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A PROPRIEDADE DE ANTONIO LUIZ DE SEABRA Gonçalo de Almeida Ribeiro FDUNL N.º1 - 2003

Gonçalo de Almeida Ribeiro - fd.unl.pt · valores condensáveis no binómio liberdade-prosperidade. Tal como noutros domínios – do ... Sucede, não obstante, que a plena realização

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A PROPRIEDADE

DE ANTONIO LUIZ DE SEABRA

Gonçalo de Almeida Ribeiro 

FDUNL N.º1 - 2003

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

Working Papers

Working Paper 01/03

A PROPRIEDADE*

DE ANTONIO LUIZ DE SEABRA

Enquadramento Geral e Análise Crítica

Um Estudo de História das Ideias Políticas

Gonçalo de Almeida Ribeiro

© Gonçalo de Almeida Ribeiro

Nota: Os Working Papers da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa são textos resultantes de trabalhos de investigação em curso ou primeiras versões de textos destinados a posterior publicação definitiva. A sua disponibilização como Working Papers não impede uma publicação posterior noutra forma. Propostas de textos para publicação como Working Papers, Review Papers (Recensões) ou Case-Notes (Comentários de Jurisprudência) podem ser enviadas para: Miguel Poiares Maduro, [email protected], Ana Cristina Nogueira da Silva, [email protected] ou Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Campus de Campolide, 1099-032 LISBOA.

* Estas páginas aprontaram-se no âmbito de um curso de seminário de História das Ideias Políticas sobre «Liberalismo e Crítica», leccionado ao curso de 2001-2002 pelo Senhor Professor Doutor António Manuel Hespanha.

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ÍNDICE GERAL

I - A SEMÂNTICA DA PROPRIEDADE.................................................................................. 4 II - PROPRIEDADE E CIÊNCIA............................................................................................11 III - PROPRIEDADE E DIREITO.......................................................................................... 13 IV - PROPRIEDADE E SOCIEDADE.................................................................................... 15 V - PROPRIEDADE E ECONOMIA....................................................................................... 16 VI - PROPRIEDADE E CODIFICAÇÃO................................................................................. 19 VII - EPÍLOGO................................................................................................................. 21 VIII – BIBLIOGRAFIA CONSULTADA................................................................................ 25

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I

A SEMÂNTICA DA PROPRIEDADE

Ao abrir o livro de SEABRA, o leitor desprevenido não poderá senão exprimir perplexidade. Como compreender a Propriedade enquanto questão nuclear da Filosofia do Direito? Dir-se-ia ser problema bem mais próximo das preocupações do civilista. E logo responderemos: de pouco vale ler SEABRA se ignorarmos as coordenadas fundamentais do ambiente social-cultural em que a sua obra germinou. O escrito é de 1850; precisamente do período em que mais intensamente se agitaram, entre nós, as águas do liberalismo. E é em SEABRA, no seu A Propriedade, que se patenteia a luz mais clara do «individualimo filosófico-crítico»1 português. Ora, a propriedade surge-nos justamente como o «princípio de Direito» informador da ordem social própria do liberalismo2.3 Como a palavra mágica que abre as portas do reino da justiça e da felicidade supremas. E é sob o signo da propriedade que o sistema jurídico, já hipostaseado em lei, se vem necessariamente a alcandorar. Simplesmente para compreendermos a centralidade que o pensamento liberal, com especial intensidade o jurídico, vem a conferir a essa misteriosa categoria da propriedade – que já se nos descobre como algo mais do que o seu entendimento coetâneo poderia prima facie fazer crer – é indispensável uma breve peregrinação pelo imaginário político, social e filosófico de 1800. Só assim estaremos aptos para penetrar na obra que diante de nós exige tratamento. Só depois de compreendidas as palavras que, em estilo de advertência preliminar, são-nos dirigidas pelo autor: «a questão que nos occupa, parecerá à primeira vista, mórmente aos espíritos superficiaes, uma questão secundaria; mas a verdade é que, por pouco que se medite e se aprofunde, facilmente poderemos convencer-nos de que nenhuma interessa mais vivamente a sorte do homem, nenhuma abrange na sua generalidade tantas relações e tão diversos aspectos. A nossa existencia, a nossa liberdade, o nosso passado, o nosso futuro, a industria, a sciencia, as artes, a moral e a mesma religião, tudo se liga e prende à questão da Propriedade, único princípio e fim da sociedade» (p.1).

* Compreender a sociedade típica do liberalismo é tomar conhecimento dos dois elementos que, na sua irresistível convergência por afinidade, mais intensamente a proporcionaram: o paradigma individualista e a afirmação radical da ideia de interesse. Por um lado, a sociedade deixa de ser tomada como um dado natural, um ser ancorado a uma ratio divina. A compreensão da pessoa concreta por referência a um vínculo natural, que a liga a um grupo com um dado estatuto perante uma ordem social harmónica, tomba perante o discurso individualista iniciado pela escolástica franciscana quatrocentista e amplamente difundido pelas correntes providencialistas e contratualistas. A pessoa deixa de ser considerada no cerne do

1 Para usar a terminologia de CABRAL DE MONCADA, citado por ALMEIDA COSTA - «Enquadramento Histórico do Código Civil Português», in BFDUC, vol. XXXVII, p. 138. 2 Sobre a procura da determinação do sentido e alcance do «princípio de Direito» como vaexata questio do pensamento jurídico liberal – de AHRENS a FERRER – v. CABRAL DE MONCADA – ob. cit., pp. 277 e ss. 3 Diz SEABRA (p.VII), referindo-se ao objecto do seu trabalho: «em cada epocha há um principio dominante em todos o ramos da vida social...».

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feixe de relações interindividuais, perde a sua identidade material conexa com determinado atributo social, para passar a ser compreendida como simples indivíduo, como átomo de uma massa amorfa de abstracções4. Naturalmente tamanha inflexão não podia deixar de tocar a própria compreensão da sociedade. Enquanto concebida como corpo de grupos com identidade e função autárquicas, bem servia a referência metafísica a uma ordem objectiva das coisas. Simplesmente a consciência dessa nova realidade individual vem afectar a referência primária a um objectivo comum. O subjectivo ganha coloração viva, dá-se conta dos impulsos naturais de cada um-igual; desponta o voluntarismo. E repare-se nas consequências que esta novada ordem de ideias vem atear. A «natureza» laiciza-se. Retomando alguns postulados da filosofia tomista, a modernidade vem reclamar a «autonomia da ordem natural das coisas». Uma corrente, cifrada no empirismo, pretende que a ordem-do-ser se auto-regula etiam daremus Deum esse5. Uma outra, comprometida como o nu voluntarismo individualista, afirma radicalmente o querer-escolher, além de ordenar-se ao mais intenso secularismo6. O poder perde o seu arrimo tradicional. Não mais se torna possível à ordem estabelecida reclamar a sua positividade por referência a uma ratio divina. E isto porque a ideia de racionalidade sofre um trânsito de sentido. Numa conjugação, nem sempre pacífica, entre racionalismo-iluminista e o empirismo-naturalista, a razão perde a sua referência a uma constelação axiológica inscrita na justiça objectiva e é agora entendida como um arsenal de «categorias» à permanente disposição do indivíduo, que o convoca para construir sistemas dedutivos das lei naturais, daquelas mesmas que MONTESQUIEU definiu como as «relações necessárias que derivam da natureza da coisas»7. Acresce a esta radical convolação no paradigma compreensivo das relações indivíduo-sociedade-poder, a autodeterminação de um elemento outrora imbricado com o princípio ético do social: o interesse. Justamente porque supera a matriz teocêntrica, o homem sente-se confiante na sua capacidade de querer-e-saber, e consciente da sua irredutível dimensão personalista, emerge como homo aeconomicus8. A ordem económica liberta-se de juízos morais para, muito convenientemente, surgir ela mesma como centro irradiador de um acervo de valores condensáveis no binómio liberdade-prosperidade. Tal como noutros domínios – do jurídico ao político – o económico ganha relevo autónomo, reveste-se de dignidade cientifica e deixa-se apreender em sistemas explicativos. É este o papel de um ADAM SMITH ou de um RICARDO9. 4 Vem aqui sub-entendida a lição de ANTÓNIO HESPANHA – Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, 2ª ed., Lisboa, 1998, pp. 59 e ss. 5 Idem, p. 143 6 CASTANHEIRA NEVES – Curso de Introdução ao Estudo de Direito – O Pensamento Moderno-Iluminista como Factor Determinante do Positivismo Jurídico (polic.), Coimbra, 1976, pp. 5 e ss. 7 ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit., p. 145 e desenvolvimentos posteriores (especialmente pp. 158-159); CASTANHEIRA NEVES – ob. cit., pp. 7 e ss. Diz-nos este autor na p. 7: «...à ratio clássica, ontológicamente hermeneutico-material (preocupada com o intelligere de um ser heterónomo, que manifestaria em si a sua própria significação, o seu próprio sentido) e, como tal, judicativa (predicativa) sob a perspectiva da ordinatio metafísico-ontológica, substituia-se uma ratio autofundadamente nos seus axiomas (ou nas sua evidências racionais), contrutivo-instituinte nos seus modelos explicativos e sistematicamente dedutiva nos seus desenvolvimentos». 8 CASTANHEIRA NEVES – ob. cit., pp. 14 e ss. 9 Sobre a autodeterminação de certas dimensões sociais como «pressuposto teórico» do liberalismo e da separação Estado-Sociedade, v. JORGE NOVAIS – Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, Coimbra, 1987, pp. 51 e ss. O A. centra o seu discurso nas teses de A. SMITH (separação Estado/economia), KANT (separação Estado/moralidade), e HUMBOLDT (separação Estado/sociedade). Todavia, muito embora reconheçamos muito mérito na clareza da sistematização de ideias perfilhada, nem por isso deixa de ser evidente a propensão para o simplismo. Pelo que o olhar do A. sobre a sociedade liberal acaba truncado, muito particularmente por omitir determinados aspectos ou dimensões do imaginário liberal que reputamos decisivamente cardeais.

