Gottfried Wilhelm Leibniz - (trad. Marilena Chaui e outros)-Discurso de metafísica e outros textos (2004).pdf

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  • Discurso de metafsicae outros textos

    G. W. LeibnizApresentao e notas

    de Tessa Moura Lacerda

    Martins Fontes

  • DISCURSO DEMETAFSICA E

    OUTROS TEXTOS

    G. W. Leibniz

    Martins FontesSo Paulo 2004

  • ndice

    Apresentao .......................................................................VIICronologia.......................................................................XXIII

    Discurso de metafsica....................................................... 1Os princpios da filosofia ou A monadologia................. 129Princpios da natureza e da graa fundados na razo.... 151

    Ttulos dos originais: DISCOURS DE MTAPHYSIQUE,LA MONADOLOGIE, PRINCIPES DE LA NATURE ET DE LA GRACE

    FONDS SUR LA RAISON.Copyright 2004, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,

    So Paulo, para a presente edio.

    Esta obra foi includa na coleo Clssicos por sugesto de Homero Santiago.

    I' edioabril de 2004

    Acompanhamento editorialLuzia Aparecida dos Santos

    Revises grficasMauro de Barros

    Alessandra Miranda de SDinarte Zorzanelli da Silva

    Produo grficaGeraldo Alves

    Paginao/FotolitosStudio 3 Desenvolvimento Editorial

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1646-1716.Discurso de metafsica e outros textos / G. W. Leibniz ; apresen-

    tao Tessa Moura Lacerda ; traduo Marilena Chaui e Alexandreda Cruz Bonilha. So Paulo : Martins Fontes, 2004. (Coleoclssicos)

    Ttulo original: Discours de mtaphysique, la monadologie, prn-cipes de la nature et de la grce fonds sur la raison.

    Bibliografia.ISBN 85-336-1978-2

    1. Leibniz Metafsica 2. Leibniz, Gottfried Wilhelm, 1646-1716 I. Lacerda, Tessa Moura. II. Ttulo. ID. Srie.

    04-2362 CDD-149.7

    indices para catlogo sistemtico:1. Leibnizianismo : Filosofia 149.7

    Todos os direitos desta edio para a lngua portuguesa reservados Livraria Martins Fontes Editora Ltda.

    Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 So Paulo SP BrasilTel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867

    e-mail: [email protected] http://www.martinsfontes.com.br

  • Apresentao

    Em fevereiro de 1686 Leibniz escreveu uma carta aoLandgrave Ernest de Hesse-Rheinfels em que fez, pela pri-meira vez, referncia ao texto que, posteriormente, ficariaconhecido como Discurso de metafisica. Segundo o filsofo,"estando em um lugar no qual, durante alguns dias, no tinhanada a fazer", fez "um pequeno discurso de metafsica". Umaleitura prematura dessas palavras, aliada ao fato de estetexto no ter sido publicado em vida pelo filsofo, poderialevar falsa suposio de que Leibniz no atribua muita im-portncia a esse pequeno discurso escrito talvez por faltado que fazer. Na verdade, Leibniz, ento bibliotecrio emHanover e conselheiro de justia, se referia provavelmenteao pouco tempo que lhe restava devido s tarefas exigidaspor suas funes oficiais. Alm disso, embora no se possadizer se, ao escrever o discurso, Leibniz tinha a inteno deatingir um grande pblico, o filsofo submeteu o texto (oupelo menos o sumrio dele) ao crivo de Arnauld, ento umtelogo conhecido e representante ilustre do pensamentona Frana alis, a referida carta justamente um pedido aoLandgrave para que sirva de intermedirio entre o autor eArnauld. Ademais, nos anos imediatamente anteriores reda-o do Discurso de metafisica, Leibniz publicou seu Novamethoduspro maximis et minimis (outubro de 1684), um ar-tigo dedicado exposio do clculo infinitesimal, e as Me-

    ~t

  • ditationes de cognitione, veritate et ideis (novembro de 1684),em que se posicionava no debate, que opunha Arnauld eMalebranche, sobre a natureza das idias. No mesmo anoem que iniciou a troca de cartas com Arnauld, Leibniz pu-blicou ainda um texto que deu origem a uma polmica comos cartesianos, Brevis demonstratio erroris memorabilis Car-tesii. Assim, o perodo da redao do Discurso de metafsicafoi tambm um momento em que Leibniz, ento com cercade 40 anos, queria dar a conhecer suas idias, queria cons-truir um lugar para si mesmo nos debates que pcupavamos pensadores da poca. O que talvez justifique o tom par-ticularmente polmico do Discurso e as inmeras refernciasno apenas a Descartes, mas tambm a Espinosa, Male-branche e tradio escolstica. O Discurso de metafisica parte dessa tomada de posio.

    Mas qual a importncia deste texto um dos mais c-lebres do autor e aclamado por tantos comentadores comoa primeira formulao do sistema filosfico de Leibniz nointerior da vasta obra leibniziana? Quando redigiu o Dis-curso de metafisica, provavelmente entre o fim de 1685 e oincio de 1686, Leibniz j se aventurara nos terrenos da ju-risprudncia, fsica, metafsica, lgica, matemtica, teologia;j esboara projetos polticos e religiosos; mantinha umacorrespondncia com diferentes personalidades da poca;publicara resultados parciais de suas pesquisas (muitos re-tomados no corpo do Discurso)... O que faz do Discurso demetafsica um texto singular entre todos os outros? De certaforma o prprio Leibniz quem, no 32 do Discurso, res-ponde a essa questo: o Discurso trabalha "o grande prin-cpio da perfeio das operaes de Deus e o da noo dasubstncia que encerra todos os seus acontecimentos comtodas as suas circunstncias". Em outras palavras, ao abor-dar a ao do Criador e a noo de substncia individual,este texto define princpios gerais da metafsica leibniziana,apresentando, pela primeira vez em conjunto, temas essen-ciais que inspiraro as grandes obras posteriores e que se

    VIII

    encontravam, at ento, dispersos em diferentes textos. Cer-tamente, seria um equvoco querer definir o Discurso de me-tafsica como a primeira exposio, em sentido cronolgico,do sistema leibniziano. Alis, a noo de sistema em umaobra que, como afirma M. Fichant, est em perptuo movi-mento interior, um devir que no se completa em nenhumafrmula acabada tal como mostram as variantes genticasdos textos de Leibniz publicados na edio da Academia deBerlim e de Gttingen' , uma noo problemtica, por maisque haja um consenso entre muitos dos estudiosos em con-siderar textos da velhice do filsofo, tais como a Monado-logia e os Princpios da natureza e da graa, como exposi-es sistemticas. Para comentadores da filosofia de Leibnizcomo B. Russell, L. Couturat, E. Cassirer, J. Baruzi, Y. Bela-val, entre outros, esse filsofo um filsofo de sistema, e,embora no tenha exposto esse sistema em uma obra ni-ca, seria possvel reconstitu-lo a partir dos vrios textos ede temas centrais (a lgica, a noo de substncia etc.) es-colhidos como origem para essa reconstruo. Essa multi-plicidade de origens a partir das quais se pensa o sistemaleibniziano no , segundo M. Serresz , um problema se forempensadas como perspectivas complementares e no exclu-dentes o interesse dessa interpretao est em ver que osistema leibniziano comportaria diferentes interpretaesou pontos de vista tal como o mundo para o prprio Leib-niz. Comentadores mais recentes, como L. Bouquiaux 3, noentanto, so descrentes em relao possibilidade de re-

    .....................1. A edio da Academia (iniciada em 1900 pelas academias da Prssia e

    da Frana, cuja colaborao foi interrompida pela guerra em 1914; publicou osprimeiros volumes, sob a direo alem, em 1923), mesmo com as dificuldadesi mpostas pela histria alem at a reunificao, j conta hoje com mais de 40 vo-lumes. Cf. Fichant, M. inMagazineLittraire, n 416, janeiro de 2003, p. 25.

