Gestão Pub No Século XXI

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    I SSN 1415 - 4765

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    GESTO PBLICA NO SCULO XXI:AS REFORMAS PENDENTES

    Ricardo CarneiroTelma Maria Gonalves Menicucci

  • TEXTO PARA DISCUSSO

    GESTO PBLICA NO SCULO XXI: AS REFORMAS PENDENTES

    Ricardo Carneiro*Telma Maria Gonalves Menicucci**

    * Professor da Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho da Fundao Joo Pinheiro (FJP).

    ** Professora Adjunta do Departamento de Cincia Poltica (DCP) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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  • Governo Federal

    Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica Ministro Wellington Moreira Franco

    Fundao pblica vinculada Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica, o Ipea fornece suporte tcnico e institucional s aes governamentais possibilitando a formulao de inmeras polticas pblicas e programas de desenvolvimento brasileiro e disponibiliza, para a sociedade, pesquisas e estudos realizados por seus tcnicos.

    PresidenteMarcio Pochmann

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    RL: http://www.ipea.gov.br Ouvidoria: http://www.ipea.gov.br/ouvidoria

    Texto paraDiscusso

    Publicao cujo objetivo divulgar resultados de estudos

    direta ou indiretamente desenvolvidos pelo Ipea, os quais,

    por sua relevncia, levam informaes para profissionais

    especializados e estabelecem um espao para sugestes.

    As opinies emitidas nesta publicao so de exclusiva e

    de inteira responsabilidade do(s) autor(es), no exprimindo,

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    Econmica Aplicada ou da Secretaria de Assuntos

    Estratgicos da Presidncia da Repblica.

    permitida a reproduo deste texto e dos dados nele

    contidos, desde que citada a fonte. Reprodues para fins

    comerciais so proibidas.

    ISSN 1415-4765

    JEL: Y90

  • SUMRIO

    SINOPSE

    APRESENTAO..................................................................................................................... 7

    1 INTRODUO...................................................................................................................... 8

    2 DA ADMINISTRAO BUROCRTICA NPM...................................................................... 13

    3 CRTICAS, PROPOSTAS E DESAFIOS: A LITERATURA PS A HEGEMONIA DA NPM ........... 34

    4 CONSIDERAES FINAIS................................................................................................... 65

    REFERNCIAS ...................................................................................................................... 70

  • SINOPSE

    O artigo procede inicialmente a uma descrio do surgimento, das caractersticas e bases tericas da perspectiva que, sob o rtulo de New Public Management (NPM), tornou-se hegemnica no debate terico e poltico sobre gesto pblica nas ltimas dcadas, contrapondo-a ao modelo convencional de administrao pblica, fundado na burocracia weberiana. Em seguida, faz uma reviso no exaustiva da literatura mais recente acerca da temtica da reforma do Estado, na perspectiva de assinalar as principais tendncias no campo da gesto pblica. Desta reviso resultam duas constataes mais gerais, de natureza complementar. A primeira seria o relativo esgotamento do reformismo da NPM, ainda que alguns de seus princpios e prticas aparentem ter vindo para ficar. Tal esgotamento espelha certo consenso na literatura, gerado a partir de pesquisas cross-national, sobre o relativo fracasso das reformas levadas a cabo em diferentes contextos nacionais sob a influncia das ideias associadas NPM, tanto por no produzirem os resultados perseguidos ou apregoados quanto por suscitarem uma srie de consequncias no pretendidas e efeitos paradoxais. A segunda constatao tem a ver com a reafirmao do papel do Estado e, com ela, a reafirmao da burocracia em moldes weberianos, junto com a revalorizao dos princpios da democracia no tocante relao Estado e sociedade. s competncias tradicionais da burocracia se alia a necessidade de ampliao de sua capacidade poltica, para fazer bem a poltica e/ou ampliar de forma renovada as relaes com a sociedade. Por esta via, reafirma-se o carter indissocivel entre poltica e administrao e entre reforma do Estado e reforma da gesto pblica.

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    Gesto Pblica no Sculo XXI: as reformas pendentes

    APRESENTAO

    A Diretoria de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia (Diest) do Ipea tem a satisfao de apresentar ao leitor o presente Texto para Discusso, intitu-lado Gesto pblica no sculo XXI: as reformas pendentes, de autoria de Ricardo Carneiro e Telma Menicucci. Este texto inaugura na Diest uma discusso sobre os novos rumos da gesto pblica no Brasil e abre uma agenda de pesquisa a ser desenvolvida nos pr-ximos anos. Com isso, o Ipea pretende se colocar no debate nacional como produtor de conhecimento aplicado sobre o tema da organizao e funcionamento do Estado e de suas instituies.

    Este texto foi elaborado no contexto do Projeto Sade Brasil 20222030, coor-denado pela Fundao Oswaldo Cruz (Fiocruz), Secretaria de Assuntos Estratgicos da Presidncia da Repblica (SAE) e pelo Ministrio da Sade (MS). No mbito deste projeto, o Ipea contribuiu como parceiro por meio do aporte tcnico de seus pesqui-sadores e pesquisadoras na superviso e/ou elaborao direta de textos-base e subsdios para o documento final do projeto.

    Alexandre de vila Gomide

    Diretor de Estudos e Polticas do Estado, das Instituies e da Democracia do Ipea

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    1 INTRODUO

    Nas ltimas trs dcadas, o termo gesto pblica tem sido utilizado de forma intensa em substituio a administrao pblica, mas, apesar disso, ou por causa disso, tornou-se um termo polissmico. Para alguns, confunde-se com administrao pblica, para outros, marca o rompimento com a administrao pblica tradicional e a adoo de ferramentas da gesto do mundo dos negcios, ou, ainda, para outros, tem significado mais amplo. De forma genrica, Druker (1993), que diagnosticou uma revoluo da gesto a partir dos anos 1950, considera que gesto no se refere hierarquia organizativa de uma admi-nistrao clssica, mas capacidade de promover a inovao sistemtica do saber e tirar dela o mximo rendimento na sua aplicao produo. Para Metcalfe e Richards (1987 apud BRUGU e SUBIRATS, 1996), gerir significa assumir a responsabilidade sobre a ao de um sistema, o que remete noo de um espao onde se articulam relaes e negociaes. O foco desta definio est em processos que so inerentes ao setor pblico e se referem gesto de um conjunto de organizaes e no a apenas uma , e neces-sidade de se ajustar ao sistema completo da governana pblica.

    Perry e Kraemer (1983) buscam fugir da polarizao que coloca em extremos de um contnuo, por um lado, a defesa da especificidade da administrao pblica e, por outro, a ideia de que gesto um conceito genrico que aproxima os setores pblico e privado. Na busca de uma definio integradora, consideram que a gesto pblica seja uma fuso da orientao normativa da administrao pblica tradicional e da orientao instrumental da gesto em um sentido genrico. No primeiro aspecto, a gesto pblica incorpora temas como democracia e responsabilidade, alm de valores como equidade, igualdade e probidade; e, da orientao instrumental, aceita que o setor pblico compartilhe com o setor privado a necessidade de alcanar seus objetivos de forma mais econmica e mais eficiente.

    Outra concepo mais ampla e no restrita a processos a de Pierre (1995), que define administrao pblica e no usa o termo gesto pblica, como de modo geral o fazem os franceses como o principal resultado da ligao entre Estado e sociedade civil, a qual se caracteriza por ser de mo dupla: inclui, de um lado, a implementao de polticas pblicas e, de outro, as demandas dos atores privados sobre os decisores.

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    Gesto Pblica no Sculo XXI: as reformas pendentes

    Assim como o termo pode assumir diferentes significados, a gesto pblica no ainda uma disciplina acadmica consolidada e no dispe de um corpo terico bem delimitado. Sob esta rubrica, colocam-se diferentes enfoques e preocupaes, desde uma perspectiva mais ampla de entender o formato da relao Estado-sociedade e os mecanismos de definio dos objetivos do governo, at preocupaes mais instrumen-tais. Alm disso, configura-se como uma mescla de preocupaes polticas e tericas, tornando-se difcil distinguir onde acaba seu carter instrumental e onde comea sua dimenso analtica. , ao mesmo tempo, um espao de reflexo sobre a administrao pblica e um marco para o desenvolvimento de ferramentas que permitam melhorar ou facilitar o dia a dia da ao governamental (BRUGU e SUBIRATS, 1996, p. 17).

    Assume-se aqui a concepo de que gesto um ato complexo que nos aproxima do mundo da poltica (BRUGU e SUBIRATS, 1996). Diferentemente da gesto pri-vada, a gesto pblica deve permitir a expresso de valores que no so apenas instru-mentais, mas polticos. Neste sentido, no se limita aos meios, mas incorpora tambm os objetivos, sua definio e sua articulao operativa, orientando-se a partir de valores sociais. Remete necessidade de articular a concorrncia entre objetivos alternativos e a necessidade de gerir a interdependncia e a cooperao organizativa para o alcance dos objetivos polticos. Dentro da lgica poltica, a gesto pblica deve facilitar a expresso de vontades, fazer a mediao entre elas e encontrar valores para conduzir as aes. Nesta perspectiva, a anlise da gesto pblica indissocivel da anlise do Estado e sua configurao, o que remete ao papel por ele assumido historicamente em diferentes contextos. Pensar a evoluo histrica da gesto pblica bem como, de forma pros-pectiva, as tendncias ou possibilidades de seu desenvolvimento futuro, remete a uma reflexo sobre o papel esperado do Estado no momento atual.

    No h dvidas de que, desde os anos 1970, tm havido transformaes na ao de governar que afetam tanto as estruturas estatais e o processo de governo como a relao entre o Estado e a sociedade civil, embora estas mudanas afetem de forma diferente os diferentes pases, diferentes segmentos sociais, em momentos temporais distintos e de maneiras tambm distintas. Entretanto, a discusso sobre este processo se deu mais no contexto do novo gerencialismo (PETERS, 1996), sendo verificada a partir dos anos 1980 uma mudana de estilo dos estudos sobre a administrao pblica com uma linguagem gerencialista exagerada e a introduo do racionalismo econmico, que passou a caracterizar o desenho organizativo dos servios pblicos.

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    Na expresso de Hood (1996), a chamada era progressiva da administrao pblica1 parecia caminhar para a tumba dos dinossauros pela mo da chamada new public management (NPM). Este foi o rtulo dado por consultores para definir as reformas do setor pblico de modo a enfatizar os elementos comuns e cujo modelo atacava o ncleo das doutrinas bsicas da administrao pblica progressiva, particularmente substituindo a nfase em regras gerais pela nfase em resultados.