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Vemos porém que quando as teses de ADAM SMITH acerca da ordem natural de composição dos interesses surgem à luz do dia, já uma certa classe de mercadores dominava sectores fundamentais da vida económica. Isto porque o Estado de Polícia – especialmente por influência do fisiocratas, mas ainda na época do mercantilismo – não se pautava pela absorção da sociedade. Muito longe disso, o monarca prosseguia o fins do Estado sem se preocupar com o constante distanciamento da realidade social. Sabe-se desde logo que, invocando uma indeclinável razão de Estado, o soberano poderia livremente fazer actuar a máquina da polícia administrativa, se necessário constrangindo os seus súbditos10. Mas assiste-se igualmente a um nivelamento da sociedade, com a constante centralização de um jus politae e a respectiva alienação dos tradicionais jura quaesita estamentais. E este quadro abre caminho à consolidação de uma verdadeira classe de ricos mercadores11. Sucede, não obstante, que a plena realização dos interesses da nova classe que o capitalismo do laissez faire criara – primeiro com o fisiocratas, depois com o liberais – dependia ainda de um outro elemento que o Estado de Polícia não podia necessariamente oferecer: a segurança jurídica, na sua dupla dimensão de previsibilidade e estabilidade. Justamente a falta deste sentimento de confiança – que MAX WEBER viu como uma constante em todas as burguesias – tornou evidente a vantagem de um certo público em apoderar-se do aparelho estadual. E repare-se ainda que, num sentido que adiante desenvolveremos, segurança aqui significava essencialmente defesa irredutível da liberty and property. Trata-se de, conquistada a sociedade, tomar conta do poder e fazê-lo agir somente por meio de lei geral e abstracta. Isto para além da defesa do statu quo do proprietário ser uma exigência natural do conteúdo dos actos legislativos12. É neste ponto que introduzimos duas categorias sem as quais não é possível apreender o sentido da mentalidade liberal: a propriedade e a publicidade. Vimos já que a sociedade oitocentista traz a marca indelével de um interesse de classe13. Com efeito, torna-se suficientemente claro que a articulação do individualimo radical com a autonomização da ideia de interesse, criou condições de excelência para o florescimento da burguesia. E nada mais nada menos do que uma burguesia proprietária. O entendimento da sociedade como associação de indivíduos livres e iguais encerra um corolário tão evidente que a sua revelação redunda quase supérflua: a cada um, pelo menos teoricamente, está assegurado o equipamento necessário para alcançar a felicidade. O que - tomando em consideração a ideia materialista de interesse tal como acima a descrevemos – pouco diferente será de afirmar que a cada um é dada a oportunidade de criar riqueza, de trabalhar para empreender, de constituir, enfim, propriedade. Abolidos os prévilèges do ancien régime entende-se que é ao homem-indivíduo, combinando as suas capacidades físicas e intelectuais, a quem está cometida a magna responsabilidade de ser feliz, de trabalhar para obter propriedade. Se a todos é garantido o direito de apropriação, então

10 Repare-se todavia em que o dano causado ao particular vai ser senão compensado ao menos consolado por uma subtileza do Estado baixar-se ao vir do jogo privado – o Fisco. E por isso possa ter-se em elevada conta a lacónica fórmula de OTTO MAYER: «submete-te e apresenta a conta»; com isto lançando-se luz por sobre esse peculiar agir do Estado-de-Polícia. 11 Seguimos com alguma proximidade as admiráveis páginas de EHRHARDT SOARES – Direito Público e Sociedade Técnica, Coimbra, 1969, Cap. III – A Construção Política Liberal: Uma Teoria da Separação Estado Sociedade. 12 Aquilo que dissémos já e o que diremos adiante corrobora plenamente a seguinte consideração de EHRHARDT SOARES (ob. cit., p. 39): «a aparelhagem do Estado contemporâneo foi forjada principalmente para dar satisfação às necessidades duma época que é a da ascensão da burguesia na sua luta contra as formas monárquicas de governo. Importa ter consciência disso para se não cair no erro de absolutizar as soluções e supor que os quadros político-jurídico decorrem de uma espécie de direito natural à maneira do século das luzes». 13 Não nos ocorre terminologia menos problemática. Mas desde já asseveramos que as linhas que se seguem vão – para além do mínimo inevitável - despidas de qualquer intuito ideológico.

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somente aqueles que decididamente não foram abraçados pela providência podem permanecer na pobreza. E a consequência óbvia deste estado de espírito é que os proprietários desfrutam do estatuto social ajustado aos «homens-de-valor». A propriedade ganha tal relevância no contexto social do séc. XIX que o seu sentido normativo vem a alargar-se imensamente. A própria liberdade-autonomia, aquele direito a ser feliz que a razão-natureza impunha como cláusula irrevisível do Contrat Social, é lançada para a órbita dessa mais larga categoria da propriedade. Precisamente por propriedade entende-se agora não somente o direito de apropriação, de possuir propriedade em sentido estrito, mas muito mais amplamente a própria personalidade do indivíduo. Do que resulta a propriedade tout court como uma extensão necessária da propriedade-personalidade, isto é, a liberdade fica limitada ao necessário para realizar o direito de apropriação, verdadeira condição da mais ampla capacidade de ser livremente feliz. E isto já nos deixa tomar parte na compreensão do ambiente político liberal. Antes porém convém trabalhar a questão da publicidade (Öffentlichkeit)14. Esta burguesia proprietária que ascende ao som do rufar de tambores do liberalismo começa progressivamente a interessar-se pelo conhecimento. O proprietário rico vê-se na necessidade de, na sua escalada de ascensão social, ganhar a consciência crítica de quem pretende ajuizar a gestão do negócios públicos e especular acerca dos temas candentes da politicidade. O gosto pela leitura, não mais reservada a um círculo restrito, afirma-se como uma nota de relevância neste aspecto. E paulatinamente, vai-se constituindo um grupo de ilustrados. Precisamente aqueles que haviam reclamado a cedência da arcana praxis, que reivindicaram a universalidade do saber, acabam por ostracizar a massa obscura do analfabetismo, de se compreenderem a si mesmos como a opinião pública esclarecida. Esta noção que introduzimos, de publicidade, vem até agora carregada de um sentido puramente fáctico. Publicidade aqui significa conhecimento aberto a uma generalidade de pessoas15. Mas as considerações que fizémos revelam já uma mutação no entendimento da publicidade. Quando uma camada restrita da sociedade se distingue das restantes por formar um círculo de literatos, os indivíduos que a compõe ganham consciência da sua superior condição. E julgam-se no dever – não menos que no direito - de, revelando já um sentido normativo da publicidade, se arrogarem exprimir o todo colectivo hipostasiado em povo ou Nação16. Aquela publicidade que surgira como instrumento de crítica da sociedade tradicional-hierarquizada é justamente o critério mediante o qual se afere da competência do indivíduo para representar a colectividade. O que não é outra coisa senão, no âmago do pensamento liberal, darmo-nos conta do significado e extensão do sufrágio censitário-restrito. E disto resulta claramente que a liberdade-participação era reserva absoluta do clube de proprietários e intelectuais. Não tanto como afirmação premeditada e pouco escrupulosa do interesse selvagem de uma classe sócio-económica, como a posterior crítica marxista veio irradiar, mas muito mais intensamente porque se crê filosófico-culturalmente que propriedade e publicidade são condições sine qua non da racionalidade, ou seja, são o justo critério-padrão através do qual se determina o sujeito racional17. O que nem por isso disfarça a verificação de que o Estado está agora muito próximo das mãos de quem mais o repudia, daqueles interessados na manutenção de um statu quo amparado na crença de uma mão invisível ordenadora da sociedade.

14 O termo é como se sabe de HABERMAS. O que se disser sobre esta matéria é largamente tributário da lição de EHRHARDT SOARES

– ob. cit., pp. 47 e ss. 15 Idem, p. 47. 16 Ibidem. 17 EHRHARDT SOARES – ob. cit., p. 59.

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Concluímos também, desde já, que este conjunto alargado de transformações prático-culturais veio decisivamente confirmar e reforçar o dogma da separação entre Estado e sociedade. O Estado dos homens-publicos, na esteira de um KANT ou de um HUMBOLDT, é o garante da ordem pública e o dínamo polarizador dos valores políticos. A sociedade dos privados rege-se pelas leis de mercado, aí onde os valores económicos e a ordem natural de composição do interesse egotista do homo aeconomicus dispensa a brutalidade da administração estadual. O drama é que nada garantia que o Estado aceitasse ad aeternum comportar-se simplesmente no foro de tais valores políticos, já para não falar das dificuldades em definir um critério de demarcação de uma axiologia desse género, quando, como bem diz EHRHARDT SOARES, «ainda no domínio em que se agita a política muitos dos problemas têm raiz no plano económico». Faltava justamente aquela garantia institucional que tolhesse o retorno ao pavoroso jus politae da época anterior. Algo que simplesmente garantisse ao homem de negócios que a liberdade de abusar do «seu» não era obstruída por um qualquer capricho do poder, assim jansenisticamente olhado. E este temor justificado da burguesia consolida-se extraordinariamente quando os seus interesses materiais vêm embater com os da velha aristocracia ou do monarca hereditário. Eis porque, ainda sob o signo da propriedade-publicidade, um dado grupo social tende a assenhorar-se da instância legisladora, primeiramente com a mera intenção de neutralizar o Estado, depois já para convertê-lo em mandatário da sociedade e dos interesses que nela mais intensamente se agitavam18. O controlo do parlamento significará para este público restrito também o controlo do Estado. E isto porque a lei – entendida mais como ratio do que como voluntas19- reestruturou o sistema de fontes de direito e dotou-se a si mesma do respectivo ceptro imperial. Se a sociedade é toda ela pensada no modelo de associação de indivíduos descaracterizadamente iguais, não se compreende que haja sequer Direito fora da lei. Porque o dogma da identificação entre jus e justitia não se perdeu com o advento do liberalismo, somente o seu referente se deslocou de uma objectividade transcendente para, muito mais em conformidade com a exigência de uma igualdade formal (i.e. igualdade-na-liberdade), se vir a ancorar na lei, verdadeira dedução daquilo que a natureza, convocada para o tribunal do racionalismo, inevitavelmente vem a exprimir. Evidentemente este raciocínio carreia já, no seu mais íntimo, o dinamite da dicricionariedade administrativa e da iuris prudentia dos tribunais. Não só o jus politiae do monarca, potencialmente arbitrário e imprevisível, é lançado borda fora com a imposição de uma reserva total de lei, como se perde a missão judicial de um prudente arbítrio decisório perante a sólida edificação da catedral legal. O próprio costume, tão comprometido com aquele referente ético-teológico que modernidade repudiava, perde o seu significado jurídico. Entende-se que só ao Estado cabe fazer Direito, cabe decidir a lei positiva pela bitola da lei natural; é ele a expressão legítima de um contrato polarizado pelos extremo do individual e da instância política, sem mediação de corpos intermédios20.21 Por outro lado, é de notar que uma certa constância material é radicalmente deposta e substituída por uma irredutível imutabilidade da forma. Direito é somente lei geral e abstracta,

18 Cfr., por todos, idem, p. 55. 19 Embora, como assinalámos supra, não houvesse verdadeira antinomia entre razão e vontade. E isto porque da crença no homem racional resulta claramente a compreensão da lei-vontade como revelação da «natureza» inscrita nas coisas. Explicaremos adiante de que forma se deu tal conciliação. 20 CASTANHEIRA NEVES – ob. cit., pp. 18 e ss. : «... efectivamente o direito só poderia ser, nestes termos, o direito do Estado. Não o direito inferível de um ethos comunitário ou enquanto expressão normativo-jurídica da vida comunitária». 21 ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit., pp. 172 e ss.

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não só no sentido de uma garantia de igualdade formal, mas muito mais intensamente para permitir ao indivíduo o necessário espaço de concretização dentro da abstracção, isto é, para evitar que a lei se antecipasse à liberdade «impedindo a livre dinâmica realização individual e dos interesses»22. Mas nem por isso – atenda-se a este ponto – se conferia plena liberdade ao legislador. Sobre ele pairava sereno o princípio de direito natural que inevitavelmente era obrigado a positivar, ou então perderia a sua dignidade racional, ficaria despido das suas prerrogativas políticas. E, acrescentamos já, esse princípio racional não era senão liberty and property ou a propriedade no seu sentido mais amplo, já pensado como princípio e fim da sociedade. Pelo que a lei surgia muito mais próxima do que hoje designamos por garantia institucional do que de uma prescrição normativa. Não há contudo que duvidar da continuada crença numa volonté générale. É necessário atender ao facto de que o público exornado como representante do todo colectivo, não era senão aquele que, ao nível privado das relações socio-económicas, se julgava regulado pela ordem natural, precisamente a que intrinsecamente carregava o fardo do primogénito princípio de direito, aquela que a razão exigia materializar extrinsecamente sob a forma de lei23. Pelo que aqui ratio e voluntas não só se identificam como se unem num coro, reclamando insistentemente o primado inabalável da lei. A vontade geral dá corpo de lei ao princípio de direito que a razão convocada revela gravada na natureza humana, isto é, a lei é simultaneamente a vontade de todos e a razão universal24. Assim sacralizado como fórum da justiça, o parlamento burguês não só extinguiu definitivamente o Estado de Polícia como transformou o político em escravo da sociedade de homens privados. Por este processo de conquista da aparelhagem estadual conseguiu-se: «instituir um sistema que legislativamente exprime o interesses da classe burguesa; aprensentá-lo como um instrumento que não pretende preocupar-se com interesses particulares, nem mesmo com a sua soma, mas somente com a descoberta do direito justo; furtar a sociedade a todo o domínio, porque o «domínio da lei» não é de homens, mas da ordem natural; e finalmente fornecer à burguesia a satisfação de seu desejo de certeza e calculabilidade (...)»25. Todavia, e apesar do formalismo sobrelevado, faltava ainda um instrumento mediante o qual se pudesse conhecer todo o Direito Positivo, uma ordem formal que permitisse o constante conhecimento das soluções jurídicas justas e racionais, e que decididamente elevasse a lei a esquema totalitário de todo o sistema de fontes. Eis como o movimento codificador assume especial relevância no quadro da vida jurídica liberal26.

