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01/04/2015 Agamben: O fascínio discreto de Pôncio Pilatos | Blog da Boitempo http://blogdaboitempo.com.br/2014/12/08/agambenofasciniodiscretodeponciopilatos/ 1/5 Agamben: O fascínio discreto de Pôncio Pilatos Publicado em 08/12/2014 | Deixe um comentário Por Giorgio Agamben . Publicamos abaixo o texto que Giorgio Agamben preparou para a conferência de lançamento de seu livro Pilatos e Jesus . O contexto foi o do seminário “Torino Spiritualitá”, que no ano passado teve como tema “O valor da escolha”. *** Por que Pilatos? Por que esse homem, o prefeito da Judeia entre os anos 26 e 36, se impôs com tanta urgência à minha atenção, quase me obrigando a refletir e a escrever sobre ele, sem me dar descanso, até que, interrompendo a escrita de uma obra em andamento, levei a termo, em três meses frenéticos, o livreto sobre o qual vim falar a vocês? Talvez com a mesma força ele se impôs a Bulgakov, forçandoo a inserir na sua obraprima, sem razão

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Agamben: O fascínio discreto de Pôncio PilatosPublicado em 08/12/2014 | Deixe um comentário

Por Giorgio Agamben.

Publicamos abaixo o texto que Giorgio Agamben preparou para a conferência de lançamento de seulivro Pilatos e Jesus. O contexto foi o do seminário “Torino Spiritualitá”, que no ano passado teve comotema “O valor da escolha”.

***

Por que Pilatos? Por que esse homem, o prefeito da Judeia entre os anos 26 e 36, se impôs com tantaurgência à minha atenção, quase me obrigando a refletir e a escrever sobre ele, sem me dar descanso, atéque, interrompendo a escrita de uma obra em andamento, levei a termo, em três meses frenéticos, olivreto sobre o qual vim falar a vocês?

Talvez com a mesma força ele se impôs a Bulgakov, forçando­o a inserir na sua obra­prima, sem razão

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aparente, o estupendo capítulo sobre Pôncio Pilatos, que não é Bulgakov, mas o próprio Satanás a narrar.Certamente, o seu nome, Pôncio Pilatos (talvez o homem com a lança, pila, ou, mais provavelmente, como barretinho em formato de cone que os romanos chamavam de pilleus) é o único nome, além do de Jesuse de Maria, que aparece no credo em que os cristãos compendiam, há dois milênios, a sua fé: “padeceu sobPôncio Pilatos”.

Por que Pilatos? Para provar, disse­se com razão, o caráter histórico da paixão de Jesus, que ocorreunaquele certo dia, sob Pôncio Pilatos, justamente. Mas por que nomear justamente ele, um obscurovigário e não, segundo o costume romano, o imperador Tibério? Porque, se responderá, ele não é somenteum nome, é um personagem de carne e osso, talvez o único verdadeiro personagem dos Evangelhos. Osoutros ou são figuras já de algum modo sacras, como João Batista e os Apóstolos, ou saem apenas porum momento da multidão anônima que circunda Jesus, para servir de exemplo, como o bom samaritano,ou da profecia, como Lázaro, que ressurge da morte.

Mas, na narrativa dos Evangelhos e principalmente em João, ele, Pilatos, é algo menos e, ao mesmotempo, muito mais: um homem do qual conhecemos as hesitações, o medo, o ressentimento, o sarcasmo,as suscetibilidades, a hipocrisia (como quando se lava as mãos para se purificar do sangue de um justo).

É, enfim, o autor de frases memoráveis, como a famigerada réplica a Jesus que quer testemunhar averdade: “O que é a verdade?”. Ou como o lema com o qual silencia os judeus que lhe pedem para mudar ainscrição sobre a cruz: “O que escrevi, escrevi”. É ele, por fim, que, pouco antes de entregar Jesus aosuplício, pronuncia as palavras fatídicas: “Ecce homo, eis o homem!”.

