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R. N. Giere — Usando modelos para representar a realidade — Trad. V. A. Bezerra 1 Usando modelos para representar a realidade Ronald N. Giere Departamento de Filosofia Centro de Filosofia da Ciência Universidade de Minnesota Publicado originalmente em: MAGNANI, L.; NERSESSIAN, N. J. & THAGARD, P. (eds.). Model-Based Reasoning in Scientific Discovery, pp. 41-57. New York: Kluwer / Plenum, 1999. Tradução: Prof. Valter A. Bezerra Universidade Federal do ABC 1. Introdução em havido recentemente um crescente interesse acerca do papel dos modelos na ciência, e o simpósio de Pavia sobre o raciocínio baseado em modelos [model-based reasoning] é uma manifestação diso. Uma resultado dessa maior atenção foi uma proliferação de pontos de vista sobre o que são os modelos e sobre como eles são utilizados na ciência. Nesta apresentação, irei desenvolver uma interpretação unificada sobre a natureza e o papel dos modelos na ciência. Nesta interpretação, um lugar central é ocupado por uma compreensão das relações entre os modelos e os outros elementos que fazem parte de uma visão de ciência — particularmente as teorias, os dados e as analogias. A minha conclusão será a de que os modelos desempenham um papel na ciência que é muito maior do que costumam afirmar até mesmo os mais ardentes entusiastas dos modelos. Do meu ponto de vista, a modelagem não é, de modo algum, um apêndice do fazer científico, mas sim algo central para se construir descrições científicas do mundo natural. Quando digo que busco uma interpretação da natureza e das funções dos modelos na ciência, admito que outras interpretações são possíveis. Não há, na natureza dos modelos, uma essência única que possa ser revelada pela análise filosófica. Não obstante, penso que minha interpretação é melhor do que algumas outras, e tentarei convencê-los de que é esse o caso. 2. A teoria de modelos A afirmação de que uma compreensão dos modelos é central para o entendimento da ciência não é algo novo. Quase quarenta anos atrás, Patrick Suppes (1960) publicou um artigo muito citado com o título: “Uma comparação dos significados e usos dos modelos na matemática e nas ciências empíricas”. A tese daquele artigo era que o significado e o uso dos modelos podem ser interpretados como sendo os mesmos nas ciências empíricas e na matemática (e, particularmente, na lógica matemática). Na época em que Suppes escreveu seu artigo, a teoria de modelos estava estreitamente ligada com a lógica. Assim, Suppes escreveu: Uma teoria é uma entidade lingüística consistindo de um conjunto de sentenças, e os modelos são entidades não- lingüísticas nas quais a teoria é satisfeita. Mais especificamente, um modelo, para Suppes, é uma estrutura conjuntista [set-theoretical structure] consistindo de um conjunto de objetos juntamente com as propriedades, relações e funções definidas sobre o conjunto de objetos. O T

Giere - Usando Modelos Para Representar Realidade

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  • R. N. Giere Usando modelos para representar a realidade Trad. V. A. Bezerra

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    Usando modelos para representar a realidadeRonald N. Giere

    Departamento de FilosofiaCentro de Filosofia da Cincia

    Universidade de Minnesota

    Publicado originalmente em: MAGNANI, L.; NERSESSIAN, N. J. & THAGARD, P. (eds.). Model-BasedReasoning in Scientific Discovery, pp. 41-57. New York: Kluwer / Plenum, 1999.

    Traduo: Prof. Valter A. BezerraUniversidade Federal do ABC

    1. Introduo

    em havido recentemente um crescente interesse acerca do papel dos modelos na cincia,e o simpsio de Pavia sobre o raciocnio baseado em modelos [model-based reasoning] uma manifestao diso. Uma resultado dessa maior ateno foi uma proliferao de

    pontos de vista sobre o que so os modelos e sobre como eles so utilizados na cincia. Nestaapresentao, irei desenvolver uma interpretao unificada sobre a natureza e o papel dosmodelos na cincia. Nesta interpretao, um lugar central ocupado por uma compreensodas relaes entre os modelos e os outros elementos que fazem parte de uma viso de cincia particularmente as teorias, os dados e as analogias. A minha concluso ser a de que osmodelos desempenham um papel na cincia que muito maior do que costumam afirmar atmesmo os mais ardentes entusiastas dos modelos. Do meu ponto de vista, a modelagem no, de modo algum, um apndice do fazer cientfico, mas sim algo central para se construirdescries cientficas do mundo natural.