22 CASTANHEIRA NEVES – ob. cit., p. 21. 23 Tomamos, por isso mesmo, com alguma relutância a seguinte conclusão de CASTANHEIRA NEVES (p.21): «... [as leis modernas] relativamente às leis pré-modernas (...) eram sem dúvida mais exigentes quanto à forma – onde essencialmente se via agora a sua juridicidade, - mas quanto ao conteúdo o que não menos decerto as caracterizava era, nas palavras de HABERMAS, a perda “do sentido normativo” (...) da sua “substância moral”». É bem verdade que em resultado do advento do legalismo liberal o Direito perde a sua referência moral-tradicional para se vir a orientar pela bússola do interesse. Mas não é menos verdade que nesse interesse descobrimos uma exigência de conteúdo relativamente à lei: simplesmente a garantia da propriedade sensu latu ou da liberdade-propriedade. Do que bem melhor se dirá, e sem por isso à distância de HABERMAS, que o liberalismo representa um corte discursivo radical, implicado com normativos e imperativos (categóricos e hipotéticos) metadiscursivamente inflexivos de uma “pré-comprensão” ordinalista. 24 Para mais desenvolvimentos, v. JORGE NOVAIS – ob. cit. pp. 86 e ss., bem como os autores aí citados. 25 EHRHARDT SOARES – ob. cit. p. 57. 26 O movimento de codificação moderno muito deve a BENTHAM. A filosofia utilitarista do sistema benthamiano, com todo o seu cientismo e logicismo, especialmente ordenado ao princípio algébrico da descoberta do justo (felicific calculus), convidava já o advento da codificação racional-moderna. BENTHAM reclamava aliás uma codificação universal, por força da dedução simples e racional do princípio da utilidade: «an all comprehensive code of any nation professing liberal opinions» (ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit., p. 163).

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Observa-se porém, aliás correctamente, que a noção de código não era de todo estranha às preocupações dos mais ilustres juristas romanos, e que desde muito cedo os povos deram-se conta das vantagens de reduzir num texto o seu particular acervo de fórmulas jurídicas. Simplesmente a categoria de código imbricada com o legalismo liberal vem exarado de um significado que não podia ser mais estranho ao das tradicionais codificações. A um nível formal, distancia-se do aglomerado grosseiro e arbitrário de um Digesto ou de umas Ordenações, desabrochando já como ordem ordenada, já como sistema27. Do ponto de vista substancial, é decisivamente inculcado por uma ideia de direito, verdadeira dedução racional da lei natural. E tal ideia de direito, na compreensão profunda da mentalidade liberal, não mais era do que o princípio informador de uma sociedade de indivíduos-com-interesses; não mais era do que a percepção ampla da propriedade. Disto resulta muito claramente que as codificações emergentes na época do liberalismo, com especial interesse as de Direito civil, vieram à luz do dia como a afirmação simultânea da vontade geral, na téctónica que lhes incutira o público dominante de 1800, e da lei natural que desde A. SMITH se cria reguladora do mercado dos homens privados. Numa palavra, positivava-se a própria constituição da associação dos homo aeconomicus. Por outro lado - releva acrescentar - a proliferação de códigos em todos os sectores da vida jurídica constituiu um cómodo repto ao aventureirismo jurisprudencial e doutrinal. Agora, mais do que nunca, le juge c`est la bouche qui prononce les paroles de la lois ; e os grandes tratadistas deixaram de conhecer o Direito civil para, em uníssono com o ambiente cultural oitocentista, se reclamarem corifeus da mais pura exegese dos monumentos legais. Tal o optimismo racionalista que a atmosfera liberal incutira nos espíritos jurídicos.

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Eis aqui, nos seus pontos cardeais, a sociedade liberal oitocentista tal como a vemos. Notar-se-á que somente intendemos projectá-la muito sumariamente, deixando, aqui e ali, questões de primário interesse e relevância por ventilar. Justificam-se porém tais lacunas se atendermos ao seguinte: o nosso escopo foi simplesmente o de dar a conhecer as coordenadas fundamentais de uma cultura que marca profundamente a obra do Visconde de SEABRA. E isto porque, forjada em 1850, A Propriedade surge precisamente no período que CABRAL DE MONCADA apodou de «paz octaviana»28, quando em Portugal domina, mais nas ideias do que nos actos, aquele «individualismo possessivo»29 com que acima tomámos vivo contacto. E se é nessa categoria – já menos obscura – da propriedade, que se centra o debate jusfilosófico da modernidade tardia, não é difícil compreender a centralidade cientifica que lhe confere SEABRA. A sua obra é, do ponto de vista político – e apesar de muitas contradições de substância e truncamento de método – um claro manifesto em defesa do mais puro liberalismo individualista30. É assim que nela encontramos a questão primeira da propriedade em directa conexão com outras categorias típicas do pensamento oitocentista. Da referência à ciência ao problema ontológico do Direito; da questão da sociedade à averiguação do justo sistema económico. Todos estes elementos centrais do debate jurídico-político de uma época, inevitavelmente colocados perante a questão mais ampla da propriedade. E se são estas as ideias-força da doutrina que viemos encontrar neste livrinho, são elas mesmas que nos acenaram com o método apropriado. Trataremos, nesta esteira, o tema da propriedade-ciência, da propriedade-direito, da propriedade-sociedade, da propriedade-

27 ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit. p. 162. 28 Citado por ALMEIDA COSTA - «Enquadramento Histórico...», cit., p.146. 29 É adjectivação de C. B. MACPHERSON, segundo indicação de ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit. p. 171. 30 A questão de saber se o SEABRA d`A Propriedade era, de facto, um liberal-clássico-puro, será aflorada em infra VII – Epílogo.

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economia e da propriedade-codificação. Fazemo-lo na convicção profunda de que um livro deve ser objectivamente encarado, não mecanicamente glosado; deve ser verdadeiramente criticado, não comezinhamente torturado; deve ser seriamente comentado, não gratuitamente incomodado.

II

PROPRIEDADE E CIÊNCIA Não é possível compreendermos o sistema31 de SEABRA sem nos darmos conta do ingrediente «cientista» – no sentido moderno-racionalista do termo – que intervém em toda a sua construção teórica. O A. entende o universo como uma máquina, dentro da qual os indivíduos, isoladamente ou em relacionação, oferecem à nossa observação uma constante cadeia de fenómenos32. Esse mesmo cosmos rege-se por leis ditadas pelo criador, do que o homem tem um fim ou destino que deve alcançar com o equipamento particular de que a natureza o dotou. Resulta daqui muito claramente que a função do cientista é somente a de lançar mão de um método racional-dedutivo que lhe permita assimilar – racionalmente, abandonado «os theologos e os espiritualistas» (p.5) - as leis naturais que regem os factos da vida. Ora, sabemos desde logo que o princípio da sociedade tal como concebida por SEABRA – como pelo movimento de ideias em que temporal e culturalmente se integra – não é senão o da propriedade. Do que se conclui que a propriedade sugere um desafio constante aos métodos científicos. Repare-se porém que - em aparente contradição com aquele filão “racionalista” - o A. reclama-se amiúde dominado pela procura dos “factos”33. Simplesmente importa acrescentar que o racionalismo revelado não é senão aquela razão profusa confirmada na observação da natureza considerada como conjunto de «leis gerais e particulares ditadas pela eterna sabedoria no momento da criação» (p.3). Assim se repudia a razão formal de inspiração cartesiana, bem marcante de uma certa concepção liberal do mundo e da vida34. Significa isto tão-somente que em SEABRA estamos muito mais próximos do jusnaturalismo individualista, da crença num direito natural apreendido em sistemas axiomático-dedutivos, do que de um nu positivismo legalista35. Muito embora se reconheça que a fronteira de facto entre as duas correntes vem a esbater-se consideravelmente à medida que o séc. XIX corre36. A ciência aparece aqui como a missão indeclinável da inteligência humana. Compreendendo-se como parte de um universo racionalizável, o homem deve simplesmente procurar conhecer o princípio natural que o Criador promulgou. E se o pensamento da época logo determinou o descobrimento desse princípio na categoria da propriedade, e logo veio declará-la como o 31 É o próprio SEABRA que reiteradamente, em escritos diversos de seu punho, reclama para o modelo filosófico que perfilha a designação «meu systema» (v. por exemplo, Apostilla à Censura do Senhor Alberto Moraes de Carvalho sobre a Primeira Parte do Projecto de Codigo Civil, nº 1, Coimbra, 1958, p.8; e Novissima Apostilla em Reposta à Diatribe, cit., p.8). A este propósito, TEIXEIRA DE FREITAS chega mesmo a zombar de SEABRA na sua «Diatribe» (segundo citação do mesmo – Apostilla em Resposta..., cit., p.8): «Eis a primeira noção [de Direito Civil] falsa, em que discordamos do nobre A. do Projecto, noção que viciou todo o seu chamado systema, e o fez exorbitar das linhas do Direito Civil propriamente dicto, de que elle positivamente deveria tractar». (Sublinhado nosso). 32 Seguimos de perto CABRAL DE MONCADA – «Subsidio para uma História...», cit., p. 291. 33 «Temos tamanha fé nas leis eternas da Razão, que não desesperamos do seu final triunfo...» (p. 2). 34 Ambas as correntes, que diríamos inspiradas respectivamente em HUME e em DESCARTES acabaram todavia conciliadas nos termos exactos em que as considerámos supra III - A Semântica da Propriedade. Que isso deveu-se à leitura de KANT, eis uma simples presunção ilidível ...nem por isso com escassa probabilidade de acerto. 35 CABRAL DE MONCADA – ob. cit., pp. 288-289. 36 Como já fizémos notar em III – A Semântica da Propriedade.

