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Getúlio Vargas, meu pai Memórias de Alzira Vargas do Amaral Peixoto edição definitiva, incluindo segundo livro inédito Notas de Celina Vargas do Amaral Peixoto, Francisco Reynaldo de Barros e Érico Melo

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Getúlio Vargas, meu paiMemórias de Alzira Vargas

do Amaral Peixoto

edição definitiva, incluindo segundo livro inédito

Notas de Celina Vargas do Amaral Peixoto, Francisco Reynaldo de Barros e Érico Melo

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Copyright © 2017 by herdeiros de Alzira Vargas do Amaral Peixoto

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Capa e caderno de fotos Mateus Valadares

Foto de capa Fundação Getulio Vargas/ cpdoc

Créditos das imagens p. 433, imagens 19-22: Acervo pessoal de Celina Vargas do Amaral Peixoto. Reprodução Jaime Acioli. Imagens 1, 4-18, 23 e 24: Fundação Getúlio Vargas – cpdoc Imagens 2 e 3: Acervo Família Sarmanho Vargas. Reprodução Jaime Acioli.

Digitação dos textos inéditos Gisela Pfau de Carvalho Albuquerque

Cronologia Érico Melo

Preparação Eduardo Rosal

Índice onomástico Probo Poletti

Revisão Isabel Cury Clara Diament

[2017] Todos os direitos desta edição reservados à editora schwarcz s.a. Praça Floriano, 19 – Sala 3001 20031-050 – Rio de Janeiro – rj Telefone: (21) 3993-7510 www.companhiadasletras.com.br www.blogdacompanhia.com.br facebook.com/editoraobjetiva instagram.com/editora_objetiva twitter.com/edobjetiva

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Vargas, AlziraGetúlio Vargas, meu pai : memórias de Alzira Var-

gas do Amaral Peixoto / Alzira Vargas. – 1a ed. – Rio de Janeiro : Objetiva, 2017.

isbn 978-85-470-0035-6

1. Brasil – História – Getúlio Vargas, 1930-1945 2. Brasil – Política e governo – Getúlio Vargas, 1930--1954 3. Memórias i. Título.

17-02006 cdd-320.981

Índice para catálogo sistemático:1. Brasil : Presidentes : Biografia 320.981

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Sumário

Um prefácio, à revelia da autora — Lira Neto .................................................... 7Sobre este volume e a edição dos escritos inéditos de Alzira Vargas do Amaral Peixoto ................................................................................................ 13

Getúlio Vargas, meu paiAgradecimento ...................................................................................................... 21Introdução ............................................................................................................ 23

1. (1923) ................................................................................................... 252. (1930) .................................................................................................. 403. (1932) .................................................................................................. 664. (1933) .................................................................................................. 975. 27 de novembro de 1935 ................................................................ 1206. 11 de maio de 1938 .......................................................................... 1477. (1936) ................................................................................................ 1658. (1937) ................................................................................................ 1949. O Plano Cohen e o Estado Novo .................................................. 23910. Os problemas do Estado Novo ................................................... 288

Escritos inéditosÀ guisa de prefácio ................................................................................ 301Prefácio — Não é agora ....................................................................... 302A Revolução de 1930 ............................................................................ 303

