Goncalves 2005 (Juventude Brasileira)

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  • Juventude brasileira, entre a tradioe a modernidade

    Hebe Signorini Gonalves

    O individualismo tem sido afirmado como marca da sociedade contem-pornea. A ele se submeteriam todos os protagonistas sociais, em particu-lar os que vivem e circulam nas grandes metrpoles, aodadas pela compe-tio e pelo consumo. Segundo esse modelo de anlise, a sociedade do espetculo,para usar o termo cunhado por Guy Debord, impe subjetividades e forjamodos de pensar, sentir e agir, sobretudo entre os jovens, segmento etriotido como o mais vulnervel aos apelos do individualismo. A juventude,na viso clssica, entendida como uma categoria social gerada pelas ten-ses inerentes crise do sistema (Foraccchi, 1972, p. 160); estudos con-temporneos reafirmam seus excessos pulsionais (cf. Souza, 2005) comomotores da construo das formas pelas quais o jovem se apresenta socie-dade. A primeira viso acentua o conflito e a busca pela experimentao; asegunda encaminha a postura individualista e narcsica, considerada tpicada sociedade e da juventude contemporneas.

    O interesse pela juventude desponta de tempos em tempos, mas parececontaminado sempre por esses motores. As crises e os excessos, os conflitose as exploses que a eles se seguem, acompanham a histria da preocupa-o social e acadmica com a juventude. Os anos de 1920 presenciaram aexploso desse interesse na razo direta da comoo gerada pela turbuln-cia social em Chicago; naquela poca, toda uma gerao de jovens italia-nos, judeus, irlandeses e afro-americanos tornou-se objeto de estudos da

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    sociologia, em busca de uma resposta s indagaes acerca de possveisimplicaes entre juventude, violncia, criminalidade e desorganizaosocial urbana (Zaluar, 1997, p. 18)1. Premidas nos anos de 1920 pelaslutas das gangues, nos anos de 1950 pela exploso demogrfica nas urbes emais recentemente pelos elevados ndices de disseminao das doenassexualmente transmissveis, as cincias humanas privilegiaram o exame dajuventude sob a tica do negativismo.

    Os excessos juvenis, tomados como impulso da desordem urbana, co-locaram em movimento esforos de disciplinarizao. Associadas aos com-portamentos disfuncionais, as pulses da juventude tornaram-se foco daassepsia social que queria o controle e a correo dos vcios, e nesse percur-so as cincias reforaram ao longo dos anos a percepo de que boa partedas mazelas sociais poderia ser creditada na conta da juventude e de seusanseios de diferenciao. Firmou-se no imaginrio social a associao entrea juventude e as grandes questes de cada tempo: no sculo XXI, quandograssam as preocupaes com o individualismo exacerbado e a criminali-dade crescente, o jovem emerge como individualista e responsvel, emgrande parte, pela criminalidade urbana.

    O vnculo entre juventude e criminalidade, estabelecido pelo funciona-lismo nos anos de 1920, pode ser identificado ainda hoje em textos quefalam da modernidade, da globalizao e da violncia na vida das metr-poles, propugnando um modelo de controle da criminalidade pautadopela ateno aos pequenos delitos e aos jovens transgressores. Os textos deWacquant (2001) ilustram bem o modo como o controle social persegue,ainda hoje, o ideal funcionalista.

    Mas a multiplicidade de vivncias, a diferena no desenho das cidadese as formas dspares de organizao comunitria, sobretudo no Brasil, noautorizam supor a hegemonia de modelos, nem do ponto de vista da cri-minalidade juvenil esta mais questionada por dados que demonstramseus equvocos , nem do ponto de vista da preponderncia do indivduonarcsico e desenraizado. Como nossos jovens vem a si mesmos? Comolidam com suas dificuldades, e de quais estratgias e laos sociais lanammo para ascender ao mundo adulto?

    * * *

    Comeam a despontar algumas crticas hegemonia do modelo dosujeito marcado pelo individualismo. Questionando a natureza totalizan-

    1.A associao entre ju-ventude e criminalidadeinspirou polticas pbli-cas tambm no Brasil,onde as primeiras esta-tsticas sobre a crimina-lidade juvenil j anun-ciavam seu aumento(Santos, 2004, p. 216).Ao registrar essa curiosaconstatao, a autoraoferece indcios de quetambm no Brasil a preo-cupao com a juventu-de se calca em intentosde regulao social.