    2. Cf. Serres, M. Le Systme de Leibniz et ses modeles mathmatiques, Pa-ris: PUF, 1982 [1968].

    3. Cf. Bouquiaux, L. "Preface", in Leibniz, Discours de Mtaphysique suivide Monadologie, Paris: Gallimard, 1995.

    Ix

  • construir um sistema leibniziano e pensar os vrios textosde Leibniz como captulos de uma mesma obra de fato,seria desconsiderar as idas e vindas do prprio filsofo e amaneira que tem, em diferentes momentos de sua obra, deencarar os mesmos problemas ou de defrontar-se com pro-blemas novos a cada nova circunstncia.

    O Discurso de metafsica seria, para os partidrios daidia de sistema, um texto privilegiado, j que anunciaria,pela primeira vez, um conjunto de temas que se fecharia de-finitivamente como sistema com a Monadologia e os Princ-pios da natureza e da graa, ambos de 1714. claro, por-tanto, que, nessa perspectiva, os temas desses dois ltimostextos no seriam propriamente novidade, no seria o fatode resumirem as principais teses leibnizianas que os tornariaexpresso de um sistema filosfico, seria antes a forma deapresentar motivos filosficos que apareceram em 'conjun-to trinta anos antes no Discurso de metafsica que significa-ria uma viso sistemtica. A Monadologia e os Princpios danatureza e da graa estariam estruturados maneira de umsistema. O que significa isso?

    Quase trs dcadas separam a redao do Discurso demetafsica e a da Monadologia e dos Princpios da nature-za e da graa. Mas estes textos no esto separados apenaspelo tempo; alm de pequenas diferenas enumerveis, aestrutura deles essencialmente diferente. A primeira dife-rena notvel o abandono, nos textos de 1714, do tom ir-nico e polmico que definia o Discurso de metafsica. Expli-ca-se: os Princpios da natureza e da graa foram escritospara o prncipe Eugnio de Sabia, admirador de Leibniz que,ento, j gozava de certa notoriedade. Por muito tempo acre-ditou-se que o texto destinado ao prncipe seria a Monado-logia talvez venha da a celebridade, sugere A. Robinet emsua edio . Sabe-se hoje que a Monadologia foi escrita para

    .....................4. Cf. Robinet, A. Principes de la nature et de la grce fendes en raison.

    Principes de la philosophie ou Monadologie, publies intgralement d prhs /es

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    um tambm admirador de Leibniz ligado ao duque de Or-leans, Rmond, que queria encaminhar o texto ao poeta Fra-guier para que este o transformasse num poema. Mais doque um posicionamento nos debates de sua poca, mesmocom referncias a Descartes e a Bayle, por exemplo, estes tex-tos mostram um Leibniz preocupado em expor temas essen-ciais de sua filosofia (e de uma maneira absolutamente pes-soal) e no em polemizar com seus contemporneos.

    Essa maneira absolutamente pessoal de expor temasessenciais de sua filosofia representaria uma ruptura em re-lao estrutura que caracterizava a exposio do Discursode metafsica. Este apresenta um ritmo binrio de descen-so, de Deus s criaturas, e ascenso, do mundo a Deus, ex-primindo uma espcie de fluxo e refluxo ontolgicos, oque, como mostra Le Roy', lembra, por um lado, o plano deapresentao do Tratado da natureza e da graa de Male-branche e, por outro, a ordem de exposio das Sumas me-dievais e de Sistemas neoplatnicos. Leibniz apresenta seupensamento no Discurso seguindo este mtodo clssico:parte da idia de Deus para o estudo das criaturas, definin-do o mundo fsico, e, em seguida, examina as substncias in-dividuais para mostrar, por fim, a unio dos espritos comDeus na Cidade de Deus.

    O texto divide-se, assim, em cinco grandes momentos ar-gumentativos: num primeiro momento ( 1-7), sem se de-ter nas provas da existncia de Deus, Leibniz aborda a su-prema perfeio divina como fundamento da excelncia desua obra ( 1). A conseqncia dessa perfeio que, contraaqueles que recusam a bondade intrnseca das coisas cria-das ( 2) ou que acreditam que Deus poderia ter feito me-lhor ( 3), o mundo intrinsecamente bom e, por isso, o amor

    ....................

    manuscrits de Hanovre, Vienne et Paris et presents d "aprs des lettres indites,Paris: PUF, 1954.

    5. Cf. Le Roy. "Introduction, texte et commentaire", in Leibniz, Discoursde Mtaphysique et Correspondance avec Arnauld, Paris: Vrin, 1966.

    XI

  • do homem por seu Criador no deve ser passivo ou quie-tista, o homem deve contribuir para o bem geral ( 4). A per-feio divina explica ainda o ato de criao que gera umariqueza de efeitos atravs de meios simples ( 5), donde omundo ser obra de uma nica vontade geral e eficaz quese exprime na ordem criada ( 6-7). No segundo momentodo texto ( 8-16), Leibniz passa a falar das substncias in-dividuais criadas, definindo sua natureza, em analogia como sujeito lgico, como sujeito metafsico que contm desdesempre todos os seus atributos: a substncia um mundocompleto ( 8-9). Eis por que se pode retomar a noo es-colstica de forma substancial, embora sem aplic-la na ex-plicao particular dos fenmenos, para explicar a nature-za da substncia e os corpos ( 10-12). Essa teoria da subs-tncia individual esclarece a questo da liberdade humana:a inerncia do predicado ao sujeito no se d por uma cone-xo necessria, mas contingente ( 13). Por fim ( 14-15),Leibniz explica a relao entre essas substncias individuaiscujas naturezas envolvem todos os seus acontecimentos: secada uma um mundo parte, uma perspectiva singular domesmo conjunto de fenmenos, elas no agem umas sobreas outras, seus fenmenos se entrecorrespondem e todas ex-primem a totalidade do mundo criado, incluindo o concursoextraordinrio de Deus compreendido na ordem universal( 16). Num terceiro momento argumentativo ( 17-22), Leib-niz passa ao estudo do universo fsico mostrando, primeiro,como a noo de fora, e no a de quantidade de movimen-to como supunha Descartes, exprime a natureza dos fen-menos fsicos ( 17-18); e, segundo, como a noo de fina-lidade, que reconduz a fsica a seu fundamento metafsico,fornece a explicao do universo fsico ( 19-22). Tendocompletado o momento de descenso do Discurso de me-tafisica com o exame do universo fsico, Leibniz volta, naquarta parte do texto ( 23-31), a tratar das substncias ima-teriais a fim de pensar o retorno a Deus que os espritos po-