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A Intentona Comunista de 1935 ........................................................ 304Primeira visita de Roosevelt ao Brasil, 1936 ..................................... 310Nem todos os golpes se parecem, 1937 .............................................. 311O ano começou bem, 1938 ................................................................... 315O ataque integralista de 1938 .............................................................. 317Parei para pensar em mim mesma... .................................................. 321A camélia que caiu do galho, 1938-39 ............................................... 323Siderurgia e guerra, 1939 ..................................................................... 328Lua de mel e início da guerra, 1939-43 ............................................. 330O acidente e a censura, 1941 ............................................................... 338Encontro com Roosevelt, 1941 ........................................................... 341O nacionalismo começa a dar frutos, 1941........................................ 344Brasil rompe com o Eixo, 1942 ........................................................... 345Primeiro de maio de 1942, Getúlio sofre acidente .......................... 347General durante alguns dias, 1942 ..................................................... 352Três vezes vi meu pai chorar, 1943 .................................................... 360Declaração de guerra e criação da lba, 1942 e 1943 ..................... 369Manifesto dos Mineiros, 1943 ........................................................... 386Morte de Roosevelt e fim da guerra, 1945 ........................................ 387Respondendo “espada com espada”, 1945 ........................................ 39019 de abril de 1945 — Um peão com a missão de proteger o rei ... 393O golpe militar de 29 de outubro de 1945 ...................................... 399História do ptb, 1945 ......................................................................... 40515 de outubro de 1948 — Um diálogo na Fazenda do Itu .............. 408Ateus, anticristãos, falsos católicos e comunistas, 1949 ................. 412Era uma vez um “mar de lama”, 1950-53 ........................................... 414D. Alice, agosto de 1954 ...................................................................... 423A reunião ministerial, 1954 ............................................................... 428A candidatura de jk, 1954 ................................................................... 435Diálogos entre Alzira e Café Filho, 1954 .......................................... 437Eu o fazia esperar .................................................................................. 438Um homem só ...................................................................................... 440

Biografias ........................................................................................................... 443Cronologia ......................................................................................................... 489Notas .................................................................................................................. 501Índice onomástico .............................................................................................. 541

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Um prefácio, à revelia da autora

Lira Neto

Escrevo este prefácio sabendo que contrario uma vontade expressa da autora. No calhamaço de inéditos que deixou à posteridade, Alzira Vargas advertiu, imperativa: “Este livro [...] não tem prefácio [...] e não o terá”. Dona de opi-niões inquebrantáveis, a filha predileta do ex-presidente Getúlio Vargas não gostava de ser confrontada. Ouso contrariá-la, ainda que postumamente, após ser convocado para a honrosa tarefa pela guardiã das reminiscências afetivas da família — a historiadora e cientista política Celina Vargas do Amaral Peixoto, filha de Alzira e principal responsável pela reedição deste Getúlio Vargas, meu pai. Há alguns anos, quando soube que eu andava bisbilhotando a vida de seu avô para escrever a biografia não autorizada de Getúlio em três volumes, Ce-lina não tentou me procurar e exigir alguma espécie de benevolência com o objeto da pesquisa. Agora, mais uma vez, deixou-me inteiramente à vontade, livre de quaisquer recomendações e cuidados, para que eu assumisse tamanha responsabilidade histórica, a de prefaciar esta obra.

A relação entre biógrafos e herdeiros de biografados é, em geral, confli-tuosa. Ao decidir escrever sobre a trajetória pública e privada de Getúlio, nunca me preocupei em obter o beneplácito oficial das famílias Vargas ou Dornelles. Sempre entendi que as múltiplas faces dessa controvertida figura histórica chamada Getúlio Dornelles Vargas não são patrimônio particular de seus descendentes, e sim da memória coletiva nacional. Por isso mesmo, meu contato inicial com Celina se deu somente tempos depois de eu já ter escrito

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o primeiro tomo da biografia [Getúlio (1882-1930): Dos anos de formação à conquista do poder], quando fui então gentilmente convidado para tomar um café em seu apartamento, no Rio de Janeiro.

Durante o rápido e agradável encontro, tendo o busto de Getúlio como testemunha de bronze assentada no meio da sala de visitas, Celina Vargas me perguntou sobre a cronologia que seria abarcada pelos capítulos do segundo volume da biografia, então ainda na fase de escrita. Quando lhe respondi que o livro abrangeria o período entre 1930 e 1945, ela reteve de leve a respi-ração, paralisou a xícara no ar por um lapso de segundo e, só então, levou o café com algum vagar aos lábios, para sorver um minúsculo gole. Feito isso, pousou a xícara na mesa e deixou escapar o comentário lacônico: “O Estado Novo, portanto, estará no segundo tomo...”, suspirou.

Ela, que havia acabado de me dizer que concluíra muito bem impressio-nada a leitura da primeira parte da biografia, ressalvou: “Creio que não irei ler o próximo volume”. Explicou-me que temia se ver emocionalmente acareada com o período mais polêmico da história do avô, a ditadura estado-novista, cenário de inúmeras violências cometidas contra os adversários políticos do regime. “Porém, se você não se debruçar sobre essa época, não terá escrito a vida completa de Getúlio Vargas”, ponderou. “Como neta, não tenho nada a opor. E, claro, nem poderia fazer isso. O livro é seu.”