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    Hebe Signorini Gonalves

    te dessa representao, Amorim (2002) argumenta que o individualismoequivale ao mito no mundo clssico, pois orienta e organiza percepesde mundo, numa denncia de que ele faz circular representaes sociaisque contribuem para produzir o que anuncia. Mais radical Duarte(1983), para quem o individualismo poderia ser considerado a religiodo mundo contemporneo.

    Segundo Boaventura Souza Santos, os fenmenos correlatos da globali-zao no do conta das questes mais prementes com as quais se batem associedades perifricas2. Nas ditas sociedades centrais, a globalizao sucedea um Estado forte, capaz de organizar a cultura e de oferecer ao indivduouma referncia institucional, portanto pblica. Esse modelo serve s na-es europias, mas no a Portugal, nem tampouco ao Brasil, pases emque o espao domstico tinha e tem um forte poder de regulao social;em ambos, o domstico que ancora o pblico e supre muitas de suasfunes (cf. Santos, 1997). No Brasil, a famlia e a cadeia de relaes quese estrutura em torno dela ainda uma forte referncia da subjetividade,sobretudo entre as camadas mais pobres da populao. Como j mostrouSarti (1996), as cadeias migratrias articulam-se em torno de relaes deparentesco e amizade tanto no que diz respeito busca pelo trabalho comona eleio dos locais de moradia.

    Admitindo que os laos de parentesco falam da tradio cultural e con-trapem-se aos padres ps-modernos, seria preciso admitir aqui uma per-manncia da tradio, tornando tensos os apelos da modernidade.

    Ao descrever a vida urbana, referindo-se ao municpio de Curitiba,Sanchez (2001) destaca sua multiplicidade irredutvel de sentidos. Lendoa cidade como um territrio de disputas simblicas, de jogos e discursosem permanente confronto, a autora marca a impossibilidade de reduzi-la,e a seus cidados, a uma nica definio. Do mesmo modo, Castro (2004,p. 24) descreve a urbe como a geografia do mltiplo e do variado, lugarque acolhe uma coletividade de indivduos singulares na qual todos tm odireito de buscarem suas vias de expresso pessoal. Referindo-se mais di-retamente s vivncias da juventude, Pais (2003) acentua o cruzamentodas trajetrias de vida que a cidade proporciona, sucessivamente aproxi-mando e afastando estranhos, tecendo cadeias de relaes que ele chamade interconectividade tpica da juventude. Mas se verdade que o jovemexperimenta, circula, troca de lugares e de afetos, preciso reconhecertambm que ele organiza essas trocas segundo a lgica prpria com quepersegue os sentidos na cidade. Como lembra Carrano:

    2.De acordo com San-tos (1997), essa expres-so aplica-se a naescomo Portugal e Brasil,onde as relaes entresociedade civil, Estadoe mercado se regem se-gundo hierarquias pou-co suscetveis de globa-lizao.

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    At mesmo nos grupos com forte identificao gregria, onde as trajetrias dos su-

    jeitos se cruzam intensamente, existem processos que fazem com que os seus mem-

    bros se distanciem por outras redes de significados, configurando as variadas possi-

    bilidades de vnculos sociais que podem ser tramados nas cidades (2001, p. 16).

    Os centros urbanos brasileiros, marcados pelas enormes distncias so-ciais, pem em contato territrios informados pelo simblico e permeadospelo econmico. Nesse particular, nossa geografia urbana impe experin-cias que diferem de qualquer cidade das sociedades centrais. A disparidadede renda, a presena ou ausncia das benfeitorias sociais e a maior ou me-nor dificuldade de acesso s benesses so os elementos mais visveis da redede significados que o jovem deve aprender a decodificar. A convivnciacom o outro, na interconectividade das histrias vividas, mostra que unstm acesso amplo ao conjunto de benfeitorias sociais, outros renunciam aelas e alguns se apropriam daquelas que lhes parecem indispensveis. As-sim, o jovem chamado a construir ativamente as redes de significado, sobpena de sucumbir aos apelos do estranho e aos perigos da cidade. Nessaposio, que necessariamente ativa, h de haver um nucleamento de sen-tidos passvel de identificao. Como o jovem mapeia os territrios urba-nos e com base em que premissas se move entre eles?