    XII

    dem fazer pela via do entendimento ( 23-29) o filsofoexamina a natureza ( 23-25) e a origem ( 26-29) das idias e pela via da vontade ( 30-31) Leibniz distingue incli-nao e vontade, a espontaneidade livre que tende para obem ( 30) e apresenta sua doutrina da graa ( 31). Leibnizencerra a ascenso do Discurso, na quinta parte argumenta-tiva do texto ( 32-37), mostrando como se d a unio dos es-pritos com seu Criador na Cidade de Deus.

    Na Monadologia e nos Princpios da natureza e da gra-a, a ordem binria que caracterizava o Discurso d lugar auma construo progressiva que parte do simples, a mna-da, examinando a hierarquia dos seres, para o complexo, eterminando pela considerao de Deus, como ser absoluta-mente perfeito, e da unio entre o Criador e os espritos naCidade de Deus, que representa a harmonia entre o mundofsico e moral ou o equilbrio harmnico de um mundo hie-rarquizado. A argumentao desses textos pode ser divididaem trs grandes momentos: no primeiro deles (Monadologia, 1-36; Princpios, 1-6), Leibniz apresenta as mnadas ousubstncias simples, considerando, primeiro, sua naturezade um ponto de vista externo (a mnada simples, sem ex-tenso, sem figura, indivisvel, no pode comear nem pere-cer naturalmente, no pode ser modificada por outra subs-tncia) (Monadologia, 1-7; Princpios, 1-2) e de umponto de vista interno (a mnada dotada de percepo, queexprime a multiplicidade do mundo na unidade da subs-tncia, e apetio, a tendncia de passar de uma percepo aoutras mais distintas) (Monadologia, 8-17; Princpios, 2);e considerando, segundo, os graus de perfeio das mna-das (Monadologia, 18-36; Princpios, 3-6). Nos serescompostos h uma mnada central, que seu princpio deunidade, cercada por uma infinidade de outras mnadasque constituem seu corpo orgnico (Princpios, 3). A m-nada nua ou entelquia possui uma percepo e uma ape-tio em sentido geral (Monadologia, 18-24). A mnada

    XIII

  • dotada de memria, ou alma, como no caso dos animais, capaz de consecues empricas que imitam a razo (Mona-dologia, 25-28; Princpios, 4-5). E, finalmente, a mnadadotada de razo, que conhece as verdades necessrias e eter-nas e capaz de reflexo, isto , apercepo ou conscincia, chamada de esprito (Monadologia, 29-30; Princpios, 5).A partir da apresentao dos princpios que fundam o ra-ciocnio dos espritos, o princpio da contradio e o da razosuficiente (Monadologia, 31-36), Leibniz passa ao segun-do grande momento da argumentao cujo tema Deus (Mo-nadologia, 37-48; Princpios, 7-9). Trata, ento, da exis-tncia de Deus (Monadologia, 37-42; Princpios, 7-8) ede sua natureza (Monadologia, 43-48; Princpios, 9).Por fim, no terceiro grande momento de sua argumentao(Monadologia, 49-90; Princpios, 10-18), Leibniz de-duz da perfeio divina a perfeio do mundo (Princpios, 10-13), apresentando a harmonia universal (Monadolo-gia, 49-60; Princpios, 13) e a hierarquia dos seres cria-dos (Monadologia, 61-90, que retomam os 3 e 6 dosPrincpios), para mostrar como a natureza conduz graa eos espritos, os mais elevados dos seres, entram em socieda-de com o Criador na Cidade de Deus.

    Para Boutroux6, possvel dizer que o percurso argu-mentativo da Monadologia inicialmente ascendente ou re-gressivo, indo das criaturas para Deus, e depois descenden-te ou progressivo, de Deus s criaturas. Ora, nesse sentido,aparentemente, Leibniz no teria abandonado um ritmo bi-nrio de apresentao, teria apenas invertido a ordem de apre-sentao do Discurso de metafsica. Apenas aparentemente,porque a explicao do mundo no momento descendente daMonadologia e os Princpios da natureza e da graa re-produzem a mesma ordem tambm, como aponta Bou-

    .....................6. Cf. Boutroux, E. "Eclaircissements", in Leibniz, La Monadologie, Paris:

    Librairie Delagrave, 1925.

    xtv

    troux, uma explicao progressiva, ou seja, o mundo con-cebido a partir de sua causa, Deus; a ao de ser essencial-mente perfeito que explica a harmonia que define o mundocriado. Como afirma Leibniz nos Princpios ( 7), ao passar,por um movimento regressivo que vai das coisas a sua causa,das criaturas a Deus, no mais possvel falar "como sim-ples fsicos; (...) devemos elevarmo-nos metafsica nosvalendo do grande princpio pouco empregado habitual-mente, que sustenta que nada se faz sem razo suficiente,isto , que nada ocorre sem que seja possvel (...) dar umarazo que baste para determinar por que assim e no deoutro modo". Terminologias parte seja o caminho ascen-dente das mnadas a Deus, com a considerao da hierar-quia do seres, um movimento progressivo do simples para ocomplexo, seja esse caminho um movimento regressivo dascriaturas a sua causa , o fato que, nesse movimento de ex-presso de sua filosofia, Leibniz apresenta a questo funda-mental de sua metafsica: por que o ser e no o nada?

    O princpio de razo suficiente que exprime o axioma"nada sem razo" e d inteligibilidade pergunta peloSer (nada sem razo) parece definir mais que a passagem,nos Princpios da natureza e da graa, de um registro fsi-co para um registro metafsico; esse princpio no caracte-riza apenas o percurso argumentativo da filosofia de Leibniznesse texto, mas a prpria concepo do que seja a filoso-fia para Leibniz.

    Dado o princpio de razo suficiente, "a primeira pergun-ta que temos o direito de formular ser: por que h algo e noantes o nada?" (Princpios da natureza e da graa, 7). Porque o mundo existe? Podemos explicar as coisas do mundoa partir de seus estados anteriores, um movimento por ummovimento anterior, um homem por outro anterior, atravs

    xv

  • de um trnsito de um ente contingente a outro ente contin-gente e assim sucessivamente. Cada vez que procuramos dara razo de algo existente no mundo, porque no encontra-mos na prpria coisa essa razo, somos levados a uma exis-tncia anterior no tempo que necessita ainda uma anlisesemelhante. Mas, por mais que avancemos na pesquisa dascausas segundas, no encontramos, nesse progresso infini-to, a razo da existncia de um mundo simplesmente, nemdeste mundo. A razo da existncia do mundo que vemose experimentamos deve estar fora dessa srie de eventos con-tingentes que o compem, no como ltima causa da sriecondicional, mas como causa transcendente, necessria e uni-versal (Monadologia, 36-38). Considerando que a razo deum existente s pode provir de um outro existente, deve-seadmitir a existncia de um ser necessrio e eterno: Deus.