Naquele exato momento, o Brasil vivia o acirrado debate em torno da liberação das biografias não autorizadas. A atitude elegante de Celina, que interpretei como uma demonstração de extraordinário espírito público e de enorme respeito pela história, impressionou-me de forma significativa. Ao final de nossa conversa, ela me informou sobre a existência de um precioso conjunto de documentos, praticamente ainda inexplorados por historiadores e pesquisadores em geral. Entre eles, os fragmentos manuscritos que Alzira Vargas planejara lançar como continuação do livro de memórias Getúlio Var-gas, meu pai, lançado originalmente em 1960. Os textos inacabados, até aqui inéditos em seu conjunto e utilizados de forma parcial nos dois volumes finais da biografia Getúlio, acompanham a presente reedição da obra.

Nesses escritos, que agora vêm a lume, a autora retoma a narrativa a partir do ponto em que a concluiu no livro original: o início do Estado Novo. Assim como os textos lançados anteriormente, já conhecidos do público, os fragmen-tos ora adicionados ao livro não obedecem aos necessários rigores da pesquisa

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histórica. Constituem, ao contrário, o depoimento de uma filha apaixonada pelo pai, o homem poderoso de quem ela foi a principal confidente política e familiar. “Já que cada um contou sua história, também vou contar a minha”, escreveu Alzira, assumindo o caráter passional desses textos.

Se falta imparcialidade à autora — a ponto de ela relativizar os horrores do Estado Novo e as contrafações do Departamento de Imprensa e Propaganda (dip) —, sobram-lhe o protagonismo e o testemunho ocular de detalhes sabo-rosos que só a intimidade e o convívio cotidiano são capazes de proporcionar. O leitor fica sabendo, entre outras tantas confidências, que Getúlio Vargas cultivava uma surdez seletiva, artifício que o fazia evitar conversas ao telefone e, quando em presença de alguém, escutar apenas aquilo que lhe convinha. “Raramente interrompia um interlocutor, a não ser quando o aborrecia. Nes-se caso impacientava-se, mudava de assunto ou ‘desligava o motor’ (era nossa expressão no gabinete), ficava ausente, pensando em outra coisa, até que o ajudante de ordens lhe anunciasse a próxima audiência.”

Alzira, nomeada intérprete oficiosa do pai para assuntos relacionados aos Estados Unidos e Inglaterra (Getúlio lia com fluência em francês, espanhol e italiano, mas nunca dominou o inglês), revela-nos que foi recebida pessoalmente no Salão Oval da Casa Branca, por Franklin Delano Roosevelt, para discutir os termos prévios da adesão brasileira aos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial. Como assessora mais próxima ao pai, cabia a ela também esquecer de propósito, no fundo de uma gaveta empoeirada, os projetos mais incômo-dos remetidos ao palácio por correligionários e oportunistas de ocasião. “Põe isso no teu cemitério particular até que eu peça”, recomendava-lhe Getúlio.

“Comecei a penetrar nos secretos meandros do mundo político”, admite Alzira, no segundo livro. “Sobretudo, a parte mais sigilosa de todos os as-suntos”, detalha. Minudências de ordem familiar — como o fato de os pais, Getúlio e Darcy, dormirem em quartos separados a partir de certo ponto do casamento — combinam-se a indiscrições picantes da diplomacia internacional. Ao oferecer ao subsecretário de Estado norte-americano Sumner Welles um jantar no cassino Copacabana, Getúlio recomendou que a filha não deixasse faltar à mesa dois ingredientes infalíveis para amolecer os ânimos do ilustre convidado: bebida a rodo e muita mulher bonita.

