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GÊNERO E SEXUALIDADE NAS BRINCADEIRAS DAS CRIANÇAS: PESQUISAS DE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Míria Izabel Campos Universidade Federal da Grande Dourados 204 GT 3 - Instituições, culturas e práticas escolares Resumo: O artigo traz resultados de pesquisas realizadas nos anos 2012 e 2013, em três instituições públicas de Educação Infantil, dos municípios de Dourados e Maracaju - MS. Nelas buscou-se identificar, compreender e refletir acerca das relações de gênero e sexualidade presentes nas brincadeiras das crianças de 3 a 4 anos, a partir da observação de práticas de professoras/es e demais adultos envolvidos no cotidiano das crianças. Partiu-se da premissa de que meninas e meninos não têm comportamentos pré-definidos para cada um dos gêneros, não se relacionam à priori de forma sexista e nem possuem concepções naturais do que é ser homem e ser mulher. Suas relações acontecem subjetivadas por construções oriundas das relações desenvolvidas nos seus diversos espaços de convivência, dentre eles as instituições de atendimento à primeira infância. A metodologia se constituiu de pesquisas bibliográficas sobre Educação Infantil, brincadeiras e suas interfaces com as temáticas de gênero e sexualidade. Nas pesquisas de campo, de caráter etnográfico, foram realizadas observações sistemáticas, com registros em diários de campo. As evidências apontaram que as crianças constroem e reconstroem maneiras de sociabilidade ao conviver com um grupo diferente daquele no qual estão habituadas. Nas brincadeiras apresentaram formas de convívio com separações e cobranças entre elas mesmas e também por parte de professoras/es e outros adultos que as educavam e cuidavam. Meninas e meninos eram afastados em alguns momentos e suas brincadeiras eram classificadas, mas aconteceram situações nas quais brincavam e se relacionavam sem nenhuma distinção de gênero. Evidenciou-se que os adultos envolvidos interagiam de forma a modificar as ações das crianças, demonstrando considerá- las inadequadas, o que indicou uma provável lacuna na formação dos/as profissionais, fato que pode ter gerado ausência de debates e discussões das temáticas da pesquisa, com consequentes dificuldades para ressignificar conceitos e concepções. Palavras-chave: Instituições. Práticas escolares. Gênero e sexualidade. 204 Mestre em Educação. Atualmente é doutoranda do Programa de Programa de Pós- graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFGD. [email protected] 582 III EHECO – CatalãoGO, Agosto de 2015

GÊNERO E SEXUALIDADE NAS BRINCADEIRAS … iniciou-se com pesquisas bibliográficas em estudiosos da Educação Infantil, brincadeiras e suas interfaces com as temáticas de gênero

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GÊNERO E SEXUALIDADE NAS BRINCADEIRAS DAS CRIANÇAS: PESQUISASDE PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

Míria Izabel CamposUniversidade Federal da Grande Dourados204

GT 3 - Instituições, culturas e práticas escolares

Resumo: O artigo traz resultados de pesquisas realizadas nos anos 2012 e 2013, em trêsinstituições públicas de Educação Infantil, dos municípios de Dourados e Maracaju - MS.Nelas buscou-se identificar, compreender e refletir acerca das relações de gênero esexualidade presentes nas brincadeiras das crianças de 3 a 4 anos, a partir da observação depráticas de professoras/es e demais adultos envolvidos no cotidiano das crianças. Partiu-se dapremissa de que meninas e meninos não têm comportamentos pré-definidos para cada um dosgêneros, não se relacionam à priori de forma sexista e nem possuem concepções naturais doque é ser homem e ser mulher. Suas relações acontecem subjetivadas por construçõesoriundas das relações desenvolvidas nos seus diversos espaços de convivência, dentre eles asinstituições de atendimento à primeira infância. A metodologia se constituiu de pesquisasbibliográficas sobre Educação Infantil, brincadeiras e suas interfaces com as temáticas degênero e sexualidade. Nas pesquisas de campo, de caráter etnográfico, foram realizadasobservações sistemáticas, com registros em diários de campo. As evidências apontaram que ascrianças constroem e reconstroem maneiras de sociabilidade ao conviver com um grupodiferente daquele no qual estão habituadas. Nas brincadeiras apresentaram formas deconvívio com separações e cobranças entre elas mesmas e também por parte de professoras/ese outros adultos que as educavam e cuidavam. Meninas e meninos eram afastados em algunsmomentos e suas brincadeiras eram classificadas, mas aconteceram situações nas quaisbrincavam e se relacionavam sem nenhuma distinção de gênero. Evidenciou-se que os adultosenvolvidos interagiam de forma a modificar as ações das crianças, demonstrando considerá-las inadequadas, o que indicou uma provável lacuna na formação dos/as profissionais, fatoque pode ter gerado ausência de debates e discussões das temáticas da pesquisa, comconsequentes dificuldades para ressignificar conceitos e concepções.

Palavras-chave: Instituições. Práticas escolares. Gênero e sexualidade.

204 Mestre em Educação. Atualmente é doutoranda do Programa de Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFGD. [email protected]

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Introdução: a pesquisa, seus contornos e entornos

O artigo apresenta resultados de pesquisas que realizamos em três instituições públicas

de Educação Infantil, localizadas nos municípios de Dourados e Maracaju, ambos

pertencentes ao estado de Mato Grosso do Sul. Os estudos desenvolvidos na licenciatura em

Pedagogia se efetivaram nos anos de 2012 e 2013, respectivamente, e trata-se de um Trabalho

de Graduação (TG) da Universidade Federal da Grande Dourados e dois Trabalhos de

Conclusão de Curso (TCC) da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul205.

Com as investigações buscamos identificar, compreender e refletir acerca das relações

de gênero e sexualidade presentes nas brincadeiras de três turmas de crianças de 3 a 4 anos, a

partir da observação de práticas de professoras/es e demais adultos envolvidos no cotidiano

das crianças. Nossa premissa partiu do pressuposto de que meninas e meninos não têm

comportamentos pré-definidos para cada um dos gêneros, não se relacionam à priori de forma

sexista e nem possuem concepções naturais do que é ser homem e ser mulher. Suas relações

acontecem subjetivadas por construções oriundas das relações desenvolvidas nos seus

diversos espaços de convivência, dentre eles as instituições de atendimento à primeira

infância.

