

    Os recursos pesqueiros tambm apresentam a seguinte caracterstica: a quan-tidade de recursos pesqueiros que uma pessoa pesca influencia a quantidade desses recursos que esto disponveis aos demais. Isso, teoricamente, se chama princpio da subtrao.

    Assim, temos uma situao em que muitos usurios competem por recursos que so finitos, ou seja, podem acabar se forem pescados alm de determinadas quan-tidades, e mais, se um pescador pescar muito, outros vo pescar pouco. Isso leva, na-turalmente, a uma grande competio entre pescadores, em que todos querem pescar o mximo para si, pois se assim no o fizerem outros o faro. Esse fato est na raiz dos grandes conflitos entre pescadores.

    Para lidar com essas situaes, a sociedade desenvolveu, ao longo de sua his-tria, mecanismos de cooperao e passou a elaborar normas de uso formais ou in-formais, que estabelecem como lidar com o acesso e uso dos recursos de forma a administrar os conflitos, no permitindo, assim, que as relaes sociais degenerem para confrontos.

    Dessa forma, a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros o instrumento social mais eficiente para garantir a sobrevivncia das populaes dependentes des-ses recursos, e tambm a conservao dos recursos para que eles estejam disponveis hoje e no futuro.

    Devido a essas caractersticas, muitos preferem chamar os recursos pesqueiros de recursos comuns ou recursos de uso comum. sobre esse tema que trataremos.

    Ora, se impossvel ou muito difcil impedir a entrada de novos pescadores nas pescarias e se a quantidade que cada um pesca influencia na quantidade que ou-tro pesca, o que ocorreria com os estoques pesqueiros se no existissem regras estabe-lecidas pela sociedade (leis ou normas informais acordadas entre os pescadores) para disciplinar quem pode pescar ou a quantidade que cada um pode pescar?

    No difcil respondermos a tal pergunta. Logo os recursos pesqueiros en-contrar-se-iam em estado de sobrepesca, ou seja, estariam sendo pescados em uma quantidade superior quela que a natureza pode repor, caminhando da para a ex-tino comercial, ou seja, o desaparecimento dos recursos pesqueiros das pescarias, podendo ocorrer a extino biolgica, que o desaparecimento, para sempre, de um recurso da natureza (Box 2).

  • 20 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    Box 2 O tamanho da crise no acesso e uso dos recursos pesqueiros no BrasilMostrando preocupao com relao ao futuro da pesca martima no Brasil, Dias-Neto e Dornelles (1996) afirmam que(...) o quadro da produo da pesca martima brasileira pode ser considerado delicado, seja pelo declnio constatado (...) seja pela quase estagnao nos ltimos anos. Ainda mais ao se considerar os nveis crticos de produo dos principais recursos pesqueiros (...)Tecendo um paralelo entre as pescarias brasileiras e o desenvolvimento da pesca martima mundial, os autores concluem que(...) em alguns aspectos, a pesca nacional enfrenta uma situao at mais grave, com destaque para o percentual dos principais recursos plenamente explotados ou sob excesso de explotao, ou at esgotados ou se recuperando de tal nvel de utilizao, pois se na mundial cerca de 69%, no Brasil, fica acima de 80%.

    Fonte: Dias-Neto e Dornelles (1996).

    Essas situaes geram perdas irreparveis para os pescadores e para todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente com as atividades pesqueiras, alm do prejuzo a todos os cidados de uma comunidade, pas ou mesmo de toda a Terra, no caso da extino biolgica (Box 3).

    Box 3 Notcia do momento:Produo de lagostas no Nordeste do Brasil caiu 70% em relao ao mximo j alcanado.Adaptada do noticirio da Globonews (2007).

    Um momento para reflexo!Pode ser feita sozinho, discutindo com o companheiro ou companheira de quarto, no cafezinho, noite e principalmente em sua comunidade com seus e/ou suas camaradas de pescaria.Vamos refletir sobre:

    os recursos pesqueiros que eu pesco ou que so pescados pela comunidade so mais ou menos abundantes do que eram no passado?

    os peixes capturados tm tamanho maior ou menor que antes? o que eu,minha comunidade, outras pessoas ou atividades econmicas fizemos

    para que essa situao acontecesse? o que tem sido feito por mim, pela comunidade ou pelas atividades econmicas

    para que essa situao acontecesse? o que tem sido feito por mim, pela comunidade, ou pelas atividades econmicas

    para melhorar essa situao? e o governo, o que tem feito?

  • 21Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    Para que isso no ocorra, normas de acesso e uso dos recursos pesqueiros vm sendo e devem ser estabelecidas para disciplinar quem pode pescar, quantos podem pescar, o que pode pescar e o quanto pode pescar. Isso implica resolver as questes de direito de acesso e excluso aos recursos pesqueiros e seus ambientes, como mostrado no Box 4.

    Box 4 Algumas questes importantes sobre direitos e gesto do acesso e uso dos recursos pesqueirosDireito a qu? Que recursos podem ser pescados e em quais ambientes? Por exemplo, o que se pode pescar?

    Direito para qu? Direitos a que tipo de aes: uso e explorao, conservao e proteo dos ambientes?

    Por quanto tempo? Quando se define, por exemplo, o direito ao uso de um recurso ou de um ecossistema, isso pode ser por toda a vida ou por um perodo de tempo.

    Para quem? Quem detm o direito? Trata-se de um indivduo ou de uma comunidade?

    Contra quem? Quem ser excludo do uso do recurso? Ao se definir quem pode pescar se define tambm quem no ter mais acesso pesca.

    Acolhido por quem? Quem garante que alguns indivduos ou comunidades tm mais direitos sobre outros que podem ser excludos?

    Fonte: Folke et al. (1998).

    Tais medidas visam limitar as entradas, controlando o nmero de pescadores, o nmero de barcos ou de petrechos de pesca, ou seja, controlar o esforo de pesca empregado em determinada pescaria.

    Geralmente, isso feito por um sistema chamado licenciamento ou simplesmen-te licenas. E feito da seguinte forma: estudos tcnicos ou com base nos saberes dos pescadores indicam o nmero de pescadores, de barcos ou de petrechos que podem pes-car de modo a obter o melhor resultado econmico, social e ambiental de uma pescaria. Determinado esse nmero, que pode ser modificado ao longo do tempo, a autoridade gestora aquele rgo que responsvel pela gesto - define critrios de distribuio desse esforo de pesca; depois, utilizando-se de leilo, de lista por ordem de pedido ou outros critrios, so distribudas as licenas entre pescadores e/ou donos de embarca-es ou petrechos. Essas licenas podem ser cobradas ou no e podem ser retomadas pelo Estado sempre que for necessrio para o bom desempenho da pescaria. Tambm, elas no podem ser transferidas para terceiros sem a autorizao da autoridade gestora.

    Observa-se que tudo isso pode ser feito de comum acordo com os pescadores ou ser uma imposio do Estado.

  • 22 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    Existem ainda medidas que tm como objetivo controlar as sadas, a produo obtida em peso ou o nmero de peixes pescados. Esse sistema chamado de sistema de cotas. Geralmente, as cotas so estabelecidas da seguinte maneira: estudos tcnicos ou baseados no saber dos pescadores indicam qual a quantidade mxima de pescado que uma pescaria pode produzir (em peso ou nmero de peixes) de modo a obter o melhor rendimento econmico, social e ambiental daquela pescaria. Essa quantidade total chamada de cota global. Por sua vez, a cota global pode ser dividida em partes iguais, que so chamadas de cotas individuais.

    Quando o sistema funciona por cota global, qualquer pescador habilitado pode pescar, porm, atingida a quantidade fixada, a autoridade gestora fecha a tem-porada de pesca. Quando funciona por cotas individuais, que so distribudas para determinados pescadores ou empresas, somente aqueles que so detentores das cotas podem pescar, porm, apenas aquelas quantidades ou nmero de peixes que as cotas individuais determinam, sendo que a temporada de pesca termina para cada pesca-dor ou empresa, individualmente, quando atingem suas cotas.