A luta surda travada no interior do regime entre os germanófilos que que-riam apoiar Hitler e os defensores do consórcio com os Estados Unidos tam-

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bém é descrita por Alzira nos trechos deste segundo Getúlio Vargas, meu pai. Além disso, em nenhum outro local o leitor vai encontrar tantos pormenores e informações de bastidores sobre o momento crítico em que Getúlio, víti-ma de um acidente automobilístico, ficou imobilizado numa cama hospitalar instalada no palácio, com um fio cirúrgico de aço atravessado no joelho em frangalhos e arames costurados nos dentes para corrigir uma fratura transversal do maxilar. Com o ditador posto fora de circulação, ingerindo pelo canudinho os alimentos liquidificados pelo mordomo do Catete, a boataria dominou o país. “Espalharam os interessados que papai, devido ao choque, estava inuti-lizado, que quem governava o país era um triunvirato composto de meu tio Benjamim Vargas, meu marido e eu”, conta-nos a autora. “Chegaram a dizer que ele havia morrido, e a família escondia para manter a posição.”

O estilo de Alzira Vargas escrever era ágil, sem floreios e brocados. Sabo-reia-se o livro como se ela estivesse entabulando uma conversa informal com o leitor. Sem travas na língua, a autora reconhece que o próprio pai, muitas vezes, a chamava de “petulante”, devido aos modos despachados de abordar assuntos pessoais e políticos. “Não estranhem, por favor, o fato de eu tratar meu pai ora por tu, ora por senhor. Fui educada no senhor, como todas as famílias tradicionais de minha terra. Durante anos jamais ousei falar com meu pai de outra maneira. No entanto, aos poucos, com a petulância característica da idade, à medida que me dava mais importância, mais crédito e mais de sua confiança, comecei a tratá-lo por tu”, ilustra.

O Getúlio retratado nessas páginas pode ser surpreendido, a qualquer momento, dando voltas no gabinete, preocupado, imerso em pensamentos silenciosos, as mãos cruzadas atrás das costas, o inseparável charuto fumegan-do entre os dedos. Em outros momentos, pode ser flagrado fazendo alguma traquinagem de teor quase infantil, escondendo a máquina de escrever da filha debaixo da mesa, espalhando os papéis pelo chão, bagunçando os livros de Alzira e deixando-os sobre os móveis, com as páginas abertas e desmarcadas. “Nunca me ocorrera que aquele homem tranquilo, sereno, sisudo fosse capaz de travessuras desse porte.”

A crise desencadeada pelo atentado ao jornalista Carlos Lacerda e a morte do major Rubens Vaz é reconstituída a partir do ponto de vista dos salões do Catete. Mas Alzira não ameniza a carantonha dos integrantes da guarda pes-soal do pai, alguns deles envolvidos no episódio. “Sem querer, fui eu quem os

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batizou, vendo-os chegar cabeludos, malvestidos, ignorantes, mas leais. ‘Olha só os ‘anjinhos’ que o Bejo arrumou!’. O termo ‘anjinho’ pegou entre nós e logo depois a imprensa apoderou-se da palavra.”

A célebre reunião ministerial na madrugada de 23 para 24 de agosto de 1954 — ato que antecederia o trágico desfecho da história de Getúlio — é narrada por Alzira em tom de assumida indignação. “Fiquei ouvindo e olhando as fisionomias em torno da mesa. Havia passividade, ódios recalcados, solida-riedade formal e até pena. Em nenhum momento senti entusiasmo ou desejo de luta”, conta. Ao ver o pai abandonado por muitos daqueles que antes o apoiavam, Alzira diz ter conhecido ali o sabor amargo e definitivo da traição. Apesar da exaltação contida no texto, em nenhum momento ela adota o tom colérico dos panfletários. “Sinto necessidade de odiar e não posso”, lamenta. “O que ele me deixou como herança maior foi o seu coração.”

Nas entrelinhas, Alzira reconhece que o pai jamais deixou de lado a for-mação positivista da juventude, primado filosófico autoritário e personalista que o fazia descrer da política e da democracia representativa, encarnando a figura do líder autocrático, senhor absoluto dos destinos da pátria e do povo. “Eu te considero um dos piores políticos que jamais conheci”, teria dito ela, certa vez, a Getúlio. “Não tens paciência para aturar as intriguinhas normais, ficas indócil quando a administração do país é prejudicada pela política e te rebelas contra a burocracia”, explicou-lhe.

“Acho que tu tens um pouco de razão”, respondeu o pai.