As crianças, sujeitos da pesquisa, foram observadas em atividades dirigidas pelos/as

professores/as e outros/as profissionais responsáveis por seu cuidado e educação, bem quando

podiam desenvolver brincadeiras de forma livre, sem a intervenção direta de adultos. A

205 _“Brincadeiras nas instituições de Educação Infantil: uma reflexão acerca das relações de gênero esexualidade - Dourados/MS” de Glauce Hoffmeister dos Santos e Míria Izabel Campos.

_“Gênero nas interações de crianças e adultos: estudo em um Centro Integrado de Educação Infantil -Maracaju/MS” de Joice Miriam Gassen de Bona e Míria Izabel Campos.

_“Relações de gênero nas brincadeiras infantis: um estudo em instituição pública - Maracaju/MS” de Rosimeirede Souza Limonge e Míria Izabel Campos.

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metodologia iniciou-se com pesquisas bibliográficas em estudiosos da Educação Infantil,

brincadeiras e suas interfaces com as temáticas de gênero e sexualidade. As pesquisas de

campo, com características etnográficas, foram realizadas com observações sistemáticas nas

turmas de crianças da referida idade e todas as observações foram registradas em diários de

campo.

Em Dourados, as instituições que atendem as crianças da faixa etária de 03 a 4 anos

são denominadas Centros de Educação Infantil Municipal (CEIMs) e Centros de Educação

Infantil (CEIs), que são as instituições conveniadas com o município. A cidade está localizada

a sudoeste do estado de Mato Grosso do Sul, região Centro-Oeste do Brasil e tem uma

extensão de 4.086,387 km². O município faz divisa ao Norte com Rio Brilhante, Maracaju,

Douradina e Itaporã; ao Sul com Fátima do Sul, Caarapó, Laguna Carapã e Ponta Porã; ao

Leste com Deodápolis; e a Oeste, com o município de Ponta Porã. Situa-se a 220 km da

capital do estado, Campo Grande, e a 120 Km da fronteira com o Paraguai (DOURADOS,

2014). Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, atualmente

Dourados possui uma população estimada em 207.498 habitantes (IBGE, 2013).

Centros Integrados de Educação Infantil (CIEIs) são os nomes dados às instituições da

cidade de Maracaju, que é um município com 5.299,184 km² de extensão. Também está

situado a sudoeste do estado, fazendo divisa com os municípios de Sidrolândia, Dois Irmãos

do Buriti, Anastácio, Nioaque, Guia Lopes da Laguna, Ponta Porã, Dourados, Itaporã e Rio

Brilhante. A distância da capital Campo Grande é de 230 Km via Rio Brilhante e 154 Km via

Sidrolândia (MARACAJU, 2014). De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e

Estatísticas, atualmente o município possui uma população estimada em 41.099 habitantes

(IBGE, 2013).

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Referenciais teóricos: ponderações acerca de Educação Infantil, brincadeiras, gênero esexualidade

No nosso país, a história do atendimento à criança pequena tem sido marcada por

vários acontecimentos. São muitas idas e vindas, avanços e recuos, que perpassam até hoje a

trajetória das diferentes instituições que se responsabilizam pelo atendimento coletivo das

crianças no Brasil. Primeiramente surgiram os asilos, depois foram os jardins de infância e, já

mais tarde, as creches e pré-escolas, que agora denominamos Educação Infantil.

Principalmente, nos anos 1970 e 1980, assistimos a movimentos de mulheres se somarem a

outras mobilizações sociais, pois elas começaram a entrar no mercado de trabalho e

precisavam de um lugar para deixar seus filhos (FARIAS, 2006).

Muitas foram as lutas até conseguirmos que os espaços de acolhimento às crianças

antes voltados, principalmente, a um atendimento assistencialista, passasse a priorizar o

cuidar e educar que são objetivos primordiais e imprescindíveis para a realização de um

trabalho de qualidade com as crianças pequenas, sejam elas de 0 a 3 anos, na Creche, bem

como de 4 e 5 anos, na Pré-Escola, conforme estabelecem as principais Leis e Resoluções do

nosso país (BRASIL, 1996, 2009).

Sobre avanços conquistados, Paim (2004, p.133) ressalta que:

[...] desta forma, esses aportes legais representam grandes desafios no sentido degarantir o acesso a essas instituições e à qualidade do atendimento, principalmentedas crianças de zero a três anos. A garantia desse direito às crianças e às famíliasimplica conceber a creche como uma instituição educativa, responsável pelodesenvolvimento e aprendizagem da criança.

Portanto, registramos que estamos entendendo a Educação Infantil como uma

experiência muito importante na vida das crianças, já que por meio dela elas conhecem

melhor a si mesmas e às outras crianças da mesma idade e das outras idades, ampliando suas

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interações e relações sociais. Por isso, os/as profissionais da área devem planejar seu trabalho

de forma a proporcionar a meninas e meninos uma aprendizagem prazerosa, levando em

consideração que de zero a cinco anos de idade as crianças estão sempre em busca de

conhecer e experimentar novas sensações e desafios.

De acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, Artigo

5º:

A Educação Infantil, primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, às quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos queconstituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam ecuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ouparcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino esubmetidos a controle social (BRASIL, 2009, p. 1).

Nesse contexto, destacamos, as crianças da Educação Infantil estão em uma fase que

necessita ser rica em brincadeiras e interações, pois elas participam com seus/suas

educadores/as, imitando o que eles/elas fazem. Por esse motivo, é importante aproveitar todos

os tempos e espaços para um aprendizado amplo e satisfatório, isto é, possibilitar que meninas

e meninos explorarem diferentes ambientes e materiais, contem suas histórias, falem do que já

conhecem e digam da sua cultura, que são diversas e só irão enriquecer as trocas entre os

grupos.

Como ressalta Finco (2003, p. 89):

[...] a Educação Infantil pode ser o lugar onde as crianças encontrem o espaço paraviver a infância. Não somente uma infância que lhes garanta o direito à brincadeira,mas que lhes possibilite protagonizar seus desejos e suas escolhas; que lhes permitausufruir o direito à diferença e à livre expressão, trazendo novas forças, novas vozese novos desejos.