    Para Leibniz, h uma analogia entre o entendimento di-vino, que ilumina, e o entendimento humano, iluminadopelas mesmas leis da razo, e essa analogia garante o movi-mento metafsico de superao da experincia. A reflexometafsica no prolonga a experincia, ela implica uma pas-sagem ao limite e procura atingir o fundamento mesmo dequalquer empirismo. Embora a experincia seja fundamentalno apenas para a constituio da cincia, mas, principal-mente, para provocar o desenvolvimento de nossas rique-zas implcitas (cf. Discurso de metafisica, 27), deve ser en-tendida como um procedimento provisrio. Graas a ela so-mos capazes de entender como as coisas do mundo estodispostas, mas no por que so postas. A pergunta que con-duz a pesquisa filosfica no consegue encontrar eco no do-mnio experimental: "por qu?". O pensamento filosficoprocura explicaes a priori; so as causas reais dos efeitosque a cincia estuda e as razes dos fatos que constituemseu objeto por excelncia. Leibniz retoma a definio aris-totlica da filosofia a cincia dos princpios primeiros dascoisas , fazendo da busca de origens e de causas insens-veis sua idia mestra.

    xvl

    A melhor maneira de conhecer pelas causas e razes.A causa um princpio de explicao da ordem do mutvel(ou uma razo real); a razo, da ordem do imutvel, j que causa no apenas dos nossos julgamentos, mas da pr-pria verdade. Desse modo, a causa nas coisas corresponde razo (ou causa final) nas verdades. Dar a razo de algu-ma coisa significa introduzir finalidade e, logo, inteligncia;por isso, o verdadeiro conhecimento de Deus, causa primei-ra e razo ltima de tudo, a sabedoria mais elevada. A filo-sofia consiste precisamente no pensamento da razo suficien-te do mundo que Deus: "em Filosofia trata-se de dar razo,fazendo conhecer de que maneira as coisas so executadaspela sabedoria divina" (Systme nouveau de la nature, 13).

    No se trata de desprezar uma explicao fsica do mun-do. A cincia constitui uma ordem diferente da ordem filos-fica e complementar a ela, no contraditria. A extrava-gncia seria embaralhar esses dois planos distintos (o queno se confunde com a preocupao de um Leibniz conci-liador na busca de acordo entre a linguagem metafisica e alinguagem prtica). Mesmo nas questes em que se percebemproblemas cuja soluo exigiria um longo debate que colo-casse em pauta princpios gerais, possvel proceder a umaexplicao particular que seja vlida; de outra forma, se des-conheceria as exigncias da anlise cientfica. A linguagemmetafisica possui o privilgio do rigor, mas a natureza devepoder se explicar sem que se considere a existncia de Deus;assim, Leibniz preserva todos os direitos do mtodo expe-rimental e de uma linguagem mais prxima do senso comum,de modo que se conceda autonomia cincia. Essa expli -

    cao, no entanto, permanece subordinada, em seu funda-mento (no no detalhe), a afirmaes metafsicas que a ultra-passam: "os princpios das cincias particulares" (j reconhe-cia Aristteles) "dependem de uma cincia superior que lhesd razo; e esta cincia superior deve ter o ser, e, conseqen-temente, Deus, origem do ser, por objeto" (Essais de Tho-

    XVII

  • dice, II, 184). Pois, como dizia Plato, "uma coisa a cau-sa verdadeira... e outra, o que no passa de condies paraa causa poder ser causa..." (Discurso de metafisica, 20). Edesarrazoado admitir uma inteligncia ordenadora das coi-sas e, em seguida, recorrer unicamente s propriedades damatria para explicar os fenmenos. Anaxgoras e todos queseguiram uma forma diferente de entender as coisas, deixa-ram de perceber que, no estudo concreto dos fenmenos, preciso distinguir a causa final e as condies sem as quaisessa causa no pode ser eficaz. A explicao metafsica fun-da e justifica a explicao fsica do mundo, mas se diferen-cia profundamente dela. A tarefa do filsofo, que no queirafalar como simples fsico, consiste em definir, em todos osdomnios, a ao de uma causa final a que se subordinamas causas eficientes secundrias, mostrando a insuficinciada considerao da causalidade fsica. Eis por que a primeirapergunta que tem o direito de formular "por que h algo eno antes o nada?" (Princpios da natureza e da graa, 7).A reflexo filosfica exige, em ltima instncia, que alcan-cemos, em toda sua originalidade, o ato original que faz sur-gir a ordem do mundo a partir do nada. O desejo do meta-fsico remontar aos primeiros possveis atributos de Deus,e, embora Leibniz, numa atitude de reserva diante de sua pr-pria definio de bem filosofar, admita a impossibilidade des-sa tarefa infinita para uma criatura submetida s condiesde tempo e espao, no concorda que o homem no possaobter um conhecimento de Deus e explicar racionalmentecertos mistrios.

    No podemos compreender Deus, no entendemos tudoo que sua noo encerra, mas somos capazes de explic-lo.No podemos sondar a profundidade de Deus a respeito dosfatos particulares, mas estamos em condio de precisar oprincpio universal de sua atividade. No podemos enxer-gar a conexo universal dos eventos; nos basta, entretanto,uma demonstrao a priori de que este o melhor dos mun-

    XVIII

    dos possveis. Assim, embora um conhecimento perfeito dascoisas que nos cercam esteja acima das nossas possibilida-des, as nossas faculdades so suficientes para nos levar aoconhecimento do Criador, e, por conseguinte, a uma visomais clara das coisas nos aproximando do olhar penetrantede Deus. Para Leibniz, na metafsica que essa proximidadea Deus, ou, em outras palavras, a espiritualidade do homem,se manifesta de modo mais vigoroso, fazendo com que a di-ferena de natureza entre Criador e criatura se desvanea eaparea como simples diferena de grau.

    Ora, se considerarmos que a pergunta que conduz ainvestigao de Leibniz e determina inclusive sua perspec-tiva a respeito da filosofia a pergunta pela razo do ser,ento inegvel que h uma unidade especulativa na obraleibniziana. Resta saber se essa unidade especulativa ori-gem de um sistema e se os textos do filsofo podem, ento,ser vistos como captulos de uma mesma obra ou verses deum sistema acabado.

    Se h sistema, ento o Discurso de metafsica poderiaser o texto inaugural de uma nova fase no pensamento deLeibniz, encerrando o momento de formao e dando in-cio s tentativas de formulao do sistema leibniziano que,a partir de ento, permaneceria sempre o mesmo, buscan-do a forma mais acabada de expresso, forma essa que o fi-lsofo construiria na Monadologia e nos Princpios da natu-reza e da graa.