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achado glorioso do mais escrupuloso método analítico, a sua explicação integral torna-se a nobre missão de todo o conhecimento37. Tal a razão de ser deste Livro38. Parece-nos pois evidente a veracidade da observação de CABRAL DE MONCADA: «o Visconde de SEABRA é ainda, antes de mais nada, um jusnaturalista da escola antiga»39. Justamente esta conclusão afere-se da crença cientista-naturalista, tão despida de preconceitos formais, que encontramos nas primeiras páginas de A Propriedade. Aí verificamos aquela entrega à ordem necessária da natureza que, fundando-se no subsolo filosófico do estoicismo, ganha relevo substancial com o advento do jusracionalismo e do empirismo40. E aqui vai patente aquela confusão permanente entre meio natural e meio cultural que marcou um sector importante do jusnaturalismo racionalista. É bem assim que MONTESQUIEU, no capítulo primeiro do Esprit des Lois, se interroga ingenuamente acerca da razão pela qual o homem, diversamente das «coisas inanimadas», não obedece à «lei da sua natureza». E esta problemática dissolução da lei-fonte-de-norma-de-conduta na lei-dedução-dos-fenómenos-naturais, recebe críticas ferozes e reparos violentos de todo o positivismo moderno, de BENTHAM a STUART MILL41. Nem por isso, todavia, se vem provar imediatamente a contradição daqueles que, como SEABRA, crêem simultaneamente numa ordem de leis já acabada e disponível à apreensão inteligente, e numa sociedade fundada sob a égide do mais característico individualismo possessivo. Precisamente porque – como tratámos de desenvolver acima42 – o princípio natural exarado na natureza das coisas e pronto a ser precipitado em regra positiva de Direito, não era senão aquele que o positivismo legalista claramente ansiava garantir com todo a sua armadura formal: a propriedade individual. Ratio e voluntas, sem embargo dos pontos de partida antinómicos, rapidamente se tornam expressões de um mesmo princípio absoluto. Aquele que vem por essa via condicionar toda a concepção de Direito, informando o seu sentido originário e intrínseco. E é exactamente pela medida da propriedade que SEABRA vem a arquitectar um novo edifício para o sistema jurídico; exactamente na medida que trataremos de sobrelevar no número seguinte.

III

PROPRIEDADE E DIREITO

37 «O santuário da verdade não tem, pois, senão uma chave: esta chave é a observação da natureza, é o método analítico, de que nos serviremos nas investigações a que vamos proceder como base segura da verdadeira síntese» (p. 4). 38 «...tudo se prende à questão da Propriedade, único princípio e fim da sociedade» e «...por pouco que se medite e se aprofunde, facilmente podemos convencer-nos de que nenhuma [questão] interessa mais vivamente a sorte do homem, nenhuma abrange tantas relações e tão diversos aspectos» (p.1); 39 ob. cit., p. 288. 40 Sobre este tema, cfr. ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit. p. 158-159. 41 Atendam-se as palavras de HART: «assim, muitos críticos modernos têm pensado que a pretensão de que a razão humana pode descobrir leis de conduta apropriada se baseava numa simples ambiguidade da palavra «direito» e que, quando esta ambiguidade fosse denunciada, o Direito Natural receberia o seu golpe fatal. (...) [Em Montesquieu] revelava-se a confusão perene entre leis que formulam o curso ou as regularidades da natureza, e leis que exigem que os homens se comportem de certos modos. As primeiras, que podem ser descobertas pela observação e pelo raciocínio, podem designar-se como «descritivas» e cabe ao cientista, por isso, descobri-las; as últimas não podem ser assim determinadas, porque não são afirmações ou descrições de factos, mas são «prescrições» ou exigências de que os homens se comportem de certo modos. Por isso, a resposta a Montesquieu é simples: as leis prescritivas podem ser violadas e contudo permanecem leis, porque tal apenas significa que os seres humanos não fazem aquilo que se lhes diz para fazerem; mas carece de sentido dizer das leis da natureza, descobertas pela ciência, que podem ou não ser violadas». (O Conceito de Direito (trad. port.), 2ª ed., Lisboa, 1995, p. 203) 42 Cfr. supra III - A Semântica da Propriedade.

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A propriedade, entendida no sentido mais amplo43, está no âmago da construção jurídica de SEABRA. Parte-se da crença num homem racional e sensível44, dotado de faculdades excepcionais: instinto, sensibilidade e inteligência. E o princípio de Direito não é senão a concreção racional que brota da lei natural. No centro do universo está inevitavelmente o indivíduo, marcado que está o sistema do A. por aquele optimismo antropocentrista tão caro ao pensamento liberal45. Do que a concepção do Direito perfilhada é toda ela edificada por referência ao conceito de direito subjectivo, ao direito de propriedade na dupla dimensão de personalidade-liberdade e propriedade-apropriação46. O indivíduo nasce com determinados atributos físicos e morais, com uma marcada personalidade, coroada como base de todo o cosmos jurídico. Mas de nada vale essa propriedade natural se ao homem não for reconhecida a autonomia imprescindível para praticar os factos necessários à apropriação dos meios externos indispensáveis à realização do seu fim e destino47.48 Surge-nos portanto a propriedade em sentido estrito como a extensão necessária da personalidade do homem-indivíduo no seu querer permanente de felicidade suprema. Repare-se ainda que a noção de interesse ganha aqui uma importância que não pode ser ignorada49. O instinto natural do homem é, para SEABRA, o do meu e do teu. Este individualismo radical, gravitando em torno do interesse materialmente referenciado, é o corolário da própria existência humana. Dotada de um privado equipamento físico-moral originário a sensibilidade humana interpenetrada com a razão compele inevitavelmente o homem a reunir para si toda a propriedade externa que garanta a mais cómoda e serena existência. Fatalmente, o Direito objectivo verte-se exclusivamente em garantia da coexistência da propriedade de cada um atomisticamente considerado e da regulação da vontade possessiva – já expressa no direito natural de apropriação – que cada pessoa tem de reunir-se de um acervo de meios indiscutivelmente ajustados ao fim inilidível do homem: a felicidade. A propriedade aparece-nos então como o princípio gerador de todo o ordenamento jurídico-positivo. A regra de Direito positiva terá de atender simultaneamente ao seguintes factores: o homem tem um direito natural-originário à sua propriedade primeira e à apropriação; o homem é o princípio e fim de toda as coisas; a vontade possessiva do homem, o seu interesse material, deve ser gerido pela leis razoáveis que derivam da natureza das coisas e que são uma exigência de conteúdo da norma positivada. Estamos, bem se vê, muito próximos de uma concepção kantiana de Direito50: o Direito é fundamentalmente a racional coexistência da vontade arbitrária do sujeito-indivíduo; a regulação objectiva desse direito subjectivo do homem de dar largas à sua autonomia de vontade e fazer frente aos desafios da sobrevivência com as particulares faculdades de que a natureza o exornou. 43 Idem. 44 Nota CABRAL DE MONCADA (ob. cit., p. 289) que em SEABRA há um compromisso – não liberto de certa obscuridade – entre o jusracionalismo individualista na senda de FERRER e o sensualismo recebido de CONDILLAC e TRACY. Neste sentido, v. também REIS MARQUES – O Liberalismo e a Codificação do Direito Civil em Portugal, Coimbra, 1986, pp. 195-196. 45 «A natureza não reconhece senão indivíduos; os géneros, as espécies, são puras abstracções do nosso espírito, idéas de número e semelhança e nada mais. Quando dizemos o homem, ou designamos o indivíduo, ou não designamos coisa alguma» (p.17). 46 «A diferença [entre as duas dimensões do direito de propriedade] consiste em que a primeira propriedade nasce com o indivíduo e não depende de acto algum seu. O sujeito e o objecto, o proprietário e a propriedade se confundem no mesmo direito, na mesma pessoa; o que não sucede na segunda, que só pode existir pelo facto do indivíduo, que a assume e une em si» (p.13). 47 CABRAL DE MONCADA - ob. cit., p. 292. 48 Eis a definição de direito (subjectivo) que escutamos em SEABRA: «faculdade moral, que o homem tem, de empregar o meios, de que a Natureza o dotou, para preencher o fins da sua existência – Se os fins não podem existir sem os meios, o meio são tão necessários como os fins, e constituem a parte objectiva d`aquelle Direito» (p.9). 49 Como em todo o imaginário prático-cultural do liberalismo. Sobre este ponto revejam-se a considerações que fizémos em I - A Semântica da Propriedade. 50 No mesmo sentido REIS MARQUES – ob. cit., pp. 197 e ss.

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Sucede porém que neste compromisso entre a vontade subjectiva do homem e a crença numa ordem natural objectiva já acabada e deduzida pela razão, manifesta-se uma contradição que não podemos deixar de destacar51. É que enquanto em KANT a razão manifesta-se subjectivamente na vontade individual para depois se vir a hipostasear em regra universal de conduta, pelo que a definição de Direito que propõe não causa perplexidade de maior, já em SEABRA - como aliás em FERRER e em toda a jusracionalística – o universo é um cosmos, uma máquina ou, já próximo de KRAUSE, um organismo52.53 Pelo que se compreende com dificuldade a liberdade do homem de conformação do porvir, de lançar mão da sua autonomia-de-vontade, quando em todo o meio que o cerca paira perene uma natureza perfeita e racional. Justamente quando se entende que a vontade vem a ser julgada no tribunal da razão-natureza, abandona-se a substância mais íntima do «juridicismo formal do individualismo burguês»54. Ou então, muito pelo contrário, convoca-se a lei racional – não já natural - somente como objectivização do impulso subjectivo-voluntarista; o que equivale a lançar borda fora a ideia de uma atmosfera da «natureza das coisas». SEABRA ignora as observações que fizémos acima. Tudo se projecta, no seu sistema, como se nenhum tensão dilacerante houvesse entre as duas correntes que teimosamente procurou sintetizar. Mas se tomarmos em atenção a sistemática do Código Civil de 1867, de que foi autor, logo vemos que pesou mais nele a consciência liberal do puro kantismo do que o lastro do antigo jusracionalismo setecentista55. É, pois, evidente que o princípio kantiano da autonomia da vontade está presente em toda a filosofia que inspira o diploma56, todo ele sediado em torno da ideia do sujeito de direito. Sujeito activo, acrescente-se; ponto cardeal e dinâmico da relação jurídica57.

IV

PROPRIEDADE E SOCIEDADE Até agora considerámos unicamente a propriedade por referência ao indivíduo e sua esfera jurídica subjectiva. Fizémo-lo para dar conta do profundo cunho individualista do livro de SEABRA. É todavia evidente que o problema do Direito e da propriedade não pode ser 51 Isto num plano puramente cientifico. Já acima havíamos esclarecido que a oposição entre ratio e voluntas esmorece de facto às portas de uma comum mentalidade: a própria do individualimo crítico. Com efeito, a vontade positiva aí coincide com a razão natural, no sentido que já salientámos em I – Semântica da Propriedade e II – Propriedade e Ciência. 52 Nota porém CABRAL DE MONCADA que «SEABRA não conhece ainda a ideia de organismo (...) de que mais adeante tanto haviam de usar e abusar os nossos krausistas» (ob. cit., p. 292). 53 Sublinhando também esta tensão permanente entre KANT e KRAUSE que atravessa as teoria de FERRER e SEABRA: CABRAL DE

MONCADA - ob. cit., p. 291; e REIS MARQUES – ob. cit., pp. 194 e ss. Quanto à antinomia entre racionalismo e voluntarismo, objectivismo e subjectivismo nos jusnaturalismos tardo-modernos, vem sub-entendido nas nossas conclusões o ensinamento de ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit. pp. 156 e ss. (muito particularmente pp. 159 e ss.). 54 REIS MARQUES – ob. cit., p. 194, in fine. 55 Retomaremos esta questão em infra VIII – Epílogo. 56 Idem, p. 195. 57 Em sentido idêntico cfr., entre muitos outros: REIS MARQUES – ob. cit., pp. 197 e ss.; MANUEL DE ANDRADE – «O Visconde de Seabra e o Código Civil», in BFDUC, vol. XXVIII, p. 282; ALMEIDA COSTA - «Enquadramento Histórico...», cit., pp.155 e ss. e História do Direito Português, 3ª ed., Coimbra, 1996, pp. 434 e ss.; SILVA CUNHA e MARQUES DE ALMEIDA – História das Instituições, II, Porto, 1998, pp. 873 e ss. É exclusivamente com o intuito de corroborar em absoluto a nossa conclusão que citamos, neste ponto, um número tão elevado de autores.