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Mas, é imprescindível considerar, a criança não nasce sabendo brincar, ela precisa ser

ensinada, estimulada, observada e ter como suporte a pessoa adulta que lhe acompanhe e se

responsabilize pelo seu desenvolvimento integral. Essa afirmativa é confirmada por

Kishimoto, quando explicita que:

A criança não nasce sabendo brincar, ela precisa aprender, por meio das interaçõescom outras crianças e com os adultos. Ela descobre, em contato com objetos ebrinquedos certas formas de uso desses materiais. Observando outras crianças e asintervenções da professora, ela aprende novas brincadeiras e suas regras. Depois queaprende, pode reproduzir ou recriar novas brincadeiras. Assim, ela vai garantindo acirculação e preservação da cultura lúdica (BRASIL, 2012, p.1).

Ressaltamos acerca das brincadeiras, que elas quase sempre acontecem cercadas de

preconceitos em relação a gênero e sexualidade, ou seja, às vezes, meninos e meninas não

podem brincar livremente experimentando todas as possibilidades de aprendizagens e

crescimento.

Quando nos referimos a gênero estamos dizendo de um termo com diversos sentidos.

Gênero pode significar a diferença entre os homens e as mulheres, pode ser usado como

sinônimo de sexo e, também, na referência às diferenças sociais. Como ressalta Martinez

(1997, p. 259):

[...] desde os primeiros dias de vida existem diferenças na forma em que as mãestratam os meninos e as meninas: no trato do corpo, nos objetos para os quaiscanalizam sua atenção (os brinquedos, por exemplo), no tratamento verbal, no tipode atividades que estimulam em cada um deles. O grau de aceitação dentro do grupofamiliar dos modelos socialmente hegemônicos influencia a maior ou menorproximidade ao “feminino” e ao “masculino” que a família impulsionará nascrianças. Quem não reconhece as duas cores azuis e rosa que expressam tão bemestas diferenças antes mesmo da criança nascer desde sua ansiada espera?

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As relações de gênero poderão ser diferentes de acordo com a classe social da pessoa,

com a raça, com a etnia e com a idade. É de acordo com as relações sociais e culturais que

são estabelecidas para as crianças, desde o seu nascimento, que elas vão identificando-se em

um determinado gênero, quando a família, a escola, a igreja e as demais instituições sociais

acabam influenciando nesse processo.

Portanto, para nós, as diferenças entre os diversos gêneros são cultural e socialmente

construídas e podem mudar conforme mudam o lugar, os tempos e as ideias. É importante

explicitar que, nos nossos estudos, gênero não é o mesmo que sexo, gênero é a forma primeira

de dar significado às relações de poder (SCOTT, 1995).

Conforme aponta Finco (2010, p. 122):

[...] meninos e meninas desenvolvem seus comportamentos e potencialidades a fimde corresponder às expectativas de um modo singular e unívoco de masculinidade ede feminilidade em nossa sociedade. Muitas vezes instituições como família, crechese pré-escolas orientam e reforçam habilidades específicas para cada sexo,transmitindo expectativas quanto ao tipo de desempenho intelectual considerado“mais adequado”, manipulando recompensas e sanções sempre que tais expectativassão ou não satisfeitas. Meninas e meninos são educados de modos muito diferentes,sejam irmãos de uma mesma família, sejam alunos sentados na mesma sala, lendo osmesmos livros ou ouvindo a mesma professora.

Ou seja, não importa se os indivíduos são irmãos ou “alunos” de uma mesma sala de

atividades. Quase sempre meninos e meninas são educados de maneiras bem distintas. O que modifica

é a maneira como os educadores e familiares agem com essas crianças.

Reiteradamente, na sociedade em geral, temos visto que desde o nascimento, ou até mesmo

antes dele, já tem início um conflito sobre qual deve ser a cor do quarto, da mobília e das roupas do

bebê. O azul é normalmente escolhido para os meninos e o rosa para as meninas, acompanhando uma

determinação social para cada um dos gêneros. E os conflitos, às vezes, não param por aí, pois ao

chegarem à escola, quando novamente acontece a divisão, começando pelas tradicionais filas, nas

quais meninos são separados de meninas.

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E, acerca da relação professor/a/meninos/meninas, durante a Educação Infantil, na atual

conjuntura, as crianças dificilmente terão contato com educadores homens, uma vez que assistimos a

uma divisão entre o trabalho do homem e o trabalho da mulher. De acordo com Sayão (2005, p. 2):

A polêmica do trabalho docente masculino em creches se inscreve desta maneira porque historicamente, os cuidados, e eu incluo também a educação das crianças pequenas vem sendo, em grande parte das culturas, uma atribuição do universo feminino carregando assim, as marcas culturais da maternagem, ou seja, as marcas culturais do feminino.

Um homem que trabalha, por exemplo, como assistente em Creches e/ou Pré-escolas,

quase sempre é recriminado pela sociedade, mais quando um pai cuida de um/a filho/a

sozinho ele não é recriminado, mais sim elogiado e até mesmo chamado de herói.

Assim, também, ocorre quando um menino brinca de boneca ou usa uma roupa rosa,

às vezes ele sofre discriminações e preconceitos, porque a sociedade determina que meninos

devam brincar de carrinho e vestir azul e meninas brincar de boneca e vestir rosa. Ou seja,

assistimos a uma vigilância quanto à orientação sexual de meninas e meninos. Por esse

motivo, ao ver ou presenciar um determinado fato, os/as professores/as precisam ter cuidado

ao se posicionarem, porque sem querer eles/as podem repetir o mesmo comportamento da

comunidade, deixando de atuar de forma que a instituição de educação contribua

significativamente para a desconstrução de relações hierárquicas, injustas e discriminatórias.

As brincadeiras das crianças nas Instituições de Educação: construções cotidianas

Por motivos éticos optamos por não revelar os nomes das instituições nas quais

realizamos os estudos, bem como decidimos pela utilização de nomes fictícios para

professores/as, crianças e demais sujeitos envolvidos na pesquisa, preservando assim a

identidade de todos/as.