    A visibilidade mais ou menos explcita da distncia entre os diversosgrupos sociais que convivem no meio urbano e as formas como essasdistncias so preenchidas no um problema menor, j que toca atemtica da regulao. Castro (2001) argumenta que a ocupao da cidadepor crianas e jovens s bem-vinda quando feita nos limites da ordemprevista pelo adulto, que submete e controla o ir-e-vir do jovem pelascidades. Para a autora, a regulao tambm contm seus excessos, e elainterpreta como agresso e violncia o que busca de sentido e vontade departicipao. A pichao, com a qual o jovem quer imprimir sua marcapessoal s ruas da cidade, e a zoao, o desafio do outro por meio da galhofae do desacato, so exemplos de atitudes comuns aos jovens, que, se con-tm um vis de agresso, so tambm formas de reivindicao: [...] ochamamento do outro, para que preste ateno e se volte para aquele quezoa, que reclame, que tome uma posio e que ponha limites. Na verdade,zoar pode se tornar uma forma desesperada e ltima de estabelecer vncu-lo (Castro, 2004, p. 121).

    Esse atravessamento de sentidos, em que o desejo de diferenciao dojovem se confronta com os anseios de regulao e controle prprios da or-

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    Hebe Signorini Gonalves

    dem social instituda e adulta, ganha contornos tpicos numa sociedade emque a regulao se exerce a partir do domstico. Diante da tibieza das insti-tuies, cabe famlia, e queles que lhe so prximos, promover em pri-meira instncia a regulao da conduta. Como a famlia dar conta dessafuno reguladora cujo alcance deve exceder o domstico?

    O jovem fala de si

    Em pesquisa coordenada por Castro et al. (2005), 1.300 jovens fo-ram entrevistados na regio metropolitana do Rio de Janeiro3. Entre ou-tros aspectos, eles foram indagados acerca de quais seriam, em seu en-tender, os principais problemas da juventude, e quais as formas deenfrent-los.

    Os resultados mostram que as questes relacionadas violncia, dro-ga e ao trfico despontam como os principais problemas citados. Na des-crio dos jovens, a associao violncia-droga-trfico a resposta maissignificativa. Observe-se que no se trata de problemas isolados que sepotencializam, mas de uma nica questo expressa em trs vertentes indis-sociveis, constituindo uma unidade discursiva. No entender dos jovensentrevistados, violncia-droga-trfico constitui um problema porque im-pe um risco real a ameaa segurana pessoal e uma limitao simb-lica representada no sentimento do medo que conforma os modos deviver e circular na cidade.

    No h como escapar: polcia e traficantes aparecem como faces do mes-mo problema; amigos de antes ingressam na marginalidade e no podemmais compartilhar espaos nem tampouco histrias de vida; freqentar osbares, os pontos de encontro, atitude que requer um esmiuar constantedos riscos envolvidos; a ida escola deve considerar, a cada dia, se possvelir, ficar e voltar. A praa, que nas comunidades mais pobres o lugar davida social, nem sempre est disponvel para a brincadeira, o namoro, oencontro com os amigos. Assim descrita, a vida nas comunidades emergecomo o lugar de uma forma bastante peculiar de socializao, em que sernecessrio ao jovem exercitar a percepo, ficar esperto4 para escapar dasinmeras armadilhas que as trocas sociais oferecem. preciso resistir ten-tao do ganho fcil, empreender um esforo da vontade para aplicar-se nosestudos e formar um capital pessoal que mais adiante, transpostos os mui-tos obstculos, possa vir a garantir um emprego que permita ao jovem apre-sentar-se sociedade, finalmente, como adulto.

    3.Os resultados so apre-sentados em Castro et al.(2005). No presente tex-to, so explorados ape-nas alguns dos itens in-vestigados. So tambmdiscutidos dados parciais,relativos a uma das co-munidades estudadas, obairro de Bom Retiro, nomunicpio de Duque deCaxias. Esta comunida-de destacada porqueconstitui um ncleo ondeo trfico de drogas no atuante e no domina asrelaes sociais.