    Essas transformaes esto vinculadas ao movimento poltico e ideolgico, com razes tambm econmicas, de propostas e aes no sentido de uma reforma do Estado. Este tema entra na agenda dos debates polticos e institucionais da comuni-dade internacional no rastro da crise que acomete as principais economias capitalistas ao longo da dcada 1970. Na viso que vai se tornar dominante poca, os proble-mas defrontados pelo capitalismo so percebidos como manifestao do excesso de intervencionismo estatal na vida econmica e nas relaes societais em sentido amplo. Um liberalismo renovado, com forte sustentao na teoria econmica neoclssica, des-loca o consenso keynesiano construdo no ps-Guerra, argumentando que o Estado havia se tornado muito grande e a administrao pblica ineficiente ou pouco eficaz (BRESSER-PEREIRA, MARAVALL e PRzEwORSKI, 1996; BRESSER-PEREIRA, 1998; FERLIE et al., 1999; REzENDE, 2002; PAULA, 2005; OLIVEIRA, 2009; PACHECO, 2010).

    Na interpretao do novo pensamento hegemnico, convencionalmente chamado de neoliberalismo, a crise da economia se transmuta em crise do Estado, cuja face mais visvel seria a crescente necessidade de financiamento de um dficit pblico incontrol-vel, apontando para uma rota explosiva do estoque da dvida e, com ela, para o compro-metimento das condies de governabilidade. O estrangulamento dos mecanismos de financiamento assinalado originalmente por OConnor (1967), que ressalta o excesso de encargos advindo das funes desempenhadas pelo Estado no tocante a garantir a reproduo da dominao de classes a longo prazo: as de acumulao e legitimao (OLIVEIRA, 2009, p. 64). No rastro desta linha de interpretao, focada na dimenso fiscal, emergem explicaes para o gigantismo do setor pblico centradas nos limites da

    1. Por administrao progressiva se entende um conjunto de ideias sobre a administrao pblica que floresceram do final do sculo XIX a princpios do XX e cujo tema central era como limitar a corrupo e a incompetncia associadas a ela e, ento, limitar o poder discricionrio de polticos e ocupantes de altos cargos pblicos por meio de uma estrutura de insti-tuies quase independentes e por regras procedimentais, as quais incluam o controle popular e o referendum, estatutos do servio pblico e normas gerais de procedimento.

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    Gesto Pblica no Sculo XXI: as reformas pendentes

    democracia liberal em assegurar um controle mais efetivo da sociedade sobre o Estado. O crescimento desordenado dos gastos pblicos seria um sintoma da fragilidade dos mecanismos de controle democrtico em garantir a prevalncia dos interesses da cole-tividade no processo decisrio da poltica, erodindo as bases de legitimao do Estado. A crtica poltica mais influente associada nova direita, que sintetiza, na ideia de hipertrofia do Estado, a presso no sentido do incremento da extrao de recursos da sociedade e, por extenso, do circuito do mercado, para atender no s a interesses especficos de determinados entes privados com capacidade poltica para influenciar as decises de governo, mas tambm a interesses internos ao prprio aparato estatal (DUNLEAVY e OLEARY, 1987; HELD, 1987; HOOD, 1995).

    A consolidao e prevalncia do neoliberalismo leva formulao e implemen-tao de uma agenda reformista, de orientao pr-mercado, focada na reduo do escopo da interveno do estado na economia e na concomitante reestruturao de seu aparato organizacional e dos mecanismos de que dispe para governar. Assim, desde os anos 1980, praticamente todos os governos tm empreendido esforos para moderni-zar e agilizar a administrao pblica (KETTL, 2005, p. 75), com desdobramentos em dois eixos principais: reduzir o alcance do governo e faz-lo funcionar melhor.

    No tocante redefinio das funes que o Estado desempenha, a agenda neoliberal preconiza uma transio de um papel intervencionista e dirigista para um papel regula-dor, adquirindo materialidade nos projetos polticos de Thatcher, na Inglaterra, e Reagan, nos Estados Unidos (KETTL, 2005; SPINK, 2005; PAULA, 2005; PIERRE, 2009). O conjunto bsico de medidas propostas inclui desregulamentao e menor interferncia estatal nas relaes que se estabelecem entre os agentes privados, privatizaes e cortes na proviso de servios pelo poder pblico. A desregulamentao apresentada como ins-trumento essencial para a promoo de melhorias sustentadas no desempenho do sistema produtivo, ao reduzir os constrangimentos que se interpem autonomia decisria dos agentes econmicos, favorecendo a competio de interesses sobre a qual repousa a pre-sumida eficincia da ao coordenadora do mercado. J a privatizao procura retirar da alada do Estado e transferir para a rbita do mercado tudo aquilo que pode ser retirado, com destaque para a produo de mercadorias. Em simultneo, h um esforo de reor-ganizar a forma de funcionamento das atividades de natureza finalstica que persistem sob a responsabilidade do Estado, envolvendo diferentes arranjos entre organizaes pblicas e privadas e a proliferao de formas hbridas de organizao, como as denominadas parcerias pblico-privadas. O que se busca no apenas a ampliao das oportunidades

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    para a valorizao do capital, como tambm a reduo da necessidade de financiamento pblico e, consequentemente, da concorrncia pela utilizao dos recursos produtivos da sociedade. s aes de desregulamentao e privatizao vm se somar iniciativas focadas na recuperao do equilbrio fiscal por meio do corte de gastos pblicos e maior controle sobre sua expanso, que incidem, sobretudo, nas intervenes e polticas no campo social (KETTL, 2005; PIERRE, 2009).

    No tocante reforma da administrao pblica, o neoliberalismo desemboca na NPM, traduzindo formalmente a preocupao com a melhoria da eficincia gerencial na proviso de bens e servios populao (DUNLEAVY e HOOD, 1994; ABRUCIO, 2005; MANNING et al., 2009; PIERRE, 2009). O processo envolve o redesenho da estrutura, procedimentos e prticas das organizaes do setor pblico, incorporando mudanas de grande magnitude na dimenso institucional, em que se incluem questes atinentes aos princpios e valores que informam a relao de tais organizaes com a sociedade e o mer-cado (FERLIE et al., 1999; ORMOND e LOFFLER, 1999; HERNES, 2005). A prpria avaliao do sucesso ou fracasso da administrao pblica se altera, passando a ser balizada por critrios prximos queles utilizados pela administrao privada. De uma orientao inicial voltada busca de eficincia e reduo do gasto pblico, o reformismo associado NPM avana em direo a questes como: i) o foco em resultados; ii) a qualidade dos servi-os prestados; iii) o empoderamento do cidado por meio de oportunidades para escolher entre diferentes provedores de servio e para expressar seu grau de satisfao como usurio (PACHECO, 2010, p. 189); iv) a accountability; e v) a transparncia.

    Contudo, desde os anos 1990, redefinem-se, em certa medida, os termos dos deba-tes acerca do papel do Estado, a partir dos questionamentos vigorosos da concepo neo-liberal (EVANS, 1998), o que se faz acompanhar da problematizao dos fundamentos e premissas da NPM, bem como de seus resultados. Nesta direo, emergem modelos alternativos, como a public service orientation, entre outras propostas reformistas com nfase em premissas democratizantes (SANTOS, 1998; FUNG, 2004a). No perodo mais recente, o debate em torno da reforma da administrao pblica passa a ser crescen-temente interpenetrado pela ideia de governana democrtica ou outras denominaes para processos que valorizam a ampliao da participao dos membros da sociedade nas escolhas sociais e ou na gesto pblica, no como consumidores de servios, mas como cidados (SECCHI, 2009; PIERRE, 2009). Da mesma forma como no surgimento da NPM, estes questionamentos esto associados a constantes movimentos por reformas do Estado, desta vez com revalorizao do seu papel, particularmente enquanto propulsor do desenvolvimento com incluso e reduo das desigualdades.

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    Gesto Pblica no Sculo XXI: as reformas pendentes

    Este texto tem como objetivos, em primeiro lugar, fazer uma descrio do surgi-mento, das caractersticas e bases tericas da perspectiva que se tornou hegemnica no debate terico e poltico sobre gesto pblica nas ltimas dcadas que ganhou o rtulo mais conhecido de new public manegement , contrapondo-a ao modelo convencional de administrao pblica, fundado na burocracia weberiana e associado ao contexto de uma especfica proposta de reforma do Estado. Em segundo lugar, pretende fazer uma reviso, no exaustiva, da discusso mais analtica e recente da NPM, na perspectiva de uma crtica leitura econmica e gerencial da reforma do Estado e da administrao pblica, base-ada em estudos e avaliaes que tm apontado os efeitos perversos e distores causados pela introduo das reformas gerencialistas. Esta reviso envolve, ainda, paralelamente crtica, o apontamento das direes e alternativas emergentes na literatura e na prtica contemporneas sobre gesto pblica, e a contraproposta de reformar o Estado e suas instituies no sentido de capacit-lo a fazer bem a poltica, tanto por razes de democra-cia e equidade quanto por razes de eficincia econmica, buscando realizar o interesse pblico. Particularmente nos pases do Sul, a necessidade de reforma est articulada com o desafio de promover o desenvolvimento sustentvel e com incluso social, para o que o papel do Estado e de sua burocracia assume importncia crucial.

    2 DA ADMINISTRAO BUROCRTICA NPM

    Como j mencionado, desde os anos 1980, assiste-se a um movimento crescente no sentido da adoo da reforma do aparelho administrativo do Estado, em busca de tcnicas mais modernas e eficientes de gesto, capazes de proporcionar melhorias na proviso de servios pblicos sociedade (KETTL, 2005; PAULA, 2005; MANNING et al., 2009). A partir dos empreendimentos reformistas postos em prtica pelo Reino Unido, Estados Unidos, Nova zelndia e Austrlia, o processo se difunde por uma ampla constelao de pases com destaque para os membros da Organizao para a Cooperao e o Desenvolvimento Econmico (OCDE) , alcanando o Brasil em meados dos anos 1990.

    O carter abrangente das iniciativas reformistas direcionadas melhoria na gesto governamental permitiu trat-las como a ascenso de um novo paradigma organizacional, de cunho gerencial, consubstanciado na NPM. O uso recorrente do termo em diferentes pases sugere a existncia de uma tendncia geral na direo de um padro comum de reforma administrativa aplicada ao setor pblico, mas pouco esclarece acerca da configu-rao objetiva das mudanas em questo. Avanar nesta direo, por sua vez, no constitui

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    tarefa trivial, at porque, como salientam Ormond e Lffler (1999, p. 67), as reformas na gerncia pblica se do mediante uma ampla variedade de formas e em diversos contextos envolvendo preocupaes e necessidades nacionais completamente diferentes. A pluralidade de formas e significados atribudos NPM reafirmada por Hernes (2005, p. 5), segundo o qual tal movimento reformista expressa um conjunto de ideias e mtodos de escopo to variado que no h nenhuma definio unvoca sobre o que so realmente estas ideias e mtodos. Ferlie et al. (1999, p. 26) agudizam esta linha de argumentao afirmando que algumas vezes, a nova gesto pblica parece uma tela vazia: pode-se pintar o que quiser nela. E complementam que, h no apenas controvrsia acerca do que [a nova gesto pblica] ou do que est a caminho de se tornar, mas tambm do que deveria ser, entrelaando anlise positiva e normativa.