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seriamente tratado sem uma referência à sociedade. Disso estava seguro o A. de A Propriedade, ou não dedicasse todo o terceiro capítulo do livro às questões capitais suscitadas pela sociabilidade humana, logo as confrontando com o círculo alargado de considerações acerca das relações indivíduo-propriedade-Direito com a quais tomámos já superficial contacto. Entende o nosso autor que a origem da sociedade compreende-se em dois momentos fundamentais ainda de semblante individualista. Um primeiro do âmbito instintivo, da procura de um amicus com quem entre em inevitável relacionamento. Um outro já do plano racional, em que o sócio percebe-se como o aliado na defesa do interesse individual58. Assim sucede com a família, em que o instinto da reprodução corresponde à necessidade de conservação da espécie. Como, em igualdade de circunstâncias, a sociedade civil não é mais a identidade comunitária do indivíduo do que a firme defesa da propriedade. O homem está destinado à sociabilidade exactamente porque a defesa da sua propriedade exige uma ordem de regulação do interesse de todos em tomar conta de tudo. E na filosofia da dialética meio-fim vivamente acolhida pelo A., a linguagem é justamente reconhecida como o meio óbvio do homem assegurar a ordenação social. E se a Natureza proviu o homem de um excepcional arsenal de comunicação com o seu semelhante, então a razão exige uma compreensão desse equipamento em termos da garantia do princípio primeiro; enfim, da propriedade. Vemos portanto – ao fixarmos o olhar na panóplia de argumentos declarados – que é uma vez mais o interesse individual racionalmente tomado que se ergue determinante na definição de todo o sistema de SEABRA59. Ora, esta ordem de ideias não pode deixar de nos conduzir à seguinte conclusão: o Estado não é senão uma associação de meios de defesa do espaço subjectivo da cada indivíduo, não é senão a racional ordenação do direito de todos a constituir propriedade em sentido estrito. Justamente porque, se abandonados à rude natureza, os homens não resistiriam a derrubar a propriedade alheia invocando o seu pessoal e imprescritível direito de apropriação, torna-se fundamental um quadro de regulação da liberdade de cada um, de acordo com a fórmula-chave: a liberdade de um acabando no princípio da do próximo. E com isto pretende-se exclusivamente equilibrar o direito de apropriação com o direito de conservar a propriedade adquirida. Em suma, temperar a liberdade natural com a segurança jurídica60. Mas como dar corpo e estrutura a uma sociedade política assim filosoficamente projectada? Como compreender o Estado sob a óptica do interesse no equilíbrio liberdade-segurança? Simplesmente definindo critérios de relação entre os dois elementos característicos da sociedade estadual: o povo e o governo. O povo é o conjunto de indivíduos proprietários, a agremiação dos sócios com um interesse comum de segurança. Já o Governo, no espírito de SEABRA, é a instância sobre a qual impende o dever de protecção da propriedade adquirida de cada um no quadro de uma ordenação jurídica fixada segundo as coordenadas da razão-natureza. Daqui se subtraem muito claramente duas conclusões em as quais não se poderá apreender todo o alcance do imaginário político-social proposto pelo nosso autor. Em primeiro lugar, a ordem jurídica é lei; lei que «deve comprehender e sanccionar os direitos do povo e os deveres do governo» (p.31). Pelo que a lei é a derivação racional do contrato entre o conjunto de

58 «Da mesma forma pois que do sentimento de liberdade ou personalidade emanou a idéa de propriedade, assim da idéa de propriedade – a posse segura e tranquila dos objectos úteis ou necessários à vida – ou da sua necessidade, nasceu a idéa duma associação em que as forças individuais se contrabalançassem, funcionando numa só força em defesa e proveito da liberdade e propriedade individuais» (p.23). 59 Já em I – A Semântica da Propriedade, afirmámos que um retrato fiel do liberalismo não pode desprezar dois particularíssimos pressupostos-base: o paradigma individualista e a afirmação radical da ideia de interesse. 60 Sobre a importância da segurança jurídica na moldura social do liberalismo, aventámos já quanto baste em I - A Semântica da Propriedade.

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indivíduos livres e a jurisdição política seguradora61. Por outro lado – atendendo ao facto de que o governo «não tem entidade propria, e não é mais do que um meio subserviente» (p.31) – é ao povo que cabe fazer a lei; ou não tanto fazê-la mas racionalmente deduzi-la da natureza cercante. Atenda-se ainda a que com esta segunda conclusão - que sem esforço retirámos das linhas de SEABRA – manifesta-se prontamente o apreço do A. pelo movimento de ideias já dominante entre nós no tempo em que A Propriedade surgiu impresso. Precisamente o constitucionalismo liberal. Isto é tão claro quanto o prova a seguinte afirmação: «se um governo não tem entidade propria, e não é mais que um meio subserviente, é manifesto, que só por delegação, ou abuso a pode exercer, e que o poder legislativo é um atributo inferível do povo» (p.31)62. E com isto não se pretende outra coisa senão propugnar um governo agindo por conta de uma Constituição, isto é, por delegação e no horizonte da lei primeira ou pacto de determinação dos governantes pelos governados hipostaseados em soberano, pelo povo no particular sentido público-restrito imprimido pelo cogitar oitocentista.

V

PROPRIEDADE E ECONOMIA Não se pode afirmar que o conjunto de matérias sobre as quais nos ocuparemos neste número convenham rigorosamente na superfície acotiada pela economia. Um prurido irresistível de precisão levar-nos-ia a epigrafar diversamente este capítulo. Assentar-lhe-ia particularmente bem algo como «propriedade e questão social» ou «propriedade e justiça distributiva». Se optamos, mesmo assim, por esta solução é somente porque o nosso referente é obrigatoriamente a categoria da propriedade, pelo que não nos interessa em especial o problema objectivo da organização dos recurso sociais, mas antes o lugar da propriedade na economia de afectação de recursos inerente ao sistema de SEABRA. O entendimento da propriedade como direito pessoal, natural e primitivo transporta já em si o gérmen da teoria económico-social propugnada pelo nosso autor. É óbvio que se sustenta a excelência do modelo individualista, de um declarado «cada um sabe de si e só Deus sabe de todos». E também não causa perplexidade que, por força do preconceito individualista, o A. ataque ferozmente os sistemas comunista e socialista63, por seu turno cativos de uma prenoção solidarista ou igualitária. É SEABRA perfeitamente avesso à ideia de uma organização estadual do trabalho ou de um associativismo radical64.65 Diz-nos que é indiscutível a existência de um direito ao trabalho; não 61 Vejam-se as considerações que fizémos acerca da lei parlamentar enquanto esquema totalizante do sistema de fontes em I – A Semântica da Propriedade. 62 Crê-se também, como se vê, num Estado exclusivamente ao serviço do direito individual de propriedade, ou seja, um político-dever de garantia da liberdade razoável de cada um («estes [deveres do Estado] resolvem-se na manutenção dos direito individuais e de sua recíproca inviolabilidade» - p.31). Cfr. sobre este ponto CABRAL DE MONCADA - ob. cit., p. 292. 63 Transcrevemos neste ponto a seguinte passagem de CABRAL DE MONCADA : «SEABRA engloba sob a designação de socialismo todos os sistemas de reforma social e organização do trabalho que se fundem, ou na autoridade, como o de FICHTE, ou na associação particular, como o de FOURIER, ou em ambos estes princípios, como o de LUIZ BLANC (p. 103), expondo-os e discutindo-os um por um, para concluir em favor do individualimo» (p. 293/nota 2). Apesar da importância que SEABRA confere à discussão destes sistemas na economia do seu livro (ocupando uma parte apreciável do livro primeiro), abstemo-nos de narrar passivamente a descrição crítica do A. E isto por dois motivos: em primeiro lugar, não nos merecem relevo tais teorias senão como pontos de partida para a própria tese de Seabra; em segundo lugar, o nosso trabalho pretende, desde o primeiro momento, evitar a análise monótona e o facilitismo descritivo. Em suma: não pretendemos dar a conhecer o livro de SEABRA mas antes revelar a nossa própria leitura, necessariamente crítica, d`A Propriedade. 64 Cfr. CABRAL DE MONCADA - ob. cit., p. 293.

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contudo de um direito a ter trabalho, somente de uma liberdade de trabalhar. E daqui podem-se retirar desde logo as seguintes consequências: cada indivíduo é livre de «empregar as próprias faculdades na demanda dos objectos necessários, úteis e agradáveis à vida» (p.76), com a correspondente e singular obrigação negativa de todos de não impedirem o exercício dessa liberdade; e a sociedade não pode demarcar esferas limitadas e equitativas de acção laboral, pois se o direito de apropriação é absoluto, não é legítimo que se restrinja o esforço individual que se lhe dirige. Significa isto que o Direito informado pelo princípio natural da propriedade individual não pode logicamente obrigar à repartição da propriedade por todos, ou estar-se-ia a desfazer das sua prerrogativas jurídicas. O Direito serve o indivíduo, eis a tese central do nosso autor. Pelo que também não vêm a colher as teorias que reclamam a distribuição intencional do trabalho com fundamento no fim supremo da sociedade - o bem comum dos associados – precisamente porque esse propósito não pode corresponder a uma violação dos direitos absolutos do homem, necessariamente anteriores e superiores ao contrato social. Doutra forma, adverte SEABRA, a própria razão primeira da sociedade – a garantia jurídica da propriedade – seria brutalmente aniquilada. Reconhece SEABRA que os sofrimentos e as dores sociais são em larga medida gerados pela desproporção das «fortunas, monopólios e privilégios», e que as consequências de um tal estado de coisas são «profundas, terríveis e lastimosas». Admite mesmo que o homem deve repartir com o seu semelhante o fruto do seu trabalho, a sua propriedade. Simplesmente – e este é um ponto relevante – um tal dever vem despido de intenções jurídicas e não é senão pura obrigação moral66; «só poderá ser determinada pela expontaneidade e arbítrio do próprio homem e nunca por um dever jurídico»67. Bem na esteira da teoria kantiana do direito, o A. reclama a autonomia moral do indivíduo, e adere a uma separação rigorosa entre o dever-ser moral - subjectivamente radicado – e o dever-ser jurídico na sua formal intenção de garantia da estabilidade nas relações sociais, isto é, de defesa da propriedade de cada um contra a ambição de todos. Acaba o nosso autor, não obstante, por vir admitir em situações excepcionais a necessidade de uma intervenção estadual no sentido de ajustar os recursos às necessidade colectivas e ao bem-comum de todos os associados. Todavia isto somente na hipótese extrema dos indivíduos se desligarem de todos os seus sentimentos de compaixão e caridade. Vem esta a ser, apesar da cuidadosa moderação68, uma das mais evidentes contradições em que SEABRA incorre. Isto porque não entendemos como, defendendo poucas linhas acima a indisponibilidade social do direito de propriedade – uma exigência da natureza que precede a associação – se pode vir a admitir, seja em que situação for, que o princípio explicativo do «ser» social seja ofendido em 65 Note-se ainda o seguinte: o projecto liberal de uma rigorosa separação entre a sociedade («valores económicos») e Estado («valores políticos»), tinha como consequência imediata o repudio por solidariedades particulares, grupos de interesse, ou associações não-estaduais. Tais fenómenos, na óptica do individualismo, tolheriam a ordem natural («mão invisível») na sua eterna missão «constitucional» de um bem comum decorrente da livre prossecução do interesse egotista-atomista. A todo o indivíduo era dada a oportunidade de, em igualdade de condições, adquirir a sua própria propriedade, contribuindo mediatamente para o óptimo do mercado. Mas não se podia aceitar que esta igualdade natural fosse perturbada pela agremiação de interesses individuais, ou estar-se-ia a promover a destruição da sociedade. Se os «valores económicos» deixassem de ser uma emanação da natureza e fossem manipulados por ordens artificiais de composição de interesses (identificadas com grupos ou corporações) a liberdade ficaria claramente em perigo. E a própria demarcação entre o Estado e a sociedade tombaria perante a irresistível tendência do novo «constituinte» social em apoderar-se da própria instância política e fazê-la agir em função do seu particular interesse. Em síntese: associação é inimiga da liberdade e máscara de um retorno aos «odiosos» previlèges do ancién régime. 66 «Não queremos com isto dizer que o homem não deva repartir com o seu semelhante os meios de existência que adquiriu ou possui. Pelo contrário, reconhecemos e proclamamos essa obrigação, mas como um dever prescrito pelas máximas da moral, cujo exercício só pode ser determinado pela expontaneidade e arbítrio do homem e não por uma estrita obrigação jurídica» (p.77). 67 CABRAL DE MONCADA - ob. cit., p. 294. 68 De facto, o A. acredita que no estado actual (i.e. coevo da data de publicação d`A Propriedade) tais sentimentos de compaixão são quanto bastem para se evitar a ingerência do poder público (cfr. p. 86).