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Ao adentrarmos no cotidiano da turma no CEIM de Dourados/MS, no início do ano de

2012, pudemos observar a postura da professora Ana com as crianças, quando esta separava

as meninas dos meninos e, em algumas situações, vigiava as atitudes dos pequenos e das

pequenas. As filas de meninas e meninos estavam presentes no dia a dia e em diversos

momentos surgiu a questão de que menino não chora e a menina tem que ser dócil e não pode

bagunçar.

No desenrolar de algumas brincadeiras notamos que também as crianças, às vezes,

separavam as atividades de meninos e meninas. Mas, em outros momentos, brincavam juntas

sem qualquer distinção. Também apresentavam falas sobre o que os meninos e as meninas

podem fazer ou não, como essa situação por nós presenciada:

A professora deu para as crianças massa de modelar, quando brincaram todas juntassem restrição. Vitor fez uma “cobra” e saiu mostrando para as meninas e todas elasgritaram:

-Aii, uma cobra... Ai, ai!

Vitor: - Olha eu pego ela na mão, eu posso! (Diário de Campo, 06/03/2012).

No transcorrer da atividade percebemos que Victor brinca com as meninas sem

separação, mas no momento que ele faz a cobra de massa de modelar, assusta as meninas e

ainda diz que ele pode pegar, mostrando superioridade e fazendo um discurso, provavelmente

aprendido, no qual diferencia ações de meninas e de meninos. Ele fala, com ar superior, que

elas não poderiam pegar o animal, mas que ele como homem poderia tomar tal atitude.

Outros casos ocorreram com a brincadeira livre, como as de fazer comidas, brincar de

casinha, papai e mamãe, que seguindo os padrões esperados e naturalizados seria uma ação de

meninas, mas que no dia a dia da nossa observação se apresentaram de forma diferente:

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As crianças foram ao parque de areia depois que todos arrumaram a sala. Everton eMalu fizeram bolo de areia e brincaram de comidinha. Pedro: - Deixa eu trazer umpeixe para brincar também?

Ele trouxe uma folha de árvore bem grande dizendo que era o peixe e começou abrincadeira de fazer comidas e bolos (Diário de Campo, 06/03/2012).

As crianças brincam em um espaço do CEIM, no qual foi organizado um local comvários brinquedos, uma mini cozinha, ursos, tapetes e o cantinho da leitura. Alice,Ailton, Anny, Sara, Nadir e Pedro brincam no fogão, fazem comidinha. Ailton buscaágua para fazer um “suco”, dão um pouco a cada criança, Sara diz:

-Toma um pouquinho do suco, tá gostoso.

As meninas e os meninos brincam juntos de fazer comida e servir aos colegas (Diáriode Campo, 09/04/2012).

O próximo trecho do diário de campo vai trazer o caso da força esperada dos meninos,

de como resolvem os problemas, e de uma suposta necessidade por parte das meninas de

depender de um homem para resolver os conflitos para elas:

Laisa brinca no escorregador com Nadir, André pega um balde com areia e joga emLaisa, ela chora e reclama para a professora:

- Ele jogou areia em mim, eu vou ficar suja agora!

A professora não fala nada, Laisa vai até Victor:

- Victor o André “bateu” em mim, vai lá brigar com ele?

Victor: - Ta! Pega meu chinelo lá.

Quando a professora interrompe e diz que não é para brigarem (Diário de Campo,20/03/2012).

Alguns comportamentos da professora Ana também nos mostraram uma divisão entre

os gêneros. Percebemos que por mais que ela se atentava, principalmente devido a nossa

presença, acabava determinando o comportamento para meninas e meninos:

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A professora Ana leva uns brinquedos de seus filhos para as crianças brincarem nasala, a maioria dos brinquedos era carrinhos, bolas e super-heróis, Victor diz:

- Olha brinquedos de meninos, e as meninas “tia”, vão brincar com o que?

Professora: - Se os meninos deixarem elas também podem brincar com essesbrinquedos, eu não tinha nada de menina na minha casa, mas semana que vem voutrazer umas maquiagens minhas (Diário de Campo, 27/04/2012).

Como vemos a professora Ana separou e classificou a brincadeira das crianças,

quando disse que as meninas não podiam brincar com as bolas e carrinhos e que ela iria trazer

umas maquiagens para elas.

Reforçando um conceito de que as meninas são frágeis e delicadas temos a seguir o

registro de outra situação observada no cotidiano das crianças:

Elas brincam no pátio antes do almoço, sobem na grade, correm, quando Victor sentaem cima de um balde e diz para todos obedecê-lo. Ana, João, Ailton ficam ao redordele, quando a professora interfere: - Ana sai daí, olha só você de menina daqui apouco alguém te bate e você fica chorando, vem brincar com as meninas aqui queestão quietas! (Diário de Campo, 17/04/2012).

Em outra situação ficou evidente, pela atuação da professora Ana, um aspecto

importante sobre as habilidades das crianças. Foi vivenciada na sala a máxima de que as

meninas fazem desenhos e pintam melhor do que os meninos. A professora teve a seguinte

atitude em relação ao comportamento de duas crianças:

Na atividade de registro a professora separou as crianças em mesas de meninos emeninas, para fazerem uma pintura de um coelho de páscoa. A maioria das crianças jáhavia terminado a pintura e estava brincando com peças de montar, quando Fláviochama Ana e pede para que ela pinte o seu desenho. A professora vê e não fala nada,quando a menina termina e entrega para a professora ela diz: - Que lindo Fábio! Foivocê que pintou?

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Fabio: - É, É .... Foi ela “tia”. Eu não sei pintar e as meninas pintam mais bonito.

Professora: - Há tá, verdade! (Diário de Campo, 16/04/2012).

Em outros momentos de brincadeiras livres as crianças revelaram alguns

comportamentos nos quais aconteceu a distinção entre os gêneros. A turma observada possuía

poucos meninos, mas os que estavam presentes representaram com alguns gestos e atitudes

essa separação, por nós entendidas como construídas fora e também dentro da Instituição:

Rita pegou uma flecha e estava tentando descobrir como brincava. Everton pega obrinquedo dela e diz:

- Esse aqui “é de menino”, você não pode brincar! Me dá aqui!