    As cotas individuais, em alguns pases, podem ser transferidas de um pesca-dor ou empresa para outro, sendo ento chamadas de cotas individuais transferveis. Podem ainda ser transferidas para herdeiros por herana.

    Outra forma de controlar a entrada de pescadores e as prticas de pesca permiti-das em determinada pescaria o reconhecimento dos direitos tradicionais e exclusivos de uso de uma comunidade ou de vrias comunidades que pescam utilizando saberes tradicionais, excluindo-se, assim, dessa pescaria, todos os demais pescadores (Box 5).

    Box 5 Direitos de uso territorialDireitos de uso territoriais podem ser considerados importantes instrumentos de gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros. Eles podem ser apresentados de duas formas: (1) uma rea fechada para determinadas frotas ou tamanhos de barcos, ou reserva marinha (unidade de conservao de proteo integral), em que todos os pescadores e frotas so igualmente afetados por uma proibio geral da pesca em determinados locais; e (2) uma forma baseada nos direitos territoriais de uso ou direitos de extrao dos recursos pesqueiros por populaes tradicionais que em geral so caracterizadas pela busca em conciliar a conservao dos recursos pesqueiros com o seu uso sustentvel. Essa segunda forma de gesto de uso tem por objetivo atribuir direitos para os indivduos e ou comunidades de pescadores em determinadas localidades. No caso da extrao dos recursos pesqueiros por populaes tradicionais, em geral, existe, embora no necessariamente, longa tradio de uso e extrao dos recursos de forma sustentvel em sucessivas geraes.Muitos exemplos dessa forma de gesto ao redor do mundo sugerem que esses sistemas de pesca possuem potencial considervel para fornecer uma gesto socialmente justa e

  • 23Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    ecologicamente equilibrada, ou seja, em que os recursos pesqueiros e as comunidades de pescadores se beneficiam mutuamente pela gesto responsvel de uso. Alguns exemplos incluem a pesca de lagoa na Costa do Marfim, na frica, a coleta de moluscos e algas marinhas em uma aldeia costeira na Coreia do Sul e no Japo, e controles de territrios de pesca nas ilhas do Pacfico (Papua Nova Guin, Fiji) e sistemas tradicionais de pesca da Indonsia.Dois exemplos que so bem conhecidos so os sistemas territoriais de pesca de pequena escala desenvolvidos no litoral do Japo, onde essas instituies tradicionais so incorporadas dentro do modelo de gesto centrado no Estado. Outro exemplo a pesca da lagosta no nordeste da costa da Amrica do Norte, onde as comunidades de pescadores tm sido capazes de manter um controle jurdico sobre a entrada e permisso de novos pescadores, tendo os direitos exclusivos de uso e gesto da lagosta em uma rea especfica. Merece destaque o caso do Chile, que aps uma crise e a quase extino de um recurso bentnico, o governo daquele pas, em 1991, programou uma lei de direitos territoriais que permitiu alocar zonas especialmente reservadas para o uso especfico da pesca artesanal quelas comunidades que se organizassem legalmente por meio de associaes, cooperativas, colnias. As comunidades de pescadores, ento apoiadas pelo governo do Chile, se organizaram e desenvolveram um processo social para determinar o controle sobre a pesca em um territrio especfico. Nesse caso, as comunidades de pescadores (s vezes com o auxlio de cientistas e governo) desenvolvem um plano de gesto em que elas decidem sobre os direitos de acesso ao uso e explorao, bem como as prticas de pesca permitidas, e cotas de pesca por comunidade. As comunidades tambm desenvolvem um sistema de coleta de dados e monitoramento do estado dos recursos, bem como um sistema de punies para aqueles pescadores que no respeitam as regras estabelecidas por eles mesmos. Esse plano deve ser aprovado pelo governo, que d suporte e auxlio necessrios. Elementos que so crticos para o sucesso dessa forma de gesto de uso territorial incluem o envolvimento direto e ativo das comunidades de pescadores:

    na coleta de dados para monitorar o impacto da pesca sobre os seus recursos; na proteo dos seus territrios de pesca. Como as regras de pesca so

    estabelecidas pelos pescadores, eles se sentem responsveis diretos pelos cuidados com os recursos explorados;

    na adeso das regras e punio pelas prprias comunidades dos pescadores que no cumprirem as regras. Essas punies no so exclusivamente aplicadas por meio do pagamento de multas, mas punies sociais, por exemplo, se o mesmo pescador pego pescando ilegalmente trs vezes, ele expulso da comunidade e perde o direito de pescar naquele territrio especfico.

    Um aspecto similar desses sistemas de uso e gesto territorial que eles estimulam um cuidado muito maior dos recursos, pois os pescadores passam a ser responsveis diretos pela conservao e uso sustentvel dos territrios de pesca j que eles esto envolvidos em todo o processo de gesto, desde o estabelecimento das regras de uso mais adequadas at o controle e monitoramento da pesca de forma sustentvel. O governo, por sua vez, um parceiro na gesto e incentiva o uso responsvel dos recursos por meio da devoluo dos territrios de uso aos pescadores que tm seus direitos manuteno dos seus modos de vida garantidos.

  • 24 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    No Brasil, com a implementao de algumas reservas extrativistas terrestres e marinhas e acordos de pesca da regio amaznica, o Estado reconhece os direitos tradicionais e exclusivos de uso de algumas comunidades tradicionais de pescadores. Esses direitos tradicionais e exclusivos de uso so atribudos pelo Estado a uma ou mais comunidades tradicionais de pescadores (e no a indivduos, como o caso das licenas de pesca que so puramente individuais) que ento recebem espaos territoriais destinados explorao autossustentvel e conservao dos recursos naturais renovveis por populao extrativista. Segundo a lei, as reservas extrativistas marinhas so reas de domnio pblico, sendo concedidos direitos de uso s populaes tradicionais. Para tanto, preciso a elaborao de um plano de manejo e a existncia de um conselho deliberativo que aprove as decises dos comunitrios.Fonte: Charles (2002); Sistema Nacional de Unidades de Conservao, Artigo 1 do Decreto n 98.897 de 199; Gonzalez et al. (2006).

    1.1.2.2 Devido aos conflitos entre projetos e interesses dos grupos sociais

    A humanidade, em nenhum momento de sua histria, viveu sem os recursos que a natureza pe a sua disposio, pois eles constituem a base material de susten-tao da vida. No h dvidas de que entre tais recursos encontram-se os recursos pesqueiros.

    Nos primeiros tempos, os pescadores utilizavam apenas tcnicas de pesca muito rudimentares que iam da coleta diretamente com as mos at o uso de ins-trumentos rudimentares como arpes, arco e flecha. Naqueles tempos, a vida social era organizada a partir da coleta e da extrao de recursos em quantidade suficiente apenas para a sobrevivncia dos indivduos e grupos sociais e para as funes de perpetuao da espcie.

    Essa relao com a natureza e seus recursos foi sendo modificada medida que relaes sociais mais complexas o comrcio, a troca entre grupos sociais, a acu-mulao de bens foram sendo desenvolvidas e ultrapassaram as necessidades inter-nas do grupo. Como consequncia, cada grupo social desenvolveu, em determinado momento de sua histria, projeto prprio para suas relaes com os recursos ambien-tais, muitas vezes conflitantes com os projetos dos demais grupos.

    Podemos observar que pescadores de subsistncia percebem e querem se apro-priar dos recursos pesqueiros apenas para a sua sobrevivncia. Enquanto pescadores artesanais ou de pequena escala deles se apropriam para certo grau de comrcio, pes-cadores industriais o fazem totalmente voltados para tal fim. Os esportistas pescam apenas para o lazer. Tais grupos desenvolvem, a partir de seus objetivos, tcnicas e estratgias de pesca que so capazes de modificar a estrutura e a quantidade dos es-toques dos recursos pesqueiros disponveis aos demais.