    Registrada a dificuldade de se acomodar, numa definio abrangente, os variados significados que se insinuam nos esforos mudancistas identificados NPM, poss-vel buscar uma viso compreensiva da lgica que informa tal movimento reformista a partir de sua contraposio ao paradigma convencional da administrao pblica, ou administrao pblica progressiva (HOOD, 1995), do qual pretende se distanciar. A referncia aqui ao modelo organizacional do Estado, que preconiza a separao entre a poltica a tomada de decises relativas s prioridades e diretrizes gerais para o desenvolvimento da atividade governativa , e a administrao propriamente dita o encaminhamento de aes com vistas a conferir materialidade aos objetivos de poltica propostos, da forma mais racional e eficiente possvel (HOOD, 1995; BEHN, 1998; BRESSER-PEREIRA, 1999). Neste modelo, a administrao pblica subordina-se ao poder poltico, legitimado pelo voto, e fica incumbida de implementar as polticas que compem a agenda de governo, ancorando-se no conhecimento tcnico ou expertise.

    2.1 EmERgnCIA E COnSOlIDAO DA bUROCRACIA PblICA

    A conformao do paradigma da administrao pblica que preconiza a separao entre poltica e administrao emerge na transio dos sculos XIX e XX (HOOD, 1995). O que move sua adoo a preocupao com o controle poltico da corrupo e da incompetncia e o desperdcio de recursos pblicos que a acompanha. Tal questo trans-parece com nitidez no ensaio clssico de woodrow wilson2 acerca da reforma do servio

    2. A referncia ao trabalho The study of administration, publicado originalmente em 1887 pela Political Social Quaterly (v. 2, n. 2, p. 197-222, Jun. 1887 Disponvel em: ) e republi-cado em 1941. No Brasil, a traduo foi publicada pela Revista do Servio Pblico, em 1946, reeditada em 2005.

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    civil americano (BEHN, 1998). O que est no cerne do argumento de wilson o fato de as decises polticas e administrativas apresentarem naturezas distintas, tornando possvel separ-las (OLIVA, 2006). Esta separao seria no apenas possvel, mas recomendvel, medida que daria suporte racionalizao da atividade administrativa, libertando-a da confuso e do alto preo da experincia emprica (wILSON, 2005, p. 358), para alicer-la sobre bases tcnicas mais slidas informadas pela cincia da administrao. Assim que as decises referentes s prioridades e diretrizes para a atuao do Estado fos-sem tomadas na esfera da atividade poltica, caberia ao ncleo responsvel pela atividade administrativa identificar as respostas corretas para os problemas que demandam soluo, implementando-as da melhor forma possvel (BEHN, 1998; OLIVA, 2006).

    A racionalizao dos processos administrativos, advinda da aplicao do mtodo cientfico, movida pela busca da eficincia, converge para o modelo de administrao burocrtica weberiano. Para weber (1999, p. 145), a administrao burocrtica revela-se a forma mais eficaz de exerccio da autoridade nas organizaes, medida que, por meio dela, possvel alcanar tecnicamente o mximo de rendimento [do trabalho], em virtude da preciso, continuidade, disciplina, rigor e confiabilidade na execuo dos programas de ao da organizao. Sua superioridade em comparao a outros modelos organizacionais decorre do fato de instrumentalizar uma execuo objetiva e racional daquilo que deve ser feito, assegurando previsibilidade s aes desenvolvidas, indepen-dentemente das pessoas encarregadas de faz-lo (FRIEDBERG, 1995). Este resultado decorre de caractersticas distintivas da burocracia, que podem ser agrupadas, para fins analticos, em trs conjuntos principais, conforme sistematizao feita por Perrow (1993).

    O primeiro conjunto de caractersticas se relaciona com a estrutura e funes da organizao. Na burocracia weberiana, as atividades so integradas ou articuladas sob uma perspectiva centralizada, envolvendo uma clara especificao de competn-cias e responsabilidades, associadas a cargos, que se estruturam de forma hierrquica. As funes e responsabilidades inerentes aos cargos so atribudas a indivduos capa-citados para seu desempenho, consoante a ideia de profissionalizao e meritocracia. Para tanto, o recrutamento e o acesso organizao se fazem com base em critrios de seleo objetivos, lastreados em premissas tcnicas, de forma a assegurar a impessoali-dade na concorrncia pelo cargo, provendo meios para a especializao e a expertise (PERROw, 1993, p. 47). Por sua vez, a execuo das atividades governada por regras escritas (...) e por registros escritos dos atos e decises anteriormente tomados (p. 47), com despersonalizao das condutas, tendo em vista a objetividade e a imparcialidade.

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    O segundo tem a ver com as formas de retribuir o trabalho dos membros da organizao. A burocracia weberiana supe uma profissionalizao que se fundamente na dedicao integral s responsabilidades do cargo ocupado, numa perspectiva de emprego de longo prazo, organizado sob a forma de carreiras. A remunerao se faz por meio de salrios e penses, definidos com base em critrios de educao formal, mrito e efetivo exerc-cio do cargo (PERROw, 1993; OLSEN, 2005). A carreira aponta para estabilidade e segurana, expressando um requisito para decises de longo prazo no tocante a inves-timentos pessoais em qualificao e aprimoramento profissional. O terceiro e ltimo refere-se preocupao em assegurar proteo formal ao membro da organizao no desempenho das atribuies e no cumprimento das responsabilidades do cargo que ocupa. Tal proteo cumpre um duplo objetivo, que conflui para a impessoalidade na dinmica da vida organizacional. Por um lado, prov uma fonte de poder pessoal a todo e qualquer membro da organizao compatvel com o efetivo exerccio do cargo que este ocupa. Por outro, bloqueia ou, pelo menos, limita a vulnerabilidade em funo do uso arbitrrio do poder por parte de ocupante de cargo hierarquicamente superior, com o intuito de promover objetivos ou interesses que no correspondam organizao.

    Na concepo terica formulada por weber (1982), a burocracia pode ser enten-dida, portanto, como um arranjo organizacional caracterizado pelo exerccio hierr-quico da autoridade, onde trabalham pessoas dotadas de credenciais e especialidades, s quais so atribudas obrigaes regulares e oficiais, que elas se encarregam de executar como se fossem curadores, aplicando regras racionais de forma impessoal, sobre uma jurisdio especfica (BEHN, 1998, p. 13). Trata-se de regras formais, de natureza pro-cessual ou procedimental, que asseguram a padronizao e a razoabilidade tcnica no desenvolvimento das atividades organizacionais, de um lado, e do suporte ao exerccio de um poder ou autoridade revestida de legalidade, logo, de legitimidade, de outro. Da maior eficcia da burocracia, weber deduz uma tendncia inexorvel sua adoo pelas organizaes da sociedade moderna, englobando tanto as grandes corporaes privadas quanto os rgos da administrao estatal. A razo crucial consolidao da burocracia tem a ver com a crescente complexidade no desempenho das funes de coordenao e controle das atividades organizacionais, decorrentes das transformaes econmicas e sociais impulsionadas pelo avano da sociedade capitalista, conferindo maior salincia s vantagens tcnicas do modelo em face das formas alternativas de desenvolvimento das atividades administrativas da organizao. Portadora de vantagens tcnicas, a burocracia desfruta de notvel disseminao nas administraes pblicas durante o sculo XX em todo o mundo (SECCHI, 2009, p. 350).

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    Aplicado ao poder pblico, o modelo burocrtico denota uma reao arbitrarie-dade, ao nepotismo, ao clientelismo e ao patrimonialismo por parte de quem controla o governo, introduzindo um elemento de previsibilidade e estabilidade na implemen-tao das atividades estatais, ao mesmo tempo em que instrumentaliza seu controle. Trata-se de aspectos que se relacionam positivamente tanto com a dinmica capitalista quanto com a expanso dos direitos de cidadania e a institucionalidade democrtica. Estudo realizado por Evans e Rauch (1999)3 mostra que a aderncia burocracia webe-riana contribui positivamente para a promoo do crescimento da economia nacional. Ao lado disso, Olsen (2005) retoma o argumento de Rothstein (2003) acerca do papel desempenhado pela aplicao impessoal de regras gerais na criao de confiana no aparato governamental e entre os cidados, ressaltando sua contribuio para o com-promisso com os valores primrios da democracia e o desiderato da equidade social.

    O Brasil segue a trilha das principais naes desenvolvidas e d os primeiros passos na direo da implantao da administrao burocrtica na dcada de 1930, com a ascenso ao poder de Getlio Vargas, que demarca a emergncia de uma nova ordem poltica no pas. Conforme mostra a literatura,4 toma forma ento um processo de centralizao poltica, conjugada racionalizao e modernizao administrativa, que incorpora instrumentos tpicos da administrao racional-legal consoante os preceitos weberianos.5 Com a organizao do Departamento da Administrao do Servio Pblico Civil (DASP), em 1938, so definidas normas e regras de admisso e recrutamento de pessoal para o servio pblico baseado no sistema de mrito e na realizao de concursos pblicos competitivos e obrigatrios. No entanto, a ao do DASP, como observa Draibe (1985, p. 86) no deixou de ser limitada, incapaz de impedir o favoritismo poltico, a patronagem e o clientelismo. Nas dcadas subsequentes, assiste-se reafirmao pol-tica do compromisso com a profissionalizao e a meritocracia no servio pblico bra-sileiro, como recorrentemente ocorre nos textos constitucionais promulgados ao longo do percurso.6 Algo similar ocorre com a Constituio Federal de 1988, que prescreve a adoo de concurso pblico para o recrutamento de todo e qualquer servidor pblico, mas o faz criando condies favorveis efetivao dos servidores que se encontravam em atividade, independentemente de sua forma de recrutamento. As implicaes no

    3. Tal estudo contempla um conjunto de 35 pases desenvolvidos, compreendendo o perodo 1970-1990.4. Ver Draibe (1985), Nunes (1997), Lima Jnior (1998), Bresser-Pereira (1999) e Abrcio, Pedroti e P (2010).5. O foco principal desse movimento so temticas clssicas e estruturantes da administrao pblica, como a administra-o de materiais, financeira e de pessoal.6. A referncia so as Constituies Federais de 1946 e de 1967-1969.