    4.Todas as frases e ex-presses em itlico aolongo deste item e doprximo so transcritasdas entrevistas e corres-pondem aos termos em-pregados pelos jovens epor seus familiares.

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    O destaque aos dados coletados na comunidade de Bom Retiro servepara desmistificar a crena de que a violncia decorre das atividades ligadasao trfico de drogas. Ali no h referncia ao trfico, mas, ainda assim, adroga o problema mais citado; ela se conecta violncia pela via subjetiva,no pelas disputas de quadrilha pelo mercado da droga. No entender dosjovens residentes nessa comunidade em particular, o uso de drogas umaescolha do sujeito, condicionada em grande parte pelos problemas que eleno quer ou no pode enfrentar: porque tem a cabea fraca ou porque, dian-te das dificuldades com os pais em casa, elegeu a droga como uma resposta fcilpara seus problemas. O julgamento moral que condena o uso da droga seraplicado, assim, s conseqncias que ela acarreta para o sujeito: a drogaimpede a dedicao aos estudos, esforo necessrio na construo de umfuturo estruturado com base no emprego slido e nas relaes afetivas est-veis. A droga compromete as relaes de amizade e vizinhana, pois, droga-do, o jovem se sente superpoderoso e quer matar todo mundo. Ao deslocar otrfico, pode-se assim pr em relevo as escalas de valor que orientam certaspercepes do jovem: o ncleo de sentido em suas falas a cabea fraca, queafasta o jovem do emprego e da vida em famlia, e introduz a violncia naesfera de suas relaes pessoais. Mais que a segurana pessoal, preocupa ocomprometimento de projetos de futuro que tm como rumo e norte a es-tabilidade econmica e afetiva. Consciente das dificuldades a superar pararealizar esses projetos, o jovem deixa transparecer que s a cabea forte olevar at l.

    No se trata de negar o risco das ruas, reconhecido como real. Todos osentrevistados fazem referncia a uma violncia que difusa, que est emtodo lugar, que alimenta seus medos e condiciona suas escolhas. O enfren-tamento dessa dificuldade especfica pede a ao dos setores pblicos, emparticular da polcia, instncia que identificam como a responsvel pelocontrole da criminalidade urbana. Mas, incontinenti, apontam a polciacomo parte do problema, pois ela corrupta, entra nas comunidades praesculachar, estabelecendo uma tenso que potencializa o medo e a violn-cia, em vez de reduzi-los.

    Na ausncia do pblico como fonte de suporte para a vida social atmesmo no que diz respeito ao controle da criminalidade, o jovem ressen-te-se da ausncia do Estado. Diante de um poder pblico que no tem feitomuita coisa, refluem sobre a famlia todas as expectativas de suporte e apoio.No fao a mnima idia de com quem ele [o jovem] pode contar hoje almda famlia, resume um entrevistado.

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    Hebe Signorini Gonalves

    Na frase a famlia tudo, repetida por um contingente expressivo dejovens entrevistados, desenha-se a chave da construo de suas subjetivi-dades. O apoio da famlia, vital para ampliar a chance de realizar os proje-tos de vida, praticamente o ltimo reduto de seus sonhos. um apoioque se traduz na presena conversar, acompanhar a vida dos jovens e sercompanheiro nos momentos difceis e tambm no esteio econmico quepermite atravessar a fase da vida em que no podem se sustentar.

    V-se, assim, que o jovem brasileiro atribui famlia expectativas quenas sociedades centrais so compartilhadas por outras instncias sociais; aretrao do pblico refora o privado e faz com que repousem no sujeito eno ncleo familiar as foras de agregao social. Nesse sentido, no sur-preende que as escolhas sejam interpretadas sob um vis voluntarista oporque quer orientado pelo carter construdo nas relaes privadas. Nosurpreende tampouco que, convidados a enumerar as pessoas que mais ad-miram, os jovens construam uma lista encabeada pela me, descrita comouma lutadora. A idealizao da figura materna, a idealizao da vida fami-liar como esteio do prprio futuro e as expectativas lanadas sobre a famliacomo fonte de apoio so fatores que produzem dois efeitos: em primeirolugar, abrem caminho para que os valores cultivados pelos pais sejam acei-tos como pilares do carter; j vimos, nas expresses cabea forte e em seucontraponto, a cabea fraca, como os jovens indicam que compartilhamesses valores. O segundo efeito fala da carga de expectativas lanadas sobre agerao passada, que faz das mes e dos pais as ncoras isoladas dos proces-sos de socializao. Como a famlia brasileira lida com elas?