  • 25Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    No pargrafo anterior no falamos sobre se esse ou aquele tipo de pescador, com seus projetos e tcnicas, pratica pescarias irregulares ou no. Encontramos bons e maus projetos, boas e ms tcnicas ou estratgias, entre todos os tipos citados. Trata-se aqui to-somente de deixar claro que os pescadores so diferentes em seus projetos e que tais projetos nem sempre so iguais ou tm o mesmo objetivo, e que isso fonte de tenso e conflito entre os diversos grupos pesqueiros.

    Como os recursos pesqueiros no vivem fora dos ambientes aquticos e consi-derando que tanto a gua como esses ambientes aquticos em si tambm so objetos de disputa entre grupos sociais (agricultores querem gua para irrigao; industriais para suas indstrias; a populao em geral para beber e uso domstico; os rios so usados como esgotos e vias de transporte; os mangues so aterrados para a constru-o de casas e espaos pblicos, etc.), vamos encontrar, tambm fora da atividade pesqueira, atores sociais cujas atividades so capazes de modificar a estrutura e a quantidade dos estoques pesqueiros.

    Tambm podemos considerar como atores sociais que disputam o acesso e o uso dos recursos pesqueiros, as organizaes no-governamentais e os movimentos sociais que representam interesses ambientalistas de proteo de espcies ou ecossis-temas.

    claro que o Estado, representado pelos rgos de governo, tambm possui projetos para o acesso e uso dos recursos pesqueiros, representando do ponto de vista terico, os interesses de toda a populao e das geraes futuras. Portanto, tambm constitui um ator social importante no processo de gesto do acesso e uso dos recur-sos pesqueiros (Box 6).

    Box 6 Conceito simples de ator socialAtores sociais so todos os indivduos, grupos sociais ou instituies cuja ao capaz de modificar a realidade.

    Pelas discusses anteriores, acreditamos que tenha ficado claro que vrios gru-pos sociais, com projetos e interesses diferentes, disputam o acesso e uso dos recursos pesqueiros, gerando um ambiente de conflito para o qual se as regras de acesso e uso dos recursos pesqueiros no forem estabelecidas e cumpridas, as relaes sociais podem se degenerar em verdadeiros confrontos. A seguir, exemplos de um conflito, de um confronto e de um acordo de convivncia entre pescadores e outros grupos sociais (Boxes 7, 8 e 9).

  • 26 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    Box 7 Pesca x Petrleo: ainda apenas um conflitoA despeito de todos os argumentos dos rgos representantes das empresas de ssmica e de perfurao de poos, a restrio de espao, a disperso de cardumes e os danos aos petrechos de pesca so reais (mesmo que temporrios) e ganham maiores propores quando analisamos os pilares da atividade pesqueira artesanal.A pesca no Brasil no movimenta fortunas como o ouro negro, mas sustenta milhes de comunidades carentes, sem especializao, que precisam da atividade para sobreviver. No entanto, apesar de tradicional, a atividade tem um histrico problemtico, com dificuldades de organizao social e de omisso e descaso por parte das autoridades. Alm disso, segundo autores como Gordon e Hardin, os pescadores esto condenados pobreza, j que o maior bice dos recursos naturais renovveis de propriedade comum o de que o lucro proveniente da captura deles existe, mas ningum pode apropriar-se dele. fato, porm, que a sobrepesca e a m utilizao dos recursos pesqueiros so problemas mundiais. A utilizao dos recursos pesqueiros de forma sustentvel algo que depende de uma gesto adequada e de interesse por parte das autoridades. muito provvel que a sobrepesca se intensifique, pois falta organizao s comunidades pesqueiras capaz de gerar um acordo que interrompa a extrao predatria, sobretudo em face da ameaa de ampliao da restrio pesca suscitada pela explorao petrolfera.Faltam dados que quantifiquem o atual declnio da atividade pesqueira. H carncia geral de informaes e de dados estatsticos sistemticos sobre a pesca, alm da interrupo nos cadastros e levantamentos que vinham sendo realizados no mbito nacional. Dessa forma, apesar das evidncias, no h como provar oficialmente a extenso dos danos causados pela indstria do petrleo, particularmente, durante a fase ssmica, o que dificulta mais ainda a resoluo do conflito.Contudo, a maior dificuldade reside na assimetria que marca esse relacionamento. Enquanto a atividade pesqueira artesanal possui uma multiplicidade de inseres produtivas, frgil organizao e membros despreparados e desqualificados, a indstria do petrleo bem organizada, alm de econmica e politicamente poderosa, reduzindo o dilogo a simples alegao do desconhecimento que impera sobre ambas.Devemos nos perguntar, por fim, para onde caminha o conflito. preciso investir nas estratgias de desenvolvimento sustentvel e de responsabilidade social corporativa, seguidas de regulamentao por parte do Estado para que as empresas petrolferas assumam os danos que causam atividade pesqueira, principalmente artesanal, e intensifiquem seus programas de mitigao e de compensao. Para isso, o processo de licenciamento ambiental deve ser agilizado, porm, sem deixar de lado a exigncia da realizao de um estudo ambiental por parte das empresas, de maneira que os riscos do empreendimento sejam detectados precocemente.Contudo, necessrio tambm que as comunidades pesqueiras se organizem e elejam representantes capazes de dialogar em condies de igualdade com os representantes das empresas. Nesse embate, o governo desempenha papel crucial, seja garantindo a integridade da atividade, evitando sua excluso, seja intermediando o dilogo de maneira a reduzir seu potencial de conflito. Finalmente, o mais importante reconhecer que as duas atividades so necessrias para o bem-estar do pas.Fonte: Lopes (2004).

  • 27Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    Box 8Agora um confronto entre pescadoresPescadores incendeiam barcoDois conflitos no litoral leste envolvem pescadoresMoradores da Praia de Redonda, em Icapu, incendiaram o segundo barco este ano, alegando que seus tripulantes utilizavam compressor para captura da lagosta. Na mesma manh, pescadores da Prainha do Canto Verde, em Beberibe, foram expulsos do mar. Eles afirmam ter sido ameaados por mergulhadores de compressor. O uso do equipamento proibido.O litoral leste cearense foi palco de dois conflitos envolvendo a pesca da lagosta na manh da ltima quarta-feira, 11 de maio de 2005. Moradores da Praia de Redonda, em Icapu, a 209 km de Fortaleza, incendiaram um barco sob a justificativa de que era utilizado para pesca com compressor. Pescadores da Prainha do Canto Verde, em Beberibe, distante 81 km da capital, denunciaram que foram expulsos do mar por pescadores piratas (nome dado aos que capturam lagosta com tal equipamento). O uso do compressor proibido por uma portaria do Ministrio do Meio Ambiente. Pescadores e entidades que trabalham com a causa afirmam que a fiscalizao ineficiente.Lindomar Fernandes, da coordenao do Frum dos Pescadores e Pescadoras do Litoral do Cear, descreveu que cerca de 12 pescadores estavam em trs jangadas, no mar de Beberibe, distante 81 km de Fortaleza, quando foram abordados por quatro homens num barco. Segundo Lindomar, os tripulantes da embarcao ameaaram os pescadores com armas de fogo e com o prprio barco. Lindomar contou que o conflito se deu por volta das 15 horas, quando os pescadores deixaram o mar, e que os autores da ameaa no foram identificados, nem foi registrada queixa na polcia.Em Icapu, o conflito tambm comeou em alto-mar, mas terminou na praia, por volta das 11 horas, com uma multido destruindo o barco que diziam estar usando equipamento proibido. O comerciante Vanderlei Bezerra, morador de Redonda, disse que os mergulhadores (ou cafanguistas, que capturam lagosta com compressor) vinham destruindo os manzus (armadilha artesanal permitida para a captura de lagosta) dos pescadores locais. O mesmo aconteceu em 20 de fevereiro passado, poca do defeso da lagosta, quando outra embarcao foi queimada em Redonda.Dessa vez, segundo Vanderlei, revoltados com a pesca ilegal e com as provocaes dos cafanguistas, cerca de 40 pescadores reuniram-se e, no barco da comunidade, saram em busca dos mergulhadores. Vanderlei contou que os mergulhadores foram deixados em outra praia e apenas o barco foi levado para Redonda, pra que a populao no fizesse nada com eles (os mergulhadores), disse. Vanderlei no sabia o nome dos envolvidos.A questo est ligada ousadia dos empresrios que mandam barco com compressores para o mar e inoperncia do sistema de fiscalizao. Se fosse eficiente, no precisaria os pescadores agir. Ou eles saem do mar e voltam pra casa sem nada, ou vo para o confronto a fim de garantir espao de trabalho e de vida, afirmou a assessora do Instituto Terramar, Rosa Martins.