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Sobre este volume e a edição dos escritos inéditos de Alzira

Vargas do Amaral Peixoto

Clássico da literatura política brasileira, Getúlio Vargas, meu pai, de Alzira Vargas do Amaral Peixoto, foi publicado em 1960. Esta é sua segunda edição comercial. Um sucesso à época, a narrativa começa com a participação de Getúlio Vargas na Revolução de 1923, no estado do Rio Grande do Sul. A escolha do episódio é justificada pela própria autora: “Tomei conhecimento da existência de meu pai em começos de 1923, quando o perdi pela primeira vez. Até então ele pouco representava para mim”. Alzira encerra Getúlio Var-gas, meu pai com os eventos que resultaram na instauração do Estado Novo e, posteriormente, começa a escrever uma continuação, que nunca terminou. Os escritos inéditos agora publicados são as anotações que ela fez para este novo livro. Portanto, são textos inacabados, produzidos entre as décadas de 1980 e 1990. Depois de seu falecimento, esses manuscritos foram doados por Celina Vargas do Amaral Peixoto, sua filha, ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulio Vargas (cpdo/fgv) e estão lá depositados e disponíveis ao público.

Para uma melhor compreensão do leitor, os escritos inéditos de Alzira, publicados na segunda parte deste livro, passaram por um processo de edição, que partiu dos originais escritos à mão. Dadas algumas características desses escritos, a edição teve que enfrentar algumas questões.

Nem sempre Alzira respeitou a ordem dos acontecimentos; por esse mo-tivo, foi estabelecida uma nova ordem para os capítulos (cronológica). Ela,

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em geral, escrevia sobre o mesmo assunto várias vezes; alguns capítulos têm até três versões, produzidas em momentos diferentes. O fato de essas versões serem extremamente coerentes entre si tornou possível a decisão de suprimir-mos as repetições e mesclarmos os textos para oferecer ao leitor o máximo de informação possível — o que foi feito sempre que não houvesse prejuízo da narrativa e/ou do estilo da autora. Quando havia informações divergentes sobre um mesmo evento, optou-se pela versão aparentemente mais bem-acabada, porém os trechos cortados foram reproduzidos em notas explicativas.

Outra mudança com relação ao manuscrito de Alzira diz respeito aos tí-tulos dos capítulos que, em alguns casos, foram renomeados. Celina Vargas do Amaral Peixoto e Francisco Reynaldo de Barros se debruçaram sobre os originais na tentativa de oferecer ao leitor títulos que resumissem mais ade-quadamente a ideia de cada texto. Portanto, alguns títulos foram mantidos e outros criados levando-se em conta o assunto a que se referiam.

Ainda sobre os escritos inéditos, Alzira se referia, na maior parte das vezes, aos nomes de pessoas, lugares ou instituições por suas iniciais. Optamos por grafá-las por extenso. Foram corrigidos também eventuais erros de pontuação, gramática ou ortografia. E sempre que há interferência direta no texto original, foi usado o recurso do colchete ou do parêntese. Aqui vale uma pequena ex-plicação sobre Getúlio Vargas, meu pai: nele, a estrutura do texto foi mantida, ainda que algumas expressões ou palavras usadas por Alzira estejam atualmente em desuso ou tenham perdido seu significado original. Nos casos em que se imaginou que isso atrapalharia a compreensão, foi criada uma nota explicativa.

A propósito, as notas dos dois livros foram reunidas no final deste volume, divididas por capítulos. Celina Vargas do Amaral Peixoto e Francisco Reynaldo de Barros já tinham criado notas explicativas sobre as personalidades — ou o contexto histórico — citadas por Alzira para uma edição não comercial de Getúlio Vargas, meu pai produzida pelo Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul em 2005. A presente edição preservou essas notas, que foram acrescidas de outras, feitas agora com a colaboração de Érico Melo. Novas notas foram produzidas para os escritos inéditos e, em ambos os livros, as notas originais de Alzira foram mantidas.

As notas que traziam biografias das pessoas citadas passaram para uma lista no final do livro, para facilitar a consulta do leitor, já que muitos personagens aparecem várias vezes no decorrer dos dois textos. Esse material foi ampliado

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por Érico Melo para abarcar as personalidades presentes nos escritos inéditos. Por fim, foi criado um só índice onomástico que engloba os nomes citados nos dois textos.

