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Gomes Leal_Poemas Escolhidos

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  • A GERAO DE 70

  • GOMES LEAL

    POEMAS ESCOLHIDOS

    I II ,

    (ANTOLOGIA) Dcimo segundo volume

    - - ... ... ... . _- -_._-

    C RCULO DE LEITORES

  • Capa de: Alllunes Impresso e encadernado por Prilller Porluguesa

    110 ms de JUllho de mil novecenlos e oitellla e oilo Nmero de edio: 2279

    Depsilo legalllmero 20363/88

  • CLARIDADES DO SUL

  • HINO AO SOL

    Vous, prtes! qui murmurez, vous portez ses signes SUl' tout votre corps: "votre tonsure" est le disque du "solei I" J vatre "toile" est son zodiaque, vos "chapellets" sont l'emblme des astres et des plan-tes.

    Eu te sado Sol, belo astro amigo! (To pontual h tantos centos de anos)' Mais reluzente que um broquel antigo, Mais dourado que ceptros de tiranos: Ave, herica luz! viva e sonora,

    Les RI/il/es, VOLNEY

    Vestindo o mundo, enquanto aos cus erguidos, As florestas extensas do gemidos,

    E o duro mar se chora!

    Eu te sado, astro das batalhas ! . . . Porque atravs das cruas dissenses, Douras o p que se ergue das mortalhas, E levantas os nossos coraes! . . . E por isso, ainda hoje, e eternamente, Os romnticos te ho-de a ti saudar, E os tristes sempre iro luz poente,

    Ver-te morrer no mar.

    Tu s a Voz, a Cor, as Harmonias Acordam com as tuas claridades: s quem benze as aldeias e as cidades, E quem fazes cantar as cotovias : s quem inspira estranhas teorias, s forte, so, consolador, e bom. Tem a lua silncios e elegias:

    Mas tu a Cor e o Som.

  • 8 GOMES LEAL

    Eu te sado, astro dos guerreiros! . . . Eterno confessor d e madrigais, Que desgelas os densos nevoeiros, Que alegras as sonoras capitais: Que ds valor nos campos marciais, E fora e amor aos aldees trigueiros, E que incitas os tigres carniceiros

    A beber nos caudais!

    Desde a Caldeia s ermas solides, Tens tido cultos, templos levantados, E velhos ritos brbaros sagrados, E alegres, sensuais religies: Tu fos te Mitras, nome cabalstico, Baal, Agni, Apolo (invocaes). E hoje Cristo - teu nome oculto e mstico -

    Fere inda os coraes.

    Quem contar, luz, tuas bondades? . . . E o amor n o qual o corao abrasas, E as tuas funerais solenidades ideal palpitao das asas? . . . Quem nos livra das flechas do pecado? Quem faz na ntima terra o diamante? Quem gera o monstro, a pomba, o lrio amado,

    E a ideia extravagante?

    Ave! pois, astro caro dos valentes . . . D a Fora, Vida, Glria, d a Paixo, A frecha de ouro em coraes ardentes, Astro amigos das lutas e da Aco! Ave! e em dias crus de expiao, Vai e beija - nas ervas reluzentes Os que morrem, vencidos combatentes,

    A espada inda na mo!

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    JANELA DO OCIDENTE o mundo oscila.

    LUTERO

    Os deuses ou so mortos ou cados) Quais duros aldees dormindo as sestas) Ou andam) pelos astros perseguidos) C horando os velhos tempos das florestas.

    Os reis ressonam nas devassas festas: J os frutos do Mal esto crescidos: 6 Sol, h muito que tu j nos crestas ! E aos nossos ais o Cu no tem ouvidos!

    H muito j que o Olimpo est vazio, E no seio de um astro imenso e frio morto o Deus do Testamento Velho.

    Apenas, sobre o mundo eterno e afl i to, Fausto rebusca o x do infinito, E Sat dorme em cima do Evangelho.

    MIST ICISMO HUMANO

    Sunt lacrimae rerum . . . VIRGLIO

    A alma como a noite escura, imensa e azul. Tem o vago, o sinistro, os cnticos do Sul, Como os cantos de amor serenos das ceifeiras Que cantam ao luar, noite, pelas eiras . . . A s vezes vem a nvoa alma satisfeita, E cai sombria, vaga, e mida, e desfeita . . . E como a folha morta, e m lagos sonolentos, As nossas i luses vo-se nos desalentos!

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  • lO GOMES LEAL

    Tem um poder imenso as Coisas na tristeza. Homem! conheces tu o que a natureza? . . - tudo o que nos cerca - o azul, o escuro . o cipreste esguio, a planta, o cedro duro, A folha, o tronco, a flor, os ramos friorentos, a floresta espessa esguedelhada aos ventos. No entra o vcio aqui com beijos dissolu tos, Nem as lendas do mal, nem os choros dos lutos.

    E os que viram passar serenos os seus dias . . . E curvados s e vo, s longas ven tanias, Cheio o peito de sol, atravs das florestas, calma do meio-dia . . . e dormiam as ses tas , Tranquilos sobre a eira, entre as ervas nas leivas, Vo cansados depois, entre os ramos e as seivas, Outra vez sob o Sol - a sua eterna crena -Em frutos ressurgir natureza imensa, E , os beijos do luar, descansarem felizes, Da bem-amada ao p, no meio das razes! . . .

    Morrer livramento! . . . oh deve saber bem Sentir-se dilatar na Natureza me! Ser tronco, ramo ou flor, nuvem, erva ou alfombra, A rosa que perfuma, a rvore que d sombra, Estremecer, na encosta, s nocturnas geadas, E recortar o azul das noites consteladas! . . .

    Sim! pelo claro azul dessas noites serenas, Que o segador trigueiro entoa as cantilenas, To tristes como a lua e o espinho dos martrios, E que atravs do azul parecem cair lrios . . . Quando a brisa baloia a s folhas inquietas, Noivam os rouxinis e se abrem as viole tas, E a Natureza tem como um sabor de beijos, Que obriga a soluar a alma de desejos . . .

    Que segredos diro, nas brisas mensageiras, doura da lua, a flor das laranjeiras, O lrio, a madressilva, os jasmins vacilantes, Que foram j, talvez, seios fortes e amantes, E que hoje, branca luz dos mirtos siderais,

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    Conversam sobre o amor e os gozos ideais Do tempo . . . que a falar corriam breve as horas, Que seus olhos leais tinham a cor de amoras, E debaixo do cu teciam longas danas, Ao p da amante meiga e de compridas tranas! . . .

    No lago sonolento a flor d o nenfar Talvez um corao que abre para chorar, O lrio um seio bom - e as violetas curvadas So os olhos talvez das doces bem-amadas . . .

    Feliz o semeador que vive entre os arados, O campo, os lentos bois, longe dos povoados, Entre os rijos irmos humildes e trigueiros, Que vivem sob o sol, chuva, aos nevoeiros, E quando noite finda os suarentos trabalhos, Vem a doce mulher busc-lo nos atalhos, C ujo olhar, como a lua, tranquilo e consola, E descanta, chorando, noite na viola ! . . .

    E os q u e andam pelo mar, trigueiros e contentes, Entre as ondas e o Cu, nostlgicos, clementes, Entre os cantos do vento, olhos fitos nos cus, Entre o azul, o escuro, e os frios escarcus, Ombro a ombro o abismo - abismo sempre aos ps -Que dormem poesia, lua das mars, E morrem uma noite, mar, aos teus embalas, Deixando uns olhos bons e meigos a chor-los! . . .

    E u , por mim, no terei u m astro bom nos Cus , Nem uns olhos leais que chorem pelos meus, E que inda a fronte mal me obscurea a mgoa, Como espelhos de amor j sejam rasos de gua ! . . . Sozinho passarei, e no irei jamais, Pelas murtas, com ela, s tardes outonais. De inverno, no terei os consolos do lar, Nem do estio a doura imensa do luar, Meus filhos no iro jamais colher os ninhos, Ningum vir, tarde, esperar-me nos caminhos.

    II

  • 1 2 GOMES LEAL

    A BELA FLOR AZUL

    Quem saber sigl/ora onde ter nascido esse belo lrio branco?

    VELHA COMDIA ITALIANA

    Eu no sou o fatal e triste Baudelaire, Mas analiso o Sol e decomponho as rosas, As rijas e imperiais dlias gloriosas, E o lrio que parece o seio da mulher.

    Tudo o que existe ou foi, morre para nascer. Na campa do-se bem as plantas graciosas. E, um dia, na floresta harmnica das Coisas, Quem sabe o que serei, quando deixar de ser!

    A Morte sai da Vida - a Vida que um sonho! A flor da podrido, o belo do medonho, E a todos cobrir o mstico cipreste! . . .

    E, minha Esfinge, a flor plida e azul no meio, Que ontem tinhas no baile e que trouxeste ao seio, Levantei-a dum cho onde passara a Peste.

    PALCIOS ANTIGOS

    A Antero de Quental

    Bons castelos leais, nas rochas construdos, s contores do vento, chuva enegrecidos, Que vamos admirar na angstia dos poentes . . . Grandes salas feudais com telas d e parentes. O que fazeis de p, como entre os nevoeiros, Os antigos heris e as sombras dos guerreiros?

    Uma grande tristeza enorme vos habita! . . . N o entanto, a alma antiga ainda em vs palpita, Evocando a emoo das crnicas guerreiras;

  • POEMAS ESCOLHI DOS

    E mau grado o destroo, a erva, e as trepadeiras, - Como um desejo bom nas almas devastadas -Cresce, ao vento, uma flor, no peito das sacadas.

    A parasita hera avassalou os muros! Aninha-se o bolor nos cantos mais escuros, Tudo dorme na paz das coisas silenciosas . . . E nos velhos jardins, onde no h rosas, - S resistindo ainda aos sculos injustos -Uma Vnus de pedra espera, entre os arbustos.

    CRISNTEMOS

    MADRI GAL BIZARRO

    As tuas mos pequenas, gotas de luz coalhadas, so frias como hienas de garras afiadas .

    Tuas unhas deveras - to rseas, mas compridas -lembram as das panteras tratadas e polidas.

    Teus lbios de coral e as prolas dos dentes mordem mais que as serpentes, e a vbora crotal.

    Tenho lido em viagens caadas a leopardos. Mas nunca vi carnagens, como fazem teus dardos.

    Tenho ouvido tambm naufrgios, derrocadas, mas nunca vi ningum, que, a rir, desse facadas.

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  • 1 4 GOMES LEAL

    Ah! . . . continua rindo num rir fero e espontneo, que um crisntemo abrindo verei, morta, em teu crnio.

    Qual remorso mordente de tanta frase louca, outro azul . . . suavemente . . . tapara tua boca.

    E ento, por ti passando, as lgrimas em fio, gritarei, uivarei, chorarei, gargalhando: - Meu bem, passou o estio!

    NA TABERNA

    A Joo de Deus

    Vejo apontar o inverno ... os crepitantes frios Me aoutam as vidraas ... "

    FRANCISCO MANUEL

    Alguns dormem, nas mesas, debruados, J unto aos restos de um vinho j bebido; Outros contam seus casos desgraados.

    Um deles al to, magro, mal vestido. Conta histrias de amor; lanando fumo Dum cachimbo de gesso enegrecido.

    Um tenta levantar um outro a prumo Sobre os ombros, e um calvo, e j vermelho Faz das suas misrias um resumo.

    Depois conta que o pai tico e velho Lhe est para morrer; lastima a vida; E sobre as vinhas pede um bom conselho.

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    A casa escura, velha, enegrecida Do fumo. Noite velha ouve-se o vento Bater na antiga porta carcomida.

    o frio, a neve, a fome, o mau sustento Tem quebrantado muito aquelas frontes; E em muitos esmagado o pensamento.

    Nalguns extinguido, mesmo, as fontes Da j ustia e do bem; e fei to errar, No mundo, como os lobos pelos montes.

    E o egosmo dos filhos e do Lar Banido o d das lstimas estranhas, E tornando-os mais frios do que o mar.

    Alguns vivem nas neves, nas montanhas: Outros o rio tem por seu vizinho, E com a Fome travam ms campanhas.