    Todavia, a pergunta pelo ser uma questo bastanteampla para englobar no apenas os trs textos aqui apre-sentados, mas muitos outros que poderiam, todos, ser vistoscomo perspectivas parciais dessa mesma busca pela razo doser. Alm disso, as diferenas entre os trs textos no devemser ignoradas: se elas podem, em parte, ser explicadas pelas

    XIX

  • datas de redao, a distncia temporal no jamais uma ra-zo suficiente delas'. Vale notar, por exemplo, que as refe-rncias s Escrituras e aos Santos Padres, presentes em todoo Discurso de metafisica, so escassas nos outros dois tex-tos, talvez porque a perspectiva predominante naquele sejaa perspectiva teolgica; da a razo do Discurso se concen-trar, ao falar das substncias criadas, nas almas racionais eem sua relao com Deus, enquanto a Monadologia e os Prin-cpios apresentam toda a hierarquia dos seres, das mnadasnuas ou entelquias aos espritos, trazendo contribuies dabiologia da poca que no aparecem no texto de 1686.

    Para concluir, podemos dizer que os trs textos aqui reu-nidos so fundamentais para a compreenso da filosofia deLeibniz, so textos de sntese e esto inseridos em uma uni-dade de pensamento como textos que procuram respondera questo essencial da metafsica leibniziana. Mas tom-loscomo textos de sistema pode levar a desconsiderar as dife-renas que eles guardam entre si e as particularidades dopensamento de Leibniz em cada um daqueles momentos: cor-re-se o risco de interpretar o Discurso de metafsica como ummero esboo da Monadologia, ou os Princpios da nature-za e da graa como a concluso lgica do Discurso. O con-texto em que os textos de 1714 foram redigidos fundamen-talmente outro em relao ao ambiente em que Leibniz viviaem 1686. Talvez possamos dizer que, sim, os temas essen-ciais da metafsica leibniziana estavam postos desde o Dis-curso de metafsica ou, antes, as opes filosficas essen-ciais j estavam feitas em 1686. Mas como temas essenciaisque seriam estudados, pensados, depurados por trinta anos.

    .....................7. Seria interessante estudar tambm as diferenas que a Monadologia e

    os Princpios da natureza e da graa guardam entre si (o que no fizemos aqui,j que nos interessava salientar as diferenas desses textos em relao ao Dis-curso de metafsica): embora as grandes linhas argumentativas desses textos se-jam muito prximas, h pequenas diferenas no interior dessa ordem geral, comotalvez tenha aparecido na descrio das partes componentes desses textos.

    xx

    No se pode dizer que apenas a forma de apresentao des-ses temas essenciais tenha mudado mesmo que se vejanessa mudana de expresso a constituio de um sistema.No se pode afirmar sem ressalvas que a noo completa desubstncia seja equivalente mnada simples. Se o Discursode metafsica, a Monadologia e os Princpios da naturezae da graa so textos de sntese das grandes teses metafsi-cas de Leibniz e nesse sentido textos privilegiados paraquem quer se introduzir no pensamento deste autor , pre-ciso tomar o cuidado de ler as diferenas que eles guardamentre si como diferenas, para no enrijecer um pensamen-to vivo.

    TESSA MouRA LACERDA

    XXI

  • ICronologia

    1646. Nascimento de Leibniz em Leipzig, Alemanha, emde julho.

    1648. Tratados de Vestflia, que favoreciam a Franca, pondofim Guerra dos Trinta Anos.

    1652-1661. Leibniz estuda na NicolaI-Schule e l livros varia-dos da biblioteca deixada por seu pai (que havia sidojurisconsulto e professor de moral na Universidade deLeipzig), morto este ano.

    1661. Ingressa na Universidade de Leipzig onde recebeensinamentos aristotlico-tomistas; segue o curso deJakob Thomasius, historiador da Filosofia e pai deChristian Thomasius.

    1663. Apresenta tese de concluso de curso, Disputatio me-taphysica deprincipio individui, que publicada. Novero segue o curso de Erhard Weigel, matemtico, ju-rista e metafsico, na Universidade de Iena. No outonoretorna a Leipzig e se dedica jurisprudncia.

    1664. Morre a me de Leibniz. Estudos jurdicos com seu tio,o jurista Johann Strauch. Torna-se mestre em Filosofiacom o texto Specimen quaestionum philosophicarumex jure collectarum.

    1665. Disputatio juridica de conditionibus.1666. Publicao do texto De arte combinatoria. Recebe o

    ttulo de Doutor em Direito em Altdorf (nas cercanias

    XXIII

  • de Nuremberg) com a tese De casibus perplexis in juree, ao mesmo tempo, o convidam para ser professornessa universidade (mas ele no aceita). Filia-se a umasociedade secreta de interessados em alquimia, da qualser secretrio por dois anos.

    1667. Reencontra o Baro J. C. von Boineburg, protestanteconvertido ao catolicismo, ex-ministro chefe do Elei-tor de Mainz, J. P. von Schnborn. Leibniz dedica aBoineburg seu texto Nova Methodus discedae docen-daeque jurisprudentiae. Por intermdio de Boineburgconsegue a nomeao como assistente legal do con-selheiro legal do Eleitor.

    1668. Publicao, por intermdio do Baro de Boineburg, daConfessio naturae contra atheistas. Pressionado pelaaliana entre a Holanda, a Inglaterra e a Sucia, LusXIV assina a paz de Aix-de-Chapelle. Leibniz escreveConsilium Aegyptiacum, um projeto de conquista doEgito para a Frana (para tirar Lus XIV da Europa e di-minuir a presso francesa na fronteira sudoeste doimprio alemo), muito parecido com o que Napoleoexecutou um sculo e meio depois. Projeto de Demons-trationes Catholicae, para a reunio das Igrejas catli-ca e protestante. Escreve Specimen demonstrationumpoliticarum pro eligendo rege Polonorum.

    1668-1669. Projeto para uma revista, Semestria Litteraria, equi-valente ao Journal des Savants. Escreve Rflexions surl'tablissement en Allemagne d'une Acadmie ou So-ciete des sciences; e Defensio Trinitatis per nova re-perta logica.

    1670. Leibniz promovido ao cargo de assessor da Cortede Apelaes do eleitorado de Mainz. Escreve Securi-tas publica interna et externa (um projeto de alianados estados do Imprio), Dissertatio de stilo philoso-phico Nizolii, Von der Allmacht. Escreve duas cartas aHobbes. Inventa a mquina de calcular aritmtica (que

    XXIV

    extraa razes), submarinos, bombas de ar que permi-tiriam navegar contra o vento etc.

    1671. Publicao de Hypothesis physica nova, composta daTheoria motus abstracti (dedicada Academia Fran-cesa de Cincias) e da Theoria motus concreti (dedica-da a Royal Society de Londres).