Originalmente, em Getúlio Vargas, meu pai havia um apêndice com alguns documentos, tais como a lista de nomes da comissão que elaborou o anteprojeto de Constituição apresentado à Constituinte em 15 de novembro de 1933 ou a relação dos interventores e governadores nas várias unidades da Federação de 1930 e 1937. Decidiu-se suprimir esse material, que ficou sem propósito depois da inclusão das notas e biografias.

Finalmente, algumas das fotos que ilustram este livro foram gentilmente cedidas por Celina Vargas do Amaral Peixoto de seu acervo pessoal, com docu-mentação pertencente às famílias Sarmanho e Vargas. As restantes fazem parte do acervo depositado no cpdoc/fgv e foram selecionadas graças à preciosa ajuda de Regina da Luz Moreira e de Adelina Maria Alves Novaes e Cruz.

Os editores

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Getúlio Vargas, meu pai

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Getúlio Vargas da Costa GamaCândida Darci VargasEdith Maria Vargas da Costa GamaCelina Vargas do Amaral PeixotoYara Maria Tavares VargasGetúlio Dornelles Vargas

Dedico este livro a vocês, e por intermédio de vocês a todos os jovens brasileiros que nasceram sob a proteção do nome de Getúlio Vargas, e não o conheceram suficientemente para poder compreendê-lo, julgá-lo e apreciá-lo.

Ele foi um homem excepcional que, tendo vivido todas as angústias da ado-lescência de um povo, se conservou sempre jovem e morreu em plena juventude espiritual, deixando um exemplo insuperável dentro da História do Brasil.

Tenho lido e ouvido todas as lendas que são contadas, algumas verdadeiras, muitas inventadas, outras fantásticas, a respeito de um homem que todos discu-tem e poucos entenderam.

Vocês que carregam nas veias o sangue desse homem, derramado voluntaria-mente para salvar o Brasil de um mal maior, sangue que é um ônus e uma glória; vocês que deverão enfrentar a História amanhã; vocês que deverão explicar o inexplicável; vocês que deverão ser ora endeusados, ora menosprezados por causa

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dessa honra e desse ônus, devem aprender e entender sua grande lição de patrio-tismo, a maior herança que ele poderia deixar a vocês.

Nem um só de seus atos em toda sua vida pública é motivo de desdouro, de vergonha ou de humilhação para qualquer de seus descendentes. Mas tampouco nos dá o direito de vivermos do fruto de seu esforço.

Em 1947 plantou na Fazenda do Itu inúmeras árvores que só darão frutos dentro de vários anos. Ouvi-o muitas vezes dizer como explicação: “Isto não é para mim, não verei estas plantas crescidas. Tudo isto é para meus netos”.

Aproveitem da sombra que ele lhes deixou, saboreiem as frutas das árvores que ele plantou, mas não as deixem morrer; nem esqueçam de as replantar para que outros as colham também.

Orgulhem-se dele, mas não percam o sentido da obra que ele começou para vocês.

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Agradecimento

Este livro não tem prefácio. Foi escrito com o sangue de minhas veias, com as lágrimas que ainda me sobravam e com um resto, um rebotalho, de energia nervosa que por algum motivo foi poupado. Não merece um prefácio. Não deve ter um prefácio e não o terá.

Em vez de um prefácio, vários agradecimentos. O primeiro a alguém que me obrigou a secar os olhos; a segurar a pena, ainda que com mão trêmula e indecisa; que me forçou a ser forte; que não poupou minha angústia, não teve dó de minhas noites insones e acicatou ao máximo, quase ao paroxismo, o dever de cumprir com o meu dever.

Obrigada, doutor.Depois? Depois, depois tanta gente me ajudou, tanta gente me estimulou,

tanta gente me encorajou, tanta gente susteve e manteve sem interesse algum minha coragem periclitante que eu não saberia por quem nem onde começar.

Pelos médicos que me mantiveram viva quase que à força? Por aqueles que me incentivaram, mesmo que reconhecendo a mediocridade do trabalho? Por aqueles que, sem alarde, corrigiram meus pecados gramaticais? Por aqueles que me censu-raram e moderaram meus arroubos político-sentimentais? Ou por quem apenas por amor gastou seus dedos, seus olhos e suas horas de lazer para me ajudar?