    E - todos - tem o ar triste e mesquinho, Dos que vo, sem prazer, habituados, Como a um sono que tira maus cuidados . . .

    Beber as suas lgrimas com vinho.

    A SESTA DO SENHOR GLRIA

    no fim do j antar. Deram trs horas No bom relgio antigo dos avs. E o senhor Glria pega numa noz, Com um ar de q uem trata com senhoras.

    A casa de jantar toda pintada E o estuque cheio de aves, de paisagens, De ninfas, prados, de guas, de boscagens, Tem uma forma antiga e recatada,

    .

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  • 1 6 GOMES LEAL

    De envolta com seus goles de Madeira, Saboreia a senhora o seu caf . E ao lado, um filho rbido, de p, Parece um pregador sobre a cadeira.

    No colo da matrona dorme um gato' No melhor sono cmodo do mundo, Enquanto, em baixo, um co grave e profundo, Contempla u ns restos, que inda esto num prato.

    o senhor Glria fala, chocarreiro, Do seu cunhado Aleixo de Miranda. L fora, um papagaio, num poleiro, Diz coisas aos burgueses, da varanda.

    Com um ar meio cmico e boal, Um sisudo criado ats, de p, De vez em quando fala menos mal: - O senhor Glria aspira o seu caf .

    Muito tempo assim ficam nesse estado De santa sonolncia e beatitude, Mais que assaz conhecido da Virtude, Quando tem digerido e bem jantado.

    No entanto, o senhor Glria, olhos dormentes, Contempla, na parede, os bons pastores, Confidentes fiis dos seus amores, Que outrora ho j sorrido aos seus parentes.

    Duas pastoras falam com poesia, Numa vereda de lamos umbrosos, E isto acorda-lhe os tempos virtuosos . . . Que a hora d e j antar era ao meio-dia!

    Belos tempos - pensa ele - de virtude, De glria, amor, coragem, f ardente, De longas procisses e de sade, De singeleza e paz - vida contente!

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    E o senhor Glria, aqui, num travesseiro, Deita a cabea, de pensar prostrado. O papagaio ri no seu poleiro. E a senhora sorri para o criado.

    A LUA MORTA

    Almas sentimentais e ingnuas do lirismo, q ue cantais do luar a luz que vos conforta, varrida por atroz, remoto cataclismo, h milhes de anos j que a antiga lua morta.

    H milhes de anos j que esse alvej ante rastro, q ue ela espalha nos cus e sobre o mar profundo, no mais que o lenol do cadver dum astro, do aspectro dum planeta e o fantasma dum mundo.

    H milhes de anos j que, em torno nossa esfera, o morro globo gira, errante, solitrio, como o vulco dum astro extinto e sem cratera, frio espectro de luz que arrasta o seu sudrio!

    H muito morta j . Dessas manses sidreas onde paira, no ouve os ais que nos consomem e a runa estagnou-lhe o sangue nas artrias, muito antes de nascer o primitivo Homem.

    Paira nela um atroz silncio de orfandade, de sombra tumular, de mrmore, de cripta. Lembra as praas e os cais duma horrenda cidade, varrida pela mo duma peste maldita.

    Reina uma assolao sinistra, imvel, sria, l dentro. Faz lembrar este astro extinto e frio a glida extenso duma estepe funrea, sem trinos de ave, flor, bosque, nem voz do rio!

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  • 1 8 GOMES LEAL

    Que cataclismo atroz, que deus negro irritado fez cair sobre este astro o aoite dos furores? Quem transformou em pedra este astro fulminado? Quem gelou seus vulces, serras, bosques e flores?

    Que catstrofe antiga, ou negro deus perverso este astro converteu em sombra inerte e ftua? Que ltego, sem d, fustiga esse universo, e o faz errar nos cus - como uma branca esttua?

    No meio dos rosais ou dos mirtais floridos, que irrisria emoo, que aos astros pouco importa, nos faz erguer as mos, chorando, enternecidos, Para essa sombra v - essa cidade morta?

    E, no entanto, alma humana! eterna atormentada! tu quiseras ver perto a morta nau errante, quiseras abordar estranha nau gelada, com seu poro sem voz, seus mastros de brilhante.

    Tu quiseras cruzar - tu, a quem nada pasma! -nesse barco espectral, excntrico, sombrio, que corta o azul dos cus como um batel fantasma, ou sobre o mar do Norte o espectro dum navio.

    Tu quiseras sarar as aflies internas, nessa imvel regio, sem ar, nem movimento, nesses bosques sem voz e noites sempiternas, onde no sopra um ai, nem folha, mar, nem vento! . . .

    T u quiseras , enfim, ca Vida soluante ver quebrar-se o rumor nesse silncio enorme, e, como em vasta cripta os membros dum gigante, repousar nessa paz imvel e uniforme.

    Descansa, Homem, porm! Como uma vil lanterna, morrendo, um dia, o Sol regelar no Oriente, e, nesse cataclismo e horror da noite e terna, os tristes sorriro e diro: - Finalmente.'

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    TARDE DE VERO

    Trepam-lhe pelas janelas Jasmins, cheirosas serpentes, E soltam-se as bambinelas Em pregas indiferentes .

    Os lrios que so uns ais Suspiram melancolias . . . Riem quadros sensuais Nas largas tapearias.

    Stira ri nas florestas, Nobe solua mgoas, E escuta-se, entre as giestas. A voz rtmica das guas.

    E luz dbia dos ocasos Ensanguentados do Sul, As camlias dos seus vasos Olham voltadas o azul.

    L dentro das gelosias Volteiam como desejos . . . Perfumes, melancolias, Como saudades de beijos .

    Jaz ao p do seu bordado Um cofre de filigrana, E um mandarim espantado, Com olhos de porcelana.

    U ma violeta esfolhada Chora um amor num jardim, Uma vareta quebrada Ri, num leque de marfim.

    Nadam no q uarto perfumes De leos, pomadas cheirosas: Um colar mostra os seus lumes: Voam aves gloriosas.

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  • 20 GOMES LEAL

    Num lbum perto olvidado H uns idlios de amores, E ao p dum Cristo chagado Morrem, nas j arras, flores.

    Mas, pasmada, alheia a tudo Junto dum missal j velho, Uma msc'ra de veludo Olha idiota no espelho.

    Olhos vazios de espanto. Olha, olha, nada v . . . Ri-se uma Vnus a u m canto. Um cravo murcha-lhe ao p.

    Assim eu sou moo velho. E em minha alma, minha amada! Como a mscara no espelho Eu olho e no vejo . . . nada.

    o VISIONRIO OU SOM E COR

    A Ea de Queirs

    Eu tenho ouvido as sinfonias das plantas.

    Eu sou um visionrio, um sbio apedrej ado, Passo a vida a fazer e a desfazer quimeras, Enquanto o mar produz o monstro azulejado E Deus, em cima, faz as verdes .primaveras.

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Sobre o mundo onde estou encontro-me isolado, E erro como estrangeiro ou homem doutras eras, Talvez por um contrato irnico lavrado Que fiz e j no sei noutras subtis esferas.

    A espada da Teoria, o austero Pensamento, N o mataram em mim o antigo sentimento, Embriagam-me o Sol e os cnticos do dia . . .

    E obedecendo ainda a meus velhos amores, Procuro em toda a parte a msica das cores, E nas tintas da flor achei a Melodia.

    I I

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  • 22 GOMES LEAL

    I I I

    o yermelho deve ser como o som duma trombeta . . .

    Alucina-me a Cor! A Rosa como a Lira, A Lira pelo tempo h muito engrinaldada,' E j velha a unio, a npcia sagrada, Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

    Se a terra, s vezes, brota a flor que no inspira, A teatral camlia, a branca enfastiada, Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada Como a perdida cor dalguma flor que expira . . .

    H plantas ideais d u m cntico divino, I rms do obo, gmeas do violino, H gemidos no azul, gritos no carmesim . . .

    A magnlia uma harpa etrea e perfumada. E o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada, Tem notas marciais, soa como um clarim.

    IV

    Mas aquela que adoro, a hiertica duquesa, Nobre como as reais senhoras de Brabante, Como a hei-de pintar igual e semelhante, Se no h Som nem Cor em toda a Natureza!

    Seu colo tem do lrio a rgida firmeza. Seu amor um cu catlico e distante . . . Mas a luz desse olhar sonoro e radiante Eleva como a Cor, soa como a Beleza!

    Nunca lhe ousei falar, nem sei se amor lhe inspiro. Mas quando enfim morrer, ento, como um suspiro Meu seio florir, em vez do meu amor. . .

    UM CEGO.

  • POEMAS ESCOLHI DOS

    Numa flor que por talvez sobre a janela. Uma flor rubra e negra, em forma duma estrela, Como uma sinfonia obscura de terror.

    A SELVAGEM

    s vezes, como os grandes fantasistas, Sinto o desejo intenso das viagens . . . E i r sozinho habitar entre o s selvagens, Como, num ermo, os speros trapistas.

    As grandes, vastas, lmpidas paisagens, QU,e sabem ver os imortais artistas Teriam novos tons, novas imagens, Longe do mundo avaro e as suas vistas!

    Com uma virgem - flor dessas montanhas -Entre os mil sons das rvores estranhas, Dos coqueiros, bambus . . . fora feliz! . . .

    Dormiria e m seus braos nus, lustrosos, E ouviria, entre uns beijos voluptuosos, Tintinar-lhe as argolas do nariz.

    FALSTAFF MODERNO

    ln vino veritas.

    Quando eu morrer, ningum ler no crnio Se eu fui mouro ou j udeu.

    Se prezava o conhaque ou o Madeira. Que sofrer foi o meu! . . .

    Ningum dir s e era trigueiro o u louro, Se eu fui Pope ou Cames,

    E os sbios no diro, coando a calva, A cor dos meus cales.

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  • 24 GOMES LEAL

    N o sabero dizer se foi a pipa O hotel em que vivi,

    Ou se fazia sol ou aguaceiros No dia em que nasci .

    Se, aps a doida orgia, o meu enterro Pela manh, sair,

    Tu virs j anela, bocejando, E em coifa de dormir.

    E no conseguirs verter um pranto Da tez no teu cetim . . .

    Enquanto o s gordos padres iro lentos, Ressonando em latim.

    Os anos jogaro com os mais crnios, E o meu magro esqueleto,

    U ma espcie do jogo das caveiras Dos coveiros do Hamleto.

    Ningum, mulher, dir que funda mgoa Minou meu corao.

    E eu mandarei pr, por epitfio: Maldita indigesto!

    Mas que ideias to negras! . . . . O que importa Roa a terra mais um!

    Depois da morte, o nada. 6 minhas lgrimas, No me estragueis o rum!

    NEVROSE NOCTURNA

    Bela! dizia eu, como um navio vela, para um pas polar, por um silncio amigo. Bela! como uma esttua e glida como ela. Bela! dizia eu. como um sepulcro antigo.

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Bela! dizia eu, gil como um jaguar, assim me inspire o Fado e Satans me deixe! Bela! dizia eu, fria como O luar sobre o dorso luzente e excepcional dum peixe.

    Bela! dizia cu, como uma mesa lauta para um fes tim pago: a Forma, o Som, e a Cor. Bela! dizia eu, como nocturna flauta, desfiando, no mar, a ladainha - Dor.

    Bela! dizia eu, fria como o marfim. Bela como um calado e longo cemitrio, em que se v vagar, como no seu jardim, o coveiro, ao luar, vegetativo e srio.

    Bela! como um perdo ao p do cadafalso. Bela! como o luzir do orvalho nas searas. Nevada como um p curto, branco, descalo, fugitivo atravs das grandes ervas claras.

    Bela! como o sentir as espirais do gozo num fundo sensual de sombras perfumadas. Bela! como, aos clares dum cu calamitoso, as plantas tropicais, direitas como espadas.

    B ela! como os portais e as torres ao abandono saxnias, que entreviu Ann Radcliffe. Bela! e solene, sim, como o tranquilo sono, dum perfil virginal, na sombra dum esquife!

    Bela! como um espelho esfrico, polido, aonde colos nus luzem palidamente. Bela! como o sentir a seda dum vestido arrastar, como arrasta a cauda da serpente.