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    poderiam ser diferentes da sntese conclusiva de Lima Jnior (1998, p. 28), segundo o qual a nao brasileira nunca logrou implantar uma burocracia do tipo weberiano. At porque, os textos legais que mais se aproximaram desse ideal abriam brechas que se contrapunham ao esprito da burocracia racional-legal. Esta construo inconclusa da administrao burocrtica persiste nos dias atuais, assumindo conotao mais aguda nos governos subnacionais, com destaque para as municipalidades (MARCONI, 2010).

    2.2 DE SOlUO A PROblEmA: AS CRTICAS AO mODElO bUROCRTICO

    Em paralelo difuso de formas burocrticas de organizao na sociedade moderna, o modelo burocrtico torna-se objeto de crticas variadas, apontando para os limites de sua aplicao no contexto institucional contemporneo. Um primeiro conjunto de crticas comea a se estruturar ainda na dcada de 1930, no mbito da sociologia das organizaes, sendo endereadas ao funcionamento das organizaes em geral, pblicas ou privadas. Um segundo conjunto de crticas ganha fora nos anos 1980, sob o rtulo da public choice theory, caracterizando-se por aplicar pressupostos analticos da econo-mia poltica, o que inclui o comportamento decisrio da burocracia pblica.

    As crticas derivadas da anlise da sociologia das organizaes deram destaque manifestao das denominadas disfunes da burocracia,7 que atuariam no sentido de corroer e, no extremo, comprometer sua presumida eficincia operacional. Tais estu-dos trouxeram evidncias de que as organizaes burocrticas, longe de serem sempre eficazes, tinham um funcionamento pesado, induzindo a comportamentos rgidos e ritualistas entre seus membros (FRIEDBERG, 1995, p. 400), na linha das contri-buies de Merton (1940), Blau (1955) e Blau e Scott (1966). Entre os problemas apontados, destacam-se a adeso literal s regras e normas de conduta prescritas e o condicionamento disciplina, que se expressa no cumprimento acrtico de ordens, independentemente de sua razoabilidade ou dos efeitos adversos que potencializam.8 As organizaes burocrticas enfrentariam tambm problemas relacionados frag-mentao e compartimentao de suas estruturas geradas pela especializao, com a

    7. Por disfuno, entende-se o feixe de consequncias secundrias inesperadas [ou no pretendidas] que acompanham sempre um plano de ao racional e que freiam ou impedem que se atinjam as metas que so fixadas pelos dirigentes (Sainsaulieu e Kirschner, 2006, p. 135).8. Esse tipo de crtica aprofundado por Crozier (1993), que chama a ateno para o fato de a impessoalidade das regras levar a uma espcie de esvaziamento das relaes intraorganizacionais, com a concomitante eliminao de presses rela-cionadas a um maior envolvimento no desempenho das aes, restando basicamente a fiscalizao da observncia destas mesmas regras como instrumento de controle da atuao dos membros da organizao.

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    emergncia de suborganizaes dentro da organizao (SELzNICK, 1957), trazendo consequncias disfuncionais, o que se traduz em maior complexidade no processo de coordenao sistmica de suas atividades. Outro problema assinalado seriam as dificuldades na incorporao de inovaes, refletindo uma deformao profissional, explicitada na apatia ou inrcia no desenvolvimento das aes, para a qual contribui a j mencionada supresso do arbtrio e da possibilidade de presso sobre os membros da organizao. Alm disso, Crozier (1993) afirma que a burocracia leva a uma cen-tralizao conjugada rigidez no processo decisrio, onde quem decide no conhece efetivamente os problemas a serem resolvidos e quem os conhece no decide.

    Refletindo essa pluralidade de crticas que se fazem burocracia, a viso mais convencional do termo, segundo Perrow (1976, p. 73), j vem impregnada de forte conotao negativa. Reproduzindo o autor, burocracia um palavra que soa mal, tanto para o homem comum como para muitos especialistas em organizao. Sugere regulamentos e leis rgidos, (...) impessoalidade, resistncia a inovaes, entre outros problemas que se interpem a qualquer interesse em promover melhorias no funcionamento da organizao. Assim, dedicao e integridade, que respondem inten-o de evitar favorecimentos e arbitrariedade, assegurando igualdade de tratamento, se reduziriam a uma impessoalidade formalista, denotando falta de afeio ou entusiasmo na relao com o pblico externo da organizao. Regulamentos e normas de conduta, definidos com o intuito de racionalizar e ordenar o desenvolvimento das atividades, e que favorecem as aes de coordenao e controle, seriam seguidos com tal fidelidade que se confundem com resistncia a inovaes, inrcia ou letargia decisria. A diviso do trabalho e a especializao, que fundamentam a eficcia operacional, acabariam por instrumentalizar a ineficincia na performance organizacional. Ainda que direcionado ao arqutipo da administrao burocrtica em geral, tal criticismo remete principal-mente s organizaes do setor pblico, em que os problemas tendem a se evidenciar com maior nitidez aos olhos dos usurios dos servios provisionados pela organizao. Estes no tm a opo de sada, configurando-se como consumidores cativos de ati-vidades desenvolvidas em condies monopolistas, sem a concorrncia que, em tese, caracteriza a dinmica de mercado.

    No perodo mais recente, a percepo de que o aparelho administrativo estatal, dotado de uma especial capacidade tcnica, escaparia ao controle da poltica impul-siona uma nova onda de crticas burocracia pblica, sustentada principalmente nas

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    contribuies advindas da public choice theory.9 A preocupao central dos autores afiliados a esta vertente terica consiste em demonstrar como e por que os produtos das decises e das condutas adotadas pelos burocratas so perdulrios e ineficientes. O que est em considerao, na construo do argumento, so as relaes que se estabelecem no apenas no interior da burocracia (the bureau of government), mas entre a burocracia e os grupos de interesse e a burocracia e os polticos, mais especificamente, o poder legislativo. Em todos os casos, o foco interpretativo radica nos problemas atinentes obteno de informaes confiveis relativas aos custos e avaliao dos produtos da burocracia. Sem informaes slidas o suficiente para dominar a complexidade crescente da gesto pblica, os polticos no conseguiriam bloquear a conduta dos burocratas pautada pela busca da maximizao do interesse prprio, com implicaes perversas para a promoo do bem-estar social (OLSEN, 2005; MERCURO e MEDEMA, 1999; FUKUYAMA, 2005).

    Vrios modelos analticos da burocracia que adotam a perspectiva analtica da public choice postulam que elementos como poder, prestgio, tamanho do oramento, segurana no emprego, gratificao, salrio futuro e condies de trabalho entram na funo de utilidade dos burocratas (MERCURO e MEDEMA, 1999, p. 93). Como a promoo destas metas vai de encontro promoo do bem-estar social, a ten-dncia que o interesse coletivo, em torno do qual se articulam as aes patrocinadas pelo Estado, seja sistematicamente prejudicado ou sacrificado. O argumento analtico da public choice afirma, adicionalmente, que a ao dos polticos, com destaque para o poder legislativo, a quem caberia, numa institucionalidade democrtica, o papel prec-puo de controlar o desempenho perdulrio e ineficiente da burocracia estatal, tambm no eficaz no cumprimento de suas atribuies, o que se deve a fatores de escopo variado (MERCURO e MEDEMA, 1999). Tais fatores vo desde a ausncia de indi-cadores de performance facilmente identificveis para os diversos rgos de governo, capazes de subsidiar ou permitir a avaliao externa de sua atuao, at o fato de as informaes referentes performance serem normalmente obtidas junto aos prprios rgos governamentais que se quer controlar, tornando-as mais suscetveis ao risco de distores ou vieses, passando pela formao de coalizes entre a burocracia e os grupos de interesses, que se revelariam suficientemente fortes para assegurar a implementao das decises polticas originrias da burocracia.

    9. Conforme Moe (2007), a public choice dej su primer rastro em la teora de la burocracia a mediados de la dcada del 60 con la aparicin de dos libros innovadores, The Politics of Bureaucracy (1965) de Gordon Tullock y Inside Bureaucracy (1967), de Anthony Downs. Nos anos seguintes, a produo informada por seus pressupostos analticos experimenta notvel expanso para assumir, a partir da dcada de 1980, carter doutrinrio, dando sustentao terica ao reformismo da NPM.

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    Um dos modelos mais influentes de crtica burocracia informado pelos pressu-postos da public choice proposto por Niskanen (1971). Assumindo meramente que as pessoas que trabalham nas organizaes burocrticas maximizam o interesse prprio, o autor deriva, como resultado, a tendncia maximizao do oramento, com um excesso de oferta de produtos e servios por parte das organizaes governamentais, ou seja, o crescimento excessivo da burocracia estatal. O argumento construdo postula, em sntese, que a relao da burocracia com os polticos assume a configurao de um monoplio bilateral, no qual o burocrata tem duas vantagens principais, ou seja, poder de informa-o e poder de agenda, permitindo-lhe atuar como o monopolista na economia, discri-minando a quantidade produzida e o custo de produo. Com isto, o governo acabaria sendo demasiado grande e grosseiramente ineficiente (MOE, 2007, p. 530).