  • 28 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    O que compressor? uma adaptao com uso de um botijo de gs como reservatrio de ar comprimido. Dele sai um tubo que colocado na boca do mergulhador, sendo sua fonte de oxignio. As lagostas so fisgadas com lanas e puxadas para a tona numa rede. Com compressor, se consegue em menor tempo pescar muito mais que na pesca artesanal. Muitas vezes, os mergulhadores fisgam lagostas de manzus (armadilha permitida) ou pescam lagosta mida (tamanho abaixo do permitido). O mergulhador pe em risco sua sade, por causa da precariedade do material e do seu desconhecimento de regras de mergulho.

    Fonte: Roriz (2005).

    Box 9 Pescadores x surfistas: Floripa aberta ao surfeOs surfistas que pretendem aproveitar as frias de julho para pegar onda no litoral catarinense podem comemorar. Termina no dia 15 de julho o prazo oficial das praias fechadas em Floripa. que durante o perodo da pesca da tainha, entre o final do outono e o inverno, surfistas e pescadores precisavam disputar espao no mar em praias como Campeche, Barra da Lagoa e Armao do Pntano do Sul. s vezes, as discusses ultrapassavam as palavras e partia-se, literalmente, para a agresso.Com o objetivo de dar fim a esse impasse, a Federao Catarinense de Surfe (Fecasurfe) e a Federao Catarinense dos Pescadores (Fepesc) assinaram, em 2002, um termo de compromisso que organizava as atividades.A prtica funciona mais ou menos assim: quando o mar est abaixo de um metro hasteia-se uma bandeira azul, ou seja, est liberado para os pescadores. J quando o tamanho do mar ultrapassa um metro a vez dos surfistas e hasteia-se uma bandeira branca.Apesar de oficial, a prtica, segundo o presidente da Fecasurfe, Xandi Fontes, j est sendo trocada por uma boa conversa. Hoje, essa questo j est bem mais tranquila, at porque muitos filhos dos pescadores so surfistas tambm. O pessoal sabe que precisa respeitar, afinal, uma pesca de subsistncia, diz Fontes.Por isso, fique atento: quando visitar Floripa entre maio e julho procure saber se o mar est para peixe ou para o surfe. Uma boa conversa com os pescadores vale a pena.

    Fonte: http://guiadolitoral.uol.com.br/index.asp

    Outro momento para reflexoPode ser feito sozinho, discutindo com seu companheiro ou companheira de quarto, no cafezinho, noite e principalmente em sua comunidade com seus e/ou suas camaradas de pescaria.Agora vamos refletir sobre:

    Na regio onde pescamos, podemos identificar algum conflito pelo acesso e uso dos recursos pesqueiros?

  • 29Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    Quem so os atores sociais envolvidos? Quais seus objetivos e que projetos tm? Existe alguma tentativa de promover acordos? Quem est promovendo tais acordos? Qual o papel da nossa organizao (associao, colnia, sindicato, etc.)? Qual o papel do Estado?

    1.1.2.3 Devido s prticas de uso ou ao abuso

    Tambm estabelecemos normas que disciplinam as prticas de uso, ou dito de outro modo: tentam evitar abusos. Tais normas, geralmente, so aquelas relaciona-das a onde pescar, quando pescar, com que pescar e como pescar.

    Isso significa que mesmo estando autorizado a acessar os recursos pesqueiros, ou seja, mesmo estando autorizado a pescar, o pescador no pode faz-lo como quiser.

    Ele tem que obedecer regras, que tambm podem ser construdas pelas leis ou pelos costumes, que se destinam a garantir que os estoques pesqueiros no sejam explorados irracionalmente (Boxes 10 e 11).

    Entre tais regras encontram-se aquelas que visam proteger a reproduo, como os defesos, ou os indivduos jovens, que no reproduziram pelo menos uma vez, e o tamanho mnimo de captura. Tambm encontramos aqui aquelas regras que estabe-lecem o tamanho das malhas e dos anzis, pois, assim, garantimos que determinados tamanhos de peixes ou outros organismos aquticos no sejam pescados.

    Box 10 Exemplo de regra formal elaborada pelo governo a partir de costumes de pesca na Lagoa dos Patos (RS)Atualmente, no esturio da Lagoa dos Patos, existe certa organizao com relao aos locais de pesca do camaro, com a utilizao das redes fixas, ou seja, as redes de saquinho. Os locais de colocao das andainas vm sendo estabelecidos tradicionalmente e ainda hoje so respeitados entre os pescadores.Os acordos incluem formas de disposio das redes que permitiam a circulao dos recursos bem como a obteno dos pontos de pesca de acordo com a ordem de chegada.H duas dcadas, o primeiro a colocar as andainas em certo ponto da lagoa teria o direito de pescar ali durante o restante da safra e requerer, informalmente, entre os companheiros o direito de continuar pescando naquele local. Isso estabelecido, os demais pescadores iam-se apropriando dos lugares ainda disponveis que melhor lhes aprouvesse. A distncia mnima de 500 metros entre as andainas era estabelecida, deixando os espaos chamados de porteiras para os peixes e camares circularem.

  • 30 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    Alm disso, dispunham as redes de acordo com um sistema chamado de p-de-galinha que consiste em colocar as andainas em frente das porteiras e no na frente de outras andainas, alm de deixar os espaos mnimos de 500 metros entre elas (lateralmente), resultando no distanciamento mnimo de 1.000 metros (longitudinalmente) entre uma andaina e outra.Dessa forma, os prprios pescadores que iam-se estabelecendo checavam se os pescadores que comeavam a acomodar suas redes nas proximidades estavam respeitando a forma correta de disposio, ou seja, respeitando o posicionamento e a distncia com relao s demais andainas j estabelecidas. Um aspecto que se fortaleceu, com o passar do tempo, foi o fato de os pescadores que tm andainas prximas uns aos outros passarem a criar formas de fiscalizao das redes uns dos outros durante as noites de pesca para evitar roubos e furtos dos camares capturados, das redes e dos lampies. Essas regras informais foram reconhecidas pelo Estado e institudas como norma legal pelo Ibama por meio de portaria.

    Box 11 Lies de gesto do uso dos recursos pesqueiros aprendidas de estudos de sucessos ao redor do mundo indicam que alguns princpios devem nortear a gesto do acesso e do uso dos recursos pesqueirosLimites claramente definidos: importante que se estabeleam limites, conhecidos

    pela comunidade, com relao aos usurios dos recursos pesqueiros.Congruncia entre as regras de uso e as condies locais, ou seja, as regras de uso e gesto que restringem o tempo, o lugar, a tecnologia e ou a quantidade de recursos que podem ser explorados devem ser coerentes entre si.

    Arranjos de escolhas coletivas em que regras possam ser adaptadas e modificadas pelos usurios em algumas situaes especficas.

    Monitoramento: usurios devem estar engajados em monitorar se as regras esto sendo cumpridas pela comunidade.