    Bela! como o sorrir vermelho dum rainnculo. Bela! como uma flor aqutica do Mar. Bela! como na treva o brilho dum carbnculo. Bela! dizia eu, como um azul polar.

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  • 26 GOMES LEAL

    Bela! como a expresso das notas de Mhul. Bela! como uma flor num muro de cadeia. Bela! como a sonhar, sobre um div azul, fumando, perseguir a nebulosa Ideia.

    Bela! dizia eu, como uma Feiticeira da Tesslia, evocando a ensaguentada lua. Bela! como, no outono, a luminosa esteira azulada e sem fim duma comprida rua.

    Bela! como arrendado e flamejante altar, onde se vo unir os coraes dos noivos. Bela! como o silncio algente e tumular, em que se escuta, ao fundo, o germinar dos goivos.

    Bela! dizia eu . . . Mas, nisto, sobre o leito, em que cismava assim, voltou-se, levemente, a invencvel mulher que me inflamava o peito. E os meus olhos no quarto erraram novamente.

    E foram-se cravar num pente de metal, e as vrias coisas mil que, ao bao candeeiro, vinham-se reflectir sobre um espelho oval destacando da cor branca do travesseiro.

    E, ento minha nevrose armou um largo cinto de monstros colossais, fatdicos de ver! hora em que o burgus profunda o labirinto das mil complicaes do deve e do h-de haver.

    Desfilava-me em torno um batalho medonho de monstros anormais, de escamas reluzentes. Tomavam Som e Cor as propores do Sonho. Olhavam-me animais de olhos surpreendentes.

    Bela! dizia eu, por todas as potncias celestes, infernais, terrestres e de horror! . . . Bela! concordo eu, cheia d e transparncias: mas sem um grande quid . . . a crispao da Dor!

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Sim, a Dor, sem a qual a argila humana passa, sem um rasto deixar na vasta natureza: - a Dor, gama final na msica da graa: - a Dor, ltimo tom na escala da Beleza:

    a Dor, foco, onde vo reconcentrar-se as cores do vivo sol do Amor desptico e cruel: - o perfume subtil que completa as flores: - a voluta ideal que.. beija o capitel.

    Por isso, eu quero ver como o seu belo rosto se crispa, sensao estranha do meu brao: e quero, na tenaz sinis tra do Desgosto, faz-Ia ressaltar como uma mola de ao!

    Quero v-Ia quebrar essa monotonia de linhas ideais, divinas, impassveis: coagi-Ia a sair da glida apatia, que como a estagnao das Coisas Insensveis .

    Quero v-Ia tremer, os lbios roxeados, fazendo exclamaes eufnicas na sala: e, em vrias gradaes, seus olhos injectados terem a fulva cor quimrica da opala.

    Quero sim! quero ver! . . . Mas, nisto rudemente, prostrou-me o plmbeo sono invicto, pesado, e a cabea caiu-me, ah! invenci.velmente! . . . no seu negro cabelo esplndido e azulado .

    ROSA M STICA

    Hour of lovc."

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    Parisilla. BYRON

    Do pr do Sol quela luz sagrada, Eu perdia-me . . . hora doce e breve! . . . M eu peito junto ao seu colo d e neve, Numa contemplao vaga e elevada

  • 28 GOMES LEAL

    Nessas almas se erguiam, como deve Erguer-se uma alma Luz afortunada. Do mar se ouvia a grande voz chorada. Palpitavam as pombas no ar leve.

    E ento perguntei-lhe, baixo e brando: Em que mundos de luz que caminhas? Que torre est tua alma arquitectando? . .

    Ela, travando as suas mos das minhas, Me disse, ingnua, ento: - Estou cismando No que diro, no ar, as andorinhas .

    A SENHORA DE BRABANTE

    A Alberto Osrio de Castro

    Tem um leque de plumas gloriosas, na sua mo macia e cintilante, de anis de pedras finas preciosas a Senhora Duquesa de Brabante.

    N uma cadeira de espaldar dourado, escuta os galanteios dos bares. noite: e, sob o azul morno e calado, concebem os jasmins e os coraes.

    Recorda o senhor Bispo aces passadas. Falam damas de jias e cetins. Tratam bares de fes tas e caadas moda goda : aos toques dos clarins.

    Mas a Duquesa tris te. Oculta mgoa vela o seu rosto de um solene vu. Ao luar, sobre os tanques chora a gua . . . Cantando, os rouxinis lembram o cu . . .

  • POEMAS ESCOLHI DOS

    Dizem as lendas que Sat vestido de uma armadura feita de um brilhante, ousou falar do seu amor florido Senhora Duquesa de Brabante.

    Dizem que o ouviram ao luar nas guas, mais 'louro do que o sol, marmreo, e lindo, tirar de uma viola estranhas mgoas, pelas noites que os cravos vm abrindo . . .

    D izem mais que na seda das varetas do seu leque ducal de mil matizes . . . Sa t cantara as suas tranas pretas, e os seus olhos mais fundos que as razes!

    Mas a Duquesa triste. Oculta mgoa vela seu rosto de um solene vu. Ao luar, sobre os tanques chora a gua . . . Cantando, os rouxinis lembram o cu . . .

    O que certo que a plida Senhora, a transcendente Dama de Brabante, tem um filho horroroso . . . e de quem cora o pai, no escuro, passeando errante.

    um filho horroroso e jamais visto! Raqutico, enfezado, excepcional, todo disforme, excntrico, malquisto, plos de fera, e uivos de animal!

    Parece irmo dos cerdos ou dos ursos, aborto e horror da brava Natureza . . . Em vo tentam bares, com mil discursos, desenrugar a fronte da Duquesa.

    Sempre a Duquesa triste. Oculta mgoa vela o seu rosto de um solene vu. Ao luar, sobre os tanques chora a gua . . . Cantando, o s rouxinis lembram o cu.: .

    29

  • 30 GOMES LEAL

    Ora o monstro morreu. Pelas arcadas do palcio retinem festas, hinos. Riem nobres, viles, pelas estradas. O prprio pai se ri , ouvindo os sinos . . .

    Riem-se os monges pelo claustro antigo. Riem viles trigueiros das charruas. Riem-se os padres, junto ao seu j azigo. Riem-se nobres e pees nas ruas.

    Riem aias, bares, erguendo os braos . Riem, nos ptios, os trueS tambm. Passeia o duque, rindo, nos terraos . S chora o monstro, em alto choro, a me! . . .

    S, sobre o esquife d o disforme morto, chora, sem trgua, a msera mulher. Chama os nomes mais ternos ao aborto . . . Mesmo assim feio, a triste me o quer!

    S ela chora pelo mqrto! . . . A mgoa lhe arranca gritos que a ningum mais deu! Ao luar, sobre os tanques chora a gua . . . Cantando, os rouxinis lembram cu . . .

    FANTASIAS

    Tenho, s vezes, desejos delirantes De a todos te roubar, meu lrio amado! . . . E levar-te, em voo arrebatado, Aos pases fantsticos, distantes.

    ndia, China, ou Iro, e os meus ins tantes Pass-los, a teus ps , grave e encruzado, Num tapete chins aveludado, Com flores ideais e extravagantes.

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    Nossa vida seria - pomba minha! -Mais leve do que a asa da andorinha, E, nas horas calmosas, eu e tu . . .

    Olhando o mar sereno, o mar unido, Comeramos os dois arroz cozido . . . Embalados num junco d e bambu!

    A BIOGRAFIA DE SAT

    3 1

    A Trindade Coelho

    Eu vou contar a grande lenda escura Do fulminado trgico da Luz . . . Seu antigo esplendor e sorte dura, Quando andava entre os povos da Escritura, E comprava os juzes de Jesus.

    Ele o Velho Mal, o Orgulho, o Enfado, E somente Sat um pseudnimo. o autor do Remorso e do Pecado, O morcego da Bblia, e o co danado Que espancava de noite S. Jernimo.

    No tempo em que era belo, grande, e forte, Fez a guerra dos as tros contra Deus. Tem-lhe sido inconstante e vria a sorte. Andava roto e pobre, por Francfort, Nos bairros tortuosos dos Judeus.

    Anjo expulso, triste, e escarnecido, Que foste mais fulgente do que o dia! . . . Deus adorado e m Delfos, mais e m Gnido, Ai! quem mais do que tu ter sofrido, E teve essa ideal melancolia! . . .

  • 32 GOMES LEAL

    J Vieira contra ti, perdendo o tino, Fez dos seus crus libelos um aoite. Fez-te sonetos lbricos o Aretino, E S. Toms contou o teu destino, E as aventuras clebres da noite.

    Quem dir os espinhos que cingiste, Quem pesar teu clix de agonias . . . E quantos longos sculos carpiste, Aquela luz que cai magoada e triste, gro crucificado de ironias! . . .

    Eu sei que hoje ests morto ou retirado, corvo escuro e mau do firmamento! . . . E que andavas n o mundo, envergonhado, J doentio, calvo, e desdentado, E que era o teu catarro a voz do vento.

    Tu fos te sbio, confessor, e mdico Nos tempos legendrios, medievais. Eras s vezes mstico e profetico, E o mocho que adejava escuro e ttrico Nos conventos, igrejas, catedrais.

    Eu sei que fos te tu que, um dia, impuro, Tentaste a castidade de Raquel. Em Delfos desvendavas o futuro, E, cheio dum pavor trgico e escuro, Deixaste envenenar-te Daniel.

    Em Sodoma, na noite derradeira, Tentas as filhas sensuais de Loth. Fazes de Roma toda uma fogueira! . . . E s t u mesmo que escolhes a figueira, A Judas, natural de Iscariote.

    Foi Ele que abrasou na carne, um dia, A tribo sensual de Benjamim. Pregou na catedral de Alexandria. Era pai dum senhor de Normandia. Foi amigo de Nero e de Caim.

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Ia tentar o asceta sua cela, Nos claustros escuros do Ocidente. Aos Magos escondeu, nos cus, a Estrela, E andava disfarado em sentinela, Guardando o Justo, o Bom, o Resplendente .

    Ao homem tinha uns dios velhos, trgicos, E era ele o que andava entre as pelejas . . . Corrompeu os conselhos areopgicos. E fazia roubar, pelos seus mgicos, As hstias consagradas nas igrejas.

    Fazia distrair a S . Clemente Com a bulha invisvel de corcis . . . E era ele, nas horas d o poente, Quem apagava as luzes, de repente, Quando oravam nos templos os fiis.

    Tomava, s vezes, ordens e a tonsura, E benzia as prostradas povoaes . . . , Fazia a voz, ento, austera e dura, Explicava os segredos da Escritura, E cantava, entre as lentas procisses.

    Dava, num tom dogmtico, uma ideia, E vinha discutir com S. Toms. I niciava os sbios da Caldeia. E , nos bblicos tempos da Judeia, Andava a intrigar Cristo com Caifs.

    Tem no rosto o descor dum fulminado. Era mulher nas lendas monacais: Outras vezes gigante e corcovado . E vagava, no mundo disfarado, Como os deuses, nas formas de animais.

    Nas regies serenas, luminosas, Encontra-se inda os seus lcidos rastros. constelaes felizes, piedosas! . . . Inda, s noites, chorais, silenciosas, A gande luta bblica dos astros? . . .

    33

  • 34 GOMES LEAL

    Nasceu nas doces, puras regies? Ah! quem dir onde nasceu Sat? . . Nasceu entre as demais constelaes? Comandava as flamantes legies? E seria seu pai Leviat? . . .

    Nesses tempos do exlio a s penas mestas Jpiter no sofrera inda proscrito . . . pis no inventara suas festas, No errava inda P pelas florestas, E no ladrava Anbis no Egipto.

    Pra, aqui, neste ponto, a humana lista. Quem sabe se do velho Caos nasceu? . . . S quando, contra Deus, a lana enrista, que segundo, o Eleito, o Evangelista No se acha mais o seu lugar no Cu.

    GUA-FURTADA DUM ORIGINAL

    Eu moro, altivo e s, numa trapeira, Doce e alegre, onde as pombas deixam rastos . . . Exposta todo o dia soalheira, E onde passo, dormindo, a vida inteira, Nas vizinhanas lmpidas dos astros .