    O ponto incisivo das anlises desenvolvidas pela public choice a ruptura com a viso da neutralidade de uma burocracia dedicada exclusivamente implementao das decises tomadas no nvel da poltica, que se insinua na interpretao de wilson. Cabe observar, a esse respeito, que o prprio weber (1999) reconhecia a tenso existente na relao entre poltica e burocracia (LOUREIRO, ABRUCIO e PACHECO, 2010). Para weber, a burocracia configura-se como um ator poltico estratgico, dotado de relativa margem de autonomia decisria para exercer o poder do Estado. Assim, o con-trole da burocracia revela-se essencial para evitar que ela tome decises para as quais no detm legitimidade ou que impliquem o deslocamento do interesse pblico. A leitura da public choice vai alm, argumentando que a autonomia decisria da burocracia no se traduz em riscos de deslocamento do interesse pblico, mas no privilgio sistem-tico promoo do autointeresse, consoante a lgica da racionalidade instrumental da economia. Para esta vertente interpretativa, a burocracia pblica negligencia o interesse pblico, subordinando-o aos interesses particularistas de seus membros, e perdulria em relao aplicao dos recursos pblicos, atuando como rent seeker, movida pela busca da maximizao de seu oramento.

    nesse tipo de interpretao, cujo foco recai nos efeitos negativos da adminis-trao burocrtica, que a NPM se apoia para preconizar uma mudana paradigmtica no modelo de gesto do setor pblico, de cunho gerencial, voltada a aumentar a res-ponsabilizao dos burocratas perante a sociedade e a conferir maior responsividade, efetividade e eficincia s atividades desenvolvidas pelos rgos estatais (HERNES, 2005; OLSEN, 2005; KETTL, 2005). Para lidar com a opacidade de uma burocracia autocentrada, aponta na direo de uma lgica ps-burocrtica, operando atravs de

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    estruturas descentralizadas de gesto, em articulao com a progressiva substituio de um padro de controle interno baseado na observncia de regras e procedimentos pela accountability de resultados (HOOD, 1995; REzENDE, 2002; FUKUYAMA, 2005). Quanto ao desperdcio e performance ineficiente, o caminho sugerido envolve a promoo de mudanas institucionais nas estruturas de controle e gesto das organi-zaes tendo como elemento fulcral a delegao ou o aumento da autonomia decisria na alocao de recursos, de forma a permitir a adoo de opes tcnicas poupadoras de recursos na consecuo dos fins visados, em articulao com a substituio do controle ex ante pelo controle ex post e a adoo de mecanismos de incentivo com vistas ao alinhamento de conduta. Na sntese feita por Olsen acerca do sentido das mudan-as patrocinadas pela NPM, gerenciamento por contrato e por resultado substitui o gerenciamento por comando (2005, p.4. Traduo livre.).10

    2.3 RETOmAnDO AS CRTICAS bUROCRACIA: PROblEmA OU SOlUO?

    Se o que move a NPM , como visto, o redesenho gerencial da administrao pblica, informado pela busca de desempenhos e resultados mais satisfatrios que aqueles proporcionados pelo modelo burocrtico, o exame da pertinncia e adequao das ino-vaes propostas passa por uma viso mais criteriosa do alcance e limites das crticas endereadas burocracia. o se que faz a seguir, salientando quatro aspectos nem sempre devidamente considerados nos esforos empreendidos no sentido de avaliar o funcionamento das burocracias pblicas no contexto contemporneo. Primeiro, o modelo burocrtico, na concepo weberiana, expressa um tipo ideal, congregando um conjunto de caractersticas que vo ser detectadas ou percebidas, em maior ou menor escala, nas organizaes pblicas do mundo real. Isto permite falar em graus distintos de burocrati-zao (PERROw, 1976), entendida como movimento na direo de uma maior similari-dade ou aproximao com a concepo do modelo descrito por weber (1982). Segundo, a burocracia se assenta na observncia das regras e normas prescritas, mas tais regras e normas no implicam necessariamente rigidez ou inflexibilidade (OLSEN, 2005, p. 12), nem so, elas prprias, rgidas e inflexveis. Terceiro, a burocracia funciona como um instrumento para a produo de resultados, estruturada de forma hierrquica, cujo comando concentra-se no topo da organizao, numa circunstncia em que a alta direo no burocratizada. Quarto e ltimo, a burocracia no , como bem o salienta Olsen (2005), apenas um instrumento para produzir determinados resultados, mas tambm uma instituio, o que se evidencia, em particular, na meno ao ethos burocrtico.

    10. No original: management by contract and result replaces management by command.

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    Quanto ao primeiro aspecto, atribuir a ineficincia da administrao pblica ado-o do modelo burocrtico supe que se averigue, previamente, at que ponto os rgos governamentais se aproximam do tipo ideal delineado pela concepo weberiana de burocracia. Como se encarrega de alertar Perrow (1993, p. 4), esta forma ideal nunca alcanada plenamente na prtica, o que se deve a fatores variados, como a dificuldade de bloquear as influncias extraorganizacionais no pretendidas sobre o comportamento dos membros da organizao e as disparidades que estes apresentam em termos de inte-ligncia, capacidade de previso, conhecimento de um modo geral e disposio. Assim, pode ser que a presumida ineficincia seja decorrente no da prevalncia de uma admi-nistrao de moldes burocrticos, mas da inexistncia de uma estrutura organizacional adequadamente burocratizada, como bem o ilustra o caso brasileiro.11 Isto se aplica, em especial, presena de um corpo de funcionrios tecnicamente qualificados e profis-sionalizados indispensvel a que se tenha efetiva capacidade de atuao e adoo de critrios de seleo objetivos, lastreados em premissas tcnicas, de forma a assegurar a impessoalidade na concorrncia pelo cargo, em oposio a critrios particularistas ou eivados de subjetivismo. Ainda que a presso social por melhorias de desempenho e, espe-cificamente, por melhores resultados na entrega de servios pblicos populao tenha levado a se repensar o sentido da profissionalizao, para alm da concepo clssica de burocracia, abrindo espao para aspectos relativos a competncias, compromisso com resultados (PACHECO, 2010, p. 302), no Brasil, onde a norma a politizao e a utilizao clientelista do emprego pblico (LONGO, 2007, p. 223), no h como des-curar a essencialidade da profissionalizao lastreada em carreiras, ingresso por concurso e promoo por mrito, consoante as premissas weberianas.

    O segundo aspecto condensa parte expressiva dos problemas apontados no fun-cionamento da burocracia. De fato, parcela no desprezvel das crticas ao modelo burocrtico feitas pela literatura tem a ver com as regras (OLSEN, 2005), que podem ser, e frequentemente o so, excessivas, provocando letargia, rigidez e ineficincia. Perrow (1993), no entanto, chama a ateno para a centralidade do papel das regras nas organizaes, lembrando que no existem organizaes complexas sem regras. Na ausncia de regras formais, prevalecem regras informais ou diretivas no escritas, o que no necessariamente mais favorvel para os membros da organizao no desem-penho de suas atividades cotidianas, nem para a performance organizacional. Problemas

    11. Para mais informaes, ver Lima Jnior (1998), Abrcio, Pedroti e P (2010); Longo (2007); Loureiro, Abrcio e Pacheco (2010); Pacheco (2010); Marconi (2010).

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    caracterizados por excesso de burocracia, na qual se observam regras e procedimentos desnecessrios, redundantes ou inconsistentes, certamente existem. So situaes que demandam uma racionalizao de processos, por meio do redesenho de novas regras, o que em nada conflita com a burocracia, at porque ela se fundamenta em supostos de racionalizao. Vale a ressalva de que a engenharia institucional direcionada elimi-nao ou simplificao de regras no constitui tarefa simples, dada a interdependncia que as envolve e os variados interesses que lhe so afetos. Outra questo tambm muito mencionada no tocante a regras consiste na sua no observncia pela burocracia, o que leva a situaes nas quais o contedo das decises polticas alterado quando de sua implementao pelo aparato administrativo. Para Olsen (2005), tal fato no pode ser atribudo automaticamente ao poder da burocracia, ou seja, ao uso de sua margem de autonomia decisria. Uma explicao alternativa, bastante plausvel, a complexidade das regras, dificultando seu conhecimento e interpretao, de um lado, e fazendo com que a aplicao de um conjunto de regras implique violar outras (KAUFMAN, 1981). Se a questo radica no desconhecimento ou dificuldade de interpretao das regras, programas consistentes e sistemticos de capacitao contribuem para, pelos menos, minimizar o problema. Se, ao contrrio, a questo guarda relao com a incongru-ncia ou inconsistncia das regras, no h como escapar de um esforo de engenharia institucional com vistas sua simplificao operacional, o que no se confunde com iniciativas episdicas e descontnuas de desburocratizao como tende a ocorrer no Brasil , que pouco contribuem para a resoluo do problema.

    No que se refere ao terceiro aspecto, Perrow (1993, p. 18), reafirmando weber, observa que a alta direo da organizao nunca burocratizada. Ter em mente esta questo importante no sentido de distinguir o processo de tomada de decises de responsabilidade da alta direo da implementao das decises de responsabilidade do aparato burocrtico da organizao. A burocracia confere instrumentalidade aos objetivos e metas traados pela alta direo, cujas escolhas nem sempre atendem aos interesses e aspiraes mais imediatas dos usurios dos servios prestados pela organi-zao. Atribuir a causa da ineficincia ou inadequao dos resultados produzidos pela organizao performance incompetente da burocracia pode servir para mascarar um problema que reside em outra esfera a incompetncia dos dirigentes da organizao. No se pode esquecer que os cargos de alta direo da burocracia, especialmente na administrao pblica, no so necessariamente preenchidos por critrios de mrito, lastreados em requisitos de expertise e qualificao profissional. esta, em particular, a

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    situao que historicamente12 prevalece na administrao pblica brasileira, nas diversas instncias de governo, inclusive no nvel federal.13 Assim, responsabilizar a burocracia por ineficincia pode ser um recurso conveniente para determinados interesses no sen-tido de desviar a ateno dos verdadeiros problemas que acometem o funcionamento da organizao ou a implementao de uma dada poltica.

    Prosseguindo nessa linha de raciocnio, a burocracia, como comentado, baseia-se em regras e normas de procedimento, que instrumentalizam uma racionalizao das aes, aumentando a capacidade de coordenao e controle das atividades organizacionais e, com ela, a eficincia operacional. No entanto, o papel desempenhado pelas regras, enquanto instituio, depende do grau de aderncia a estas, o que contingente de uma srie de vari-veis contextuais. Um mesmo conjunto de regras pode produzir resultados muito dspares em organizaes distintas ou organizaes similares em contextos distintos. Ao lado disso, as regras organizacionais podem ser, e frequentemente o so, desrespeitadas ou violadas (MEYER e ROwAN, 1991; FRIEDBERG, 1995), onde ganha relevo, na tica da public choice, a adoo de condutas oportunistas. Alternativamente, podem ser respeitadas apenas ritualisticamente, compondo uma fachada de regularidade formal. Vale dizer, o comporta-mento humano no tocante observncia das regras nas organizaes no segue um padro universal, expressando, ao contrrio, um complexo equilbrio de motivaes, que vo do clculo utilitarista a imperativos de cunho moral. Sobre a questo, Fukuyama afirma que as normas interiorizadas que motivam os trabalhadores (...) resultam de educao, treina-mento e de um processo de socializao que , em parte, especfico de uma dada profisso e, em parte, absorvido da sociedade circundante (2005, p. 92). Em suma, a cultura importa, notadamente da perspectiva da burocracia, que, na anlise weberiana, , ao mesmo tempo, produto e reflexo do contexto histrico, em sua mltiplas dimenses, na qual esta se ins-creve. Para alm do formalismo na observncia das regras escritas, interessa a prevalncia

    12. Na tradio administrativa brasileira, apenas o ncleo mais tcnico do Estado tende a ter os cargos de alta direo preservados de nomeaes marcadamente polticas (Nunes, 1997; Fleury, 2009).13. Como mostra ampla literatura, recorrente, no Brasil, o uso de cargos de provimento em comisso, para os quais a nomeao e a exonerao refletem essencialmente atos de vontade da autoridade responsvel, ressalvados os requisitos gerais previstos em lei, para alm das funes mais altas de direo. Para fins de ilustrao, considerando apenas o nvel federal, existiam, em 2009, segundo levantamento feito por Fleury (2009), nada menos que 20.961 cargos de Direo e Assessoramento Superior (DAS), distribudos em seis faixas salariais, s quais correspondem nveis diferenciados de com-plexidade e responsabilidade gerencial. A anlise realizada pelo autor congrega os seis nveis em dois grupos: o primeiro rene os DAS de 1 a 3, que corresponde a funes de assessoramento intermedirio e atividades de direo ou coordena-o de estruturas hierrquicas mais baixas; e o segundo, os DAS de 4 a 6, congregando funes de assessoramento mais especializado e atividades de direo hierarquicamente superiores. Enquanto, no primeiro grupo, prevalece o provimento por servidores efetivos do prprio Executivo federal, no segundo, a situao se inverte, sinalizando a ampla discricionarie-dade no preenchimento dos cargos de alta direo.