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certos momentos excepcionais. Se partirmos do preconceito individualista de SEABRA, não nos parece razoável esta ressalva. Para quem, como o nosso autor, a sociedade é uma associação de defesa do interesse individual na segurança jurídica da propriedade, torna-se impensável que essa condição primeira seja abalada. Como, por outro lado, a rigorosa demarcação do âmbito jurídico e moral sai golpeada quando se admite que ocasionalmente o interesse jurídico ou a função do direito sejam atropelados por um dever-ser objectivo de ordem moral, muito particularmente quando, na óptica primeira do A. a regra moral não mais seria do que o código subjectivo da consciência69. Em todo o caso – e porque não importa especialmente torturar mais este equívoco - é nas seguintes coordenadas essenciais que poisa a doutrina económico-social do nosso autor: individualismo na organização do trabalho; anti-associativismo, anti-socialismo e anti-comunismo70; separação entre Direito e Moral71; redução da regra de Direito à defesa da propriedade individual e delegação na regra moral de um «papel suavizador dos males e infortúnios resultantes do funcionamento imperfeito da organização capitalista da propriedade»72; obrigação do Estado de desenvolver mecanismos institucionais que garantam a inviolabilidade recíproca da propriedade adquirida; definição do salário (entendido como retribuição do trabalho) por acordo privado das partes e sem intromissão das autoridades públicas. SEABRA sustenta ainda a importância da instrução global na procura do nivelamento das discrepância sociais. Depressa entendemos que também em sede de definição de um justo sistema económico a bússola do nosso autor é, com semelhante firmeza, o indivíduo indissociável da propriedade-personalidade de que a natureza o dotou e da liberdade de apropriação dos meios necessários à sua subsistência. Mas chegamos ainda a outro dado que importa não desprezar: a forma do indivíduo realizar-se na propriedade externa empregando a suas capacidades «phisicas e moraes» não é outra senão o trabalho. Eis porque a liberdade de trabalhar – elo de conexão entre as duas dimensões da propriedade – é-nos ainda aventada como faculdade inderrogável da pessoa-indivíduo.

VI

PROPRIEDADE E CODIFICAÇÃO

Já se ressaltou noutras ocasiões que o primado da lei reveste acentuada influência na arquitectura jurídica e política do liberalismo73. Não nos parece necessário insistir nesse ponto; basta-nos reavivar a memória. E salientámos com idêntico vigor o papel da codificação na reestruturação oitocentista das fontes de Direito74. Recordamos que o código – no entendimento que lhe é embutido pela modernidade – adquiriu a proeminência do instrumento sagrado que condensa em si todo o Direito Positivo (ou um ramo jurídico cientificamente circunscrito),

69 Admitindo também que SEABRA incorre em contradição, embora sem explicitar francamente em que sentido, CABRAL DE

MONCADA - ob. cit., pp. 294-295. 70 Aquilo que SEABRA entende por comunismo é coisa que não conseguimos destrinçar. Em relação ao socialismo, dá-nos ainda uma definição que, vaga embora, não deixa de facilitar a leitura da sua crítica (engloba sob a designação de socialismo todos os sistemas de reforma social e organização do trabalho – cfr. supra n. 63); já quanto ao comunismo, reúne autores como PLATÃO (A República) e ROSSEAU (Emílio), este último estranhamente, na medida em que se serve claramente da doutrina do Contrat Social (sem chegar a mencioná-la) para elevar o seu próprio sistema de organização social. 71 Este problema será tratado infra VIII - Epílogo 72 Cfr. CABRAL DE MONCADA - ob. cit., pp. 296. 73 Cfr. supra I - A Semântica da Propriedade e IV – Propriedade e Sociedade. 74 Releia-se supra I - A Semântica da Propriedade, in fine.

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levando em consideração o facto de que juridicidade e legalidade são - na semântica própria do individualismo crítico - semelhantes concretizações do princípio natural da propriedade. Retomadas estas coordenadas essenciais, eis um razoável ponto de partida para o que se segue: a lei codificada é a sublimação formal da ideia material de propriedade. Toda a digressão filosófica de SEABRA em busca do sentido ôntico do Direito, do «ser» da propriedade, não dispensa a preocupação fundamental em concretizar o sistema jurídico assim demarcado. Se o primeiro livro se debruça exclusivamente sobre as questões substanciais ou teoréticas suscitadas pelo problema geral do direito, ou seja, pela questão profusa da propriedade, é já na segunda parte do seu discurso que o nosso autor se dedica à magna questão de saber de que forma se deve realizar na vida jurídica concreta o modelo abstractamente esboçado. O tratamento do tema ter-se-á tornado verdadeiramente forçoso se tomarmos em consideração o lastimável estado do sistema de fontes da época, já esgotados os frágeis e amiúde desdizentes critérios de sanamento do concurso de normas colidentes75.76 Assim se depreende que em simultâneo com a proliferação das ideias liberais, as circunstâncias de facto obrigaram a comunidade jurídica portuguesa do séc. XIX a curvar-se perante a eminente exigência de uma reconstrução formal do Direito nacional77. No que o problema da codificação – revestido desta forma por razões conjunturais - depressa ostentou candente actualidade e sentido prático78. SEABRA revela-se desde logo um entusiasta do movimento codificador79. O que não nos causa perplexidade; já antes a sua obra revelara uma ingente admiração pelo império da lei. Antes nos perturba que quem veio a ser tributado com a delicada tarefa de preparação de um projecto para o código civil – precisamente no mesmo ano em que A propriedade foi dado a conhecer ao público – manifeste tantas incertezas e minute tão vagas conclusões a propósito da codificação

75 O problema das normas de conflito no âmbito da ordem jurídica pluralista herdada da tradição medieval é tratado por ANTÓNIO

HESPANHA – ob. cit. pp. 97-98. Para uma percepção global do problema leiam-se as pp. 92 a 110 da mesma obra. 76 Acerca da degradação do sistema de fontes, recordamos as palavras do liberal-benthamiano (há que atender) CARDOSO DA COSTA: «Que podem os Portugueses esperar se os que trabalharem, nos que se lhes destinão, tratarem de juntar montões de leis, para introduzirem huma aqui outra alli, apresentando à Nação com os nomes de Códigos humas mantas de retalhos, huns capotes de pobres, como já por outra vez chamámos taes?» (Que he o Codigo Civil?, Lisboa, 1822, p. 59/nota 20). 77 Assim também MANUEL DE ANDRADE (ob. cit., p. 279), cujas incisivas palavras importam transcrição: «quando em 1850 Seabra foi chamado a desempenhar a missão capital da sua vida, estava se tornando tarefa inadiável a codificação no direito civil português. De há muito que ele andava disperso pelas Ordenações Filipinas (livro 4º) e por um grande número de leis extravagantes. Mesmo, todavia, nessas fracções desarticuladas, nesses disjecta membra da nossa legislação, só em parte se encontravam as suas normas. No mais, e era o principal, tinha de apelar-se para o Direito Romano – aliás só até onde estivesse concordando com a Boa Razão, a ser aferida pelo uso das nações cultas da Europa, revelando nas suas leis e nas obras dos grandes tratadistas». «Daí um estado de incerteza e confusão desesperada, fonte de dúvidas inextricáveis, de onde pululavam os litígios, atravancando o foro e arruinando as famílias, tanto mais que era ao mesmo tempo lastimosa a nossa organização judiciária e processual». «Tornara-se de instante necessidade acudir a esta grande miséria do nosso direito civil. Urgia que, pelo menos, se levasse ordem e clareza a este cáos obscuro, consolidando as normas existentes, de vária procedência (isto é, compilando-as e sistematizando-as), e resolvendo as intermináveis disputas que gravassem na doutrina e na prática». 78 Não é pouca a bibliografia sobre esta matéria. Pelo que – atendendo a que não se seguiu de perto nenhuma composição alheia – nos abstemos de listar um rol copioso de publicações. Mas desde já advertimos que se pode encontrar rica informação desta natureza em ESPINOSA GOMES DA SILVA - História do Direito Português – Fontes de Direito, 3ª ed., Lisboa, 2000, pp. 417 e ss. e em REIS

MARQUES – ob. cit., a partir da p. 143 e em diante. 77 «Em quanto a nós, o melhor meio de evitar arbítrios seria – uma nova codificação tão perfeita, quanto fosse possível ...» (p.253/nota d6). 78 Segundo REIS MARQUES, SEABRA desconhecia «as propostas mais recentes da ciência jurídica alemã e de Austin, devido à falta de domínio do alemão e do inglês» (ob. cit. p. 183).

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desse ramo jurídico, denotando conhecimento precário de obras estrangeiras de referência80 e fixando-se mais do que o necessário na consideração crítica do senil sistema de fontes de seu tempo. Declarando-se, sem mais substância, adepto de uma nova codificação, nada adianta que nos faça entrever as opções – para além das materialmente delimitadas, ainda em sede filosófico-crítica – que veio a consagrar no seu projecto. Fica-nos meramente o confessado assombro pelo livro de CARDOSO DA COSTA (Que he o Codigo Civil?) que «os nossos legisladores muito precisa[ria]m de ler e meditar» (p.190/n. K3). O que aliás - atendendo seriamente a MANUEL DE ANDRADE, para quem «essa possível influência sobre o sistema do Projecto (e do Código) terá sido muito vaga e remota»81 - não pode deixar de nos dilatar a perplexidade. Sem elementos bastantes para aflorar o pensamento de SEABRA acerca dos aspectos formais da codificação no momento em que redigiu A Propriedade, nem por isso nos podemos esquivar a um brevíssimo confrontamento dos ideais propugnados no livro com o espírito geral do Código de 1867. Vejamos o que há a dizer sobre essa matéria. A matriz antropocêntrica conserva-se no íntimo do sistema de Seabra82. O Código de 1867 considera exclusivamente o homem-indivíduo e logo aspira a traçar a sua biografia como homo juridicus. Na primeira parte, configura-o no seu momento estático, desenhando-lhe a capacidade civil (arts. 1º a 358º); depois, já num perspectiva dinâmica, circunscreve o alcance do seu querer de apropriação, da sua aquisição de direitos (arts. 359º a 2166º); uma terceira parte regula o direito de propriedade, necessariamente interpretado em toda a sua extensão (arts. 2167º a 2360º); finalmente ocupa-se da ofensa dos direitos e da sua reparação, descrevendo as formas de tutela dos interesses legítimos violados (2361º a 2538º)83. Posto o que mencionámos, clara se torna a perpetuação da ideia liberal do sujeito-proprietário da monografia até ao Projecto do Código. Não exageraremos sequer ao supor um agravamento da feição individualizante, dando-se agora o primado à vontade subjectiva quando primitivamente o partilhava com a razão-natureza84. Capitula o jusracionalismo às mãos de um legalismo de fisionomia volitiva. É bem assim que se torna claro que o Cód. Civil de 1867 vem exarado de um especial ambiente cultural; justamente daquela ideologia que lhe reclamou da forma o que queria a todo o custo assegurar em substância; garantir nada mais nada menos do que a propriedade individual amplamente considerada.