    Como na era feliz das serenadas, Das graves casteis nos seus balces, E gticas varandas recostadas . . . Vejo, em baixo, passar as cavalgadas, Os enterros e as lentas procisses.

    Professo o culto s do iar niente, Deitado, todo o dia, num colcho . . . N a posio imvel dum vidente, Fumando o meu cachimbo, eternamente, Com os tranquilos modos dum sulto.

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    6 filhas do sPleen malfadadas V s poesias, sem razo nem senso! . . . 6 sebentas d o estudo empoeiradas, E tristes quais sul tanas desprezadas, A quem o Gro-Senhor no deita o leno ! . . .

    E vs teias d e aranhas, inquietos Tecidos, onde o sol brilha e reluz! . . . 6 Musas que inspirais o s meus sonetos ! Qual foi o deus, astros dos meus tectos, Que vos criou ao seu fiat lux?

    Sois vs que me escondeis, qual caracol, E servis de cortina e bambinelas . . . Quando e u declamo, envolto num lenol, E as vizinhas que esto tomando o sol A espreitar-me se pe entre as janelas ! . .

    A l i tenho u m cachimbo d e cigano, Sobre uns versos que fiz a uma Felcia. E onde pus um retrato de Trajano, Dentro dum casaco diluviano, Sofrendo como Csar de calvcia.

    Nas paredes es to frases simblicas, E aqui e ali borrados a carvo: U ma Vnus com ar de grandes clicas, Um santo dumas barbas apostlicas, E dois frades jogando o bofeto.'

    M ais ao p, tenho as cartas de namoro, E uma Bblia mui velha, onde no fim . . . Se pinta o Padre Eterno, e m nuvens d e ouro, Tendo, num grande p, chinelo mouro, E vestido com ar de mandarim.

    Defronte, ri, sinistra, uma caveira, A que pus uns bigodes com cortia, E dum truo a loura cabeleira . . . Que me acompanha a rir d a vida inteira, Como um Marte do Papa ajuda missa.

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  • 36 GOMES LEAL

    Ao lado mora-me um vizinho manco, Que faz dos sinos nico regalo . . . E goza da unio dum saltimbanco, Que anda pintado de vermelho e branco, E toda a noite canta como um galo.

    Defronte, uma vizinha costureira, Doce lrio, que treme a um vento vrio . . . Que canta a manh toda e a tarde inteira, E tem deixado c para a trapeira Duas vezes fugir o seu canrio! . . .

    Toda a noite o sineiro tem secretos Desejos de espreitar como que eu passo ! . . . I mita o som dos sinos indiscretos, E canta, numa voz que abala os tectos, Ao som das cambalhotas do palhao.

    E assim eu vivo s numa trapeira, Onde as penas das pombas deixam rastros . . . Exposta todo o dia soalheira, E onde passo dormindo a vida inteira, Nas vizinhanas lmpidas dos astros.

    BILHETE DUM ESTUDANTE

    Daquele esguio telhado - Onde tu sabes que eu moro -Eu acho os astros dum ouro J bastante mareado! . .

    Nenhum deles vale a trana Dos teus cabelos compridos! . . . Por isso meu peito lana Ao teu telhado gemidos.

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Se eu fosse Deus, minha amada, - Dar-te-ia, Sat me esfole! -Uma cartinha fechada, Servindo de lacre o Sol.

    Mas sou um prdio em runas, - No tenho nada comigo! -Sou um deus, fei to mendigo, Que tomo o sol s esquinas.

    Divago, roto e contente. - Odeio um lente . . . e o Filinto! E , sob este azul clemente, Triunfo, alegre e faminto.

    Meus deuses so Vico e Dante! E gosto, no meu caminho, Encontrar Minerva amante, E as Musas cheias de vinho.

    Como um barco sem amarra, Navego, trgidas velas. E desafio as estrelas, noite, sobre a guitarra.

    E a cabelo louro ou a preto, - Fragilidades do barro! -Envio sempre um soneto, Na mortalha dum cigarro.

    Vago sem norte e sem tino. - Ningum me estende o seu brao! -Quer-me por fora o destino Comendador ou palhao.

    POST-SCRIPTUM

    Desculpa-me, flor amada, - minha Musa divina! -No fui ontem escada, Por que empenhei a batina.

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  • 38 GOMES LEAL

    A LADY

    Aquela que me tem, agora, presa Minha alma, meus sentidos, meus cuidados . . . E m e faz sonhar sonhos desmanchados, uma altiva e olmpica inglesa.

    Nunca tipo ideal de mais pureza Vi nos gticos quadros mais prezados . . . Seus doces olhos castos e velados Tm um ar, infinito, de tristeza.

    Tem uns gestos de deusa que caminha, Fronte grega, e um ar grande de Rainha, E umas mos, como as ladies de Van Dyck . . .

    Segue-a sempre u m lacaio, e tristemente, por ela que eu morro, lentamente . . . E ponho no bigode cosmtique.

    HUMORISMO MSTICO

    Ao Dr. Toms de Carvalho

    Quando eu morrer, se acaso inda prezares Aquelas nossas digresses antigas . Ao verde campo, e as joviais cantigas Da aldeia inda apagar os teus pesares . . .

    Se, acaso, inda a giesta, o rosmaninho, A laranjeira e o grande muro branco, Te lembram . . . e te vais sentar no banco s tardes . . . j unto s tlias do caminho! . . .

    Se, acaso, aquele nome solitrio Que eu fui gravar um dia no pinheiro, Vinha descendo o Sol. .. como um guerreiro Cheio de sangue . . . atrs do campanrio . . .

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    Se, acaso, aquele nome o tronco duro Inda o guardou fiel . . . e a laranjeira . . . E e u no passei por este vale escuro Como uma ave lgubre e estrangeira! . . .

    Se acaso inda t e lembras desse, a quem Tanta vez tu ves tiste com as tranas . . . E , cova, e m que e u jazer, vier algum, Sem ser as meigas pombas e as crianas! . . .

    Se acaso aquele fogo e m que te abrasas Inda no se apagou! . . . nem o encanto! . . . M ais que a ideal palpitao das asas, Ser-me- doce, meu bem! ouvir teu pranto.

    E nessa cova ento bela e dourada, - Como a nossa unio antiga e calma -Colhe tu uma Oor branca e raiada . . . Que nessa Oor ocultarei minha alma.

    Toma cuidado nela . . . Ali se encerra O que amaste ! . .. e, ai ! no vs como as mulheres, C uriosas de amor, lanando terra As folhas virginais dos malmequeres.

    Planta-a dentro dum vaso predilecto. Entre os outros, luz . . . sobre a sacada . . . E eu gozarei como u m prazer secreto, Sentindo a tua mo pequena e amada!

    Ser esse o meu gozo derradeiro! O meu sol, meu azul, o meu espao! E, ao sentir-me regar pelo teu brao . . . Lembrar-me- o teu sculo primeiro.

    Lembrar-me- a giesta, o rosmaninho, A laranjeira e o grande muro branco, E quando amos falar, no velho banco, s tardes . . . junto s tlias do caminho!

  • 40 GOMES LEAL

    ROMANTISMO

    Quando ergue o transparente da janela, Ou que o seu quarto se inundou de luz, Eu amo v-la, sedutora e bela, Longos cabelos sobre os ombros nus.

    Oh como bela! e como a fico a olhar, Dos seus cabelos desatando a fita ! . . . Lembram-me as virgens que do austero Ermita Vinham as noites de oraes tentar.

    Oh como bela! Tem na luz do olhar Quais violetas quando as fecha o sono, No sei que doce e lnguido abandono, No sei que vago que nos faz cismar!

    Como eu a espreito, palpitante o seio, Como eu a.sigo nos seus gestos vrios, Naquele quarto, aquele ninho cheio Da doce voz dos joviais canrios! . . .

    Como eu quisera ser, nos sonhos dela, Um rei das lendas, o fatal D. Juan, Pirata mouro, em galees vela, Com minaretes sob o cu do Iro! . . .

    Como e u quisera - e que vontade intensa ! -S pelo brilho dessa longa trana, Ser cavaleiro de invencvel lana, Ou rei normando duma ilha imensa! . . .

    Como e u quisera, n o seu pensamento, Ser o rei bardo no rochedo duro, E ambos, fugindo, recortar o vento, Sobre a garupa dum cavalo escuro ! . ..

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Se me morresse, que comprido choro! Como vergara sob a cruz de Malta! Como eu deitara a minha taa de ouro, Por causa dela, duma torre alta! . . .

    E assim por ela fico preso, enquanto O Sol se esconde no Ocidente triste . . . Um cravo murcha, numa jarra, a um canto, E as aves voam, debicando o alpiste.

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  • A FOME DE CAMES (POEMA EM 4 CANTOS)

  • CANTO PRIMEIRO

    A TRAGDIA DA RUA

    Quando no mundo o Gnio abandonado expira fome e ao frio, indignamente, um lvido remorso ensanguentado sacode o mundo tenebrosamente. Como o arrepio dum terror sagrado, alguma cousa grita intimamente: como uma voz terrvel que suspira nas cordas vingativas duma Lira.

    E essa Lira s feita de ameaas. Essa Lira s feita de vinganas. Essa Lira s fala de desgraas, de antigos crimes, de cruis lembranas. Essa Lira espedaa e quebra as taas, cala os festins, e faz parar as danas, e essa Lira ai! da trgica inocncia a Lira terrvel da Conscincia.

    E a Lira diz: O que fizeste, mundo! das grandes almas nicas, sagradas, das grandes frontes dum sonhar profundo que eram as frontes as mais bem-amadas? O que fizeste desse abismo fundo de vontades mais rijas do que espadas, desses simples e santos coraes que faziam chorar as multides?

    O que fizeste dessas lnguas de ouro que sabiam pregar como os profetas? Como enxugaste o seu comprido choro? Como arrancaste as pontiagudas setas? O que fizeste, mundo! do tesouro que vs homens mortais chamais poetas: mas cujo nome de harmonias belas s o sabem as Cousas e as Estrelas?

  • 46 GOMES LEAL

    Deitaste ao lodo, rua, e aviltamento esses que adora a Natureza inteira, esmagaste entre as pedras o talento, os seus crnios quebraste, na cegueira! As suas cinzas espalhaste ao vento! Profanaste os seus louros na poeira! E repousam sem lstimas nem lousas os que viam as lgrimas das Cousas! . . .

    Por isso m e ouvirs em toda a parte como um soluo e um grito vingador, numa alta torre, atrs dum baluarte, entre os festins, nas convulses do amor. Na paz, ou levantando o estandarte da guerra, escutars a minha Dor. Porque eu, mundo! guarda-o na lembrana, Eu sou a Lira, e a minha voz Vingana!

    E o mundo escuta, indefinidamente, a voz da Lira a protestar terrvel . Ouve-a na sombra, ou pelo Sol-poente, se o vento dobra o canavial flexvel, ouve-a 110S sonhos, ouve-a intimamente, numa contnua msica inflexvel, at que enfim vencido nesta lia o mundo clama: Faa-se a Justia!

    Era uma noite lvida e chuvosa, ermas as ruas, ermas as caladas. Nada cortava a solido brumosa, nem ais de amor, nem gritos de facadas . Das nuvens colossais acasteladas somente a meia lua silenciosa, boiava em morto cu ermo de estrelas, como um navio que perdeu as velas.

    Quem que cruza chuva e ventania, meia-noite, as ruas solitrias? s tu santa Misria, que de dia foges da luz do Sol, o pai dos prias? Ou s tu Fome ou Vcio, que sem guia,

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    vais nas noites sem lua, morturias, provocar o Deboche e os estrangeiros baa luz dos tristes candeeiros?

    6 Destino! Destino! eu sei a histria de muitas das tragdias soluantes, de muito nome que esqueceu a Glria, de muitos prantos que caram dantes! Sei que riscam teus dedos Oamejantes, como uma sina m, muita memria, e que nada h maior e mais escuro do que brilhante e o bronze do teu muro!