    Quando digo que busco uma interpretao da natureza e das funes dos modelos nacincia, admito que outras interpretaes so possveis. No h, na natureza dos modelos,uma essncia nica que possa ser revelada pela anlise filosfica. No obstante, penso queminha interpretao melhor do que algumas outras, e tentarei convenc-los de que esse ocaso.

    2. A teoria de modelos

    A afirmao de que uma compreenso dos modelos central para o entendimento da cinciano algo novo. Quase quarenta anos atrs, Patrick Suppes (1960) publicou um artigo muitocitado com o ttulo: Uma comparao dos significados e usos dos modelos na matemtica enas cincias empricas. A tese daquele artigo era que o significado e o uso dos modelospodem ser interpretados como sendo os mesmos nas cincias empricas e na matemtica (e,particularmente, na lgica matemtica).

    Na poca em que Suppes escreveu seu artigo, a teoria de modelos estavaestreitamente ligada com a lgica. Assim, Suppes escreveu: Uma teoria uma entidadelingstica consistindo de um conjunto de sentenas, e os modelos so entidades no-lingsticas nas quais a teoria satisfeita. Mais especificamente, um modelo, para Suppes, uma estrutura conjuntista [set-theoretical structure] consistindo de um conjunto de objetosjuntamente com as propriedades, relaes e funes definidas sobre o conjunto de objetos. O

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    ponto importante que quando os objetos, propriedades, relaes e funes especficas socoordenados com os termos nos axiomas da teoria, os axiomas resultam todos verdadeiros relativamente, claro, ao nosso entendimento anterior do domnio de objetos considerados.Assim, nessa descrio, um modelo fornece uma interpretao de um conjunto de axiomasno-interpretados. Por essa razo, tais modelos so freqentemente chamados de modelosinterpretativos. Eles tambm poderiam ser chamados de modelos instanciais, uma vez queeles instanciam os axiomas de uma teoria, entendida como consistindo de enunciadoslingsticos (incluindo enunciados matemticos).

    Para os lgicos, a maioria dos modelos considerados consistem em entidadesabstratas, tais como nmeros ou pontos e linhas geomtricas. Em princpio, porm, osobjetos considerados poderiam ser objetos fsicos, tais como a Terra e a Lua. Esta a basepara a afirmao de Suppes de que o conceito de modelo o mesmo na cincia emprica e namatemtica. Mais tarde, irei considerar a questo de se alguma teoria cientfica interessante,reconstruda de maneira apropriada, pode de fato ter modelos fsicos.

    Devo observar que, ao longo dos ltimos quarenta anos, medida que o estudo dosmodelos abstratos passou do territrio dos filsofos e dos lgicos para o dos matemticos, aconexo entre teoria de modelos e lgica foi bastante atenuada. Tratados atuais de teoria demodelos, como o de Hodges (1993), se concentram diretamente naquilo que se denominaestruturas, que so entidades abstratas e no-lingsticas. Por exemplo, os grupos (da teoriade grupos) e os espaos vetoriais so estruturas nesse sentido. Portanto, seria incorretoreferir-se aos modelos da moderna teoria matemtica dos modelos exclusivamente comosendo modelos interpretativos ou instanciais.

    a viso de Suppes, porm, que se tornou e continua sendo uma (seno a) visoortodoxa dos modelos dentro da filosofia da cincia. Quero salientar que a viso de Suppesdos modelos incorpora uma relao bastante especfica entre uma teoria (um conjunto deaxiomas) e um modelo (um conjunto de objetos que satisfazem os axiomas).