Rita chora e vai reclamar para a professora, que briga com Everton e o faz devolver aflecha. Dizendo que os brinquedos são para todos (Diário de Campo, 19/03/2012).

As falas e atitudes das crianças durante as brincadeiras demonstraram, em diversos

momentos, que assim como a professora as vigiava, elas também apresentavam atitudes de

vigilância, de cobrança entre o grupo, comportamentos construídos, no nosso entendimento,

não apenas na instituição escolar, mas também modelos vistos em diferentes instâncias

sociais:

Na ida ao parque de areia, a professora distribui os baldes entre as crianças, Alice vaipara a gangorra e chama Aline, Carol chama Bruna e também vão brincar. Anny choraporque ficou sozinha, vai até a gangorra e chama Suzi que não aceita brincar com ela,chama Everton que também não aceita, Anny diz: - Porque ninguém quer brincarcomigo? Eu quero brincar! Porque ninguém quer brincar comigo?. Alice responde: -Porque você sempre chora e fala muito alto (Diário de Campo, 28/03/2012).

No excerto apresentado acima podemos ver a questão da mulher como sexo frágil,

quando as meninas não podem ter comportamentos exagerados, sempre seguindo o padrão de

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meiguice e delicadeza. Também observamos uma atitude de uma das crianças da turma

cobrando de outra criança comportamentos a serem seguidos como certos:

Durante a atividade livre na sala de aula, as meninas se juntam em um canto e brincamde escolinha, Vivian sai de perto das meninas, pega um pouco de massa de modelar ejoga algumas no chão, quando Alice vê e a repreende: - Para com isso menina, vaisujar toda a sala, que coisa feia uma menina de 4 anos fazendo essas coisas, não pode!(Diário de Campo, 26/03/2012).

Em uma atividade livre no pátio da instituição um dos meninos brinca com objetos de

cozinha distraidamente, quando um colega se aproxima e o repreende por aquela brincadeira,

chamando-o para realizar outra atividade:

João brincava no pátio com um fogão. Pegou algumas panelinhas, colocou areiadentro e ficou “cozinhando” sozinho durante um bom tempo, quando Victor chegaperto e diz:

- João você está cozinhando? Isso é coisa de menina, vamos lá jogar bola? (Diário deCampo, 19/03/2012).

Percebemos que Victor apresenta um gosto maior pela atividade de bola e faz com que

o colega também pratique esse esporte, influenciando e dizendo que a brincadeira que estava

realizando não era própria para os meninos.

As crianças, em determinados momentos apresentaram, também, fazeres distintos para

masculinidade e feminilidade. Poderemos ver nas brincadeiras a seguir, além do poder do

homem em relação à mulher, mais um exemplo de que desde muito novas as crianças

representam a diferenciação dos trabalhos dos diferentes gêneros e, ainda, a questão de

subordinação das meninas em relação aos meninos:

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Victor e Rita brincam juntos no parque de areia, sentados no mesmo balanço, quandoVictor diz: -Você vai ser minha namorada, é que eu preciso cuidar de você. Ailton vaiaté lá e empurra Rita, Victor fica muito bravo e bate no colega e diz: - Para! Não podebater nela, ela é “minha”! (Diário de Campo, 20/03/2012).

As crianças saem para o pátio para brincarem, juntos fazem uma casinha e brincam defazer comidinha. Victor se coloca como o pai: - Eu sou o pai e mando aqui!,

Alicia: -E eu sou a mãe, e vou limpar a casa!

Victor: - Ana e João são os filhos e se fizerem bagunça vão apanhar! (Diário deCampo, 23/03/2012).

As meninas são ensinadas e preparadas para ser obedientes, calmas, a ter mais cuidado

com as coisas e percebemos que, quando esse aspecto não é seguido, elas são repreendidas.

Em uma manhã, na Instituição, a professora demonstra no momento da brincadeira que as

meninas deveriam realizar uma atividade mais calma, pois o jogo de futebol dos meninos não

seria apropriado para as mesmas:

As crianças brincam no pátio da instituição, a professora disponibiliza apenas umabola para os meninos, Victor fala que é para chutarem a bola para ele e que ele vaidecidir para quem chutar. As meninas nem falam nada sobre a bola. A professora diz:

- Meninas sentam ali no canto e ficam torcendo pelos meninos, ou vão correr lá dooutro lado!

Algumas meninas saem e as outras ficam sentadas quietas (Diário de Campo,27/03/2012).

Em algumas atitudes e falas da professora da turma, percebemos que ela discrimina as

meninas, as rebaixando. Nas suas falas os meninos sempre possuem um melhor rendimento

em todos os aspectos e quando eles não alcançam esse patamar, as críticas são feitas em

comparação com as meninas, como se a mulher fosse pior.

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Com o término das atividades realizadas pelas crianças, a maioria já havia terminado eEverton ainda estava desenhando, quando a professora o repreende:

- Todo dia Everton você fica por último, nunca faz nada, olha “até” as meninas játerminaram (Diário de Campo, 13/04/2012).

No momento da Educação Física foi possível observarmos que a professora da

atividade não separou as meninas e os meninos, buscou interação entre os mesmos, apoiando

as meninas com a atividade de bola e os meninos na brincadeira de pular corda.

Na aula de Educação Física as crianças vão para o pátio e brincam de corre cutia coma Professora. Sentam no chão, correm, brincam juntos. Na hora de entrar para oalmoço a Professora diz: - Hora do almoço, vamos lavar as mãos e sentar lá na mesa,não precisam fazer filas, só não podem correr (Diário de Campo, 26/04/2012).

Evidenciamos, também, que em outros momentos a professora de Educação Física teve

uma atitude diferente da professora Ana, pois não interferiu em como as crianças iriam para a

mesa, separados ou não por filas distintas e interagiu com todos durante as atividades,

incentivando meninas e meninos a participarem, indistintamente, de todas as brincadeiras.

A partir dessa observação podemos refletir que cada profissional tem seu modo de

trabalhar e tais características possibilitam que diferentes situações sejam vivenciadas pelas

crianças no dia a dia. Nessa perspectiva, precisamos destacar que nas instituições, os/as

profissionais podem contribuir para desconstruir preconceitos ou reproduzi-los.