    Mas no quero contar o drama agora do Brilhante, do Leque, e do Farrapo, da meretriz que no bordel descora, do amor do Charco, do histrio, do sapo; nem a farsa de sangue a toda a hora, do Ouro e do Veludo, o rico trapo, nem a sina imoral sinistra e crua da histria diablica da Rua.

    Um dia eu contarei a estranha lenda D estino! dos teus encantamentos, seguirei, passo a passo, a tua senda M isria! e direi os teus tormentos . Para que a alma da Ral aprenda, con tarei os cruis temperamentos, Direi o Incesto a amamentar os filhos, e o Parricida a esvaziar quartilhos .

    Um dia acenderei a selva escura das almas que sufocam nascena, das noites s riscadas de amargura, como um fsforo risca a treva densa. E com a ponta dum brilhante duro marcar-te-ei trgica Doena que vais, limpando as lgrimas internas, fazer um toast Morte nas tabernas.

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  • 48 GOMES LEAL

    Um dia evocarei os teus mistrios, tragdia da Rua e os teus segredos, mais funestos que os tristes cemitrios, mais profundos que os bastos arvoredos: direi sonhos, desejos quase etreos, desejos que tm asas nos degredos, duma alma que ama o Azul, o Azul almeja, como a agulha da torre duma igreja .

    Um dia esfiarei todo o rosrio da Inocncia e da Fome aventureira,

    " do Luxo, do Egosmo solitrio, do Gnio soluante na trapeira, da Virtude embrulhada em seu sudrio, pedindo esmola sua irm rameira, e o Crime dando bailes de aparato, enquanto o Justo expira no grabato.

    Descobrirei as contas da Avareza junto ao esquife duma virgem bela, o Tdio bocejando lauta mesa, a Fome da mansarda na janela, a " Inveja ululando contra a presa, como uiva lua a lgubre cadela, e o Suicdio, nas manhs geladas, espedaando o crnio nas caladas.

    Um dia cantarei a ladainha da Desgraa e da Forma triunfante, da Espada que tilinta na bainha, da Mscara que ri e passa avante, da Fome que ergue as mos e se definha, do Leque, da Batina, e do Brilhante das lgrimas mortais do eterno Entrudo, das misrias do Cancro e do Veludo.

    Por que tem muito que cantar o imprio e o inferno da Carne e dos desejos, porque eterno e lvido o mistrio da Morte. So eternos os almejos. Por que h lgrimas do bero ao cemitrio,

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    h lgrimas no Amor e at nos beijos, prantos comuns e de grotescos traos nas misrias dos reis e dos palhaos.

    Porque tem muito que cantar as cenas Rua! das estranhas odisseias das tuas festas, procisses serenas, do negro sangue que te agita as veias. Porque h remorsos, lgrimas e penas en tre os motins e os frenesins das ceias. Porque nesta funesta e eterna farsa. ai! tanto chora o actor como o comparsa.

    Porque h bastantes coraes vencidos, altos desejos que no mais voaram, sinis tros ais e ntimos gemidos lgrimas mudas que se no choraram. Sim, h soluos que no so ouvidos, l grimas mortas que se congelaram, numa misria, um abandono nobre como um enterro numa rua pobre!

    Porque ningum conhece onde termina o trejeito que ri, solua, engana, porque a eterna Mscara domina, e uma esfinge cada face humana. Porque a Morte em ns ceifa uma runa, q uando nos rouba na asa desumana, e esta mulher que ri com tanta graa, talvez uma lgrima que passa!

    M as agora eu s conto o Irrevogvel, mais monstruoso do que um sonho ardente, conto a histria funesta, inexorvel, do Gnio morto fome, indignamente. Quero narrar o que o inarrvel! fazer sentir o que jamais se sente, fazer chorar o choro masculino do Gnio coritra a noite do Destino!

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  • 50 GOMES LEAL

    o Gnio um arcanjo refulgente que enrista a lana contra a escura Sorte, tem no seu gesto uma expresso potente, que diz: eu quero! e empalidece a Morte. Para o Vulgo porm vil inclemente, e o Destino esse cego antigo e forte, um guerreiro trgico e proscrito, e a fronte tem com um luar maldito.

    Este vulto, portanto, que caminha al tas horas, ao frio das nortadas, Cmes que de fome se definha nas ruas de Lisboa abandonadas. Cames a que a Sorte vil mesquinha faz em noites de fome torturadas, ele o velho cantor de heris guerreiros! . . . vagar errante como os vis rafeiros .

    Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo, o seu amparo e seu bordo no mundo, morreu-lhe o humilde companheiro antigo, no seu peito deixando um vcuo fundo. Hoje pois tris te, velho, sem abrigo, faminto, abandonado e vagabundo, tenta esmolar tambm pelas esquinas. O' lgrimas! . . . O' glrias! . . . O' runas! . . .

    Mas no estende o valoroso brao, que outrora trabalhou entre os guerreiros, a mo recusa-se a suster o passo dos transeuntes raros, sobranceiros. A Fome ri-o, curva-o o cansao. Cospem-lhe a neve, a chuva, os aguaceiros. O' caladas fatais ! nas enxurradas vai muito fel de lgrimas choradas.

    O' Capitais! O' Capitais egostas! duras velhas mais duras que o granito! h caso mais sublime s vossas vistas que mais vos deva merecer um grito, mais negro, mais cruel para os artistas,

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    mais sagrado, dramtico, infinito, que mais abale os nobres peitos francos que um Gnio pobre e de cabelos brancos !? . .

    o Gnio continua ventania a errar pelas ruas s ilenciosas, como um espectro que dissipa o dia, como as grandes esttuas dolorosas. Assim a noite vaga, na agonia dos mrtires das noites trabalhosas, at que o sol jorrou pelas vielas, e ensanguentou os olhos das janelas.

    Comeam-se a ouvir esses rumores das capitais egostas acordadas, a msica dos carros chiadores que chegam das aldeias retiradas . Reco'meam as pombas seus amores sobre as brancas igrejas penduradas, e nas torres dos astros companheiras, a palpitar, nas glrias, as bandeiras .

    Comeam-se a ouvir as matutinas msicas da cidade, e as alegrias dos galos com as notas cristalinas dos sinos com estranhas sinfonias. O sol lava de glrias as colinas as torres, os beirais, as gelosias, e como a moa que um amante beija avermelham-se os vidros duma igreja .

    Dos pssaros retinem os gorjeios nas rvores, nas pontas dos eirados, os vis riachos, os lodosos veios, correm ralhando, ao sol, precipitados, os cavalos remordem os seus freios, vo passando aldees para os mercados, e atrs dos lentos carros os boieiros vm sombrios, graves, e trigueiros.

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  • 52 GOMES LEAL

    Somente ao Gnio uma tristeza enorme entenebrece todos os rudos, como um sombrio corao que dorme, que j no tem nem sonhos, nem gemidos! S sente uma saudade estranha, informe, como aroma dos tempos revolvidos, das grandes selvas, sombras e palmeiras quando o sol desce as ngremes ladeiras.

    Os aldees tisnados dos trabalhos, recomeando as horas das fadigas, recordam-lhes os picos carvalhos a sombra, os bois, as sestas to amigas ! Fazem lembrar-lhe as curvas dos atalhos, a ermida, a fon te, os fenos, e as cantigas, que ele escutara, pelas luas claras, s louras raparigas nas cearas!

    Lembram-lhe a ndia, os templos monstruosos, com seus deuses terrveis, singulares, as rvores de frutos venenosos, as bastas selvas, os gentis palmares ! Lembram-lhe os tigres ruivos, sequiosos, que vo beber a rios como a mares, e pelas noites imortais, eternas ! o luar nas figueiras das cisternas .

    E ele quisera achar-se em alto monte, em cima tendo os astros por juzes, dizendo adeus ao sol no horizonte, acabar os seus dias infelizes : na boa terra Me deitar a fronte e entre as vegetaes, entre as razes, misturar sua vida e acerbas dores com as almas das plantas e das flores!

    Para o velho cantor eram fugidos ai ! como luz que para sempre expira, os belos tempos jovens e luzidos , as mulheres ideais que o Amor inspira! Rotos, chuva, os trgicos vestidos,

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    posta de parte, empoeirada a lira, achava-se hoje numa rua, mundo, velho, faminto, pobre, e moribundo!

    Sem ousar mendigar, como um vadio, vaga nas ruas da Cidade egosta. A tarde chega, o belo sol fugiu. A noite vem, que o corao contrista. I rrompe a lua sobre a verde crista dum monte ao longe, e no lajedo, ao frio, o Gnio cai enfim, hirto e sem fala, como um cadver que se deita vala.

    N es te momento uma mulher gigante, que pareceu sair dum pesadelo, plida e triste, qual saudade errante, deixando ao vento as ondas do cabelo, to magra como a Sombra, o seu semblante toldado dum desgosto imenso e belo, chegou-se ao Gnio hirto e abandonado, como a viso dum sonho torturado.

    E d isse-lhe: Bem perto desta rua dar- te-o, mendigo, uma guarida, no dormirs lividez da lua e ters leito onde acabar a vida. Se a Sorte te esmagou, a Sorte crua, ergue a cabea plida e abatida, e ri contente, tris te, para a essa, que em breve vai findar a tua pea!

    A mulher aj udou a levant-lo. Cingiu o brao ao Gnio moribundo. A Morte que passava em seu cavalo deu-lhe um sorriso lvido e profundo. O teu semblante, velho, d-me abalo, disse a mulher. No vulgar no mundo! Dize-me pois que coisas tenebrosas te ho cavado essas rugas dolorosas !

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  • 54 GOMES LEAL

    Eu fui, o Gnio disse, um malfadado cantor de heris e feitos dos antigos! Amei tudo que grande e desejado, e terrvel lutei contra inimigos! Sentei-me no castelo derrocado, no deserto solar, cruzei os p'rigos! E com saudade enfim destas colinas, quis expirar-lhe, um dia, entre as runas!

    Ninhos fizeram no meu peito amores, como andorinhas sobre as catedrais! Conheo o aroma das. malditas flores ! Sei os soluos dos compridos ais! Sobre o deserto plido das Dores, ningum como eu peregrinou j amais! E pelas noites regeladas, cruas, chorei com fome, errando, pelas ruas!

    Porm que porta negra agora abriste? Que aspecto este morto e desolado? Acaso o inferno depois disto existe? Acaso pesadelo desmanchado? Cala-te ! , disse a Sombra magra e triste. Cala-te, Gnio imenso, desgraado!)) E com sorriso de expresso fatal a Sombra concluiu: E' o hospital ! ))

  • CANTO SEGUNDO

    NO GRABATO DO HOSPITAL

    alta a noite. A lmpada vacila, como um pranto, na vasta enfermaria. Um marmreo suor frio cintila sobre a fronte do Gnio, na agonia. O Gnio vai morrer; sobre a pupila treme-lhe um pranto luz baa e sombria, mais triste do que o luto duma sina, e um soluo atravs duma runa.

    J unto do leito uma mulher estranha, com grandes olhos tristes e parados, contempla-lhe o suor frio que o banha, e abraa-o com seus braos descarnados. Como um sol que se pe numa montanha, so frios os seus olhos encovados, hirta, severa, trgica a postura, como imagem de antiga sepultura.

    J viste, diz-lhe o Gnio, mulher triste! que me olhas com teus olhos impassveis, morrer no mundo algum? Acaso viste as lgrimas da morte irremissveis! Acaso, ao magro peito j cingiste uns braos que enfim caem insensveis, alguns braos de irmo que te apertaram, e que at s entranhas te gelaram?

    J conheceste as grandes despedidas as despedidas sepulcrais, eternas? J sabes quanto di irem-se as vidas, formas, e almas que nos foram ternas? Sabes o fel das lgrimas vertidas, ou o sangue das lgrimas internas, num rosto amado, uns olhos, um cabelo, que a alma sabe que no torna a v-lo?!

  • 56 GOMES LEAL

    Ai! s im, a Mulher diz com voz gelada que pareceu sair dentre saudades, calcadas como lrios numa estrada, terrveis como plidas verdades. Eu cruzei j os reinos e as cidades do luto, e da misria desolada, e vi mgoas, e gentes falecer que ningum viu, nem tornar a ver!