VII

EPÍLOGO Cuidámos já, no essencial, do circuito de matérias que preliminarmente propusemos aclarar..

79 Sem contudo deixar de reconhecer que «Seabra reconhecia e apreciava o trabalho» de CARDOSO DA COSTA (Ob. cit., p. 297/nota 39). Mais flexível é a postura de REIS MARQUES, para quem «embora o sistema de Seabra esteja longe de ser um decalque do sistema proposto no “excelente livro” de CARDOSO DA COSTA, não restam dúvidas de que, do ponto de vista espiritual e ideológico, Seabra foi credor da sua influência». 82 Diz-nos ALMEIDA COSTA: «nele [Cód. Civil], a vida jurídica aparece tipicamente construída apenas do ângulo do indivíduo, do sujeito de direito, desaparecendo o que há de institucional e de objectivo nas relações sociais e jurídicas. Trata-se de uma completa hipertrofia do aspecto subjectivo do direito, aliás, característica do clima do Liberalismo» (História do Direito, cit, p. 434). 83 Cfr. REIS MARQUES – ob. cit., pp. 187-188. 84 Sobre este tópico, v. supra V – Propriedade e Direito, in fine.

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Não ficaríamos todavia razoavelmente satisfeitos com o nosso trabalho se não procurássemos comprimir numa pequena conclusão uma meditação crítica acerca dos problemas fundamentais versados em A Propriedade, que é o mesmo dizer uma reflexão global sobre a monografia que analisámos. Não se trata de uma sinopse dos tópicos ventilados ao longo destas páginas, tão reduzidas de tomo elas são que aparentam já de si a forma precária de estreito compêndio. O escopo que nos norteia é bem diverso; move-nos o intuito de sumariar uma crítica geral ao conteúdo cientifico da obra estudada.

* Ao dissecarmos o cerne ideológico d` A Propriedade, uma questão elevou-se continuamente; uma questão que pairou obscura sem para ela termos concertado significativa resposta. Referimo-nos ao problema da definição do substracto filosófico do sistema de SEABRA. A discussão centra-se na procura da solução para as seguintes interrogações: é KANT ou é KRAUSE que marca a filosofia do nosso autor?85 É SEABRA um liberal-puro ou um liberal-enquandrado?86. Procuremos uma réplica adequada ao desafio assim assestado. Importa desde logo esclarecer que o esforço do A. é um evidente apelo conciliador do voluntarismo formal de matriz kantiana e do naturalismo proto-solidarista87 de temperamento krausista. Todavia – amparando-nos em CABRAL DE MONCADA88 - «não se pode ser kantista e krausista ao mesmo tempo, sem cair numa série de equívocos e confusões irremediáveis»89. Vejamos porquê. A noção kantiana de Direito – olhando-o como a totalidade das condições pelas quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio de outrem, segundo uma lei universal de liberdade – revela-nos, sem demora, a ascensão de duas categorias fundamentais: a vontade e a forma. KANT supõe a autonomia da vontade individual90 como valor absoluto; toma o indivíduo livre como princípio e fim de todas as coisas91. E o Direito é coerentemente identificado com a lei geral e abstracta que regula a liberdade irredutível de cada um-igual; lei que se limita a demarcar a razoável esfera dos interesses individuais. Tão grande apreço pelo homem-indivíduo na sua vontade-liberdade de dispor da sua propriedade (latu sensu) vem a tornar difícil a compreensão do padrão fiador da razoabilidade da lei. Eis porque KANT restaura o paradigma do contrato social – se não antes, agora certamente entendido metaforicamente – e reclama o Estado politicamente configurado à luz da 85 Refira-se desde já que – embora conhecedor das teses do «profundo Kant» (Apostilla à Censura do Senhor Alberto Moraes de Carvalho, cit., p. 18) - SEABRA ter-se-á inspirado nestes autores antes de mais por via indirecta, recolhendo respectivamente em FERRER (Elementos de Direito Natural) e AHRENS (Curso de Direito Natural) o fulcro das sua construções filosóficas. 86 É terminologia - aqui exornada de uma significância estritamente operativa – colhida em PRÉLOT E LESCUYER – História das Ideias Políticas (trad. port.), vol. II, Lisboa, 2001 (cfr. e.g. o índice, pp. 11-12).. 87 Poderíamos substituir solidarista por organicista; seria mesmo preferível do nosso ponto de vista. Não o fazemos porque esse termo foi historicamente esculpido com uma dada carga semântica que mesmo se não totalmente opósita do krausismo, pelo menos dele se distancia em aspectos marcantes. Basta-nos rememorar a dependência individualista – conquanto não radical – da filosofia de KRAUSE. Mas notar-se-á igualmente que o solidarismo de que nos ocupamos, o de KRAUSE, não é de todo análogo ao «quase socialismo» solidarista de um LÉON BOURGEOIS (v., sobre este último, PRÉLOT E LESCUYER, ob. cit., pp. 337 e ss.). Diríamos antes – com o risco de sermos traídos pela ignorância - que KRAUSE tenta o compromisso entre um KANT e um HEGEL. 88 Seguido neste particular por REIS MARQUES – ob. cit., p. 194 e 210. 89 Ob. cit., p. 282. 90 Sobre este tópico (Willeteorie), v. ANTÓNIO HESPANHA – ob. cit. p. 155/nota 226. 91 «De uma liberdade considerada como aquele único e originário direito que compete a todo os homens só por força da sua humanidade...». Cfr. MALTEZ - Princípios de Ciência Política, Vol. II - Problema do Direito, Lisboa, 1996, p. 344.

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representatividade92. Simplesmente lei-do-parlamento é a vontade geral de mediar os interesses que se agitam na sociedade, é a forma que assegura ao homem, sem compromissos ético-objectivizantes, a liberdade de conformação do porvir, do agir individual-volitivo subjectivamente ajuizado pelo consciente dever ser de um imperativo categórico. Numa palavra, Direito é a ordem-quadro no âmbito da qual – mas autonomamente - se realiza a regra moral conexa com a livre consciência individual. Esta ordem de considerações induz-nos sem dificuldade no sentido mais profundo da filosofia do Direito kantiana: o Direito é a forma que assegura a liberdade, a lei é a razão-realizante da autonomia da vontade. E isto – note-se bem – não mais é do que uma colossal inflexão no entendimento da posição relativa do homem no meio circundante: de ora em diante não é o meio natural que rege o homem, a lei não é nem o fruto sagrado da ordem já acabada, nem mesmo a dedução racional da natureza-das-coisas; lei é a manifestação da razão-conhecimento em si mesma prescritiva dos objectos naturais; e o sujeito é - na téctónica própria da teoria de KANT – o demiurgo que concerta o meio objectivo, a vontade-raciocinante autodeterminada do preconceito empírico-causal93. Bem diverso no seu princípio e no seu propósito dinâmico – mesmo se relativamente semelhante do ponto de vista fáctico94 – é o sistema de KRAUSE. Desde logo porque sustenta que «para a natureza racional do homem, não é causal, mas antes essencial, haver um mundo exterior, do qual o homem está corporal e espiritualmente dependente»95. E isto equivale a vibrar um golpe decisivo no radical-individualismo que acima imputámos à filosofia kantiana. Por duas ordens de razões. Imediatamente – e, neste particular, sem consequências de maior – porque continuando mesmo a revestir a centralidade própria de arquétipo do discurso político, o indivíduo deixa de ser abstractamente tomado para ganhar uma coloração material, recuperando-se como pessoa-estatuto orgânico-socialmente enquadrada. Pelo que a dimensão institucional das relações intersubjectivas – que o menosprezo surtido pela hipertrofia individualista quase motivara definhar – adquire uma renovada significância no

92 Cfr. - sobre a importância da representação e da constituição jurídica na projecção da concepção kantiana da «República de Direito» – CLAUS DIERKSMEIER - «Kant versus Krause», in Estudos de Homenagem a J. M. da Silva Cunha, Porto, 1999. 93 Claro está que a doutrina do Direito natural – este entendido no sentido clássico, como conjunto de materiais axiológico-transcendentais impostos pela justiça imutável objectivamente alcandorada – é lançado, sem mais, borda fora. Ouçam-se, neste sentido, as sábias palavras de RADBRUCH: «a crítica kantiana da razão teórica mostrou, com efeito, que a razão não é um arsenal de conhecimentos teoréticos já feitos, nem tão pouco de normas de moral ou de estética já susceptíveis de aplicação imediata, mas simplesmente uma força capaz de se elevar até esses conhecimentos e normas. Mostrou que ela era somente um complexo, não de respostas, mas de perguntas e de pontos de vista com os quais avançamos para os dados empíricos; ou ainda: que ela não era senão um conjunto de «formas» e «categorias», que só depois de receberem dentro de si uma determinada matéria, ou só depois de serem aplicadas a certos dados empíricos, podem permitir-nos formular quaisquer juízos ou apreciações com um conteúdo positivo e preciso. (...) É isto que nos permitirá compreender que, conquanto a esta interrogação – qual o direito justo? – possamos reconhecer (como simples interrogação) uma legitimidade e um valor universais, todavia só possamos reconhecer uma legitimidade e um valor muito relativos às diferentes respostas e soluções que lhe forem dadas em cada época. A «categoria» direito justo é pois a única a que devemos atribuir um valor universal; não, porém, a cada uma das aplicações que delas pudermos fazer. Certamente, poderemos conservar, se quisermos, a expressão «Direito Natural» para designar com ela este conceito puramente categorial de um direito justo. Mas nesse caso não devemos deixar de separar, rigorosamente, a noção deste, como a dum «direito natural de conteúdo variável» (STAMMLER) ou dum «direito cultural», da noção dum direito natural eterno e de conteúdo imutável, como propugnava a velha escola racionalista deste nome» (Filosofia do Direito [trad. port.], vol. Iº, 4ª ed., Coimbra, 1961, pp. 71-72). 94 Já salientámos mais do que uma vez que - contando que partem do mesmo binómio indivíduo-interesse (v., supra III – A Semântica da propriedade, in principio)- as teses empiristas, formalistas e naturalistas acabam por conduzir a efeitos práticos muito semelhantes. Todas se manifestam em favor do legalismo e contra os tradicionais esquemas jurídicos: a prudentia dos romanos, a iurisdictio medieval, a politiae do «déspota esclarecido». 95 CLAUS DIERKSMEIER, ob. cit., p. 96.