    3. Os modelos instanciais e a analogia

    A concepo instancial dos modelos empresta apoio a uma viso bastante especfica sobre anatureza da analogia na cincia. As frmulas lgicas no-interpretadas podem serinterpretadas utilizando-se muitos modelos instanciais diferentes. Esses modelos sero todosisomorfos, isto , haver uma correspondncia um-a-um entre os elementos dos diferentesmodelos. Isso proporciona base para se afirmar que os elementos correspondentes dosmodelos, bem como os prprios modelos, so anlogos. Claro que os modelos em questodevero ser fsicos, e no apenas matemticos.

    Um exemplo clssico de tal analogia aquela que existe entre, por um lado, umcircuito eltrico consistindo de uma bobina de indutncia e um capacitor (um circuito LC) e,por outro lado, um oscilador mecnico, tal como uma mola que balana. Diz-se aqui que abobina de indutncia anloga massa acoplada mola oscilante, enquanto a capacitncia anloga constante elstica da mola. A corrente num ponto qualquer do circuito , ento,anloga posio da massa na mola. Ambas apresentam uma variao senoidal com o tempo.As equaes diferenciais que descrevem tanto a variao da corrente como a variao da

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    posio possuem exatamente a mesma forma abstrata. Essas relaes so mostradas na figura1.

    Figura 1.

    4. Modelos representacionais

    A concepo instancial dos modelos uma concepo bem definida e de considervel valor,particularmente no estudo da lgica formal e dos fundamentos da matemtica. No obstante,a despeito das afirmaes de Suppes, no penso que ela seja a melhor concepo de modelodisponvel para se entender os modelos tais como eles so usados na prtica pelas cinciasempricas. No irei criticar diretamente a concepo instancial dos modelos enquanto meiopara se entender a prtica cientfica. Em vez disso, irei simplesmente indicar as dificuldadesque vejo a partir da minha prpria perspectiva alternativa. Irei chamar a minha viso dosmodelos, em contraste, de viso representacional, pois ela toma os modelos no comoproporcionando primordialmente uma maneira de interpretar os sistemas formais, mas simcomo ferramentas para representar o mundo. Esta no a sua nica funo, porm penso que a principal funo dos modelos utilizados na cincia emprica. Por ora, vamos entoesquecer a lgica e nos concentrar na prtica cientfica na verdade, na prtica de umacincia considerada menor, a cartografia.

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    Mapas. A Figura 2 um mapa turstico padro da regio central de Pavia. Vamosexplorar algumas propriedades relevantes dos mapas. Em primeiro lugar, os mapas no soentidades lingsticas. Eles so objetos fsicos, por exemplo, um pedao de papel com linhastraadas sobre ele. Portanto, estritamente falando, no faz sentido perguntar se um mapa verdadeiro ou falso. Essas designaes so em geral reservadas para entidades lingsticas.Alm do mais, geralmente no se pensa nos mapas como instanciaes de formaslingsticas. claro que se pode criar uma verso de tipo lingstico de qualquer mapa,criando um mapa de bits digitalizado, como foi feito para produzir a Figura 2. Poder-se-iaento dizer que o mapa da Figura 2 uma instanciao de um longo cdigo binrio no-interpretado. Porm essa seria uma maneira extrema de resguardar uma concepo dos mapascomo modelos instanciais. Tal interpretao no desempenha absolutamente nenhum papelpara se compreender a natureza e a funo dos mapas, que j estavam bem estabelecidasmuito antes que algum tivesse a idia de um mapa de bits. No entanto, mesmo sem serentidades lingsticas nem instanciaes de entidades lingsticas, os mapas sorepresentacionais. Exatamente de que maneira eles so representacionais uma outraquesto, que logo irei abordar. Antes, vamos considerar mais algumas caractersticas dosmapas.