    E continuou a olh-lo fixamente com o seu olhar trgico e marmreo, e um suspiro vibrou profundamente dolorido, no vasto dormitrio. Como atravs dum sonho incoerente, neste sonho da vida transitrio, o Gnio leu, no seu olhar parado, todo o luto e terror do seu Passado.

    Ah! j sei quem tu s, o Gnio clama na rpida centelha dum delrio. Tu s 'a Musa que apregoa a fama, a Musa meu amor e meu martrio! Foste tu "que acendeste em mim a chama! Nessas plpebras roxas como um lrio, na palidez, nos l bios desbotados, vejo a Musa dos gnios desgraados!

    Tu s a Musa sim desses errantes e tristes peregrinos do Ideal, desses loucos e estranhos viajantes que andam busca duma flor fatal, duma flor de tons ricos, cintilantes, duma camlia azul e boreal: at que morrem numa praia nua, ou nos gelos, a um raio azul da lua!

    Foste tu que inspiraste sempre os cantos que eu dediquei Glria e Natureza! Ah! foste tu que me enxugaste os prantos, e ao luar me falaste de tristeza. Desci contigo ao reino dos espantos !

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Contigo tarde fui pela devesa! Contigo noite fui , pelas florestas, apanhar boas-noites e giestas!

    Contigo eu devassei esses segredos, das razes, das Cousas, das Origens, do germinar dos lrios e arvoredos, e fiz aos astros soluar as virgens. Contigo fui , nas pontas dos rochedos, debruar-me do abismo nas vertigens, e andei errante pelo mundo toa, como folha que vai numa lagoa.

    Mas hoje gela-me o suor na testa e convulsa-me o corpo um calafrio. Desejo, sonho, amor, nada me res ta! Nada sacQl'de meu cadver frio! Contigo no i rei pela floresta! No mais irei contigo pelo rio! porque o sopro vital em mim expira, como as cordas que estalam duma lira!

    No sou a Musa, disse a Sombra. No! Mas tenho visto os prantos dos amantes, e a desolada e lvida expresso dos seus gestos, nos ltimos instantes. As cristalinas lgrimas brilhantes tenho aparado nesta magra mo; cerrado os olhos com meus frios dedos, e escutado os seus ltimos segredos !

    E, continuou a olh-lo fixamente, com o seu olhar trgico e marmreo, e um suspiro vibrou profundamente dolorido, no vasto dormitrio. Como atravs dum sonho incoerente, neste sonho da vida transitrio, o Gnio leu, no seu olhar parado, todo luto e terror do seu Passado.

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  • 58 GOMES LEAL

    Ah! j sei quem tu s, o Gnio brada. Conheo-o agora em teu olhar funesto. Leio-o na tua fronte amargurada, e na expresso sinistra do teu gesto. Tu s uma saudade aos ps calcada, o lrio dum desgosto estranho e mesto, tu s a prole da Lgrima e da Dor. s o sinistro e monstruoso Amor!

    Mas no s esse Amor doce e sereno, nascido da Beleza, o Amor antigo, irmo das Graas, lrico e pequeno amando o riso, o campo, e o sol amigo! s o Amor desolado como um trena, terrvel como o aoute dum castigo, e empunhando na dextra ensanguentada um ramo de ciprestes e uma espada!

    Como eu sofri das largas cicatrizes, que abriste no meu peito, sem piedade! Como eu cantei meus sonhos infelizes! Como eu te amei ao sol da mocidade! Como inda sinto as pontas das razes do amor que alimentei, e com saudade lembram-me as tardes que ia nos caminhos, pensando em ti, sentindo teus espinhos!

    Mas hoje mocidade, vida alento, tudo se foi , para no mais voltar! Vai dissipar-se tudo, como ao vento, do fim da tarde o fumo azul dum lar! J sinto flutuar-me o pensamento como uma flor aqutica num mar, e nas pginas do livro dos meus ais a Sombra pr o triste nunca mais!

    No sou o negro Amor, irmo da Pena, a Sombra disse, e no empunho espada, mas tenho visto a tenebrosa cena, da tragdia da Vida malograda. Tenho visto a b lasfmia que condena,

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    a lgrima que queima ensanguentada, a lgrima que gela e que no corre, como um desejo que estacou, e morre!

    E continuou a olh-lo fixamente com o seu olhar trgico e marmreo, e um suspiro vibrou profundamente dolorido, no vasto dormitrio. Como atravs dum sonho incoerente, neste sonho da vida transitrio, o Gnio leu, no seu olhar parado, todo o lu to e terror do seu Passado.

    Conheo-te afinal, num grande brado o Gnio diz. Tu s a velha Glria, mas a Glria do gnio amaldioado, a Glria das lgrimas da Histria! s a Glria do gnio e do soldado que expira soluando e sem memria, num doloroso e lvido arrepio, como um cadver que rej eita o rio.

    Deves ter visto as penas penetrantes, como os bicos agudos do espinheiro, as desveladas noites soluantes, mais negras do que o rosto dum guerreiro, e as tristes magras mos febrecitantes que te buscam a ti , num derradeiro esforo de ansiedade e de desdita, com a blasfmia e a lgrima maldita!

    I luso! I luso! sonho que encerra em si a pobre humanidade inteira, louros que faz buscar a morte e a guerra nuvem que foge, hora derradeira! Glria! nome vo, ii q uem a Terra busca, e s palpa a lvida caveira, como plidas flores das iluses, que esmagaram os ps das procisses!

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  • 60 GOMES LEAL

    Glria! nome vo! sonho e quimera, ris triunfante de vistosas cores; verme luzente que vagueia na hera, sonho de estio entre luar e flores ! giesta gentil da Primavera, amendoeira da manh de amores, por que nos gelas do Destino beira, como a chuva que molha uma bandeira !?

    Glria ! esfinge eterna que dominas com teu olhar proftico do Incerto, que nos fazes sonhar verdes colinas na poeira da areia do deserto, H armonia longnqua, mas que perto, cremos ouvir, marchando entre runas, e que de repente nos fulmina e estala, como um conviva que morreu na sala!

    Como eu te procurei por vale e monte, e me rasguei nas lanas dos espinhos ! Como eu vi teus acenos no horizonte a ensinar-me as veredas e os caminhos! Como eu te vi um dia numa ponte, num zimbrio, nuns campos entre ninhos, e outra vez, numa lua sossegada, a galopar nas pedras duma estrada!

    Vi-te ainda outra vez, ao vento frio duma tremenda e lgubre procela. Estendias-me a mo, entre o assobio do nordeste e das ondas, branca e bela. Bem te vi , eras tu, e foi aquela santa energia, que hoje j fugiu, foi esse teu olhar que hoje desmaia, que exausto e salvo me atirou praia!

    Mas s hoje te vejo claramente! S hoje, fundo, nesses olhos leio!

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Tardaste muito em vir, Sombra inclemente! J muito tarde o teu auxlio veio! D esalentado, plido, doente, nenhum alento me comove o seio! Podes levar, Sombra! o teu tesouro. No vale tanto suor teu verde louro !

    No sou Amor, nem Musa, nem Glria, a Sombra disse, nem talentos fao. M ais terrvel, funesta minha histria! M ais duro e horrendo o peso do meu brao! No colho os louros; stios onde passo traam sulcos de sangue na memria. Ah ! mil vezes terrvel meu nome tenebroso e profundo! . . . Eu sou a Fome.

    A Fome! , o Gnio clama dando um grito, como um soluo ltimo estridente. A Fome me conduz para o infinito! A Fome meu final, o meu poente! Foi isto que ganhou meu brao ardente, foi isto que ganhou meu estro escrito! a agonia e o suor num mundo ingrato, desiluses, e a enxerga dum grabato!

    6 iluses, nuvens peregrinas, horas da mocidade j fugidas! i luses princesas perseguidas galopando em fantsticas colinas, brancas catedrais de pedra erguidas com as santas, tarde, purpurinas vegetaes, florestas, ideal recebei meu adeus no hospital !

    Como tu , tenho visto, disse a Fome, pender muita cabea venervel, m ui to crnio de gnio, muito nome, que eu lancei no abismo do insondvel. M uitos que a glria cega e que consome

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  • 62 GOMES LEAL

    duma selvagem sede insacivel, tenho cingido como a tristes noivos, e hoje esto nas razes, e entre os goivos!

    Muitos tenho apertado entre meus dedos que se ho finado num febril delrio, e tm-me dito os ltimos segredos, com suas bocas lvidas de lrio. Dormem alguns sombra de arvoredos; mas outros para mais mortal martrio, ningum lhe importa em seu desprezo fundo onde esto os seus ossos sobre o mundo!

    Gigantes crnios de candente lava tm repousado no meu magro peito! Bem lindos corpos onde a morte crava seus dentes, dormem sob o cu perfeito! M as, quando um gnio como tu, no leito mata ao abandono a gerao escrava, pelo universo, cmplice sombrio, corre um remorso, como um calafrio.

    Por isso eu vim colher-te, inda tremente logo que expires, Gnio, sem confortos, a lgrima de mrmore imponente, que se gela nas plpebras dos mortos. Porque quero levar como presente aos prncipes, aos povos absortos, e aos astros a lgrima marmrea, que num grabato derramou a glria!

    Mas, se acaso na terra e sobre os mares ningum avaliar este teu pranto, acima irei das nuvens e dos ares dos astros, dos planetas, do Espanto: mais acima das Dores e dos Pesares, da Jus tia sublime ao trono santo, s solenes e e ternas regies, pedir justia ao pranto de Cames .

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    Dizendo isto a Sombra descarnada debruou-se do Gnio sobre o leito. Cames morria j: hirta e gelada a Fome lhe cruzou as mos no peito: e a lgrima marmrea, regelada, lgrima que infunde pvido respeito, ento colheu do rosto moribundo, como um frio protesto contra o mundo.

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  • CANTO TERCEIRO

    o LENOL DO GNIO

    o conde Vimioso em seu solar d uma ceia a nobres e senhores; Estalam as risadas pelo ar. Pelos copos espumam os licores. A Gula e a Carne ali gozam a par: fala-se em caas, touros, e de amores : e riem dentre as suas pedrarias marquesas que hoje esto em galerias .

    Nisto um estranho velho entra na sala, hirto e solene, como um quadro antigo; seu porte triste pelos peitos cala, seu ar hostil como de inimigo. Os risos param, emudece a fala, como ao ver um remorso, ou um castigo. Calam bares falando de corcis, e as damas com as mos cheias de anis.

    E o velho disse: Estranho meu pedido! Estranho sim! no meio duma festa: mas venho por um morto protegido, e este pedido os lbios no me cres ta! Para um Gnio de que hoje nada resta, para um Gnio da fome consumido, um Gnio infeliz! um apagado sol, venho pedir a esmola dum lenol !

    O lgrebe pedido num momento fez em todos roar um calafrio: figurou-se-lhes o gesto macilento da Morte, ao longe, em seu corcel sombrio: figurou-se-lhes a Febre, o Passamento, e a Doena em seu catre hmido e Crio, e as damas, os bares, e os cavaleiros perderam os sorrisos zombeteiros .

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    Porm o Conde dominando o gelo do terror que estragava a sua ceia, e desmaiava o busto grego e belo da mulher por quem todo se incendeia, com um riso que tem do orgulho o selo bradou ao velho cujo srio odeia: Que gnio esse ento, bom velho honrado, que comparais ao sol j apagado!?))

    Todos riram. Um riso irresistvel o mnipotente, intrpido, animal, pela sala estalou, bronco e terrvel, como um insulto e a Colha dum punhal, O rude velho trgico, impassvel, deixou passar aquele vendaval, depois num rir, de irnico respeito, os longos braos encruzou no peito.

    Zombai)), o velho disse, altos senhores! e magnficas damas cintilantes, nas ricas pedrarias, plumas, flores, mais brancas do que os vossos diamantes! Zombai ao p dos vinhos, dos licores, das baixel as lavradas, dos amantes, desta cousa to cmica e sem nome . . . dum Gnio pobre e que morreu d e Come!))