Passando para os relatos das pesquisas realizadas no ano de 2013, nas instituições de

Maracaju, iniciamos evidenciando as ações da professora Joaquina. Ela é muito atenciosa com

as crianças, está sempre cuidando de todos/as. Trabalha muito a coordenação motora fina,

realizando atividades fotocopiadas. Ocupa-se da disciplina da/na turma e trabalha a

conscientização das crianças em relação à economia de água, a não desperdiçar comida, isto é,

ensina a elas o que é certo e errado, como por exemplo, se as crianças vão tomar água ela está596

III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015

sempre falando para elas colocarem no copo só a quantidade que vão beber, para não

desperdiçar. Observamos que a professora raramente faz uma brincadeira dirigida, com isso as

crianças ficam à vontade para realizar brincadeiras livres, podendo assim se expressar.

Mel está brincando de boneca com Maria. Danilo pega uma boneca e começa abrincar com elas. Maria fala que elas são as mães e ele é o pai. Ele concorda eseguem brincando até que chega a hora de dar banho nas bonecas, Maria fala que opai vai dar banho, Mel responde dizendo que papai não dá banho, quem dá banho é amamãe ou a tia. Maria fala que seu pai dá banho nela, quando sua mãe não pode.Paulo fala que é só sua mãe que dá banho nele. Depois de discutirem Mel fala queela vai dar banho nas bonecas. Paulo então deixa as meninas e vai brincar de montarpeça (Diário de campo, 25/06/2013).

Acerca do tratamento de menino e menina, ela não faz diferença entre os dois. Já no

brincar, às vezes, ela faz diferença, mas na maioria das vezes não interfere. Na hora da fila ela

faz uma só, no momento dos brinquedos, a referida professora faz da seguinte maneira: dá o

balde de bonecas e as pecinhas ou os carrinhos, deixando de maneira bem explicitada que

menino pode sim brincar de boneca e menina pode brincar de carrinho e que isso não vai

alterar o gênero deles. Como afirma Finco (2003, p. 97-98):

Desse modo, ao refletir sobre a utilização dos brinquedos pelas crianças, foi possívelafirmar que as categorizações dos brinquedos são construções criadas por adultos enão têm significado para as crianças nos momentos das brincadeiras. Esse conjuntode construções categorizadas, ou seja, a norma cultural de que existem brinquedoscertos para meninas e outros para meninos, podem estar relacionados à preocupaçãoque se tem com a futura escolha sexual da criança. É importante que se compreendaque o fato de um menino brincar com uma boneca ou de uma menina brincar comcarrinho não significa que eles terão uma orientação homossexual.

No decorrer das observações percebemos que, às vezes, as próprias crianças fazem

separação de brincadeiras e brinquedos e notamos que isso pode ter sido aprendido em casa:

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Pati estava brincando com uma coleguinha de boneca. Breno falou que queriabrincar também. Pati falou que boneca não era pra menino. A professora interferiudizendo que menino também podia brincar de boneca, assim como menina podebrincar de carrinho (Diário de campo, 12/06/2013).

O que evidenciamos é que, provavelmente, ela pode ter trazido essa fala de casa. Pois,

ao longo da observação percebemos que ela também brincava de carrinho, isso significa que

pode ter ouvido a fala e repetiu em sala, sem saber realmente o que estava falando. Sendo

assim, a interferência da professora pode ter sido de grande ajuda, porque assim Pati pôde

entender que Breno não vai de deixar de ser menino só porque brinca de boneca.

Breno estava brincando de casinha com as meninas, quando resolveu pegar umaboneca e começa a ninar a boneca para dormir, João viu e falou que ele era menina,porque estava brincando de boneca. Marcela responde dizendo que não é boneca é afilha deles, e Breno está cuidando do bebê. E continuam brincando (Diário decampo, 02/07/2013).

A professora deu as pecinhas para as crianças brincarem, uma das assistentes fezuma cestinha com as pecinhas para as meninas. Marcela faz de conta que a cestinhaé para carregar o bebê dela. Breno vê a cena e pede para a assistente fazer uma paraele, a assistente então faz e ele pega e coloca uma pecinha dentro da cesta e faz deconta que é o bebê dele. Pati ri e fala que menino não brinca de cestinha. Marcelaresponde dizendo que ele é pai do bebê, então ele pode carregar a cestinha com obebê. E eles continuam passeando com os bebês (Diário de campo, 28/06/2013).

No nosso entendimento, nessa passagem, Marcela poderia estar repetindo o que vê/viu

em casa, em sua família. Às vezes, o fato de ver o pai cuidando de um bebê, fez com que ela

construísse esse aprendizado e, provavelmente pensou, se o pai pode pegar o bebê, então o

coleguinha também pode. E no entender dela não há nada de errado em um menino brincar de

boneca, pois ele está fazendo de conta que é o pai.

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Pati e Maria estavam brincando de salão. Malu é a cliente e vai para cortar o cabelo,Maria faz de conta que cortou o cabelo dela curtinho e Pati fala que ela estáparecendo menino, porque menino que usa cabelo curto. A professora interferedizendo que menina também usa cabelo curto, assim como menino também usacabelo comprido (Diário de campo, 03/07/2013).

Observamos que, assim como Pati e Marcela, algumas das crianças demonstram ter

construído em suas relações fora da instituição uma bagagem acerca das relações de gênero,

que estão estabelecidas entre seus familiares e nos diferentes contextos que frequentam.

Percebemos que esses conceitos influenciam as crianças e, nas instituições de Educação

Infantil, eles podem e devem ser problematizados para serem desconstruídos e reconstruídos.

Precisamos ressaltar que as brincadeiras são ótimas para observarmos as crianças, suas

atitudes, falas, expressões. A fala de Pati é um exemplo de que a construção de relação de

gênero tem significados diferentes em cada cultura. E a próxima brincadeira vai ressaltar isso

também.

Nesse dia as crianças foram para a varanda da Instituição para brincar de bambolê ebola. A professora estava ensinando as meninas a rodar o bambolê, quando João veioe falou que também queria fazer. Mel fala para ele, é só para meninas. E a professoraresponde que menino também pode brincar de bambolê (Diário de campo,10/07/2013).