    O famlia fala de si, e do jovem

    Dados de pesquisa acerca da violncia familiar no Brasil sugerem que oespao domstico no caixa de ressonncia, mas lugar organicamente arti-culado ao social, recebendo sua influncia e produzindo efeitos sobre ele(cf. Gonalves, 2003).

    O discurso de trinta mes, entrevistadas aproximadamente na mesmabase geogrfica dos jovens cujos depoimentos foram mencionados no itemanterior, indica o uso amplo da punio corporal com propsitos discipli-nares. As entrevistadas defendem essa prtica quando regulada por limitesditados pela cultura. A essas formas punitivas, aplicadas segundo os par-metros que as regulam, as mes recusam dar o rtulo de violentas. Elasdiscordam, assim, da interpretao dominante que atribui ao uso da fora

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    fsica um efeito pernicioso na formao e no desenvolvimento de crianase jovens.

    Para efeito deste texto, importante destacar os motivos que, do pontode vista das entrevistadas, justificam o uso da punio corporal. Adotadacomo recurso extremo, ela empregada em situaes nas quais a crianaou mesmo o jovem, apesar de advertidos, insistem na desobedincia ou nodesrespeito aos pais ou mesmo aos mais velhos com os quais mantm rela-es de parentesco ou vizinhana. As mes entendem que a obedincia hierarquia entre as geraes o pilar nas relaes sociais, pois o respeitoao prximo que produz o assujeitamento necessrio transmisso de valo-res e formao do carter.

    Mais preocupadas com a violncia na rua do que com os excessos disci-plinares domsticos, as mes entrevistadas nomeiam uma violncia queest em todo lugar e faz com que se mate por um real, ou por nenhum. Elasinvocam a atrao que a marginalidade fora de controle exerce sobre ojovem e o apelo contemporneo pela afirmao da singularidade e da dife-rena como armadilhas da convivncia entre estranhos, caractersticas in-contornveis da vida na cidade. Reconhecendo que impossvel negar aliberdade, e que seus filhos cedo ou tarde sero confrontados com os desa-fios da cidade, as mes entendem que a tarefa de educar tem como prop-sito central a boa formao, o carter, a cabea forte.

    Essas expresses condensam sentidos: a boa formao no se restringe obedincia no espao domstico, mas fala principalmente do comporta-mento adequado na rua, que abarca as relaes respeitosas para com os maisvelhos, a escolha adequada das amizades, o empreendimento de esforos naescola, a esquiva dos grupos envolvidos com drogas, criminalidade ouqualquer forma de violncia. A relao dos problemas a serem evitados in-dica a preocupao das mes com a reconstruo da sociabilidade no espaopblico. Indica, alm disso, que assumem como sua essa tarefa; a frase deuma das entrevistadas no deixa margem a dvida: as pessoas que esto narua, violentando, atacando as pessoas, ela tem uma criao, n, ento comeaem casa. Se voc cria seus filhos na paz, eles vo sair l fora e no vo atacarningum.

    Haveria elo de ligao entre a criminalidade urbana e a violncia fami-liar? Com base em dados produzidos nos Estados Unidos, Gelles (1997)afirma que tanto o comportamento violento como a conduta criminal soconseqncias comprovadas do abuso sofrido na infncia. No Brasil, essaassociao posta em dvida pelas mes que entrevistei. No primeiro mo-

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    Hebe Signorini Gonalves

    mento, elas negam qualquer conexo com base em suas histrias pessoais:se fosse assim declarou uma das mes , eu tambm tinha sido bandida. Aseguir, elas invertem a relao causal e afirmam que a punio corporal,aplicada quando requerida, contribui para forjar o carter, tarefa domsti-ca por excelncia: abandonado, o mundo ensina. [...] se a gente largar assimdemais, o mundo que vai ensinar. E o mundo vai ensinar errado.