    E o velho riu: Ah! de que serve, certo, um Gnio inCeliz? um portador, de lira!? de que serve dos Prantos no deserto um instrumento que uns sons doces tira?! Um Gnio lava que importuna ao perto, e um grande crnio que o talento inspira, se com seu canto consolou as almas . . . q u e coma o louro e as triunCantes palmas! . . .

    Ah! que servem andar como Caris, como Moiss a conduzir um povo, alvoroando as almas para os sis, num canto herico, original e novo? Se com os prantos destes rouxinis

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  • 66 GOMES LEAL

    que alvoroam e turbam, me comovo, talvez vos choque e s almas verdadeiras que no faam crescer as sementeiras !

    E o velho riu . As glrias do Passado dos heris e dos feitos doutra idade nos castelos, no mar ilimitado, hoje fazem sorrir a mocidade! As glrias de avs s tem o lado potico de dar solenidade e grandes tons magnficos, imponentes, nas salas, entre as telas de parentes!

    Ele, o Gnio, cantou esses combates, dos homens, e das foras do insondvel da eterna Dor, naufrgios, e os embates terrveis do que frgil e mudvel! Castigou com a stira os dislates do arbitrrio, do injusto, e miservel. Foi poeta, filsofo, e guerreiro. S nunca conseguiu ser um toureiro! . . .

    E o velho sorriu amargamente, com um sorriso custico, sombrio, num riso superior em que se sente uma alma forte que jamais faliu. O Conde ento, bradou-lhe secamente, com um grande ar todo solene e frio: Antes de tudo dir-me-s primeiro, se s fidalgo, peo, ou cavaleiro!

    E narra-nos depois, miudamente, a mim, aos cavaleiros e senhores, e s preciosas damas, que ao presente te escutam, piedosos sempre s dores: narra-nos essa histria surpreente desse gni.o infeliz, e esses horrores, que trazes, como vejo, na lembrana, com mais respeito que a dos pares de Frana .

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    De novo tudo riu. Toda a sonora e ampla sala ecoou com as risadas. Viam-se rir as bocas cor de aurora das magnficas damas decotadas. Duquesas louras, tranas cor de amora, com belas mos, macias, delicadas, abafavam o riso em transparentes lenos lacerados entre os dentes.

    o velho ergueu-se em toda a majestade e bradou numa voz terrvel, dura, que fez cessar de pronto a hilaridade, pelo tom nunca ouvido de amargura: Ah! infeliz, indigna Humanidade mil vezes infeliz! se a Criatura sempre se risse assim do que sublime ou quando o mundo se infamou num nime!

    Ah! infeliz mil vezes ! se o que nobre e o que infame, ignbil, monstruoso, sob o Azul sagrado que nos cobre tivesse o mesmo aplauso vitorioso! Maldito e excomungado fosse o pobre! e maldito o Destino criminoso! por trabalhar ainda para o mundo com um suor intil e infecundo!

    Maldita fosse a Vida e o ardente beijo do Amor que produziu a Criao, maldito o Sonho e as asas do Desejo maldito o Pranto, a nsia, e a Aspirao! Despenhada mil vezes sobre um brejo de i nsondvel misria e humilhao o m undo se abismasse num inferno do implacvel, ansioso gelo eterno!

    Maldito fosse tudo o que suspira, maldita a Dor, mais o soluo Humano, maldita a Alma e a lgrima da Lira, maldito tudo quanto grande e insano! Que sobre o mundo horrvel, onde gira

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  • 68 GOMES LEAL

    a serpente da Ideia no oceano da treva, o derradeiro homem horrendo expirasse, ainda rindo, e maldizendo!

    Agora, quanto a mim, altas damas magnficas, divinas, cintilantes, e cujos belos olhos tm mais chamas do que os olhos dos rgidos brilhantes, antes de ouvirdes os funestos dramas da fome, horrorizai-vos, sabei antes que eu sou s um plebeu vil que trabalha, e que saio das ondas da canalha!

    Senti tambm em mim o fogo ardente da Lira perpassar-me pela fronte, e amei tudo o que j usto e que potente, e meus irmos chamei ao bosque e ao monte. Nos desertos castelos do Ocidente, s nuvens cor de sangue do horizonte, tambm eu fui sentar-me nas colinas, a chorar sobre as glrias e as runas!

    Mas o Gnio infeliz, o vulto imenso o heri cantor vencido pela morte esse que me perturba, quando penso no implacvel da tirana Sorte, esse que j entrou no bosque denso, que j partiu o muro brnzeo e forte, que em breve vo deitar na escura vala, esse, s de eu falar. . . treme-me a fala !

    O velho ento contou a trabalhosa lenda do Gnio, a musa, e seu destino, a intuio da Natureza rumorosa da flor, da sombra, e rio cristalino. Como o Sol pai das plantas, e da rosa, penhasco alcantilado e voz do sino, Vegetaes, florestas, nuvens, ventos, e clulas, razes, pensamentos;

  • POEMAS ESCOLHI DOS

    tudo que vida que tem alma e sente, tudo que flor suave e tem perfume, tudo que asa e corta o ar luzente, tudo que astro, brilha ou que tem lume, tudo que foge lquido e corrente, tudo que em corpo e alma se resume, tudo que belo como o sol na alfombra ou fundo e triste como a voz da Sombra,

    todo esse vasto Todo verde e belo, toda essa santa Natureza enorme, o luar como a folha dum cutelo, o m inrio que crem que s dorme, as heras nas runas do castelo, os moluscos e a larva humilde e informe, tudo isso belo ou feio que se ostenta, tem voz, tem alma, chora e se lamenta!

    Mas que o Gnio no meio disto tudo sofre mais, porque entende estes lamentos ! Ele traduz a Dor disso que mudo, e resume os gerais desolamentos! No tendo contra a Sorte um outro escudo que no sejam seus fortes pensamentos, passa curvado num pesar profundo, sentindo em si o mal de todo o mundo!

    E todos escutavam silenciosos damas, bares, religiosamente, os sentidos gerais misteriosos das palavras do velho estranho e ardente. E cuidavam ouvir os mil chorosos e soluantes ais, longinquamente, das subterrneas Cousas infelizes: os ais da planta e os choros das razes!

    Ele pintou depois o Gnio, quando deixou prender seu forte corao nos sorrisos dum gesto puro e brando, e vagou na torrente da Paixo. Como feridos rouxinis cantando,

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  • 70 GOMES LEAL

    os seus versos rezavam da aflio, das tragdias, desgraas e dos brados dos tristes coraes despedaados.

    E as palavras sentidas, violentas do plebeu calavam pelos peitos, e sentiam-se ouvir como os tormentos dos grandes coraes santos desfeitos . Parecia-se sentir as suarentas e desveladas noites sobre os leitos de amantes separados, solitrios, mais gelados que os leitos funerrios!

    Desenhou-o depois triste e exilado, por todo o mundo errante peregrino, vagando como heri, como soldado, aoutado do vento do Destino: e o seu rude pesar fundo e divino da grande viuvez do ente amado, pondo-o nas' rochas trgico e proscrito, de braos levantados ao Infinito.

    E todos escutavam, surpreendidos, essas desgraas brbaras sepultas, no mistrio do olvido; e esses gemidos e essas sagradas lstimas inultas. Bares e cavaleiros comovidos enxugavam as lgrimas a ocultas, e as plidas senhoras soluantes alagavam com prantos os brilhantes.

    Depois pintou o horror da tempestade e o assobio dos ventos nas procelas, dos naufrgios a lgubre verdade, um navio sem mastros e sem velas. E o Gnio do mar na imensidade, fria claridade das estrelas, entre as ondas, os ventos, os espantos, salvando o grande livro dos seus cantos.

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    D epois mostrou-o plido, quebrado, no fundo duma lgubre enxovia, no declinar da vida, envergonhado, preso pela Inj us tia, e Cobardia. Pintou ao fundo trgico e assentado, na msera masmorra hmida e fria, o Desespero torvo e macilento, irmo magro e infernal do Desalento.

    E do plebeu nas frases singulares sentia-se o glacial dos luares frios, os rugidos dos ventos pelos mares, o desfazer das tbuas dos navios: as fundas despedidas, e os pesares dos adeuses nos crceres sombrios, e um vento a soluar como um aoite do Destino, rasgando a eterna noite.

    E todos escutavam, surpreendidos, essas desgraas brbaras sepultas nos mistrios do olvido, esses gemidos e essas sagradas lstimas inultas ! Bares e cavaleiros comovidos enxugavam as lgrimas a ocultas, e as plidas senhoras soluantes banhavam com seus prantos os brilhantes.

    Depois contou as noi tes inarrveis da Misria, e da Neve as ladainhas, sobre os gelos os grandes miserveis, em a ti tudes trgicas, mesquinhas. Desenhou os carvalhos formidveis em l gubres lenis, as andorinhas fugidas, procurando outros pases. E sempre! sempre a Fome! e os Infelizes!

    Depois narrou a rude luta imensa com todas as potncias da Desgraa, e o Gnio atravessando a nvoa densa, como um espectro lvido que passa: as lgrimas da Fome e da Doena,

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  • 72 GOMES LEAL

    e o mendigar do escravo sobre a praa, pedindo suplicante turba e ao mundo esmola para um Gnio moribundo.

    Pintou a morte desse escravo amigo, e o Gnio inda mais triste e no abandono da fora desse servo, seu abrigo, dos amigos, dos nobres, e do trono. E o terrvel guerreiro do inimigo pintou em noites lvidas, sem sono, velho, dobrado, pelas nvoas cruas, faminto chuva, e ao vento, pelas ruas.

    Pintou depois, chorando, a l tima cena e da tragdia o derradeiro acto, e essa cabea plida, serena, no frio travesseiro dum grabato. Desenhou esse hospcio, uma geena, onde vai terminar muito aparato, e depois , ai! depois, fria e fatal a desolada lgrima final !

    Quando acabou, sentia-se na sala o rudo dos choros sufocados, e os soluos e as lgrimas que exala a Dor nos coraes muito abalados. O Conde estava em p, hirto, e sem fala, hirto, sem fala, em p, os convidados, e as damas atiravam soluantes, s plantas do plebeu os seus brilhantes.

    Guardai, o velho disse, altas senhoras! as vossas belas jias preciosas, que j de nada servem nestas horas ao que morreu, sem vossas mos piedosas . Prendei-as novamente s tranas louras, que o cantor, nestas horas lutuosas, para ir enterrar-se, luz do sol, carece s da esmola dum lenol !

  • POEMAS ESCOLH IDOS

    o Conde deu uma ordem. Num momento um ntido l enol pajens trouxeram. Ao pegar-lhe no rosto macilento do plebeu as lgrimas correram. Eu choro, bradou ele, esse talento esse crnio q ue as lgr-imas arderam, ' e que em prmio do gnio que trabalha s teve por es mola esta mortalha !

    Este lenol va i ser o teu sudrio grande Gnio ! que rolaste praia da Morte, desgostoso e solitrio, mais branco do que a lua que desmaia. Quando soar teu sino funerrio e no teu crn io a campa rasa caia, chorai damas, bares, num choro fundo a maior a lma que deitou o mundo!

    Essas faces chorai, as quais araram, as l grimas do a badono e da desgraa, as q uais como ca rvoes rubros queimaram, ou como um vento de areal que passa: este crneo chorai, de cuja taa as lgrimas de s angue se entornaram, e este lenol sabei damas, bares vai embrulhar o corpo de Cames !

    E novamente as lgrimas correram, e os soluos de novo rebentaram, as cores novamente se perderam, e os convivas em p se levantaram: os lacaios o passo suspenderam, . muitas damas mimosas desmaiaram, como caem as lgrimas internas nas funerais separaes eternas .

    o velho ia a sair. Porm o Conde ) deteve e bradou: Que nome o teu, " homem singular, onde se esconde 1m peito que mais nobre do que o meu? )or que reinos cruzaste? Dize aonde

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  • 74 GOMES LEAL

    aprendeste, fantstico plebeu! a falar das estranhas aflies, dum modo que sacode os coraes . . . ? !

    o velho ento ergueu-se, em toda a altura do seu corpo potente e agigantado, e deixou ver a atltica figura, de sorte que pareceu ter-se elevado. E ento, num tom terrvel de amargura, que deixou todo o mundo alvoraado, bradou num ai, num grito, estranho e novo: Sou o Pranto do Povo e volto ao Povo!