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Ecce Homo (1570­1575), de Ticiano Vecellio

As razões pelo interesse certamente não faltavam, se Nietzsche pôde escrever que Pilatos “é a única figurados Evangelhos que merece respeito”. No entanto, não era isso que me levava a reler os textos, a espiarcada gesto seu, a pesar cada palavra sua. Parecia­me, de fato, que no encontro (fugaz: durou cerca de seishoras, desde o início da manhã até a hora sexta) entre Pilatos e Jesus estava em questão um eventoenorme e inédito, que naquelas seis horas, para além do drama da paixão e da redenção, sobre o qualtanto se refletiu e não se deixa de refletir, talvez tenha se consumado também outro evento, não menosdecisivo, e que, para mim, se tratava de entender precisamente isso.

O que acontece entre esses dois homens que estão um na frente do outro e se falam no pretório deJerusalém? Um, o vigário de César, que o quadro de Ticiano no museu de St. Louis mostra ricamentevestido, com a cabeça coberta por um chapéu cravejado de pedras preciosas e com as mãos aneladas, estáinvestido de todos os poderes mundanos (“Tu não sabes”, diz a Jesus, “que tenho o poder de te libertar ede te crucificar?”), o outro inerme, que Ticiano retrata nu e com as mãos amarradas e que, mesmo assim,declara ao prefeito: “O meu reino não é deste mundo”.

Quando Jesus é levado diante de Pilatos, já foi dito, dois mundos estão imediata e irreconciliavelmentede frente, o dos fatos e o da verdade. Mas não é suficiente: nesse pretório de província, cujo improvávellocal os arqueólogos acreditaram ter identificado, quem se enfrenta não são somente os fatos e a verdade:aqui, como nunca em outro lugar na história do mundo, a eternidade cruzou a história em um pontoexemplar, o temporal foi atravessado pelo eterno.

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Importava­me entender isso, esse grito e essa recíproca perfuração entre os dois mundos era o quebra­cabeça que eu senti que devia resolver.

Mas a esse enigma logo se sobrepunha outro, ainda mais tenaz, mais obscuro, e, nele, o próprio Pilatosera o elemento decisivo, em todos os sentidos. Por que o cruzamento entre os dois mundos, o humano e odivino, o histórico e o que não tem história, tem a forma de um processo?

Dei­me conta, lentamente, mas com clareza cada vez mais crescente, que esse, e não outro, era o problemacom o qual eu tinha que me deparar, com o qual, “no pavimento de pedra que em hebraico se diz Gabatá”,tiveram que se deparar, em última análise, cada um a seu modo, tanto Pilatos, o juiz, quanto Jesus, oacusado.

O encontro entre o divino e o humano tem a forma de um processo, de uma krisis (krisis em gregosignifica o juízo em um processo). Mas justamente aqui as coisas se complicavam de modo inextrincável.Porque, enquanto eu analisava o texto do Evangelho de João, tornava­se cada vez mais evidente paramim que, no término da sexta hora, o juiz não tinha pronunciado um juízo, tinha simplesmente“entregue” Jesus – assim dizem concordemente os evangelistas – aos sinedritas e aos carnífices. Durantetoda a duração do processo, Pilatos, aliás, só tinha tergiversado, tentando primeiro se declararincompetente e remeter o juízo a Herodes, propondo depois uma anistia para a Páscoa, finalmentefazendo com que o acusado fosse flagelado para isentá­lo da acusação maior.

Mas quando todo expediente, toda tergiversação resultara vã, ele não pronuncia o juízo, limita­se a“entregar” Jesus. Houve um processo – ou, ao menos, um simulacro de processo: mas ele não concluiucom um juízo. Ainda mais enigmático se tornava o meu problema. O que é, de fato, um processo semjuízo? E o que é uma pena – neste caso, a crucificação – que não deriva de um juízo?

Pilatos, o obscuro procurador da Judeia, que devia agir como juiz em um processo, se recusa a julgar oacusado; Jesus, cujo reino não é deste mundo, aceita se submeter ao juízo de um juiz, Pilatos, que serecusa a julgá­lo.

* Publicado originalmente em italiano no jornal La Stampa, 25.09.2013. A tradução é de MoisésSbardelotto, para o IHU­Unisinos.

***

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Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. Considerado um dos principais intelectuais de suageração, deu cursos em várias universidades europeias e norte­americanas, recusando­se a prosseguirlecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Responsávelpela edição italiana das obras de Walter Benjamin, é autor, entre outros, de Estado de exceção(2005), Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008), O reino e a glória (2011), Opusdei (2013), Altíssima pobreza (2014) e o mais novo Pilatos e Jesus. Colabora com o Blog da Boitempo

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