    No deixa de soar estranha essa crena na possibilidade de controle dadesordem urbana a partir do domstico. Durante longo tempo, essa justi-ficativa para a defesa da punio corporal foi interpretada como mero ar-gumento para validar a prtica dos castigos fsicos, essa sim condenvel.Mas o julgamento moral precipitado dessa linha de argumentao temfurtado ao exame os fatores que informam a inclinao da famlia brasilei-ra pelo uso da punio corporal. Trata-se de um procedimento que no gratuito, nem espontneo.

    Ele tem origem nos preceitos higienistas, que associaram a disciplinadomstica ao controle dos sujeitos no espao pblico. Lopes Trovo pro-clamava a infncia como o perodo em que se forja a gnese da humani-dade mais perfeita. Belisrio Penna via na educao domstica o disposi-tivo capaz de assegurar a ordem sem o uso da fora. Para Loureno Filho,a educao domstica mais at que o Estado seria capaz de guiar asliberdades das crianas de modo a evitar escolhas passionais e capricho-sas (cf. Corra, 1997). Repetindo esses princpios exausto, o higienismoensinou que a lgica do universo familiar e a lgica da cidade se fundemnuma ligao de simbiose e dependncia da qual a relao me-filho adubo e semente (cf. Costa, 1989). At os anos de 1930, o higienismoincutiu a crena de que me cabe evitar o cio, a delinqncia e o vcioda rua. Hoje, setenta anos mais tarde ou no espao de duas geraes , asmes flagram-se isoladas nessa tarefa, sem contudo renunciar a ela.

    Sem contar com a orientao de ningum, confiando no vivido paratomar decises cruciais no cotidiano, as mes oferecem os elementos quepermitem compreender a permanncia da racionalidade higienista. Emvez da famlia moderna acossada pelos tcnicos, sitiada pelo saber da cin-cia e destituda da funo de educar, tpica das sociedades centrais (cf.Lasch, 1991), a me brasileira queixa-se sobretudo da solido, da falta deamparo e de assistncia. Assistindo impotente ao crescimento da crimina-lidade, ela cr que pode proteger seus filhos das ameaas do pblico, eacredita na possibilidade de disciplinar o social a partir do domstico. En-tende-se assim por que a famlia brasileira se mantm como elemento cen-

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    tral nos processos de regulao social. A despeito da eficcia questionveldas prticas educativas, mister reconhecer que elas empreendem um es-foro em nome do coletivo. A despeito da condenao moral dessas prti-cas, amplamente calcadas na punio corporal, mister reconhecer tam-bm que seus filhos, ao ecoar suas frases e expresses e ao anunciar a famliacomo nico suporte com que contam, contribuem para referendar suacrena e imprimir-lhe algum grau de eficcia.

    Interconectividade

    Norbert Elias j disse que, em estgios mais primitivos do desenvolvi-mento social, quando o Estado ainda no se estruturou de modo a cum-prir com as atribuies que a modernidade lhe destina, o indivduo cultivalaos mais estreitos de parentesco. Isso ocorre porque, na ausncia do Esta-do, a famlia a unidade capaz de prover ajuda e proteo nas situaes denecessidade. Na ausncia da intermediao do Estado, a famlia arca coma responsabilidade de transmitir os valores sem os quais uma sociedadeno pode ser entendida como tal. No se trata de discutir se os mtodos,pblicos ou privados, so ou no adequados ao propsito de adaptar acriana vida em sociedade; no se trata tampouco de discutir o grau desatisfao e felicidade do indivduo nesse processo. A discusso dos laosentre indivduo e sociedade visa, antes, a compreender os processos pelosquais um e outra se conformam mutuamente (cf. Elias, 1994).

    O texto de Norbert Elias, cuja verso original data de 1987, no sebatia ainda com as questes colocadas pela sociedade ps-moderna. Emescritos datados dos anos de 1950, Hannah Arendt antecipava as questespropostas por Elias e afirmava que o social, quando visto como locus deproteo, segurana e acolhimento dos afetos, destitudo de seu carterpoltico. Discutindo a aplicao do pensamento de Arendt cidade de SoJos dos Campos neste incio de sculo, Cesar (2001) mostra que a violn-cia, ao trazer a ameaa e o perigo aos nossos centros urbanos, fora umcomportamento que quer evitar tudo o que estranho, bloqueando aalteridade e despolitizando o mundo.