  • CANTO QUARTO

    A LGRIMA DE MRMORE

    Essa lgrima imvel que se gela sobre as plpebras roxas dos finados, e que eu j vi rolar funesta e bela nas faces de dois entes bem-amados, o que que ela nos diz? que nos revela de progundos desejos decepados, de inauditas ou ntimas desgraas, que so as flores fnebres das Raas?!

    o que que ela nos diz, que nos remove at ao mais profundo das entranhas, triste como flor onde no chove, no cume inacessvel das montanhas?! Dir ela um desejo que j houve, cheio de dor e aspiraes estranhas, e expirou e morreu num mundo falso como um amor ao p dum cadafalso ! ? . . .

    Quando a fome colheu do moribundo a lgrima de mrmore dorida, ps-se logo a caminho pelo mundo e foi vend-la aos Prncipes da Vida. !'vIas alguns , num desdm fino e profundo, riram da triste oferta nunca ouvida : outros tiveram um horror absorto ao verem uma lgrima dum morto !

    Lembrou-se ento dum Prncipe potente que vive num pas todo de gelo, que ama tudo que glido, inclemente, e frio como a folha dum cutelo. Penetrou no palcio refulgente, todo cheio de mrmore e ouro belo, e onde ele desvelava insnias cruas no meio de milhes de espadas nuas.

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    Quando o Csar cruel viu esse pranto de que fostou seu gnio monstruoso Sombra disse: Acho um secreto encanto neste glido objecto curioso! . . . Deixa-a ficar que causar espanto ao meu povo selvagem tenebroso, e assim lhe ensine num terror mortal como que gela a lgrima final !

    Porm da noite no silncio frio quando o Csar dormia no seu leito esta lgrima ao Prncipe sombrio infundia-lhe um trgico respeito. Das vises no terrvel desvario via da Morte o ltimo trejeito: e as caveiras sem olhos, nem narizes, de todos os sinis tros infelizes!

    E a lgrima implacvel e severa acusava-o de todos os seus crimes dos seus instintos trgicos de fera, dos mortais que dobrava como vimes, dos irmos e dos Pais que ele prendera, e das almas viris, fortes, sublimes, a quem seu brao sem cessar enterra pela entranhas hmidas da terra!

    E o Dspota na lgrima parada lia a lenda de todos que sem nome sobre a neve, ou na mina bronzeada tinham morrido esqulidos de fome: via os prantos da plebe esfarrapada que num suor estril se consome: e os clamores formidveis , justiceiros, dos prantos de milhes de mil mineiros! . . .

    Fugiu logo d o lei to insuportvel, e por todo o palcio vaga errante. De manh chama a Sombra miservel e entrega-lha, com mo febrecitante: Leva daqui , lhe grita, esse implacvel

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    tormento, que mais frio que um brilhante, porque de prantos tenho um cemitrio no gelo excepcional do meu imprio !

    Lembrou-lhe ento Fome ir ofert-lo de Roma ao mais sinistro inquisidor. Deixa porta o seu plido cavalo. Penetra cheia dum mortal terror. Quando o sicrio a viu sentiu abalo e d isse Fome: Eu gosto desta flor que floresce nos mortos, como lrios que gelaram nos olhos dos martrios!

    Porm da noite no silncio enorme, a fixidez da lgrima impassvel olhava-o como um olho frio e informe, e acusava-o de tudo que h de incrvel, Acusava-lhe a alma, antro disforme; e estendia-lhe ento num sonho horrvel de eternos prantos um gelado mar como uma imvel solido polar.

    E ao bandido lembravam-lhe as torturas dos que vira morrer nos seus flagcios, de todas as sinistras criaturas a quem passara a esponja dos suplcios. E as disformes e enrgicas figuras, com blasfmias, gritavam-lhe os seus vcios, e entre injrias, mostravam, j usticeiras os braos calcinados das fogueiras.

    Envia de manh chamar a Fome, e Sombra grita com sorriso duro: Podes levar a lgrima sem nome, e esconde-a bem no antro mais abscuro. Como uma pedra que o abismo some faze que ela se suma; e no futuro no me tragas jamais estes espelhos dos que morreram contra os Evangelhos !

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    Quando a Fome largou os dois sicrios foi procurar o rei dos mais banqueiros, que era tambm senhor dos usurrios, cujos navios, eram aos milheiros. O palcio valia os mil errios dos prncipes mais ricos estrangeiros. E as suas salas tinham cem figuras das mais raras e nuas esculturas.

    Quando o banqueiro viu a estranha oferta disse num tom irnico e orgulhoso: A vida dum poeta pobre e incerta! Mais mesquinho o seu pranto angustioso! Contudo, como a fome vil te aperta, guardarei este pranto curioso, e na alcova a porei, como memria de que vale tudo Ouro, e nada a Glria !

    Porm, de noite no silncio fundo, a lgrima impassvel fixa, dura, recorda-lhe os prantos que no mundo fizera derramar a sua usura. E num estar imvel e profundo, como um espectro duma sina escura, todos choravam, neste pesadelo, inconsolveis lgrimas de gelo!

    Levantou-se o banqueiro torturado e mal a aurora avermelhou a terra, chamou a Fome, e lvido, aterrado, disse Sombra: Confessa-me o que encerra esse impassvel pranto amargurado que no sei o que tem me gela e aterra, tendo eu s nestas salas cem figuras das mais ricas marmreas esculturas?

    No 'sei, a Sombra disse. Teem-me dito o mesmo, muito grandes assassinos. que esse pranto foi talvez o grito do Gnio contra o injusto dos destinos. que o Gnio o aoute do Infinito

  • POEMAS ESCOLHI DOS

    contra os crimes, e os grandes desatinos, e mesmo sob os goivos morturios regela ainda as almas dos sicrios!

    Depois disto ningum mais quis o pranto! Todos riam do estranho dessa oferta. Uns fugiam da Fome com espanto. Outros julgavam-lhe a razo incerta. Uma virgem, porm, dum rosto santo bradou, a face de rubor coberta: Eu amei dum poeta a fronte amada! Ai ! quem dera essa lgrima gelada!

    Porm nada te dou, por que sou pobre, a ti que s pobre como eu sou tambm. Sobe acima do azul que a todos cobre, acima dos Desprezos, do Desdm. Sobe acima da Dor que grande e nobre, mais acima dos astros, mais alm do Egosmo, da Inveja , e da Cobia, e vai lev-la ao trono da Justia!

    Ento a Sombra abandonou o mundo, e ergueu-se logo acima das esferas, longe de Besta de Ouro e Vcio imundo, para longe dos Tempos e das Eras, perto do abismo do insondvel fundo, onde tm corpo as lcidas quimeras: montada num cavalo horrendo e feio, sem estribos, sem rdeas, e sem freio.

    Quando ela contemplou em baixo a terra, humlimo planeta gro de areia presa do Tempo e insacivel Guerra e onde a raa dos mortais ondeia, ela que nada j- comove a aterra, que nenhum pranto dum estranho anseia, sentiu brotar no seco corao a rubra e estranha flor da Indignao.

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    Ela atravs passara de almas, vidas, e dos mrtires lgubres descalos, das jovens mes cruis infanticidas, das i luses e dos sorrisos falsos, a travs das e ternas despedidas, dos crimes , dos incestos, cadafalsos, e de todos os crimes e desgraas que so os fru tos trgicos das Raas.

    Ela atravs passara dessas almas aonde em prantos se escreveu jamais, das grandes solides das neves calmas, atravs das gals, dos hospitais, atravs das blasfmias e dos ais, das glrias, dos triunfos, e das palmas, e atravs sempre! sempre! do gemido do Gnio eternamente perseguido.

    Por isso quando foi perto do trono da terrvel Justia, da Imutvel, ia ainda indignada do abandono em que se afunda o Gnio inconsolvel. Como os nordestes varrem pelo outono as roseiras, assim ela implacvel, tinha varrido toda a piedade contra a dura e egosta Humanidade.

    Mal a viu a Justia disse: 6 Fome o que que trazes da sombria Terra? Trazes um ai do que morreu sem nome? Sonho de virgem que teu brao enterra? Trazes um riso que o infeliz consome? ltimo beijo em que um amor se encerra? Trazes um grito, um desalento fundo? Trazes um pranto de que riu o mundo?

    Trago mais que isso, replicou sombria a magra Fome, apresentando o pranto. Eu trago-te esta lgrima to fria como o gume da Espada j usto e santo . Eu trago-te este pranto de agonia,

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    e que a ti mesmo causar espanto, pranto que gelou como uma esperana, pranto que clama um grito de vingana !

    A Fome ento narrou, sucintamente, a histria da lgrima marmrea. N arrou toda essa vida descontente, toda essa tragdia to sem glria; seu gnio, seu destino, e febre ardente do Belo, e de gravar-se na memria, e esse pranto to triste e to profundo, que s o quis uma mulher no mundo!

    Ao acabar ergueu-se ferozmente a Justia em seu trono, comovida, e clamou com um brado omnipotente tal que as origens abalou da Vida: Eu j uro pelo sangue do inocente, por mim, por esta lgrima cada, pelo Cu, pela Dor, e pelo Espao, por minha espada, e fora de meu brao;

    por tudo que h de jus to e de terrvel, por tudo que h de santo e de implacvel, pelo pranto que cai no Invisvel, e o soluo que rola no insondvel, que no destruo mundo, insensvel, planeta! essa vida miservel, por ter havido uma mulher que quis um desolado pranto de infeliz!

    Mas j que o no quiseste Terra fria, quero-o eu, de contnuo, na presena! Quero t-lo de noite, quer de dia, como um sonho constante em que se pensa! Quero ter esta lgrima sombria, para um dia lavrar tua sentena! Quero t-lo ante mim, como lembrana: para lembrar-me de que sou Vingana!

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  • 82 GOMES LEAL

    Quero t-lo ante mim, ah! como um grito, que me recorde os tristes que sem nome ho estendido os braos no Infinito, na sede de Justia que os consome! Quero t-lo ante mim, como o aOito brado do Gnio que morreu fome, e que vos prove desta espada os brilhos, de que vs, Poetas, sois meus filhos !

    Assim disse a Justia. E desde ento ante ela jaz o pranto eternamente, para provar que se no verte em vo a lgrima, na terra, do inocente: que a natureza me, e o Gnio irmo do esprito dos astros refulgente e que a Justia sopra a sua ira nas cordas vingadoras duma Lira.

    Eu no sei se entendestes o sentido oculto e justo desta alegoria, se fiz ond ular bem a vosso ouvido os tenebrosos sons desta agonia? E vs, tris tesl tristes I que haveis ido transidos repousar na vala fria, esquecidos, inglrios, sem um pranto a lgrima aceitai deste meu canto!

    Acei tai es te can to, como prei to crnios de lava que no orna o louro ! e enfim morrestes, porque o vosso peito bateu nas pedras, dentre as nuvens de ouro. Aceitai nesta lgrima o respeito, vs q ue encontrastes s riso e desdouro! e que em vez do festim do que trabalha, no tivestes nem louros, nem mortalha!

    Aceitai nesta lgrima o protesto de mui tas geraes de rebelados contra o abandono insl i to e funesto do mundo silencioso aos vossos brados! Em vez do riso, insulto, e do doesto,

  • POEMAS ESCOLHIDOS

    aceitai nossos psames irados, e neste canto, mortas existncias ! os protestos de muitas Conscincias !

    E tu, mundo, aprende-o! Doravante no mates mais o Gnio que irradia! No se ergam nunca mais ao cu distante, contra ti, magros braos de agonia! Porque hoje, sabe-o bem! fixa e brilhante, est clamando e bradando noite e dia, acima de dios, Prantos, e Cobia, a l grima marmrea ante a Justia.

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  • TROA INGLATERRA

  • SIMPLES PALAVRAS

    No somos dos espritos ciprestais q ue entendem que s deve ser pernlitida, como vingana, a choraminga.

    Os picarescos ingleses - esses louros descendentes dos saxes e dos piratas nor