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    de condutas informadas por consideraes de interesse publico. Se a cultura poltica no pautada pela aderncia a tais valores, medida que interpenetrada por prticas como patro-nagem, patrimonialismo e clientelismo, como ocorre no caso brasileiro, aumenta em muito a importncia de uma cultura administrativa que o seja. Isto reafirma a centralidade da profissionalizao da administrao pblica, articulada a mecanismos institucionais efetivos de responsabilizao de seus agentes, capazes de permitir a introjeo de normas, que uma tendncia natural da burocracia (PAULA, 2005), confluentes com princpios republicanos, democrticos e de respeito aos direitos de cidadania.

    Das consideraes anteriores decorre que promover reformas gerenciais na admi-nistrao pblica, ainda que de maior envergadura, no implica a necessidade de uma ruptura com o modelo burocrtico. Como observa Olsen (2005, p. 14), vrias for-mas organizacionais coexistem, mas o mix se altera ao longo do tempo. Ao contrrio da ruptura, as mudanas pretendidas tendem a requerer no a superao da burocracia, mas sua existncia, em condies adequadas de aparelhamento. No caso brasileiro, isto requer necessariamente a superao de uma srie de vcios presentes em sua trajetria (ABRUCIO, PEDROTI e P, 2010), notadamente no nvel local de governo, que vem assumindo responsabilidades ampliadas na proviso de servios bsicos populao. Alm disso, a melhoria da gesto no pode se prender a iniciativas voluntaristas, como a reforma pretendida pelo governo federal em meados dos anos 1990, com a edio do Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado. Ao contrrio, avanar nesta direo passa por um reformismo mais aberto, na linha da democratizao do Estado, balizada por princ-pios e instrumentos definidos no texto constitucional e na legislao infraconstitucional posterior, notadamente no que se refere efetividade dos mecanismos de accountability, indutores de transparncia e responsabilizao questes abordadas mais frente.

    2.4 EmERgnCIA, DIfUSO (E DESCEnSO?) DA nPm

    Como j mencionado, a noo de new public management foi utilizada para designar um movimento abrangente de reforma na gesto da atividade governativa, iniciada nos anos 1980, que procura imprimir maior eficincia e agilidade a uma administrao pblica estruturada consoante os pressupostos da burocracia weberiana. oportuno salientar que esta designao se d a posteriori, tendo sido cunhada por Hood (1991)14 com o intuito de prover uma identificao genrica para um processo de mudanas no

    14. Ver a respeito em Hood (1991).

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    sistema de administrao pblica que, embora no universal, j havia se difundido por nmero razovel de pases no incio dos anos 1990 (HOOD, 1995; CHRISTENSEN e LAEGREID, 2002). A caracterstica principal da NPM a nfase que atribui a valo-res e normas econmicas, sinalizando para a incorporao de princpios e mecanismos de mercado na organizao e funcionamento do Estado, em sintonia com a viso do neoliberalismo (DRECHSLER, 2005).

    A ideia central que sustenta essa onda reformista consiste em conferir um enfoque gerencial, inspirado nos mtodos de gesto dos negcios privados, administrao pblica (HOOD, 1995; HERNES, 2005), de forma a assegurar maior responsividade e melhor desempenho na proviso de servios pblicos populao (MANNING et al., 2009). Este propsito mais geral converge na direo da concesso de maior autonomia e atribui-es de responsabilidade no gerenciamento e na execuo das polticas e aes de governo, por meio da desregulamentao, da flexibilizao e da gesto por resultados (NOGUEIRA, 2003, p. 6), bem como da concorrncia administrada, num processo que extravasa os limi-tes estritos da esfera estatal para envolver articulaes com atores privados e organizaes da sociedade civil (HOOD, 1995; CHRISTENSEN e LAEGREID, 2002).

    Os empreendimentos reformistas que se acomodam debaixo do guarda-chuva da NPM, contudo, passam longe de uma concepo globalizante, apresentando, ao contrrio, configuraes muito variadas entre os diferentes pases ou num mesmo pas ao longo do tempo (HOOD, 1995; FERLIE et al., 1999; KETLL, 2005; ABRUCIO, 2005; PACHECO, 2010). So distines que guardam relao com aspectos como origem ou fator que desencadeia a reforma, objetivos visados, alcance das iniciati-vas, estratgias utilizadas, contedos dominantes e formas de execuo, entre outros (NOGUEIRA, 2003). Sem qualquer pretenso de construo de tipologias com o intuito de enquadrar as reformas ao redor do mundo, possvel apontar algumas caractersticas de similaridade entre os experimentos reformistas nacionais, agrupando-os em trs conjuntos principais, com afinidades e desafios distintivos entre si, numa simplificao que passa ao largo das nuances, particularidades e riquezas de situao internas a cada um deles, alm de no ter carter exaustivo.15

    15. Esforo nesse sentido foi feito por Pollitt e Bouckaert (2000), a partir do estudo de dez pases de trs continentes: Austrlia, Canad, Finlndia, Frana, Alemanha, Pases Baixos, Sucia, Reino Unido, Estados Unidos e Nova Zelndia. Os autores desenvolveram modelos ou taxonomias de reformas gerenciais e identificam os resultados das reformas em cada pas; os potenciais das reformas; e suas limitaes como meio de ampliar a governana democrtica. O argumento dos autores que os pases combinaram e alteraram os ingredientes das reformas difundidas de maneiras muito diversas, e usam o conceito de trajetria para descrever as vrias combinaes de ideias, aes e inaes que estes pases adotaram.

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    Um primeiro conjunto congrega as experincias de pases anglo-saxes, com des-taque para Gr-Bretanha, Austrlia e Nova zelndia, que so consideradas refern-cias recorrentes na literatura das reformas inscritas na NPM, tanto pelo pioneirismo quanto pela amplitude dos objetivos pretendidos e o impacto das aes empreendidas, que implicaram alteraes substantivas na forma, organizao e funcionamento da administrao pblica (BOSTON, MARTIN e wALSH, 1996; FERLIE et al., 1999; BARzELAY, 2001; RICHARDSON, 2005). Os propsitos visados gravitaram em torno da melhoria da performance e do incremento da accountability, lanando mo de instrumentos com vistas avaliao do desempenho organizacional, com a implan-tao de novos sistemas de regras e incentivos para o emprego pblico, com destaque para a adoo de padres explcitos de avaliao de desempenho, articulados com maior flexibilidade e variedade na proviso de servios que persistiram sob a responsabilidade do Estado. Das medidas adotadas, resultaram mudanas no papel do Estado, corre-lativamente ao mercado e sociedade, articuladas com redefinies abrangentes nas modalidades e estilos de gesto (NOGUEIRA, 2003, p. 8), incorporando aspectos como aumento de competio, contratao e remunerao com base em avaliao de desempenho, que se descolam da concepo burocrtica weberiana.

    Um segundo conjunto abrange experincias de pases da OCDE e, mais especi-ficamente, de pases da Europa continental. Ao contrrio dos pases anglo-saxes, as reformas no trouxeram mudanas de grande envergadura no papel do Estado e suas relaes com o mercado e a sociedade civil, concentrando-se em iniciativas voltadas ao aperfeioamento da gesto pblica, em busca de maior responsividade e melhoria de performance. A ateno se dirige para mudanas focalizadas em reas considera-das estratgicas, com destaque para o gerenciamento de recursos humanos, a proviso alternativa de servios pblicos e a gesto do gasto pblico e a transparncia financeira (KELLY e wANNA, 2001; MANNING et al., 2009). Entre as medidas mais usuais, aparecem a descentralizao e a desconcentrao, a mensurao de resultados e a ava-liao de performance, ao lado de reformulaes oramentria e no uso de mecanismos de mercado ou quase-mercado na proviso de servios pblicos (NOGUEIRA, 2003).

    Um terceiro conjunto refere-se aos pases da Amrica Latina, que apresentam caractersticas bastante distintivas em relao s experincias dos pases desenvolvidos, a comear da origem e motivaes dos intentos reformistas, em que se observa um forte

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    componente de isomorfismo coercitivo e mesmo normativo16 na difuso da NPM.17 Os esforos empreendidos focaram18 mais a reduo de custos que a promoo de melhorias de desempenho do setor pblico, medida que foram motivadas princi-palmente por propsitos de natureza macroeconmica, com nfase no ajuste fiscal. Pouco se avanou alm das chamadas reformas de primeira gerao, que contemplam privatizaes, reforo nos mecanismos de controle financeiro e cortes nas despesas com pessoal. O que se tem, de um modo geral, so iniciativas pontuais e frequentemente descontnuas de introduo de algumas inovaes nas tecnologias de gesto, no plane-jamento e avaliao oramentria, entre outras, que ficam distantes da concepo de um programa abrangente de novas prticas de gesto, aderentes NPM.

    Alm de contedos distintos, a NPM passa tambm por transformaes ao longo do tempo, que envolvem tanto os objetivos visados quanto os instrumentos mobilizados para sua promoo (FERLIE et al., 1999; HOOD e PETERS, 2004), como bem o evidencia o reformismo britnico.19 So mudanas relacionadas principalmente proviso de bens e servios populao, compreendendo a crescente incorporao e refinamento de meca-nismos baseados na ideia de mercado, bem como o empoderamento dos usurios para vocalizar suas preferncias, transmutando cidado em consumidor. No percurso, novas questes vo emergindo, em que se destacam a maior preocupao com a transparncia e o reforo dos mecanismos de accountability, enquanto outras saem de cena.