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    Figura 2.1

    Os mapas so parciais. Somente so representados alguns aspectos do territrio emquesto. Por exemplo, o mapa da Figura 2 representa muito poucos edifcios. Alm disso,mesmo os aspectos indicados no so especificados por completo, como por exemplo a alturado Pallazzo Universit. Os mapas possuem uma preciso limitada com respeito aos aspectosincludos. Por exemplo, as distncias relativas no mapa no iro corresponder exatamente sdistncias relativas na superfcie. No poderia ser de outro modo. Nenhum mapa real poderiaindicar literalmente todas as caractersticas de um territrio com perfeita preciso. No limite,o nico mapa perfeito de um territrio seria o prprio territrio, que j no seria mais ummapa. Aqui se pode lembrar o conto de Borges (1954) no qual os cartgrafos de um pasimaginrio resolvem construir um mapa de sua terra numa escala de um para um. Quandoeles completam o trabalho, o povo daquela terra comea a se mudar para o novo territrio.2

    1 Este mapa de Pavia no exatamente o mesmo que consta do artigo, devido a dificulades na obteno daimagem original. (N. do T.)2 A referncia feita por Giere ao livro de Borges Historia universal de la infamia, de 1954, porm no alique se encontra tal parbola, e sim em um pequeno texto intitulado Del rigor en la ciencia, que faz parte do

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    Em contraste, o mapa da Figura 2 um modelo representacional da cidade de Pavia. Elerepresenta Pavia de uma maneira peculiar.

    Voltemos agora questo: como esse mapa representa Pavia? A resposta : sendoespacialmente similar a aspectos de Pavia. Por exemplo, as linhas no mapa possuemorientaes espaciais similares a algumas ruas de Pavia. Ao usar um mapa estamos utilizandocaractersticas de uma superfcie bidimensional (o mapa) para representar caractersticas deoutra superfcie bidimensional (a superfcie da cidade). Por exemplo, algumas linhas no maparepresentam ruas da cidade. Generalizando: um mapa representa a regio mapeada em virtudede similaridades espaciais compartilhadas entre o mapa e a regio mapeada. Aqui, um objeto(o mapa) usado para representar outro objeto (uma regio geogrfica). Essa noo explicitamente oposta quela de um enunciado que representa um estado de coisas.

    Semelhana versus isomorfismo. Os filsofos tendem a desconfiar dos apelos similaridade. Uma objeo padro que, uma vez que qualquer coisa semelhante aqualquer outra coisa em um aspecto ou outro, as assertivas de similaridade so vazias. Aqui,algum poderia ficar tentado a invocar o isomorfismo, afirmando que o mapa isomorfo, ouparcialmente isomorfo, a certos aspectos da cidade. Porm isso no pode estar correto.Nenhum mapa razoavelmente detalhado poderia ser preciso o suficiente a ponto de apresentarum isomorfismo literal com as caractersticas identificveis de uma superfcie geogrficareal. Assim, o melhor que se pode fazer invocar algo como um isomorfismo aproximado.Na falta de uma descrio do que poderia significar aproximado neste contexto, umdiscurso como esse tem apenas a aparncia de clareza, no oferecendo nenhuma vantagemconceitual real em relao ao discurso sobre a similaridade. E pode esconder problemas queprecisariam ser enfrentados de frente.

    A propsito, aqui est a base para se questionar a idia de que pode haver de fatoinstanciaes fsicas dos enunciados de uma teoria formulada lingisticamente. Parece bemfcil imaginar os objetos de um modelo instancial como sendo objetos fsicos, tais como aTerra, a Lua ou os planetas. Porm, to logo se acrescenta funes quantitativas, tais como amassa da Terra ou a distncia entre a Terra e a Lua, corre-se um grande risco de se terenunciados falsos vale dizer, ficar sem modelo nenhum.

    Pode-se dar conta das acusaes de vacuidade com relao s assertivas desimilaridade, especificando-se: (1) os aspectos nos quais o mapa dito similar regiomapeada, e (2) o grau de similaridade com relao a esses aspectos. Assim, um mapa poderiaser muito preciso com respeito s distncias lineares relativas, mas conter muito poucainformao acerca das elevaes relativas. Aqui, um ponto importante de carter geral queos aspectos e os graus de similaridade devem ser especificados de fora, por asim dizer. Elesno so intrnsecos a nenhum mapa ou regio geogrfica. Assim, os mapas necessariamenterefletem os interesses dos fazedores e dos usurios de mapas. Os mapas so relativos ainteresses [interest relative], e o so necessariamente.