Não sei. E como não sei, a vocês todos, que sabem que eu sei e que ainda não aprendi a esquecer, que mais posso dizer senão:

Obrigada.

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Introdução

Era uma vez um homem só…Não vos preocupeis, senhores!Este não é o livro esperado.A história das grandes pequenezas e das pequenas grandezas que se cometeram durante um “curto período” da vida brasileira, examinada à luz de documentos.Esse, alguém o fará um dia se a coragem me faltar.Este é, apenas, o livro de minha saudade.

Era uma vez um homem só.Era uma vez um menino chamado Getúlio Dornelles Vargas.Era uma vez um jovem, tentando fugir de um destino.Era uma vez um homem, a quem o destino dominou.

Era uma vez…Era assim que começavam as histórias para crianças, no meu tempo.Mas esta não é história para crianças, somente.É uma história para gente grande, gente muito grande mesmo.

Era uma vez…Um menino nasceu a 19 de abril,Dia do Santo dos Impossíveis, Santo Expedito.

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Em que ano não importa.Todos sabem.

Seu pai, um guerreiro, um fazendeiro, um lutador.Sua mãe, filha de fazendeiros, mulher de um lutador, lutadora ela própria.Que mais?Era o terceiro filho em uma família de cinco varões:Viriato, Protásio, Getúlio, Spartacus e Benjamim.

Era uma vez um homem só,Tão só que, podendo partir cercado de amigos,Preferiu partir sozinho.

Era uma vez um homem sóQue morreu como pouca gente morre.

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1 (1923)

Tomei conhecimento da existência de meu pai em começos de 1923, quando o perdi pela primeira vez. Até então ele pouco representava para mim. Nossa vida girava toda em torno de mamãe.1 Era ela quem decidia sobre colégios, roupas, castigos e prêmios. Somente quando cansava de lutar contra nossa insubordinação, dizia a frase mágica que restabelecia a ordem: “Eu conto a seu pai”. Se queria fazer alguma concessão extra, sem perder a autoridade, propunha: “Vou consultar seu pai”. Quando as pretensões não eram de seu agrado, vinha a bomba: “Perguntem a seu pai, se ele deixar…”. Água na fervura! Mamãe sabia que não nos atrevíamos a perturbá-lo. Ele estava sempre lendo, estudando processos, recebendo constituintes e eleitores ou então viajando pelos municípios vizinhos2 para defender uma causa. Nós o admirávamos e o respeitávamos à distância, e seu gabinete era tabu para nós.

Por isso, naquele entardecer do ano de 1923,3 estremeci ao olhar aquele homem diferente que nos esperava para se despedir. Trajava farda de mescla azul, com talim e botas pretas, galões de coronel. Um revólver negro à cintura, um chapéu de abas largas e uma capa enorme sobre os ombros tornavam-no ainda mais estranho. Era meu pai e envergava o uniforme da Briosa, como era conhecida em todo o estado a Brigada Militar do Rio Grande do Sul.

Ia comandar o 7o Corpo Auxiliar Provisório,4 composto quase todo de gen-te de São Borja, para defender os ideais de seu partido, numa revolução que havia tido um começo, mas parecia não ter fim. Chegou minha vez, o terceiro

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dos seus “pinguins”, como costumava nos chamar.5 Senti a leve carícia de seu bigode preto no meu rosto. Assustada, olhei-o com interesse pela primeira vez. Curioso, nunca havia notado que meu pai era bonito: uma basta cabeleira negra ligeiramente ondulada, um olhar bondoso, nada parecido com aquele que tanto temíamos quando ousávamos perturbar suas meditações, e um sorriso claro e alegre como para nos tranquilizar e evitar lágrimas.

A atmosfera na cidade era tensa. Em quase todos os lares havia angústia. Todos os homens válidos estavam combatendo. Entendi o significado de sua partida e pensei comigo mesma: “Será que nunca mais vou ver meu pai, logo agora que descobri que gosto dele?”.