    Penalidades: os usurios que violarem as regras devem sofrer sanes sociais (por exemplo, proibio de pescar no local, se violar essas regras um determinado nmero de vezes) ou outra forma de pagamento.

    Mecanismos de soluo de conflitos: os usurios dos recursos comunitrios devem ter mecanismos para lidar com conflitos que possam aparecer como decorrncia do uso dos recursos.

    Reconhecimento mnimo dos direitos dos usurios do recurso de organizarem e desenvolverem suas prprias instituies sem a interferncia de autoridades governamentais externas, mas com o seu apoio.

  • 31Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    Presena de uma hierarquia de organizaes em que haja comunicao entre os diferentes nveis da tomada de deciso que proporcione servios de apoio, como conectar a organizao local com fontes de apoio em nveis superiores (regional, estadual, federal).

    Fonte: Ostrom (1990).

    1.1.3 A quem cabe fazer e como feita a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    No item anterior, vimos a necessidade que a sociedade tem de estabelecer re-gras de acesso e uso dos recursos pesqueiros pelos motivos ali expostos.

    Como necessrio o estabelecimento de regras de acesso e uso, cabe uma per-gunta: quem tem a responsabilidade de fazer tais regras?

    Para respondermos a essa pergunta preciso que se discuta um pouco sobre uma questo fundamental: a quem pertencem os recursos pesqueiros?

    Atividade 3 (Ver respostas no Anexo 1)Compreendida a necessidade de que na sociedade tem de haver um processo de gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros, perguntamos de quem a responsabilidade de fazer isso? Vamos pensar um pouco sobre uma questo: a quem pertencem os recursos pesqueiros?O grupos reuniram-se novamente, preencheram, com suas opinies, o quadro apresentado a seguir:

    Propriedade dos recursos

    Quem decidesobre a gesto Quem pode pescar

    Os recursos no pertencem a ningum.

    Os recursos pertencem a uma comunidade ou grupo tnico.

    Os recursos pertencem a um proprietrio privado.

    Os recursos pertencem a todos os cidados de um Pas.

  • 32 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    1.1.3.1 A questo da propriedade

    Em teoria, existem cinco tipos de propriedade dos recursos pesqueiros que podem ser assim descritos:

    a) livre acesso para os recursos de livre acesso comum no existem proprie-trios e nem direitos de propriedade; no existem regras para o acesso aos recursos, sendo aberto e livre para qualquer indivduo ou empresa. Alguns autores confundem e consideram recursos de propriedade comum como recursos de livre acesso;

    b) propriedade privada os direitos de propriedade pertencem aos indivdu-os ou s empresas que tm direitos exclusivos de uso. Como recursos pri-vados, so administrados por seus proprietrios que tambm tm o direito de manter para si ou vender, no todo ou em parte, tanto os recursos em si como o esforo de pesca que lhes pertence e com o qual se apropria de tais recursos. Configuram-se, assim, as condies de exclusividade (que j vimos o que significa) e transferibilidade (que significa poder transferir um bem para outro proprietrio, seja por venda, doao ou herana), caracters-ticas dos bens privados, cabendo ao Estado apenas assegurar os direitos da propriedade privada;

    c) propriedade comunal ou comunitria os recursos pertencem a uma comunidade ou a usurios que mantm entre si relaes culturais muito fortes. Os recursos so administrados coletivamente, sendo os direitos de acesso e uso proibidos para aqueles que no pertencem comunidade. In-ternamente comunidade, no existem condies de exclusividade e trans-feribilidade, sendo o direito de uso e acesso igual para todos. Os direitos de propriedade comum ou comunitria podem ser assegurados e reconhecidos pelo Estado (como ilustrados pelos exemplos acima mencionados) ou sim-plesmente existir de fato, pela tradio ou direitos de ancestrais. Em alguns desses casos, as regras de acesso e uso dos recursos so estabelecidas pela comunidade proprietria e aceitas e reconhecidas pelo Estado e, em outros, estabelecidas em parceria com o Estado;

    d) propriedade do Estado so aqueles recursos que a Constituio do Pas determina que pertenam ao Estado, que decide o modo como tais recursos devem ser explorados e ou manejados. O Estado como proprietrio dos re-cursos pode explor-los diretamente ou ceder os direitos de acesso e uso a seus cidados ou empresas;

    e) propriedade global ou internacional os recursos que ocorrem alm das zonas econmicas exclusivas (ZEEs) so considerados de propriedade ou uso comum das naes, prevalecendo para eles, em princpio, a regra do livre acesso. No entanto, para recursos de grande importncia econmica ou ambiental, convenes, acordos ou tratados internacionais criam regras

  • 33Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    para o acesso e uso, tentando evitar o livre acesso e suas implicaes nega-tivas sobre a sade dos estoques e a lucratividade dos empreendimentos econmicos.

    Esses cinco tipos so aqueles considerados como tericos e esto na literatura. Entretanto, na realidade, esses tipos de propriedade esto misturados, pois em mui-tos pases e, mesmo no Brasil, os recursos podem ser de propriedade do Estado, mas em algumas situaes o Estado concede direitos de uso e gesto para indivduos e comunidades.

    No caso brasileiro, que veremos com maior profundidade a seguir, os recursos pesqueiros pertencem ao Estado e cabe ao Estado fazer a sua gesto do acesso e uso. Entretanto, devido grande crise no setor da pesca, o Estado tem estabelecido parce-rias com as comunidades de pescadores e empresrios de pesca em algumas situaes para redesenhar e reestabelecer sistemas de regras mais eficientes de gesto.

    Podemos afirmar que em muitos pases a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros est centrada nas mos de uma autoridade gestora ou rgo gestor que, dependendo do pas, pode ser um rgo da prefeitura, do estado ou do governo fede-ral. A forma como esse rgo gestor faz a gesto do acesso e uso dos recursos pesquei-ros varia muito e tem sido fundamental para o sucesso ou fracasso da prpria gesto.

    1.1.3.2 Como a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros feita?

    Existem quatro formas bsicas de como as autoridades gestoras podem fazer a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros, que de alguma forma mantm relao com a questo da propriedade dos recursos:

    a) centrada no Estado os recursos pertencem ao Estado e ele define, por meio do rgo gestor, todas as regras, sem ter que levar em considerao a opi-nio dos usurios, sejam pescadores ou empresrios. Assim, as regras so impostas aos usurios dos recursos que as tem de cumprir por fora da lei;

    b) centrada na comunidade neste caso, sendo os recursos da comunidade, ela quem define as normas de seu acesso e uso. O rgo gestor pode ser um conselho, um comit ou qualquer outra forma coletiva que toda a comu-nidade reconhea que tem autoridade para estabelecer regras que valham para todos os seus membros;

    c) centrada no mercado os recursos pertencem a proprietrios privados que definem por meio das regras do mercado como devem se apropriar de seus recursos; e

    d) compartilhada os recursos pertencem ao Estado, que abre mo de parte de seus poderes, compartilhando as decises e responsabilidades sobre a definio e o estabelecimento de regras e direitos de acesso e uso, bem como as responsabilidades pela sua implementao, com todos os usurios.

  • 34 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    No Mdulo 2, vamos explorar com mais profundidade essa ltima forma de gesto dos recursos pesqueiros, ou seja, a gesto compartilhada.

    A seguir discutiremos o processo de gesto do acesso e uso dos recursos pes-queiros no Brasil.

    1.1.4 O processo de gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros no Brasil

    Atividade 4 (Ver respostas no Anexo 1)Entendida a necessidade de que a sociedade tem de estabelecer um processo de gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros, bem como algumas caractersticas de tais recursos, e sabendo agora a quem pertencem e quem tem a responsabilidade pelo processo, discutiu-se um pouco sobre como este processo tem se dado.Formados novamente os grupos, foi discutido livremente sobre como cada um v este processo. Podemos pensar sobre alguns pontos: ele democrtico? Envolve maior nmero de pescadores e outros atores? Leva em considerao que tipo de saber? S o dos tcnicos? Todos conhecem as regras definidas e por que elas so assim? As regras definidas so cumpridas pelos pescadores? Esses foram apenas alguns pontos. Os grupos podem abordar outros a sua vontade.