    Os filsofos no apenas desconfiam do conceito de similaridade, mas tambmcostumam afirmar que no h como dar uma descrio geral satisfatria da noo desimilaridade. Porm no h necessidade de se buscar uma descrio geral da similaridadeentre um modelo e aquilo que modelado. A similaridade dependente do contexto [context livro El Hacedor, de 1960, includo nas Obras Completas, Volume 2 (1952-1972), 12a. ed. (Buenos Aires:Emec, 2002), p. 225. (N. do T.)

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    dependent]. Em qualquer contexto particular, pode-se especificar o que se diz ser similar aoqu, de que maneiras, e em que graus. claro que no existe uma especificao nica. Hmuitas especificaes possveis, dependendo dos interesses particulares de que faz amodelagem.

    Esses pontos podem ser reforados considerando-se um tipo um pouco mais abstratode mapa, um mapa do metr, tal como apresentado na Figura 3. Aqui, as localizaesespaciais so indicadas apenas de modo muito esquemtico. A informao importante decarter topolgico. Obtm-se a ordem das estaes nas linhas individuais, bem comoindicaes sobre onde duas linhas se encontram e, portanto, onde so possveis astransferncias de uma linha para outra. Assim, as similaridades importantes so aquelas entreessas caractersticas topolgicas do mapa e do sistema de metr como um todo.

    Figura 3.3

    3 Figura adaptada ao caso local sem perda de generalidade , em virtude de dificuldades na obteno dafigura original. (N. do T.)

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    5. Outros modelos materiais

    Diagramas. Existem muitos tipos de diagramas. Vou limitar meus comentrios aos desenhosbidimensionais com linhas, tais como o diagrama de circuito mostrado na Figura 4. Asemelhana entre os mapas e os diagramas bvia. Poder-se-ia chamar isto de um mapa docircuito eltrico, que mostra os caminhos que a eletricidade pode seguir. Desejo afirmar aquique o diagrama um modelo representacional do circuito. Novamente temos uma coisa odiagrama no papel sendo usado para representar outra coisa um circuito eltrico.

    Figura 4.

    Neste diagrama, as posies espaciais dos fios no so importantes. No precisa haver umasimilaridade estrita entre as posies relativas dos fios no diagrama e no circuito fsico. O queimporta apenas o que est conectado a qu. Assim, o que est sendo modelado so asconexes, no as posies espaciais. As conexes so mais abstratas do que as posies. Asposies das linhas representando fios no diagrama devem ser organizadas de tal forma atornar fcil para o olho e o crebro humanos perceber as conexes. A maneira pela qual afiao entre os componentes efetivamente feita uma questo de convenincia ou deeficincia no processo fsico de fiao.

    Modelos em escala. Existem muitos tipos de modelos em escala, desde maquetes de casas atmodelos do sistema solar.Um exemplo cannico no sculo XX o modelo tridimensional emescala que Jim Watson construiu durante o processo de descoberta da estrutura de duplahlice das molculas de DNA. Esse modelo em escala era um modelo representacional dasmolculas de DNA. Era representacional em virtude das similaridades espaciais e estruturais

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    entre o modelo em escala e as molculas reais de DNA. O que se afirmava era que os paresde bases do DNA estavam dispostos em uma estrutura em hlice similar aos pedaos dearame e papelo do modelo em escala de Watson. Temos aqui, novamente, um objeto fsicosendo usado para representar outros objetos fsicos.