    Para Dunleavy et al. (2005), a NPM um fenmeno de dois nveis. No primeiro, trata-se de uma teoria de mudanas gerenciais baseada na importao para o setor pblico de conceitos centrais das prticas modernas dos negcios e influenciada pela public choice. Os temas principais so focados em trs elementos: desagregao, com-petio e sistemas de incentivos. A desagregao remete ideia de recortar hierarquias

    16. O isomorfismo institucional traduz uma tendncia homogeneizao da estrutura e prticas das organizaes que se defrontam com um mesmo conjunto de condies ambientais. Powell e DiMaggio (1991) distinguem trs tipos de isomor-fismo: coercitivo, normativo e mimtico. O primeiro decorre de presses advindas do ambiente institucional e que podem ser sentidas tanto como imposio quanto como induo. O segundo associado profissionalizao, e o terceiro, a uma espcie de resposta organizacional s incertezas. 17. A adeso s reformas , em larga medida, induzida e apoiada externamente, por organismos internacionais como o Fundo Monetrio Internacional (FMI), o Banco Mundial (BIRD) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por meio do mecanismo da condicionalidade na concesso de emprstimos e financiamentos (Rezende, 2002; Olsen, 2005; Nogueira, 2003).18. Conforme Nogueira (2003, p. 8), somente em alguns poucos pases [como Chile e Brasil] procurou-se enriquecer o contedo das reformas uma vez concluda essa primeira fase.19. Ver, a respeito, a discusso efetuada por Abrcio (2005). De acordo com o autor, o reformismo britnico envolve trs modelos, que se sucedem no tempo: o gerencialismo puro; o consumerism; e, mais recentemente, o public service orientation.

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    grandes, especificando sistemas de informao e gerenciais para facilitar esse diferente padro de controle; implica flexibilizao de prticas governamentais de pessoal, tec-nologias da informao, compras e outras funes. A competio envolve a separao entre comprador e provedor e formas diferentes de proviso, com vistas a criar com-petio entre provedores como forma de alocao de recursos, no lugar de decises hierrquicas. A definio de incentivos visa substituir recompensas por desempenho em termos de um difuso ethos do servio pblico ou profissional, pela nfase em incentivos por desempenhos especficos e baseados em recompensas pecunirias.

    Por sua vez, as mudanas de segundo nvel associadas NPM referem-se a um conjunto de inovaes especficas e extenses de tecnologias de polticas pblicas. Trata-se de mudanas decorrentes da aplicao de ideias da economia, dos neg-cios e da public choice a problemas pragmticos na proviso de servios pblicos. Estas mudanas se encaixam em um movimento maior de reforma e ganham coern-cia intelectual em funo de sua ligao com as ideias de primeira ordem descritas acima, sendo distinguidas tambm pelos trs grandes temas elencados anteriormente. Entre elas, no eixo desagregao, situam-se o processo de agencificao; o crescimento de agncias quase governamentais; a competio por comparao; a ampliao de medi-das de desempenho etc. No eixo competio, destacam-se a criao de quase-mercados; esquemas de vouchers; contratos intra e intergovernamentais; polarizao entre setores pblico e privado; liberao de mercado; desregulao etc. No eixo dos sistemas de incentivos, incluem-se, entre outras mudanas, o envolvimento de mercado de capitais em projetos; a privatizao; medidas antirent-seeking; pagamento relacionado a desem-penho; parcerias pblico-privadas etc.

    Ao lado disso, a forma como o iderio da NPM se difunde na comunidade internacio-nal no constitui um processo linear, em que etapas relativamente previsveis se sucedem, nem padronizado, com variaes tanto nos objetivos visados quanto nas solues adotadas (HOOD e PETERS, 2004). Observam-se trajetrias as mais diversas entre os pases no tocante aos respectivos experimentos reformistas (REzENDE, 2002; POLLIT, 2004; POLLITT e BOUCKAERT, 2002), que podem ser esquematicamente descritas e inter-pretadas recorrendo-se ao modelo analtico construdo por Hernes (2005).20 A primeira

    20. Tal constructo analtico busca examinar, da perspectiva da teoria organizacional, como se d a difuso de inovaes informadas pela NPM em organizaes do setor pblico, definindo quatro tipos de respostas organizacionais introduo das referidas reformas: paralysis, loose coupling, ritual decoupling, organic adaptations. Ver a respeito em Hernes (2005).

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    consiste na implementao parcial ou paralisia, gerando problemas como as denominadas falhas sequenciais (REzENDE, 2002), que denotam incapacidade de levar em frente as reformas ou a inconsistncia do esforo reformista. A segunda traduz adeses formalsticas ou cerimoniais s reformas, num reformismo de fachada que pode ser movido quer pelo interesse dos gestores na acessibilidade a financiamentos e fontes de recursos, na linha do isomorfismo coercetivo, quer na transmisso de uma imagem positiva opinio pblica, lastreada na associao da NPM gesto moderna e inovadora (HOOD e PETERS, 2004; POLLITT, 2004), na linha do isomorfismo mimtico. Por fim, tm-se empreendimentos reformistas que buscam incorporar, de forma mais orgnica e sistematizada, novas tcnicas e prticas de gesto, consoante as premissas orientadoras da NPM.

    Essa difuso irregular e descontnua pode ser atribuda a alguns problemas bsicos da NPM, a comear pela tibieza dos resultados alcanados quanto pretendida melhoria de efici-ncia. O fato notvel que no h uma avaliao criteriosa e suficientemente abrangente capaz de atestar, de forma categrica, nem os ganhos de produtividade (POLLITT e BOUCKAERT, 2002; HERNES, 2005) nem a melhoria de bem-estar pretendidos pelas reformas patro-cinadas sob o signo da NPM (MANNING, 2000; POLLIT e BOUCKAERT, 2002; HERNES, 2005; DRECHSLER, 2005). A esse respeito, van Mierlo (1998, p. 401 apud DRECHSLER, 2005, p. 2) afirma que vrios anos de esforos e experincias de reformas gerenciais na administrao pblica na Europa Ocidental e em outros pases da OCDE fornecem evidncias mais de fracassos que de sucessos.

    Outra questo que se reflete sobre a forma como se d a difuso da NPM tem a ver com a complexidade imbricada no processo de reaplicao de instrumentos e prticas que compem sua agenda reformista em contextos distintos, configurando o que Pollit (2004) designa como iluso de solues padronizadas. A transferncia de tecnologias gerenciais, seja por induo ou por mimetismo, est longe de ser um processo trivial, j que, usualmente, envolve a necessidade de adaptaes e ajustamentos, alm de ser influenciada por uma srie de variveis intervenientes, como a conformao do arcabouo institucional, a cultura organizacional e a capacidade tcnica da administrao pblica, entre outros. So problemas que conduzem, com frequncia, a paralisias, descontinuida-des e formalismos na adoo de intentos reformistas, anteriormente mencionados.

    Ao lado disso, devem ser mencionados os tensionamentos suscitados pelos princ-pios e prticas da NPM quando de sua aplicao administrao pblica. Um primeiro aspecto tem a ver com a dimenso institucional, em que a orientao no sentido da

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    flexibilizao processual e do incremento da autonomia decisria dos gestores pbli-cos vai de encontro a um sistema no qual a legitimidade se ancora primariamente na observncia de regras de fundamentao legal, que balizam a conduta adequada e pertinente no trato da coisa pblica. Um segundo aspecto remete aproximao da proviso de bens e servios pelo Estado da lgica de funcionamento do mercado, o que implica tratar o cidado como consumidor, numa pretensa diluio das fronteiras entre os setores pblico e privado. Com isto, a NPM subverte o sistema de controle poltico da sociedade sobre as atividades de governo, com consequncias no apenas para a ordem democrtica fundada na soberania popular, mas tambm para a noo e o contedo objetivo da poltica de seguridade e proteo social.

    Para alm da difuso irregular e descontnua, uma vertente da literatura acerca da NPM se dedica ao exame de seus alcances e limites, do qual resulta um balano no muito favorvel, a comear por Hood (1996), que questiona a interpretao do desmoro-namento da administrao pblica progressiva e a emergncia da NPM por vrias razes. Para o autor, no h evidncias do referido desmoronamento com a emergncia da NPM, cujo desenvolvimento teria sido conduzido mais pela prtica do que pela teoria. Assim, as novas doutrinas no seriam de fato novas e seus temas bsicos no acrescentaram muito a doutrinas utilitaristas da gesto pblica como as desenvolvidas por Bentham e outros, baseadas nos princpios da concorrncia, transparncia, ateno aos consumidores e mecanismos de incentivo. Vale dizer, a NPM seria mais um novo lustro para um velho tema do que propriamente um novo paradigma. Isto posto, Hood sugere que a NPM marca uma nova fronteira no desenvolvimento da burocracia weberiana um modelo Weber ps Weber; aspecto a ser retomado mais frente , na medida em que, em um novo habitat, foi possvel que a viso clssica de burocracia weberiana rompesse com os constrangimentos tecnolgicos anteriores, tendo como suporte o desenvolvimento da tecnologia da informao.21 Em sua interpretao, a NPM representaria simplesmente um desenvolvimento de contabilizao mais alm do que weber pde imaginar e a automatizao de muitos procedimentos para enquadrar casos em categorias que nos tempos de weber se faziam manualmente (HOOD, 1996, p. 488).

    21. A informatizao facilita maior desenvolvimento dos indicadores de gesto e dos centros de custo por meio do controle e avaliao, mais difceis de pr em prtica anteriormente.

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    Se Hood (1996) questiona a NPM como um novo paradigma, distinto da buro-cracia weberiana, outras interpretaes apontam na direo de sua exausto como movimento reformista. Em artigo cujo ttulo menciona a morte da NPM de fato, mais como retrica , Dunleavy et al. (2005) consideram que algumas prticas ligadas NPM esto muito institucionalizadas e ainda iro permanecer, da mesma forma como ela prpria no deslocou muitos elementos das ortodoxias prvias referentes admi-nistrao pblica progressiva. Segundo os autores, algumas ideias da NPM ainda esto ganhando influncia em pases antes resistentes, como a Alemanha, aos quais se podem acrescentar pases que chegaram de forma mais tardia a este movimento reformista, como o Brasil. De qualquer forma, no entanto, no se trata mais de algo novo, mas de ideias e prticas com mais de duas dcadas e em declnio ou estagnao. Drechsler (2005, p.10-11), contudo, mais enftico acerca do descenso da NPM. A este respeito, afirma que, se, em 1995, ainda era possvel acreditar na NPM, a despeito de fortes e substanciais crticas a ela dirigidas; em 2000, a NPM j estava na defensiva, acuada por evidncias empricas que iam de encontro aos resultados por ela prometidos; isto para, em 2005, no se revelar mais um conceito ou ideia vivel.