    1.1.4.1 A questo da propriedade dos recursos pesqueiros no Brasil

    A primeira questo que vamos examinar a da propriedade. De quem a propriedade dos recursos pesqueiros no Brasil?

    No caso brasileiro, os recursos pesqueiros podiam ser considerados juridica-mente como no sendo de qualquer pessoa e sim de livre acesso at 1988. Apesar de tal situao jurdica, o Estado brasileiro exercia tutela sobre tais bens e baixava nor-mas com o objetivo de controlar o acesso e uso para alguns dos principais recursos pesqueiros, como, por exemplo, os camares, as lagostas, etc.

    A Constituio Federal promulgada em 1988, embora no se refira diretamen-te aos recursos pesqueiros, modifica profundamente tal situao.

    Vejamos o que nela consta:

    Art. 20. So bens da Unio:

    III os lagos, rios e quaisquer correntes de gua em terrenos de seu domnio, ou que ba-nhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros pases, ou se estendam a territ-rio estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;

  • 35Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    V os recursos naturais da plataforma continental e da zona econmica exclusiva;

    Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:

    I as guas superficiais ou subterrneas, fluentes, emergentes e em depsito, ressalva-das, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da Unio;

    Analisando esses artigos e incisos e partindo do entendimento de que o consti-tuinte, ao se referir aos rios, aos lagos, ao mar e plataforma continental, no quis falar apenas da gua ou do solo, mas daquilo que est na gua, conclui-se que os recursos pes-queiros, no Brasil, pertencem ao Estado, sejam da Unio ou das unidades da Federao.

    Em razo do novo estatuto jurdico, as questes relativas propriedade dos re-cursos pesqueiros devem, agora, ser analisadas luz do art. 225 da prpria Constitui-o Federal de 1988, considerando-se que tais recursos, tambm, constituem recursos ambientais por fora do inciso V, artigo 3, da Lei n 6.938, de 31 de agosto de 1981.

    O art. 225 da Constituio Federal de 1988 estatui que todos tm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Pblico e coletividade o dever de defend-lo e preserv-lo para as presentes e futuras geraes.

    Observe-se que tal artigo da Constituio contm dois dos elementos funda-mentais que regem a vida dos cidados: um direito e um dever. O primeiro constitui um direito fundamental: ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial sadia qualidade de vida; o segundo se refere ao dever de Estado e da coletividade: defender e preservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras geraes.

    Assim, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, a que todos tm direito de usufruir, , ao mesmo tempo, um direito social e individual e, como patrimnio coletivo, um bem pblico, que pode ser privatizado.

    Por se tornar necessrio sobrevivncia de indivduos, pescadores artesanais, empresas e seus trabalhadores, a Constituio permite que parte desse patrimnio (os recursos pesqueiros) seja apropriado privadamente, pelos pescadores e pelas empresas.

    bom observar que ao direito de se apropriar privativamente de parcelas dos re-cursos ambientais corresponde o dever de proteg-los para as presentes e futuras geraes.

    O avano considervel alcanado pela Constituio Federal de 1988 reside no fato de que esse dever no um nus atribudo apenas ao Poder Pblico, a ter lugar no mbito de cada poder estatal (Executivo, Legislativo e Judicirio) de acordo com as competncias juridicamente definidas, mas tambm coletividade.

    A responsabilidade social que reveste o dever de proteger o meio ambiente leva a que o Estado e a sociedade construam espaos de colaborao e participao no processo de tomada de deciso quanto ao uso dos recursos ambientais bem como da formulao de normas que lhe do consequncia.

  • 36 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    Assim, luz do art. 225 da Constituio Federal, os recursos pesqueiros no Brasil so propriedade do Estado (Unio Federal ou unidades da Federao), no podendo, na sua totalidade, ser privatizados. No entanto, por serem considerados como necessrios para a satisfao de necessidades individuais e coletivas, podem ter partes utilizadas privada ou coletivamente, seja por pescadores, seja por empresas pesqueiras, devendo o Estado brasileiro fazer a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros de modo que se cumpra o que determina esse artigo da Constituio.

    nesse artigo da Constituio de 1988 que se encontram as mais slidas bases legais para que a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros seja feita no Brasil de forma compartilhada.

    Mas, como o Estado brasileiro tem feito a gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros?

    Pode-se afirmar que, recentemente, a forma de fazer gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros no Brasil era aquela que no item anterior chamamos de cen-trada no Estado. Uma caracterstica definidora dessa forma de fazer gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros que por no dialogar com os grupos sociais usurios dos recursos, somente os objetivos do Estado esto presentes nas decises.

    Para a imensa maioria das espcies capturadas pelos pescadores artesanais, tanto de guas costeiro-marinhas como de guas continentais, no existem regras que controlem o acesso aos recursos pesqueiros, o que nos leva a afirmar que embora exista clara definio de propriedade dos recursos, vivemos numa situao real que mais se parece com a de livre acesso.

    O sistema de cotas j foi tentado no Brasil para algumas espcies de guas continentais, como as arraias, e de espcies de guas marinhas, como as lagostas e a piramutaba, sem que conseguisse cumprir seu objetivo de deter a sobrepesca dos es-toques (Box 12). De modo geral, considerado um sistema de difcil controle, pois exi-ge um caro e sofisticado servio de controle de desembarque, principalmente quando se trata de pescarias cujas espcies ocorrem em vastos territrios.

    Box 12 Cotas para exportao de arraias de guas continentaisAt recentemente existia um sistema de cotas para exportao de arraias de guas continentais (regulamentada pela Portaria Ibama n 36/03 N, de 25 de junho de 2003) muito usado no mundo inteiro em aquariofilia. A norma regulamentava apenas a exportao. Porm, como a comercializao no mercado interno j era proibida, na prtica as pescarias eram suspensas quando atingiam o total exportado permitido. Esse sistema foi modificado pelo Ibama devido reserva de mercado que proporcionava a determinadas empresas.

  • 37Mdulo 1 Conceito e contexto histrico da gesto do acesso e uso dos recursos pesqueiros

    O sistema de licenciamento como controle da entrada de novos pescadores ou do tamanho do esforo de pesca que pode ser utilizado o de controle utilizado nas principais pescarias brasileiras, a exemplo dos camares, das lagostas, do pargo, dos atuns, entre outros (Box 13). Ele consiste basicamente de estudos cientficos que esti-mam o quanto se tem de um determinado estoque e qual a quantidade de pescadores ou esforo de pesca suficiente e necessrio para captur-lo, mantida a capacidade do estoque em se reproduzir indefinidamente.

    Box 13 Sistema de permissionamento da pesca de camares-sete-barbas nas regies Sudeste e SulAs pescarias de camares-sete-barbas nas regies Sudeste e Sul do Brasil passam, neste instante, por um processo de repermissionamento, conforme estabelece as seguintes instrues normativas editadas pelo Ibama e pela Seap/PR. A Instruo Normativa n 164, de 17 de julho de 2007, do Ibama, limita o esforo de pesca da frota de arrasto e respectiva fauna acompanhante s embarcaes j permissionadas e s embarcaes com comprimento menor ou igual a 9 m, que comprovarem efetiva operao nos anos de 2005 e 2006, sendo, neste caso, permitida apenas uma embarcao por proprietrio ou armador. J a Instruo Normativa n 18, de 27 de julho de 2007, estabelece os critrios e os procedimentos para a concesso das permisses de pesca e cancela, a partir de 1 de dezembro de 2007, todas as permisses de pesca ou qualquer tipo de autorizao concedidas anteriormente ou sem o atendimento ao que dispe essa instruo normativa.