    1672. Em maro o Eleitor de Mainz envia Leibniz a Paris emmisso diplomtica. Leibniz se encontra com Arnauld eMalebranche; iniciado nas matemticas por Huygens;e tem a ocasio de consultar os manuscritos matem-ticos de Pascal. Em maio Lus XIV declara guerra a Ho-landa. Em dezembro o Baro de Boineburg morre.

    1673. Entre janeiro e maro vai a Londres, onde encontraOldenburg e Boyle, e eleito membro da Royal So-ciety. Em fevereiro morre o Prncipe Eleitor de Mainz,J. Philipp. Escreve Confessio Philosophi, que entregaa Arnauld. Apresenta sua mquina de calcular Acade-mia de Cincias.

    1675-1676. Encontra Malebranche, Cordemoy, Foucher,Tschirnaus, Van den Ende, Clerselier (que lhe confiamanuscritos de Descartes), Gallois (diretor do Journaldes Savants), Christian Huygens, entre outros. Traba-lha no clculo infinitesimal.

    1676. Aceita o posto de Bibliotecrio e Conselheiro na Cortede Hanver, oferecido pelo Duque Johann Friedrichvon Brunswick-Luneburg (catlico), e deixa, ento, Pa-ris, passando por Londres (onde encontra Collins eNewton), por Haia (onde conhece Espinosa) e porAmsterd (conhece o microscopista Leeuwenhoek). Es-creve Quod Ens perfectissimum existit; traduz para olatim o Fdon e o Teeteto de Plato; escreve PacidiusPhilalethi. Em dezembro chega a Hanver.

    1677. Leibniz escreve Caesarini Furstenerii Tractatus; e En-tretien de Philarte et Eugene. Morte de Espinosa.

    xxv

  • 1678. Leibniz nomeado Conselheiro ulico (Hofrat) emHanver. Mantm correspondncia com Bossuet et Spi-nola, sobre a reunio das Igrejas. Escreve Quid sit ideae notas sobre a tica Ide Espinosa.

    1679. Paz de Nimegue. Leibniz escreve Dialogue entre unhabile politique et un ecclsiastique d'une piet recon-nue, e trabalhos sobre a aritmtica binria (De pro-gressioone dyadica). Morte de Hobbes.

    1680. Morte do Duque Johann Friedrich; seu irmo ErnstAugust o substitui. At 1684 viaja bastante a Harz, en-carregado de fazer invenes prticas que auxiliem aexplorao das minas.

    1682. Escreve Unicum Optcae, Catoptricae et DioptricaePrincipium. Contribui para a fundao da publicaoActa Eruditorum de Leipzig.

    1683. Europa em guerra; Viena libertada dos turcos em12 de setembro.

    1684. Trgua de Ratisbonne em 15 de agosto. Leibniz escre-ve Consultation touchant la guerre ou l'accomode-ment avec la France, e Mars Christianissimus. PublicaNova methodus pro maximis et minimis (em que ex-pe o clculo infinitesimal) e Meditationes de cogni-tione, veritate et ideis.

    1685. Revogao do dito de Nantes. Leibniz escreve Remar-ques sur un livre intitul Nouveaux intrets des Prin-ces de l'Europe. nomeado historigrafo da Casa deBrunswick.

    1686. Publicao de Brevis demonstratio erroris memorabi-lis Cartesii (no qual ope sua teoria fsica de Descar-tes). Termina de redigir o Discurso de metafsica e en-via o sumrio para Arnauld. Escreve ainda Systematheologicum; e Generales Inquisitiones de analysi no-tionum et veritatum. Os pases protestantes revidam arevogao do Edito de Nantes com a formao da Liga

    Xxv1

    de Augsburgo, que inclua a ustria, a Sucia e a maio-ria dos principados alemes.

    1687. Leibniz viaja para a Itlia passando por cidades alemse pela ustria em busca de documentos sobre a his-tria da Casa de Brunswick e sua ligao com a CasaItaliana do Leste. Em Frankfurt encontra Job Ludolf,orientalista e Conselheiro do Imperador. Escreve R-plique l'Abbe Catelan (sobre a conservao do movi-mento) e Lettre sur un Principe general (em que ex-plica as leis da natureza).

    1688. Chega a Viena em maio (onde ficar at fevereiro de1689). Retoma o contato com Spinola, agora bispo deNeustadt.

    1689. Em outubro encontra os matemticos Nazari e Auzout,e Padre Grimaldi. Redao de Phoranus e da Dyna-mica de potentia. Recusa a direo da biblioteca doVaticano.

    1689-1690. Viaja a Npoles, Florena, Bolonha, Modena, Fer-rara; mantm contato com pensadores. Entre feverei-ro e maro fica em Veneza. Escreve De linea isochronae De causa gravitatis et defensio sententiae suae con-tra Cartesianos.

    1690. Retorna a Hanver depois de um ano e meio de via-gens (em que, entre outras coisas, estudou geologia, opensamento chins, demonstrou a priori a conservaode fora viva etc.).

    1691. nomeado Bibliotecrio de Wolfenbttel pelo DuqueAnton Ulrich. Leibniz retoma a correspondncia comBossuet sobre a reunio das Igrejas. Escreve Consul-tatio sur les Affaires gnrales la fin de la campag-ne de 1691, De legibus naturae et vera aestimationevirium motricium contra Cartesianos e Protogaea. Ini-cia correspondncia com jesutas da China.

    1692. Leibniz contribui para tornar Ernst August eleitor deHanver (desde de 1685 procurou conseguir um "nono

    XXVII

  • eleitorado" que ficasse nas mos dos protestantes).Inicia a amizade com a eleitora Sophie, irm da prince-sa Elisabeth. dito de tolerncia de K'ang-hi, imperadorda China, em favor da religiosa crist. Leibniz redigeAnimadversiones in partem generalem principiumcartesianorum.

    1693. Redao de Codex juris gentium diplomaticus (cujoprefcio uma anlise das noes de justia e de di-reito); de Rgle gnrale de la composition des mou-vements.

    1694. Redao de De primae philosophiae emendatione etnotione substanciae. Leibniz rompe com Bossuet.

    1695. Escreve Systme nouveau de la nature et de la com-munication des substances, cuja publicao no Jour-nal des Savants seguida de vrios Esclarecimentos.

    1696. Escreve Projet de l'education d'un Prince.1697. Publicao de De rerum originatione radicali. Escre-

    ve Tentamen Anagogicum.1698. Publicao do De ipsa natura sive vi insita actioni-

    busque creaturarum. Morte de Ernst August, que sucedido por seu irmo Georg Ludwig. Retomada dasdiscusses irnicas entre as Igrejas protestantes e dacorrespondncia com Bossuet. Inicia correspondnciacom De Voider. Inicia amizade com a eleitora SophieCharlotte, irm de Georg Ludwig. Leibniz circula emBerlim e em Hanver.