    A prxima seo faz uma reviso, no exaustiva, das crticas NPM tendo como referncia suas principais caractersticas. So ainda apresentadas algumas das alterna-tivas que vm sendo propostas na literatura acadmica, que tm, em perspectiva, uma releitura do papel do Estado e da burocracia, articulada com uma aposta nas dimenses participativa e deliberativa da democracia e seus rebatimentos na gesto pblica.

    3 CRTICAS, PROPOSTAS E DESAFIOS: A LITERATURA PS A HEGEMONIA DA NPM

    Depois de duas dcadas de hegemonia, a NPM vem sendo criticada no apenas em seus pressupostos e fundamentos, mas tambm por seus resultados tanto por no entregar os produtos prometidos quanto por ser portadora de consequncias no esperadas nem pretendidas, o que refora a percepo do relativo esgotamento de suas proposies reformistas. A partir desta percepo, vem emergindo uma produo acadmica que aponta novos rumos para a reforma do Estado, reafirmando o papel da burocracia weberiana para reinscrev-la numa concepo de gesto, que procura recuperar suas dimenses poltica e social, sem descurar a busca da eficincia.

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    3.1 AS CRTICAS mAIS gERAIS

    Hood e Peters (2004) identificam uma indstria epistmica da NPM, relacionando trs fases no desenvolvimento intelectual deste campo. A primeira se desenvolve no final dos anos 1980 e reflete um conjunto de conceitos normativos e o mapeamento de inovaes institucionais no contexto da agenda da nova direita, que se revela domi-nante nas agncias de cooperao e desenvolvimento22 at o incio dos anos 1990. Nesta fase aparece tambm uma crtica filosfica nova gerao de gerencialismo no setor pblico, sem que nenhum tratado terico geral tivesse emergido da academia. As ideias pioneiras vieram do campo da prtica, cuja descrio baseava-se na observao do que ocorria nos Estados Unidos e no Reino Unido, visando distinguir os princ-pios das reformas daqueles anteriormente vigentes, mesmo que a lista de caractersticas variasse muito entre os autores dedicados a tal empreendimento.

    Aps um perodo de identificao das similaridades das reformas do setor pblico, numa segunda fase de desenvolvimento do tratamento dado NPM, a nfase da lite-ratura recai sobre a identificao das variaes e diversidade de estgios da reforma gerencial, a partir de estudos comparativos em diferentes pases. No final dos anos 1990, numa terceira fase do seu desenvolvimento intelectual, o tema alcana maior formalizao no estudo das reformas do setor pblico. Nela, a anlise comparativa da gesto pblica busca se localizar dentro da estrutura terica da cincia poltica. Neste perodo, que Hood e Peters (2004) denominam da meia idade da NPM, passam a ser identificados paradoxos e surpresas na implementao de suas proposies refor-mistas, na linha de resultados no esperados ou no pretendidos. Em reviso de vrios estudos sobre as reformas da NPM, os autores exploram trs abordagens sobre o tema dos efeitos paradoxais da ao humana nas cincias sociais e apresentam exemplos da aplicao de cada um delas, sintetizados a seguir.

    A primeira tem a ver com a anlise dos efeitos no pretendidos da ao humana, na tradio de Merton, que considerou, como fontes de consequncias no previstas, as informaes limitadas e os pressupostos equivocados, de um lado, e a anlise de efeitos ines-perados de mudanas institucionais, de outro (SIEBER, 1981; MARCH e OLSEN, 1989).

    22. Com destaque para os programas de ajuste estrutural do Banco Mundial e do Fundo Monetrio Internacional.

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    Um dos paradoxos das reformas do setor pblico a utilizao da abordagem da produo como forma de controle, que envolve especificao e mensurao de resulta-dos por meio de indicadores em contratos de desempenho aplicados a tipos de servios pblicos nos quais tanto as atividades quanto os resultados no so prontamente obser-vveis ou mensurveis.23 Em alguns casos, isto leva ao obscurecimento em vez de clare-amento das responsabilidades gerenciais dentro do governo (GREGORY, 1995, apud HOOD e PETERS, 2004). Outro paradoxo est relacionado nfase na diminuio dos controles ex ante e processuais baseados em regras e rotinas, que so substitudos por avaliaes ex post de resultados, de forma a possibilitar maior discricionariedade para os gerentes e agregar valor ao servio pblico. Embora em algumas reas estes resultados tenham sido observados, estudos mostram que a efetivao de uma reorientao geral dos controles em tal direo questionvel. Alm disso, em alguns casos, aumentaram os controles sobre a burocracia, com uma crescente regulao sendo imposta sobre esta, como nos processos de compra com vista reduo de corrupo. Auditorias tambm permanecem processuais em vez da retrica de julgamento de resultados.

    A segunda abordagem a teoria cultural trata de formas de surpresa cul-tural causadas por desenvolvimentos no ambiente e que estimulam mudanas nas vises de mundo. A ideia bsica que mesmo um ambiente estvel no produz consensos, o que se expressa pelo teorema da impossibilidade, ou seja, vises de mundo culturais sero sempre opostas e plurais. Da que os efeitos no antecipados ou no pretendidos da ao social so culturalmente variveis e no universais, o que produz as surpresas. Algumas anlises localizam as surpresas da reforma da NPM em confrontos culturais e pontos cegos culturais. Elas incluem paradoxos da resistncia organizacional a presses de mudanas de segunda ordem,24 variaes na autorreproduo dos paradoxos institucionais e o triunfo da esperana sobre a experincia paradoxos nos quais o aprendizado a partir dos erros suprimido.

    23. Um exemplo seria a utilizao de taxas de criminalidade a partir do pressuposto de que a atividade pode ser controlada sob a forma de produo. Outro exemplo so os resultados perversos da noo de difuso de boas prticas (Frederickson, 2003, apud Hood e Peters, 2004) que podem promover isomorfismos em vez de inovao radical e que seja desviante do que outras organizaes fazem. 24. A teoria institucional distingue as respostas organizacionais a distrbios do ambiente em respostas de primeira e de segunda ordem: suavizando ou abrandando os efeitos desses distrbios (respostas de primeira ordem) e assumindo novos valores subjacentes que so alinhados com esses distrbios do ambiente (respostas de segunda ordem).

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    De acordo com Laughlin (1991, apud HOOD e PETERS, 2004), as estratgias para a reforma gerencial do setor pblico so baseadas no pressuposto racionalista de que organizaes podem se mover das respostas de primeira ordem para as de segunda ordem em funo de presses externas, financeiras ou outras. A partir de algumas observaes empricas de organizaes submetidas a fortes presses para mudana, este pressuposto revela-se duvidoso, dado que as respostas parecem paradoxais e organizaes no fazem mudanas profundas mesmo que sejam penalizadas por isto. Com isto, passa a ser questionada a ideia de que as reformas gerenciais foram movidas por foras econmicas globais inexorveis e ligadas a demandas por maior competitividade internacional, uma vez que os sistemas administrativos de desempenho mais pobre esto entre os que mais retardaram as reformas, enquanto outras administraes mais efetivas foram objeto de reformas mais precocemente. A tendncia de que uma viso de mundo pr-mudana seja transformada em algo bem diferente quando levada para outro nvel de organizao ou para um ambiente cultural diferente.25 Outra questo ligada inter-relao de culturas no setor pblico a introduo reiterada das mesmas reformas, a despeito de desapon-tamentos recorrentes, como a tentativa de introduzir pagamento por desempenho apesar dos resultados negativos observados.26

    Por sua vez, Collingridge (1992) identifica uma sndrome recorrente de surpresa e desapontamento associada ao desenvolvimento de tecnologias inflexveis, entendi-das como formas de produo ou proviso desenvolvidas em escala maior do que a requerida e que atuam contra o aprendizado normal baseado em ensaio e erro, porque so capturadas por interesses corporativos e governamentais. Este padro produz uma cultura de crena oficial inquestionvel na racionalidade de determinadas abordagens que adquirem o status de melhor prtica, podendo levar a surpresas.

    25. Um exemplo seria a transposio de sistemas de avaliao focados em resultados que so transformados em observa-o de processos; ou tentativas de reduo de funcionrios pblicos que paradoxalmente resultam na expanso do Estado.26. Na mesma linha, podem ser citadas tentativas de mudar o comportamento poltico da burocracia por meio de tcnicas racionais de controle do oramento, apesar da persistncia do comportamento tradicional e oramentos incrementais; tentativas de basear a reforma do setor pblico em modelo de planejamento estratgico, apesar dos sucessivos fracassos deste modelo como resultado de ambiguidades da poltica e da legislao; a crena de que sistemas tecnolgicos de infor-mao podem produzir queda no custo operacional dos governos e ampliao expressiva da qualidade do servio, apesar das experincias contrrias, entre outras.

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    Gesto Pblica no Sculo XXI: as reformas pendentes

    A terceira abordagem remete anlise do comportamento de sistemas complexos e interaes tecnolgicas institucionais, levando a descontinuidades e no linearidades no desenvolvimento da NPM. Em princpio, qualquer abordagem de desenho institu-cional deve esperar efeitos no esperados se ela se torna o que, seguindo Brooks (1986), Hood e Peters (2004) denominam de monoculturas tecnolgicas referindo-se ao fato de que, quando uma tecnologia se torna dominante, o foco do desenvolvimento tende a ser mais sobre o controle de custos e a rotinizao do que no gerenciamento mais amplo dos riscos ou dos impactos sobre a ordem social. A inovao bem-sucedida em um perodo longo torna-se, assim, autolimitada, por fracassar em ampliar o escopo da agenda de inovao para alm de sua matriz original. Algumas anlises das reformas gerenciais comeam a revelar estes efeitos no lineares, como a identificao de proces-sos garbage can,27 efeitos inesperados de complexidade sistmica e paradoxos do tipoa tartaruga e a lebre, referindo-se fbula de Esopo, na qual a tartaruga, mesmo sendo muito mais lenta, vence uma corrida com a lebre, ilustrada por exemplos de reformas mais lentas e retardatrias que obtiveram melhores resultados.

    Hood e Peters (2004) concluem que alguns elementos paradoxais, no sentido de efeitos no previstos, so inevitveis em qualquer programa de reforma administra-tiva em funo dos limites do conhecimento humano, da complexidade dinmica das organizaes humanas e das dificuldades inerentes experimentao de alguns tipos de engenharia social. Estes efeitos so similares aos ocorridos no desenvolvimento da cincia administrativa e gerencial um sculo antes, mas os re