    Os direitos tradicionais e exclusivos de uso baseados nos saberes tradicio-nais e ecolgicos dos pescadores ou na territorialidade de suas pescarias s recente-mente aparecem como modelo de controle de entrada de pescadores nas atividades pesqueiras de maneira formal, ou seja, reconhecida pelo Estado. Isso ocorre com a criao das reservas extrativistas ou por meio dos acordos de pesca e de deciso da justia, como foi o caso da Lagoa dos Patos, onde a excluso de pescadores, vindos de fora desse esturio para pescar ali, foi implementada por norma legal, como ser discutido como mais profundidade no Mdulo 2 (Box 14).

    Box 14 Direitos de excluso de usurios obtidos no esturio da Lagoa dos Patos (LP)Estabeleceram-se pelo Frum da LP as portarias Ibama n 171/1998 e n 144/2000 (recentemente substitudas pela Instruo Normativa MMA/Seap/PR n 03/2004), cujas metas principais eram o controle sobre o esforo de pesca, com o objetivo principal

  • 38 Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir

    de limitar o uso dos recursos. Tem-se como resultado uma mudana no processo de licenciamento dos pescadores, com a qual, a partir desses instrumentos legais aprovadas por esse Frum, as licenas passaram a ser emitidas somente para aqueles que provem: 1) ser residente na regio do esturio da Lagoa de Patos; e 2) ter na pesca a sua atividade principal e fonte de renda. Essas regras esto relacionadas questo-chave para a organizao do setor pesqueiro o estabelecimento dos direitos de propriedade sobre o uso do recurso. A implementao dessas portarias e instrues normativas d aos pescadores locais o direito de limitar o uso dos recursos no esturio, principalmente, por pescadores de outras regies, visando alcanar melhor organizao da gesto da pesca artesanal na regio estuarina da Lagoa dos Patos, controlando o esforo de pesca para se obter o restabelecimento da capacidade produtiva dos recursos.

    No que se refere s normas de uso, pode-se dizer que existem para grande nmero de espcies que so capturadas pelos pescadores artesanais, representadas pelos defesos, pelos tamanhos mnimos de captura e regulamentao de petrechos como tamanho da malha das redes. Tambm aqui fica claro o modelo centrado no Estado, pois para elaborar tais medidas a autoridade gestora no tem levado em con-siderao os saberes tradicionais dos pescadores, mas apenas aqueles saberes que vm da cincia, tornando-se uma legislao impositiva e, muitas vezes, motivo de conflitos entre pescadores e a autoridade gestora.

    Neste mdulo aprendemos um pouco sobre por que os recursos pesqueiros so recursos considerados comuns, por que h, s vezes, tantos conflitos relacionados a sua utilizao como se organiza e se controla a pesca ao longo do planeta, por que importante a organizao do uso e porque ela tem falhado da forma que tem sido fei-ta centralizada nos governos, sem levar as questes sociais e econmicas em consi-derao. Tambm foi discutido como a legislao brasileira determina a propriedade dos recursos naturais incluindo os da pesca. No prximo mdulo discutiremos como podemos melhorar a gesto pesqueira.

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    Mdulo 2

    Gesto compartilhadado uso dos recursos

    pesqueiros: umanova possibilidade

    Ana Th e Mauro Ruffino

  • Mdulo 2 Gesto compartilhada do uso dos recursos pesqueiros: uma nova possibilidade 41

    2.1 Introduo

    A partir de agora discutiremos uma nova forma de gesto do uso dos recursos naturais e pesqueiros. Mas antes da apresentao dos conceitos, vamos analisar um estudo de caso para identificar as diferenas e semelhanas entre a gesto comparti-lhada, ou seja, uma nova possibilidade de gesto com a forma tradicional de governar o uso dos recursos pesqueiros que ns estamos acostumados a vivenciar no contexto brasileiro. Leia atentamente o texto apresentado no Box 1.

    Box 1 Gesto comunitria de pirarucu na Reserva de Desenvolvimento Sustentvel Mamirau, BrasilA marginalizao dos habitantes economicamente pobres nos processos de deciso poltica uma das causas principais da degradao ambiental na vrzea amaznica. Consequentemente, nas ltimas duas dcadas, os habitantes locais comearam a manejar de forma sustentvel os recursos naturais na escala das comunidades e, dessa forma, ganharam poder de deciso. Atualmente, o manejo comunitrio, ou seja, aquele feito com o envolvimento direto das comunidades pesqueiras e rurais, componente principal da maioria das iniciativas de desenvolvimento sustentvel da Amaznia.Um exemplo disso a Reserva Mamirau, que visa a conservar a biodiversidade local por meio da gesto compartilhada dos recursos naturais (www.mamiraua.org.br). O pirarucu um peixe que cresce at trs metros de comprimento e 200 quilos de peso e que respira obrigatoriamente ar atmosfrico. um dos recursos naturais de maior importncia econmica para as populaes ribeirinhas da vrzea amaznica.Em 1999, trabalho de pesquisa mostrou que alguns pescadores experientes so capazes de avaliar as populaes do pirarucu por meio de contagens dos indivduos no momento em que eles vm superfcie para golfar ar (CASTELLO, 2004). Assim, um trabalho de extenso pesqueira desenvolvido pelo Instituto Mamirau somado participao comunitria resultou em um modelo de manejo/gesto que funciona da seguinte forma: todos os anos os pescadores contam o nmero de pirarucus nos seus lagos, e, juntamente com o Instituto Mamirau e o rgo ambiental (Ibama), determinam cotas anuais de pesca. O Instituto Mamirau um mediador nas negociaes entre pescadores e agncias do governo e prov treinamento e apoio para a venda da produo dos peixes capturados. Os pescadores, por sua vez, comprometem-se a obedecer a regulamentaes de tamanho mnimo, de defeso e de limite da captura (VIANA et al., 2003).Entre 1999 e 2001, quando esse modelo de gesto foi implementado, as populaes de pirarucu aumentaram 300% e o lucro dos pescadores duplicou. Esse modelo de manejo, que comeou, em 1999, com a pesca de trs toneladas de pirarucu e envolvendo quatro comunidades, j foi implementado em mais de 15 comunidades que vivem nas reservas Mamirau e Aman, duas sedes de municpio prximas reserva (Mara e Fonte Boa) e 14 comunidades da Guiana, como resultado da demanda dos prprios pescadores.

  • Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir42

    Considerando todas essas comunidades, estima-se que em 2004 foram pescadas cerca de 770 toneladas, trazendo benefcios econmicos para os pescadores e conservando os estoques de pirarucu nas reas manejadas. Alm disso, recentemente, o Ibama incorporou esse modelo de manejo na legislao regional, permitindo que outras comunidades do estado explorem o pirarucu legalmente desde a proibio da pesca em 1996.

    Apesar desses avanos, no entanto, alguns problemas esperam por solues definitivas. A burocracia exigida pelo governo demasiada quando comparada com a capacidade tcnica das populaes locais. Alm disso, o aumento da quantidade total de pirarucu pescado e do nmero de comunidades envolvidas tem exigido cada vez mais recursos humanos, financeiros e logsticos por parte de todas as instituies envolvidas. Esses e outros desafios vm sendo satisfatoriamente abordados com a participao dos comunitrios e a sensibilizao de agncias de governo.

    Fonte: Castello, 2006.

    Atividade 5 (Ver respostas no Anexo 1)Refletindo sobre o texto:Como o autor apresenta a situao dos pescadores da regio da vrzea amaznica?

    Como estava definida na lei a pesca do pirarucu? Por qu?

    Qual foi a soluo encontrada para a pesca ilegal?

    Quem participou da proposta de soluo?

    O que aconteceu depois da experincia de cotas anuais de pesca para o pirarucu?

    Cite algumas lies que voc consegue identificar dessa experincia e como ela pode ajudar na gesto dos recursos pesqueiros do seu local.