    1698-1699. Querelas sobre a inveno do clculo infinitesimal.1699. nomeado membro da Academia de Cincias de Paris.1700. Fundao da Sociedade de Cincias de Berlim de acor-

    do com um projeto de Leibniz. Leibniz funda o Mo-natlicherAuszug (dirigido por seu secretrio Eckart).Publicao da traduo francesa de Coste do Ensaiode Locke.

    1701. Libniz inicia a publicao dos documentos que ha-via recolhido sobre a histria da Casa de Brunswick

    XXVIII

    e a histria da Alemanha. Rompe definitivamente comBossuet.

    1702. Guerra contra a Frana e a Espanha (aliana do Imp-rio Romano-Germnico, da Inglaterra e da Holanda).Leibniz escreve Considrations sur la doctrine d'unesprit universel unique.

    1703. Incio da redao dos Nouveaux Essais sur l'Entende-ment Humain (publicado apenas em 1765) em quecritica o Essay concerning human understanding deLocke.

    1704. Morte de Locke.1705. Leibniz escreve Discours de la conformit de la foi

    avec la raison, que ser a introduo da Teodicia. Pu-blica Considrations sur les principes de vie et sur lesnaturesplastiques. Exame da natureza dos caractereschineses. Morte de Sophie Charlotte, rainha da Prssia.

    1706. Incio da correspondncia com o jesuta Des Bosses.1709. Escreve Causa Dei asserta per justitian ejus.1710. Publicao dos Essais de Theodice sem o nome do

    autor.1711. Encontro com o Czar Pedro, o Grande, que o nomeia

    Conselheiro Privado (Leibniz deveria codificar e moder-nizar a legislao). Inicia projeto de uma Academia deCincias em So Petersburgo.

    1712-1714. Leibniz fica em Viena, onde o imperador o no-meia seu Conselheiro Particular.

    1714. Conhece o prncipe Eugnio de Sabia, para quemdedica os Princpios da natureza e da graa. Escrevea Monadologia. Morte de Anton Ulrich e da eleitoraSophie. Em 12 de agosto, Georg Ludwig torna-se Geor-ge I na Inglaterra e se recusa a realizar o pedido deLeibniz, que queria seguir com ele para a Inglater-ra. Leibniz se instala, ento, novamente em Hanver.

    1715. Correspondncia com Clarke.

    XXIX

  • 1716. Lettre M. de Rmond sur la thologie naturelle desChinois. Leibniz envelhece no isolamento e vtimade uma crise de gota. Em 14 de novembro morre emHanver e enterrado miseravelmente.

    C

    DISCURSO DE METAFSICA

    TraduoMARILENA CHAUI

    Reviso e notasTESSA MOURA LACERDA

  • I. Da perfeio divina e de queDeusfaz tudo da maneira mais

    desejvel (souhaitable)

    A noo mais aceita e mais significativa que possumosde Deus exprime-se muito bem nestes termos: Deus umser absolutamente perfeio2 . No se tem considerado, po-rm, devidamente, suas conseqncias e, para aprofund-las mais, convm notar que h na natureza vrias perfei-es muito diferentes, possuindo-as Deus todas reunidas eque cada uma lhe pertence no grau supremo. E. precisotambm conhecer o que a perfeio. Eis uma marca bemsegura dela, a saber: formas ou naturezas insuscetveis doltimo grau no so perfeies, como, por exemplo, a na-tureza do nmero ou da figura; pois o nmero maior de to-dos (ou melhor, o nmero dos nmeros), bem como a maiorde todas as figuras, implicam contradio; mas a mximacincia e a onipotncia no encerram qualquer impossibili-dade. Por conseguinte, o poder e a cincia so perfeies 3 ,e enquanto pertencem a Deus no tm limites. Donde sesegue que Deus, possuindo suprema e infinita sabedoria,age da maneira mais perfeita, no s em sentido metafsico,mas tambm moralmente falando, podendo, relativamentea ns, dizer-se que, quanto mais estivermos esclarecidos einformados sobre as obras de Deus, tanto mais dispostosestaremos a ach-las excelentes e inteiramente satisfatriasem tudo o que possamos desejar (souhaiter).

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  • II. Contra os que sustentam que noh bondade nas obras de Deus, ouento que as regras da bondade e

    da beleza so arbitrrias.

    Assim, afasto-me muito da opinio dos que sustentamque no h quaisquer regras de bondade e de perfeio nanatureza das coisas ou nas idias que Deus tem delas, e queas obras divinas so boas apenas pela razo formal queDeus as fez. Se assim fosse, Deus, que bem sabe ser o seuautor, no precisaria contempl-las depois e ach-las boas,como testemunha a Sagrada Escritura 4 , que parece ter re-corrido a esta antropologia apenas para nos mostrar que seconhece sua excelncia olhando-as nelas mesmas, mesmoquando no se faa reflexo alguma sobre essa pura deno-minao extrnseca que as refere sua causa. Isto tantomais verdadeiro quanto pela considerao das obras quese pode descobrir o operrio. Portanto, preciso que estasobras tragam em si o carter de Deus. Confesso que a opi-nio contrria me parece extremamente perigosa e bastan-te semelhante dos ltimos inovadores5 , cuja opinio abeleza do universo e a bondade atribuda por ns s obrasde Deus no passarem de quimeras dos homens que conce-bem Deus sua maneira. Tambm me parece que afirman-do que as coisas so boas to-s por vontade divina e nopor regra de bondade destri-se, sem pensar, todo o amorde Deus e toda a sua glria. Pois, para que louv-lo peloque fez, se seria igualmente louvvel se fizesse precisamen-te o contrrio? Onde, pois, sua justia e sabedoria, se afinal

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    apenas restasse determinado poder desptico, se a vontadesubstitusse a razo e se, conforme a definio dos tiranos,o que agrada ao mais forte fosse por isso mesmo justo?Ademais, parece que toda vontade supe alguma razo dequerer, razo esta naturalmente anterior vontade. Eis porque me parece inteiramente estranha a expresso de algunsoutros filsofos' que consideram simples efeitos da vonta-de de Deus as verdades eternas da metafsica e da geome-tria e, por conseguinte, tambm as regras da bondade, da jus-tia e da perfeio. A mim, pelo contrrio, me parece to-somente conseqncias de seu entendimento, o qual segu-ramente em nada depende da sua vontade, assim como asua essncia tambm dela no depende.

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  • III. Contra os que crem queDeus poderia fazer melhor.