Parece uma fatalidade. Os grandes acontecimentos de sua vida, aqueles que mais gravados ficaram em minha memória de criança, de adolescente e de mulher, deixaram-me sempre a impressão de que o perdia, de que ele nos deixava, de que ele partia.

Um dia partiu para sempre...Hoje, apenas recordo...Olhei para trás pela primeira vez, nesse dia, quando o perdi pela primeira vez.Comecei a observar em torno de mim e a fazer perguntas. Por que havia

desespero e ódio em tantas fisionomias? Por que não podia cumprimentar certas pessoas? Por que janelas se fechavam silenciosamente e outras se abriam ostensivamente? Por que não podia usar vestidos de cor vermelha? Por que uma cidade pequena como São Borja se dava ao luxo de possuir dois clubes sociais? Por que só podíamos entrar em um e devíamos virar o rosto quando éramos obrigados a passar em frente ao outro? Por que somente uma parte da família de minha avó, do ramo Dornelles, tinha relações conosco?6 Por quê?

Aos poucos, o quadro se foi formando. Era pintado em três cores apenas: verde, vermelho e amarelo, as cores farroupilhas. O Rio Grande nascera pe-leando. Lutara para ser brasileiro, lutara para se conservar brasileiro e lutará sempre para que o Brasil continue a ser Brasil.

O gaúcho pintara com o vermelho de seu sangue as verdes coxilhas dos pampas e sobre elas o sol derrama todos os dias novas fontes de vida. É essa a bandeira de minha terra: solo, sangue e sol.

Aqueles homens endurecidos pelas lutas, cujo lar era o lombo do cavalo, legaram-nos uma herança pesada. Ódios recalcados, malquerenças às vezes infantis, o culto à coragem e ao estoicismo, o hábito da solidão e, sobretudo,

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a angústia muda de nossas mães e avós fizeram do gaúcho um ser inquieto, ensimesmado e orgulhoso. Nascera para herói, era preciso continuar. Adqui-riu o hábito de resolver pelas armas todos os seus problemas. Questões de família, de herança, de política, de honra eram decididas à bala. Daí para as lutas fratricidas faltava pouco.

Através de relatos ouvidos de meu avô, de meus tios e por minhas próprias observações, fui reconstituindo a infância e a adolescência de meu pai.

Havia sido travesso como todas as crianças. Dera a seus pais as mesmas preocupações que todos os meninos dão.

Havia sorvido dos lábios de seu pai todas as reminiscências dos combates e entreveros em que tomara parte. O velho Vargas entrara como cabo, o cabo Vargas, e saíra general.7

Havia lido nos olhos de sua mãe8 todo o silencioso drama cotidiano, de-nominador comum das mulheres gaúchas daquela época.

Havia sabido, através do relato pitoresco dos peões da estância, quantas vezes tinham sido devastados e despovoados os campos de Santos Reis,9 seu paraíso de então, devido às contínuas invasões das tropas inimigas e amigas. Se eram inimigas, não deixavam pedra sobre pedra; se eram amigas, o uso do campo, o gado que comiam e os cavalos que levavam para preencher os claros entravam para a conta-corrente dos serviços prestados à causa.

Havia sido marcado pelo minuano que lhe soprava aos ouvidos as lendas e as tradições do Rio Grande, durante suas longas galopadas solitárias.

Acalentava um sonho: ser militar como o pai. Para isso, necessitava obter matrícula na Escola Preparatória e de Tática, com sede em Rio Pardo. Re-quereu inscrição. No entanto, o meio mais fácil e rápido era sentar praça no Exército, pois os soldados tinham uma certa prioridade sobre os paisanos, e as vagas eram poucas.10

Sempre me pareceu estranho ouvir, anos mais tarde, dizerem que papai era de índole calma e serena, o homem que sabia esperar. Saber, ele o sabia, mas não gostava. Aprendeu a controlar seu temperamento impaciente, ardoroso, quase intempestivo, nas lides da própria experiência. A pressa interior que o dominava transparecia de vez em quando em seus atos. Sua entrada para o Exército como praça de pré, somente porque não quis esperar em casa pela chamada que viria a seu tempo, foi a primeira manifestação expressa de sua ânsia, da urgência que o impelia.

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