    2.2 Governana e gesto do uso de recursos pesqueiros

    A gesto do uso dos recursos pesqueiros pode ser definida como um processo integrado de gerao de informao, anlise, planejamento, consulta, tomada de de-ciso, distribuio de recurso, formulao, implementao e execuo de regras que governam todas as atividades pesqueiras para assegurar a produtividade contnua dos recursos e a compatibilizao com outras atividades de pesca (FAO, 1997).

    Como vimos no mdulo anterior, h distintas maneiras de definir quem so os proprietrios (ou quem possui poder de deciso) no uso dos recursos pesqueiros e como podem ser governados ou geridos. Nas ltimas dcadas, em razo da crise em que se encontram os recursos pesqueiros e os meios de vida dos pescadores, houve uma mudana mundial na forma como se faz gesto do uso dos recursos pesqueiros,

  • Mdulo 2 Gesto compartilhada do uso dos recursos pesqueiros: uma nova possibilidade 43

    ao reconhecer a importncia da participao e do envolvimento dos pescadores na to-mada de deciso conjunta e compartilhada. Essa abordagem pode ser definida como gesto compartilhada, um tipo de gesto que caracterizada por uma parceria na qual o governo, a comunidade de usurios locais do recurso (pescadores), os agentes externos (organizaes no-governamentais, academias e instituies de pesquisa) e outros atores relacionados com a pesca e os recursos costeiros (proprietrios de embarcaes, comerciantes de peixes, bancos que concedem emprstimos, estabele-cimentos tursticos, etc.) compartilham a responsabilidade e a autoridade por tomar decises sobre a gesto de uma pescaria (BErkES et al., 2006).

    Essa interao entre o governo e os usurios dos recursos pesqueiros se d por meio de consensos, construindo e compartilhando diferentes papis e responsabili-dades na gesto do uso dos recursos pesqueiros. Em outras palavras, gesto compar-tilhada constitui uma alternativa promissora que busca aumentar a efetividade da gesto das pescarias, pois, por meio de consultas, os parceiros no processo de gesto desenvolvem um acordo que especifica os seus papis, responsabilidades e direitos na gesto. Os pescadores adotam um papel ativo e construtivo na gesto e administrao do recurso, que envolve discusses e tomada de deciso conjunta sobre assuntos, por exemplo, como pescar, onde pescar, que tipo de arte de pesca que pode ser utilizada, como deveria ser o sistema de fiscalizao, etc. A gesto compartilhada no uma tcnica regulatria. uma estratgia participativa e flexvel de gesto, que propicia e mantm um frum para ao na participao, criao de regras, manejo de conflitos, compartilhamento do poder, liderana, dilogo, tomada de decises, negociao, gera-o e compartilhamento de conhecimento, aprendizagem e desenvolvimento entre os usurios dos recursos, outros atores e o governo. A gesto compartilhada o processo consensual de reconhecer os diferentes valores, necessidades, preocupaes e interes-ses envolvidos no manejo de um recurso. Parcerias so construdas, fortalecidas e re-definidas em diferentes momentos do processo de gesto compartilhada, dependendo das polticas existentes e do ambiente legal, do apoio poltico do governo para aes e iniciativas comunitrias e da capacidade das organizaes comunitrias de se torna-rem parceiras do governo. Mas antes de conhecermos melhor a gesto compartilhada na pesca, vamos entender o que importante na gesto ou manejo da pesca.

    2.2.1 A crise da pesca mundial e no Brasil

    Desde os primrdios da humanidade, o pescado, obtido a partir de processo tipicamente extrativo, utilizado como importante fonte de protena animal. Nas lti-mas dcadas, porm, a importncia da pesca como atividade econmica cresceu con-sideravelmente em funo da demanda mundial por alimentos, chegando a destacar-se como principal atividade em algumas comunidades, regies e at pases.

    Isso resultou numa crescente presso sobre os estoques pesqueiros devido no somente ao aumento quantitativo do nmero de pescadores e dos meios de produo (barcos, redes de pesca, etc.) mas tambm ao desenvolvimento tecnolgico dos pe-

  • Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir44

    trechos e mtodos de capturas. Como consequncia dessa situao, segundo a FAO (2004), cerca de 77% dos recursos pesqueiros de todo o mundo encontram-se, hoje, intensamente explotados ou em situao de esgotamento (Figura 1). Fica claro, assim, que o pensamento reinante no passado de que os recursos pesqueiros apresentavam abundncia ilimitada no era verdadeiro.

    Figura 1. Estado de explotao dos estoques pesqueiros mundiais de acordo com a FAO (2004).

    No Brasil a situao no muito diferente. recentes diagnsticos sobre a si-tuao do uso dos recursos pesqueiros, realizados pelo MMA e Ibama, bem como os ltimos simpsios, seminrios e congressos abordando o tema o uso dos recursos pesqueiros no Brasil concluem que bem poucos recursos so ainda passveis de au-mento na sua explotao e que, de modo geral, preocupante a situao da maioria dos estoques que j vm sendo explotados, ainda mais grave que o atual quadro da pesca mundial, para a qual se tem adotado medidas de conteno do esforo e di-minuio das frotas, defesos, tamanhos mnimos de captura, proibio de petrechos e mtodos de pesca predatrios, etc. Com relao s pescarias artesanais, o estudo realizado por Vasconcellos et al. (2008) revela que o estado dos estoques pesqueiros, alvos da pesca artesanal, apresentam um padro insustentvel de desenvolvimento da atividade pesqueira marinha nacional.

    Considerando os diagnsticos j elaborados e com base em documentos e pesquisas, a Figura 2 apresenta a distribuio dos principais recursos pesqueiros no Brasil, e, segundo Dias-Neto e Dornelles, 1996, mais de 80% dos principais recur-sos encontram-se plenamente explorados, sobrepescados, esgotados ou em processo de recuperao. Portanto, o quadro geral da pesca martima nacional preocupante: produo estagnada, crise econmica, baixo rendimento nas principais pescarias/so-brepesca, insatisfao social.

  • Mdulo 2 Gesto compartilhada do uso dos recursos pesqueiros: uma nova possibilidade 45

    Figura 2. Distribuio dos principais estoques pesqueiros na costa brasileira.

    Fonte: Dias-Neto e Marrul-Filho (1996).

    Uma das concluses possveis que o Estado brasileiro tem fracassado na mis-so de promover a gesto do uso sustentvel dos recursos pesqueiros (DIAS-NETO, 2003).

    2.2.2 Relao entre recursos pesqueiros e recursos humanos

    Os oceanos cobrem dois teros da superfcie da Terra. Maior espao habitvel do planeta, eles concentram a maioria dos seres vivos e da biodiversidade. Como se no bastasse, essas imensas massas de gua salgada desempenham um papel es-

  • Gesto compartilhada do uso sustentvel de recursos pesqueiros: refletir para agir46

    sencial nos sistemas que garantem a vida e respondem pela manuteno, em longo prazo, da estabilidade ambiental do planeta (ODUM; BArrET, 2007).

    O meio ambiente marinho, porm, encontra-se cada vez mais ameaado. Hoje, restam pouqussimas reas que ainda no sofreram algum tipo de interferncia po-luidora por parte do homem. Menos de 0,5% dos litorais ocenicos e demais re-as martimas se beneficia de alguma forma de preservao ambiental, e, em apenas 0,01% dessas reas, as atividades predatrias so estritamente proibidas. Alm disso, o avano rpido do aquecimento global pode colocar em risco diversas reas costei-ras, sobretudo os bancos de corais que esto embranquecendo por causa do aumento da temperatura das guas. (ODUM; BArrET, 2007).

    O crescimento exponencial da industrializao e da explorao dos recursos marinhos ocorrido no sculo 20 desfez o mito de que os oceanos constituem uma fonte inesgotvel de recursos. Uma das atividades mais prejudiciais