    6. Modelos abstratos

    Considere uma relao linear simples entre duas variveis x e y, expressa pela equao:

    y = ax + b. (1)

    Esta equao um objeto lingstico, mas tambm um objeto fsico marcas sobre o papel.Porm a relao descrita algum tipo de objeto abstrato, mais abstrato do que qualquerequao escrita, e que poderia utilizar letras diferentes ou ser escrita de outra forma, talcomo:

    y ax b = 0. (2)

    Para os propsitos da presente exposio, irei tomar a existncia de tais objetos abstratoscomo sendo no-problemtica. Poderamos cham-los de modelos matemticos puros, paradistingui-los daqueles que so, mais comumente, chamados de modelos matemticos, osquais eu denominaria modelos matemticos aplicados. Terei mais a dizer sobre eles embreve.

    Essa relao tambm pode ser apresentada graficamente, como na Figura 5. O quedizer a respeito desse grfico? Eu diria que ele uma contraparte fsica do modelo abstrato damesma relao linear, isto , um modelo fsico de uma relao linear. claro que, comotodos os modelos fsicos, ele imperfeito, e assim, na melhor das hipteses, apenassemelhante ao modelo abstrato.

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    Figura 5.

    Comeando pelo modelo matemtico puro, podemos construir um modelomatemtico aplicado substituindo os seus elementos matemticos por modelos de objetos erelaes reais. Por exemplo, podemos criar um modelo geral no qual a varivel y a distnciaa partir de uma origem fixada, x o tempo t a partir de um instante inicial arbitrrio (quepode ser zero), a a velocidade v do ponto mvel, e b a distncia inicial d0 do ponto mvel origem.

    Podemos ento criar um modelo ainda mais especfico, digamos, de um automvelafastando-se em linha reta de um cruzamento, a uma velocidade v, tendo partido, no instantezero, de uma distncia d0 dele. Estamos falando, aqui, de modelos de um automvel e de umcruzamento. No modelo, o automvel viaja numa linha perfeitamente reta a uma velocidadeperfeitamente constante. A sua distncia a partir do cruzamento idealizado, num instantequalquer, dada ento pela equao:

    d(t) = vt + d0. (3)

    Pode-se dizer que, no modelo, essa equao verdadeira. O que no se pode dizer que aequao verdadeira com respeito posio de um automvel real. Nenhum automvel realconsegue manter uma velocidade perfeitamente constante em uma linha perfeitamente reta. Aquesto, como sempre, o quo similar a situao real em relao ao modelo da situao.

    Neste ponto algum poderia objetar que estou criando modelos alm do necessrio.Deve-se julgar esta objeo luz da maneira tradicional de lidar com o fato inegvel de quenenhum objeto real satisfaz, de forma exata, qualquer relao matemtica simples. A maneiratradicional introduzir margens de erro na equao. Assim, a equao (3) se torna:

    (d dd) = (v vv) (t tt) + (d0 dd0), (4)

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    e esta equao bem pode ser verdadeira em relao ao automvel real. Desta maneiraconsegue-se preservar a idia de que a representao na cincia deve ser compreendidaunicamente em termos da verdade dos enunciados.

    Conquanto seja tecnicamente correta, esta no necessariamente a melhor maneira deinterpretar o uso efetivo dos modelos matemticos nas cincias. As margens de erroraramente aparecem nas descries ou nos clculos antes de se chegar ao ponto de compararas previses tericas com as medies efetivamente levadas a cabo. Tal prtica emprestaforte apoio se para se interpretar as equaes originais, sem as margens de erro explcitas,como referindo-se no s coisas reais, mas sim aos modelos abstratos, em relao aos quaiselas so verdadeiras por definio. Quando chega o momento de comparar o modelo abstratocom a realidade, os deltas podem ser entendidos como especificando o grau de similaridade(esperado ou efetivo) entre o modelo abstrato e o sistema real.

    Sob esse ponto de vista, a modelagem matemtica trata de construir um modeloabstrato e idealizado que pode ento ser comparado, em termos de seu grau de similiaridade,com o sistema real. A tendncia a identificar o modelo com as equaes usadas pera defini-lo vista, ento, como um resqucio de uma viso excessivamente positivista de cincia queprocurava evitar as entidades abstratas e identificava as estruturas subjacentes com as suasmanifestaes observveis, como, por exemplo: mente com comportamento, probabilidadecom freqncia relativa, e teorias com suas formulaes lingsticas.