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quadro paradigmatizante da sociedade. Em síntese: com KRAUSE - não se perdendo de todo o causalismo-finalismo antropocêntrico – o individualismo formal-abstracto é aparentemente destituído por um realismo sociológico. Dissémos aparentemente; a segunda razão nomeada atestará a imprudência de uma tal conclusão. Só que para o provarmos é imperativo tomarmos contacto com um novo conjunto de elementos. Se em KANT a liberdade racionalmente demarcada era um fim em si, era o fim exclusivo do Direito, assim realizado em ordenação do autónomo querer-realizar do ser-humano-indivíduo, já KRAUSE vê muito mais a liberdade como o meio-instrumento de realização do telos racional de todos os homens, e com eles da própria sociedade nas suas configurações particulares e como República Universal96.97 O Direito liberta-se da compreensão estática e garantista-formalista incutida pelo pensamento kantiano e volve-se subitamente em justo dinâmico na procura do Bem. E a constituição, outrora reduzida à modesta condição de contrato social, torna-se o pacto de valores merecedor da devoção colectiva, a bússola ou princípio material da acção individual comunitariamente emoldurada98. Põe-se contudo, com razoável propriedade, a questão de saber o que é e quem define esse «ser» do Bem. Diremos o seguinte: KRAUSE cede aqui ao panenteísmo99. Desprovido do arrimo que a teoria kantiana desencerrara, daquela demissão axiológica-programática própria do formalismo jurídico, KRAUSE é obrigado a procurar um fundamento para a ideia cardeal que informa o seu sistema: o Bem. E não o encontra senão no Infinito, na Criação, no Divino. Simplesmente – e por isso se fala de um panenteísmo, não de um panteísmo – este primitivo ôntico latente não se identifica com o Deus heterónemo-transcendente para o qual recorriam os juristas medievais, antes com a natureza imanente do universo-organismo100. No que o homem - apesar de tudo ainda entendido como valor supremo – é condicionado no seu querer subjectivo pela objectividade natural envolvente. A ideia kantiana de um conhecimento dirigido ao objectos é irremediavelmente enjeitada por KRAUSE e comutada pela percepção de um conhecimento dirigido pelos objectos. Numa palavra, a razão perde a sua radical-autonomia e revê-se nos métodos empírico-dedutivos. E não menos que o formalismo, o realismo apaga-se perante a incandescência do mais evidente idealismo. Limitámo-nos até ao momento a uma grosseira descrição de duas doutrinas jurídicas consideravelmente discrepantes101. Mas o problema que fundamentalmente nos interessa é o da averiguação do fundamento filosófico da monografia de SEABRA. Subsiste, portanto, a questão central: é KANT ou é KRAUSE que marca a filosofia do nosso autor? A resposta não poderá fundiar-se na panóplia de argumentos traçada em A Propriedade. Tenta-se aí um eclectismo de duvidosa utilidade, para além de degradante do ponto de vista metodológico. Pelo que nos resta atender exclusivamente à intenção global da obra. 96 Cfr. as considerações de REIS MARQUES – ob. cit., pp. 207 e ss. 97 Sobre o campo semântico deste conceito na doutrina de KRAUSE, v. MALTEZ – ob. cit., p. 372. KANT repudiava a ideia de uma «monarquia universal» («despotismo sem alma»), propugnando uma simples aliança confederativa (cfr. ainda em MALTEZ – ob. cit., p. 356) 98 «Ela [constituição] serve, não apenas, a fortificação do statu quo jurídico contra formas arbitrárias de governo, mas também o progresso material da justiça, na medida em que a comunidade jurídica se vinculara si própria às finalidades obrigatórias da acção jurídica comum» (CLAUS DIERKSMEIER, ob. cit., p. 98). 99 Cfr. MALTEZ – ob. cit., p. 372. 100 Sobre a recepção desta ideia em AHRENS e deste para FERRER, v. REIS MARQUES – ob. cit., pp. 208/nota 556. 101 Muito embora se reconheçam também numerosos pontos de contacto. Em todo o caso, ousamos duvidar da exactidão da seguinte conclusão de DIERKSMEIER: «no conjunto, pode-se concluir que, se Krause nem sempre segue as exposições de Kant no particular, no conjunto, no entanto, prossegue, adequada e consequentemente, as perspectivas kantianas de um filosofia do direito originada na liberdade e, onde se afasta de Kant, em todo o caso filosofa no espírito deste» (ob. cit., p. 100). Sobre a postura que supomos mais rigorosa, v. CABRAL DE MONCADA - ob. cit., p. 282 e REIS MARQUES – ob. cit., p. 210.

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Sabemos que o objectivo primário que move SEABRA é o da defesa da propriedade individual. E este é – na desanimadora conjuntura que nos assimila – um ponto de partida perfeitamente aceitável. SEABRA nunca consente o eclipse do homem individual102. Na arquitectura do seu sistema jurídico, a regra de direito positiva – mesmo se metódico-racionalmente deduzida da lei causal – é a garantia formal do direito de propriedade. A liberdade de dispor da personalidade e da propriedade adquirida, tal como a liberdade de apropriação são as coordenadas capitais que orientam a ordem jurídica tal como projectada pelo nosso autor. A propriedade é nada mais nada menos do que ius utendi ac abutendi, não consentindo nenhuma orientação material que transcenda a formal função integradora e demarcadora do Direito103. Pelo que não só se compreende o indivíduo em termos puramente abstractos, como um potencial proprietário em sentido estrito, como se rejeita a função dinamizadora do Direito em ordem a realizar um horizonte substancial. Ao homem é somente definido o âmbito formal de comportamento, o espaço de razoabilidade no exercício do legítimo direito de propriedade. Importa também evocar a posição de SEABRA no que há delimitação das esferas de influência do Direito e da Moral diz respeito104. O A., sensível embora às questões de fisionomia ética, nem por isso concede que ao Direito esteja cometido qualquer escopo particular da Moral. O Direito não deve exorbitar a missão que, sem intromissão da moral, privativamente lhe compete: a garantia da liberdade. Justamente em coro com KANT, SEABRA reivindica a autonomia principiológica e normativa do jurídico, desta forma limitado a estrutura de ordenação razoável do livre querer-dever de cada um-igual. Eis-nos na evidente presença do mais clássico desígnio liberal. Dir-se-á que o nosso autor é ainda de confissão jusracionalista, que adere com grande vigor à fixação naturalista-objectivista da vontade racional105. Mas ripostaremos de imediato que essa crença cientista capitula perante a própria ideologia propugnada, que essa fixação espistemologica não resiste ao ímpeto prático-cultural irradiado pela obra. Isto mesmo, claro fica, sem embargo da profunda contradição que, na sua obsessão ecléctica, dilacera toda a construção teórica do Visconde de SEABRA. Tanto assim que se também nós nos regêssemos pela conspecção crítica sublimada pelo liberalismo, não nos restaria senão, solicitada a comparecer perante o tribunal da racionalidade, reprovar sem mais A Propriedade; assim cedendo fragilmente aos rigores implacáveis do mais escrupuloso e infalível juízo logicista.

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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA106

ANDRADE, MANUEL A. DOMINGUES DE -- «O Visconde de Seabra e o Código Civil», in BFDUC, vol. XXVIII. CARVALHO, ALBERTO MORAES DE -- Observações sobre a Primeira Parte do Projecto de Codigo Civil Portuguez, Lisboa, 1857.

102 Parece que, neste particular, na esteira de FERRER. Cfr. REIS MARQUES – ob. cit., p. 210. 103 Idem, pp. 210-212 104 O tema foi já incidentalmente tratado em VII – Propriedade e Economia. 105 Admitimo-lo do mesmo modo que, em sintonia com CABRAL DE MONCADA, o fizémos em supra IV – Propriedade e Ciência. 106 Limitamo-nos a elencar as obras efectivamente utilizadas e que directa ou indirectamente se relacionam com o tema deste trabalho. Pode suceder que um ou outro livro citado tenha sido excluído deste catálogo precisamente por só incidentemente ter servido os nossos propósitos.

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COSTA, MÁRIO J. DE ALMEIDA -- «António Luís de Seabra», in Dic. de Hist. de Port. (dir. de Joel Serrão), III, Lisboa, 1966. -------- «Enquadramento Histórico do Código Civil Português», in BFDUC, vol. XXXVII. -------- História do Direito Português, 3ª ed., Coimbra, 1996. COSTA, VICENTE JOSÉ F. CARDOSO DA -- Que he o Codigo Civil?, Lisboa, 1822. CUNHA, J. M. DA SILVA E ALMEIDA, CARLOS M. DE -- História das Instituições, vol. II, Porto, 1998. DIERKSMEIER, CLAUS -- «Kant versus Krause», in Estudos de Homenagem a J. M. da Silva Cunha, Porto, 1999. GIL, AUGUSTO – Brevíssimas Reflexões sobre o Titulo 8º do Livro Único da Primeira Parte do Projecto de Codigo Civil Portuguez, Lisboa, 1959. HESPANHA, ANTÓNIO M. -- Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, 2ª ed., Lisboa, 1998. MALTEZ, JOSÉ ADELINO -- Princípios de Ciência Política, Vol. II - Problema do Direito, Lisboa, 1996. MARQUES, MÁRIO REIS -- O Liberalismo e a Codificação do Direito Civil em Portugal, Coimbra, 1986. MONCADA, LUÍS CABRAL DE -- «Subsidio para uma História da Filosofia do Direito em Portugal», in BFDUC, vol. XIV. NEVES, ANTÓNIO CASTANHEIRA -- Curso de Introdução ao Estudo de Direito – O Pensamento Moderno-Iluminista como Factor Determinante do Positivismo Jurídico (polic.), Coimbra, 1976. NOVAIS, JORGE REIS -- Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, Coimbra, 1987. PAIVA, VICENTE FERRER NETO -- Reflexões sôbre o sete Primeiros Titulos do Livro Único da Parte I do Projecto de Codigo Civil Portuguez, Coimbra, 1859. PRÉLOT, MARCEL E LESCUYER, GEORGE – História das Ideias Políticas (trad. port.), vol. II, Lisboa, 2001 RADBRUCH , GUSTAV – Filosofia do Direito (trad. port.), vol. Iº, 4ª ed., Coimbra, 1961. SEABRA, ANTONIO LUIZ DE -- A Propriedade. Philosofia do Direito. Para servir de Introdução ao Comentário sobre a Lei dos Foraes, vol. I - Parte I, Coimbra, 1850. -------- Apostilla à Censura do Senhor Alberto Moraes de Carvalho sobre a Primeira Parte do Projecto de Codigo Civil, nºs 1 e 2, Coimbra, 1958. -------- Novissima Apostilla em Reposta à Diatribe do Sr. Augusto Teixeira de Freitas contra o Projecto de Codigo Civil Portuguez, Coimbra, 1959. -------- Resposta às Reflexões do Sr. Doutor Vicente Ferrer Neto Paiva sôbre os sete Primeiros Titulos do Livro Único da Parte I do Projecto de Codigo Civil Portuguez, Coimbra, 1859. -------- Resposta do Auctor do Projecto do Codigo Civil às Observações do Sr. Doutor Joaquim José Paes da Silva, Coimbra, 1859. SILVA, JOAQUIM JOSÉ PAES DA -- Observações sobre o Projecto do Codigo Civil, Coimbra, 1859. -------- Novas Observações sobre o Projecto do Codigo Civil, Coimbra, 1863. SILVA, NUNO J. ESPINOSA GOMES DA -- História do Direito Português – Fontes de Direito, 3ª ed., Lisboa, 2000. SOARES, ROGÉRIO G. EHRHARDT -- Direito Público e Sociedade Técnica, Coimbra, 1969.