    A destituio do poltico, por outro lado, apontada por Almeida e Al-meida (2004) como produto de um Estado que continuadamente se eximeda distribuio das benesses sociais. A prpria relevncia que o senso co-mum atribui violncia se conecta ao abandono da coisa pblica, que ter-mina por encarregar os sujeitos de prover por si mesmos a justia e a segu-

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    Hebe Signorini Gonalves

    rana. Nas comunidades pobres, que no dispem de recursos polticos oueconmicos para suprir a ausncia do Estado, esse enfrentamento da vio-lncia dar-se- a partir da cadeia relacional, em que a famlia unidadebasilar.

    No surpreende, portanto, que os jovens entrevistados, grande partedeles oriundos de comunidades pobres, anunciem a famlia como sua maisrelevante referncia identitria. Ao faz-lo, eles indicam que reconhecem evalorizam os esforos dos pais em prol de sua gerao. Ao enaltecer a garrados pais no esforo cotidiano pelo sustento da casa e dos membros do n-cleo familiar, os jovens constroem canais de troca no espao domstico eindicam certa receptividade ao conjunto de valores da gerao anterior, oque pode ser indcio de sua disposio em compartilh-los.

    No discurso dos pais, no foram buscados elementos de aceitao ourecusa do respeito e da obedincia, valores que eles descrevem como cen-trais da tarefa educativa. Mas o reconhecimento dos jovens pelas figuraspaterna e materna, elevadas condio de ideal, e seus prprios projetos devida, estruturados em torno da constituio do ncleo familiar, tambmidealizado, autorizam supor que a famlia segue sendo o plo de aglutinaosocial no Brasil, neste incio de sculo XXI. O encontro dos discursos naexpresso cabea fraca, entendido como a falta de carter que abre cami-nho para a marginalidade e a violncia, mostra que h intercmbio nodiscurso dessas geraes.

    A soluo de grupo, o enfrentamento dos problemas da juventude a par-tir de uma base coletiva que se constri em torno da famlia, indica a possi-bilidade de que, nos centros urbanos nacionais, a interconectividade a quese refere Pais (2003) incorpore amigos e conhecidos que se agregam ao lon-go das histrias de vida. Mas a centralidade dos valores familiares, ampla-mente reconhecida, sugere a possibilidade de que essa interconectividadetenha um fio condutor: as relaes de parentesco. Aqui, elas so a respostapossvel destituio poltica.

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  • 219novembro 2005

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    Resumo

    Juventude brasileira entre a tradio e a modernidade

    Dados colhidos em duas pesquisas distintas, ambas conduzidas na regio metropoli-

    tana do Rio de Janeiro, so comparados com a inteno de compreender as trocas

    sociais entre as geraes. No primeiro estudo, a anlise de discurso dos pais visava a

    descrever e entender os recursos usados na criao dos filhos e os valores cuja trans-

    misso considerada essencial. No segundo, jovens foram indagados sobre os prin-

    cipais problemas da juventude e as formas de enfrent-los. Vistos em conjunto, esses

    dados mostram que a famlia ainda ocupa um lugar importante na socializao de

    crianas e jovens, pondo em questo a extenso em que a noo de individualismo

    pode ser aplicada juventude brasileira.

    Palavras-chave: Juventude; Famlia; Individualismo.

    Abstract

    Brazilian youth, between tradition and modernity

    Data provided by two different surveys, both conducted in Rio de Janeiro, are com-

    pared in order to analyze the relations between parents and their children. The first

    survey provides data on how parents raise their children and which values they believe

    important to sustain their actions. The second survey provides data on which are the

    main problems youth people have to face, and how they deal with them. Brought

    together, they show that family values are still very important to children and youth.

    In conclusion, the paper indicates that individualism may not explain the main ques-

    tions on Brazilian youth.

    Keywords: Youth; Family; Individualism. Texto recebido e apro-vado em 28/9/2005.

    Hebe Signorini Gonal-ves doutora em Psico-logia e membro do N-cleo Interdisciplinar dePesquisa e Intercmbiopara a Infncia e Ado-lescncia Contempor-neas, do Instituto de Psi-cologia UFRJ. E-mail:[email protected]