Constatamos que as crianças adoravam brincar lá fora, então quando elas tinham a

oportunidade de fazer isso, elas aproveitavam ao máximo. Uma hora não queriam brincar com

os meninos, outra hora já brincavam todas juntas sem problema algum, ou seja, se permitiam

experimentar as diferentes atividades e composições de grupos.

Adoravam brincar com as formas geométricas que eram confeccionadas para elas em

madeira, mais no momento das atividades em papel algumas não gostavam de fazer e, sendo

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assim, enrolavam para terminar, dizendo que já estavam cansadas. A professora defendia as

brincadeiras argumentando que por meio delas ocorre o desenvolvimento da criança.

Nas duas instituições de realização das investigações em Maracaju, as crianças têm

uma rotina que é seguida regularmente, mas no que diz respeito aos brinquedos e

brincadeiras, evidenciamos que não têm muita determinação e planejamento. Muito raramente

professores/as utilizam o brinquedo para a aprendizagem. Mas, no decorrer das observações

pudemos notar que os/as diferentes profissionais que trabalham com as crianças têm

entendimentos diferenciados acerca da relação de gênero e sexualidade.

As assistentes acordaram os que ainda estavam dormindo, arrumaram o cabelo dasmeninas, mandou uma a uma para ir ao banheiro e tomar água, depois foram brincarno CEP (uma pracinha com campo de futebol). Pati então tenta subir em uma árvore,a assistente brigou e disse: desce menina você está parecendo menino (Diário decampo, 11/07/2013).

Evidenciamos, no dizer da assistente, que menina não pode subir em árvore.

Observamos, também, que ela tem a mesma opinião que a maioria da sociedade, de que

existem brinquedos e brincadeiras para cada gênero. Mas, queremos registrar, nem a

repreensão da assistente faz com que as crianças desistam de seus intentos.

As assistentes começam tirar os calçados das crianças para colocar chinelo. João ePedrinho não trouxeram chinelo. Pedrinho pede para colocar um chinelo daInstituição, mais os chinelos da Instituição foram doados e agora os que estãodisponíveis são todos aqueles “considerados” socialmente de meninas, mas ele calçaassim mesmo. João calça o outro e as meninas começam a rir deles com chinelo demenina. A professora interfere dizendo que se menina pode calçar chinelo azul,então menino também pode calçar chinelo rosa e que isso não tem nada a ver (Diáriode campo, 08/07/2013).

Pedrinho estava sempre vendo as meninas brigarem para calçar um chinelo daInstituição que tem um morango na tira. À hora dele calçar um chinelo emprestado

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da Instituição a professora dá um de cor lilás, mais ele vai lá e troca pelo outro quetem o morango, e fica alegre com isso (Diário de campo, 24/07/2013).

Percebemos que, provavelmente, Pedrinho teve curiosidade de saber qual era a

sensação e quis saber se havia algo de diferente naquele chinelo, já que as meninas viviam

disputando-o. Sendo assim, ele ficou o tempo todo com o chinelo, agindo como se tivesse

ganhado um presente, nem se importou com as risadas dos/das coleguinhas.

Mara falou para o Bruno que era só as meninas que podiam vestir roupas rosa. Elefalou que era mentira porque seu tio tem uma camisa rosa. Ela então retrucoufalando que o tio era menina. A professora interferiu dizendo assim como meninaveste roupa azul, menino também podia vestir rosa (Diário de campo, 13/06/2013).

Como escreveu Martinez (1997), quem não reconhece as cores azul e rosa como cores

já determinadas para meninos e meninas, respectivamente? Essas são as cores que as mães

usam em seus bebês desde quando nascem. A mãe de Mara, provavelmente, é uma dessas

mães que aprendeu/construiu que menino não deve vestir rosa. E isso de certa forma, acaba

sendo passado e repassado de mãe para filha.

Relatamos a seguir um exemplo totalmente contrário ao de Mara.

As assistentes começam a tirar os sapatos das crianças para colocar chinelo e quandochega a vez do João elas observam que a mãe mandou um chinelo rosa. Elas fazemcomentários a respeito, ele vai brincar com as meninas de montar peças e elascomeçam a falar que ele está de chinelo rosa. Ele não liga e também não houveinterferência nem das assistentes e nem da professora (Diário de campo,10/06/2013).

Notamos por meio desse excerto do diário de campo que João, mesmo vivendo na

mesma cidade que Mara, apresenta um aprendizado diferenciado. São, portanto, concepções

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III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015

diferentes em relação ao que é de menino e o que é de menina. Isso nos faz refletir que a

relação de gênero depende de cada cultura, família, comunidade etc.

A professora também não demonstrou nas suas interferências fazer essa diferença

entre as crianças. Tudo era proposto para a turma e elas faziam em conjunto como um grupo

unido.

A professora dispõe as pecinhas de montar para as crianças brincar até que chegassea hora de ir lanchar. Quando a outra turma veio do refeitório ela pediu para que ascrianças juntassem as peças e colocassem no balde, para irem lanchar. Elascomeçam a juntar, quando Pedrinho pega uma peça e faz de conta que é um batom ecomeça a passar na boca, a professora chama sua atenção falando que meninos nãopassam batom (Diário de campo, 06/06/2013).

Bibi e Pati brincam de salão e as outras meninas vão ao salão delas para fazer aunha. João vai ao salão delas para fazer unha também, mais as meninas falam quemenino não faz unha e por isso ele não pode ir ao salão. Mas, mesmo assim eleinsiste e Pati então faz sua unha (Diário de campo, 18/07/2013).

Com esse trecho fica evidente que a professora, às vezes, pode demonstrar

dificuldades e conflitos ao se posicionar em relação aos acontecimentos da sala. Na situação

anteriormente citada ela poderia, por exemplo, ter dito que existe batom de meninos que eles

usam no frio, que é o conhecido batom de cacau. Dizer das maquiagens para o teatro. Ou seja,

aproveitado a fala das crianças para problematizar as questões de gênero na/com sua turma de

crianças.