    [As sees 7 Hypotheses, 8 Theoretical models, 9 Mathematicalmodeling, e 10 Models and theories,4 ainda sero traduzidas.]

    11. Modelos e dados5

    Dois anos depois de publicar seu artigo sobre o significado dos modelos na cincia emprica,Suppes publicou um artigo igualmente influente intitulado Modelos de dados (1962). Umamensagem central desse artigo era que os modelos de nvel mais alto no so comparadosdiretamente com os dados, mas sim com modelos de dados que esto mais abaixo nahierarquia de modelos. Um ponto semelhante foi destacado recentemente por JamesWoodward (1989), que insiste que aquilo que as teorias explicam, aquilo que usado paratestar as teorias, no so os dados, mas sim os fenmenos. E os fenmenos so construdos apartir dos dados. As tcnicas estatsticas, por exemplo, esto entre os meios bsicos para seconstruir modelos de dados a partir dos dados.

    Sob esse ponto de vista, quando se testa o ajuste de um modelo com o mundo, no secompara aquele modelo com os dados, mas sim com outro modelo, um modelo dos dados.Assim, a cadeia de raciocnio vai de um modelo de alto nvel, no para as predies acercados dados, mas sim para as predies acerca de um modelo de dados possveis. Os dadosreais so processados de vrias formas, de modo a se ajustar a um modelo dos dados. estemodelo (e no os prprios dados) que usado para se julgar a similaridade entre o modelo denvel mais alto e o mundo. No meio, como Suppes sempre insistiu, deve haver um modelo do 4 Numerada como Seo 9 no original em ingls. (N. do T.)5 Seo numerada como 10 no texto original. (N. do T.)

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    experimento. Na Figura 7 apresenta-se uma verso da hierarquia de modelos de Suppes. Dealto a baixo, o que h so, quase exclusivamente, apenas modelos.6

    Figura 7.

    [As sees 12 Models and analogies, e 13 Conclusion,7 ainda serotraduzidas.]

    Referncias

    BORGES, J. L. [1954]. Historia universal de la infamia. Buenos Aires: Emec.GIERE, R. N. [1988]. Explaining Science: A Cognitive Approach. Chicago: University of

    Chicago Press.HODGES, W. [1993]. Model Theory. Cambridge: Cambridge University Press.MORGAN, M. & MORRISON, M. [no prelo]. Models as Mediators. Cambridge: Cambridge

    University Press.8SUPPES, P. [1960]. A comparison of the meanings and uses of models in mathematics and

    the empirical sciences. In: SUPPES, P. (ed.). Studies in the Methodology andFoundations of Science. Dordrecht: D. Reidel, 1969.9

    6 Em ingls: It is models almost all the way down. (N. do T.)7 Sees numeradas respectivamente como 11 e 12 no original. (N. do T.)8 Desde a redao do presente ensaio, o livro Models as Mediators: Perspectives on Natural and Social Science,organizado por Mary S. Morgan e Margaret Morrison, foi publicado em 1999 pela Cambridge University Press.ISBN: 0521655714 (capa mole), 0521650976 (capa dura). (N. do T.)9 Os artigos publicados por Patrick Suppes esto disponveis online no site da Universidade de Stanford. Oendereo : http://suppes-corpus.stanford.edu (Disponibilidade confirmada at a data 02/05/2008.) (N. do T.)

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    SUPPES, P. [1962]. Models of data. In: NAGEL, E., SUPPES, P. & TARSKI, A. (eds.).Logic, Methodology and Philosophy of Science: Proceedings of the 1960International Congress, pp. 252-261. Stanford, CA: Stanford University Press.10

    WOODWARD, J. [1989]. Data and phenomena. Synthese, v. 79, pp. 393-472.

    10 Ver nota anterior. (N. do T.)