As duas turmas observadas possuíam poucos meninos e alguns deles adoravam brincar

de boneca. Durante as observações verificamos que, às vezes, pela simples curiosidade de

saber como é, ou pelo fato de talvez presenciar em casa o pai, tio ou avô cuidando de um

bebê, as crianças já organizam uma brincadeira imitando as situações presenciadas/aprendidas

com a família. O próximo trecho traz essa realidade e demonstra como os preconceitos fazem

parte do cotidiano das instituições e precisariam ser mais bem trabalhados.602

III EHECO – Catalão‐GO, Agosto de 2015

As crianças acordaram, arrumaram o cabelo, foram ao banheiro e tomaram água. Aprofessora dispôs bonecas e pecinhas de montar. Os meninos pegaram bonecas epecinhas para brincar, faziam as pecinhas de mamadeira e davam de mamar para asbonecas. Uma das assistentes brigou e mandou que eles fossem brincar com aspecinhas e deixassem as bonecas para as meninas e comentou com a outra quefulano já tinha jeito de menina e ainda fica brincando de boneca (Diário de campo,05/06/2013).

No decorrer da observação notamos que as mesmas crianças que um dia antes não

jogavam bola, no dia seguinte, já queriam jogar, isso nos mostrou que quando elas se

permitem experimentar as diversas brincadeiras e, pelo menos na maioria dos dias em que

estive realizando as pesquisas, nas mais distintas atividades da rotina da turma, a professora

não interferiu e nem separou as brincadeiras de meninos e meninas, mas sempre ficava

observando e cuidando para que eles não se machucassem e nem brigassem.

Na sala as meninas se mostraram mais agitadas que os meninos, fato que provocou a

seguinte fala de uma das assistentes: “as meninas têm que se comportar como mocinhas”. No

nosso entendimento, essa frase vem ao encontro daquela ideia preconcebida de que meninas

devem ser educadas para serem calmas e omissas. Enquanto os meninos podem/precisam ser

mais agressivos, brigões, bagunceiros. Acreditamos que todos têm os mesmos direitos perante

a comunidade, mas nem sempre é assim que acontece.

Elas acordaram, foram ao banheiro, tomaram água e as assistentes arrumaram ocabelo das meninas. Logo após lancharam e foram a um campo de futebol que temem frente ao CIEI. Chegando lá à professora deu bola para os meninos e corda paraas meninas. Mas, Nanda e Bibi queriam jogar bola com os meninos. Bruno disse quemeninas não jogam bola só meninos. A professora interferiu dizendo que ele selembrasse do time de futebol feminino do Brasil e então foi todos jogaram bola(Diário de campo, 07/06/2013).

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Percebemos que a situação criada pelas crianças possibilitou a professora a

reconsiderar sua atitude inicial de corda para meninas e bola para meninos. E, é exatamente

nessa perspectiva, que acreditamos ser possível efetuarmos mudanças nas relações de gênero

e no trato das questões acerca da sexualidade nas instituições de Educação Infantil.

Antes de passarmos para nossas considerações finais, queremos reiterar que cada

profissional tem seu jeito de trabalhar/ensinar/aprender. E isso nos faz refletir que, apesar

deles/as já virem para as instituições com uma bagagem construída, podem, se quiserem,

tiverem oportunidade de acesso aos estudos da temática, e se empenharem, repensar seus

conceitos, possibilitando que as crianças também tenham os delas e vivam suas infâncias em

plenitude.

Considerações finais: mais alguns aspectos trazidos para a reflexão

Neste artigo trouxemos dados de pesquisas empreendidas nos anos 2012 e 2013, em

três instituições públicas de Educação Infantil dos municípios de Dourados e Maracaju, estado

de Mato Grosso do Sul, as quais tiveram como objetivo identificar, compreender e refletir

sobre as relações de gênero e sexualidade presentes nas brincadeiras das crianças de 3 a 4

anos, a partir da observação de práticas de/as professoras/es e demais adultos envolvidos no

cotidiano das crianças.

Vale assinalar, que para nós, a efetivação de uma educação de qualidade depende da

problematização de todas as questões que permeiam as relações das crianças e dos/as

profissionais nas instituições e, dentre elas, as temáticas relativas à diversidade. Ao longo das

nossas pesquisas bibliográficas, verificamos que o tema da nossa investigação, quer seja,

gênero e sexualidade e suas interfaces com a Educação Infantil, já tem sido foco do interesse

de diferentes e importantes estudiosos. Mas, esperamos que cada vez mais possamos ver

pesquisadores, das diversas regiões do Brasil, empreendendo estudos acerca da referida

temática, fato que irá mobilizar e enriquecer os debates e discussões.

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A partir das observações efetivadas por nós, foi possível percebermos que as crianças,

desde pequenas, trazem consigo estereótipos do que é mais adequado para cada gênero,

apontando que tais conceitos são aprendidos desde a mais tenra idade. Constatamos que

modos de ser e agir das crianças e profissionais, na rotina das instituições, tornam-se relações

automáticas que, provavelmente, foram aprendidas ao longo da vida. Ou seja, ser menino e

ser menina não é apenas uma questão biológica, muitas ações, falas e silêncios produzem

relações de gênero e sexualidade.

Também, segundo nossas investigações, podemos apontar que meninos e meninas

constroem e reconstroem maneiras de sociabilidade ao conviver com um grupo diferente

daquele no qual estão habituados. Em suas brincadeiras as crianças apresentaram formas de

convívio com separações e cobranças entre elas mesmas e também por parte dos/as

professores/ras, bem como de outros adultos que as educavam e cuidavam. Meninas e

meninos eram afastados em alguns momentos e suas brincadeiras eram classificadas, mas

aconteceram outros momentos nos quais brincavam e se relacionavam sem nenhuma distinção

de gênero.

Para finalizar, ressaltamos as dificuldades da maioria dos/as profissionais,

observados/as em nossas investigações, em trabalhar a temática de gênero e sexualidade no

cotidiano das práticas pedagógicas, demonstrando que as universidades envolvidas nas

formações iniciais desses/as profissionais estão deixando lacunas importantes, que

comprometem o exercício pleno das atividades. E, também, a indicação de que podem estar

faltando formações continuadas na área, para que conceitos/preconceitos sejam revistos,

desconstruídos, ressignificados.

Referências

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