    De forma alguma poderei tambm aprovar a opiniode alguns modernos$ que ousadamente sustentam que aqui-lo que Deus faz no possui toda perfeio possvel e queDeus poderia ter agido muito melhor. Pois parece-me queas conseqncias dessa opinio so inteiramente contrrias glria de Deus: Uti minus malum habet rationem boni,ita minus bonum habet rationem malef 9. agir imperfeita-mente agir com menos perfeio do que se teria podido. desdizer a obra de um arquiteto mostrar que poderia faz-la melhor. Ataca-se, ainda, a Sagrada Escritura, que nos ga-rante a bondade das obras de Deus. Porque, se isto fosse su-ficiente, descendo as imperfeies ao infinito, de qualquermodo que Deus tivesse feito sua obra, esta teria sido sem-pre boa, comparada s menos perfeitas. Porm, uma coisano louvvel quando o apenas dessa maneira. Creio,tambm, haver uma infinidade de passagens da SagradaEscritura e dos Santos Padres favorveis a minha opinio,mas no muitas desses modernos', que, no meu enten-der, desconhecida de toda a antiguidade e baseada ape-nas no diminuto conhecimento que temos da harmonia ge-ral do universo e das razes ocultas na conduta de Deus, fa-zendo-nos temerariamente julgar que muitssimas coisas po-deriam ser melhoradas. Ademais, esses modernos insistemem algumas sutilezas pouco slidas, pois imaginam nada

    6

    existir to perfeito que no possa haver algo mais perfeito,o que um erro". Acreditam, tambm, salvaguardar assima liberdade de Deus, como se no constitusse a supremaliberdade agir com perfeio segundo a razo soberana.Pois acreditar que Deus age em algo sem haver nenhumarazo da sua vontade, alm de parecer de todo impossvel, opinio pouco conforme a sua glria. Suponhamos, porexemplo, que Deus escolha entre A e B e tome A sem razoalguma de o preferir a B; digo ser esta ao de Deus pelomenos indigna de louvor, porque todo louvor deve basear-se em alguma razo no existente aqui ex hipothesi. Susten-to, pelo contrrio, no fazer Deus coisa alguma pela qualno merea ser glorificado.

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  • IV. O amor de Deus exige completasatisfao e aquiescncia no tocanteao que ele faz, sem que por isso seja

    preciso ser quietista.

    O conhecimento geral desta grande verdade, que Deusage sempre da maneira mais perfeita e mais desejvel pos-svel, no meu entender o fundamento do amor que deve-mos a Deus sobre todas as coisas, pois aquele que amabusca a sua satisfao na felicidade ou perfeio do objetoamado e das suas aes. Idem velle et idem nolle vera ami-citia est' Z . Penso ser difcil bem-amar a Deus quando no seest disposto a querer o que ele quer, mesmo quando fos-se possvel modific-lo. Com efeito, os que no esto satis-feitos com o que ele faz me parecem semelhantes quelessditos descontentes cuja inteno no difere muito da dosrebeldes13 . Sustento, portanto, que, segundo estes princ-pios, para agir em conformidade com o amor de Deus nobasta ter pacincia fora, mas preciso estar verdadeira-mente satisfeito com tudo quanto nos sucedeu, segundosua vontade. Entendo esta aquiescncia relativamente aopassado, porque, quanto ao futuro, no preciso ser quie-tista, nem esperar, ridiculamente, de braos cruzados, oque Deus far, segundo aquele sofisma denominado pelosantigos lgon ergon' 4 , a razo preguiosa, mas misteragir segundo a vontade presuntiva" de Deus, tanto quantopodemos julg-la, esforando-nos com todo o nosso poderpor contribuir para o bem geral e particularmente para oaprimoramento e perfeio do que nos toca ou nos est

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    prximo e, por assim dizer, ao alcance. Porque, mesmoquando o acontecimento porventura mostrasse no quererDeus, presentemente, que a nossa boa vontade tenha o seuefeito, daqui no se conclui no haver Deus querido quens fizssemos o que fizemos. Pelo contrrio, como o me-lhor de todos os senhores, nada mais exige alm da reta in-teno e a ele pertence conhecer a hora e o lugar prpriospara fazer triunfar os bons desgnios.

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  • V. Em que consistem as regras deperfeio da conduta divina e comoa simplicidade das vias equilibra-se

    com a riqueza de efeitos.

    suficiente, portanto, ter em Deus esta confiana: eletudo faz para o melhor e nada poder prejudicar a quem oama. Conhecer, porm, em particular, as razes que pude-ram mov-lo a escolher esta ordem do universo, permitiros pecados e dispensar as suas graas salutares de uma de-terminada maneira, eis o que ultrapassa as foras de um es-prito finito, mormente se ele no tiver alcanado, ainda, ogozo da viso de Deus. Entretanto, podem-se fazer algu-mas consideraes gerais a respeito da conduta da Providn-cia no governo das coisas. Pode-se dizer que aquele queage perfeitamente semelhante a um excelente gemetra,que sabe encontrar as melhores construes de um proble-ma; a um bom arquiteto, que arranja o lugar e o alicerce,destinados ao edifcio, da maneira mais vantajosa, nada dei-xando destoante ou destitudo de toda a beleza de que suscetvel; a um bom pai de famlia, que emprega os seusbens de forma a nada ter inculto nem estril; a um maqui-nista habilidoso, que atinge seu fim pelo caminho menosembaraoso que se podia escolher; a um sbio autor, queencerra o mximo de realidade no mnimo possvel de vo-lumes16 . Ora, os mais perfeitos de todos os seres e os queocupam menos volume, isto , os que menos se estorvam,so os espritos", cujas perfeies so as virtudes. Eis porque no se deve duvidar de que o principal fim de Deus

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    seja a felicidade dos espritos e de que Deus o exercite namedida em que a harmonia geral o permita. Sobre este pon-to diremos algo mais, em breve. No que se refere simpli-cidade das vias de Deus, esta se realiza propriamente emrelao aos meios, como, pelo contrrio, a variedade, rique-za ou abundncia se realizam relativamente aos fins ou efei-tos''. E ambas as coisas devem equilibrar-se, como os gas-tos destinados a uma construo com o tamanho e a bele-za nela requeridos. Verdade nada custar a Deus, bem me-nos ainda do que a um filsofo que levanta hipteses paraa fbrica do seu mundo imaginrio, pois para Deus sufi-ciente decretar para fazer surgir um mundo real. Em mat-ria de sabedoria, porm, os decretos ou hipteses represen-tam os gastos, medida que so mais independentes unsdos outros, porque manda a razo evitar a multiplicidadenas hipteses ou princpios, quase como em astronomia,onde o sistema mais simples sempre preferido.

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  • VI. Deus nada faz fora da ordem e nemmesmo possvel forjar acontecimentos

    que no sejam regulares.

    As vontades ou aes de Deus dividem-se, comumen-te, em ordinrias e extraordinrias. Mas bom considerar-se que Deus nada faz fora da ordem. Assim, aquilo que tido por extraordinrio, o apenas relativamente a algumaordem particular estabelecida entre as criaturas, pois quan-to ordem universal tudo est em conformidade com ela'. to verdadeiro isto que, no s nada acontece no mundoque seja absolutamente irregular, mas nem sequer tal se po-deria forjar. Suponhamos, por exemplo, que algum lanceao acaso muitos pontos sobre o papel, como os que exer-cem a arte ridcula da geomancia. Digo que possvel en-contrar uma linha geomtrica cuja noo seja constante euniforme segundo uma certa regra, de maneira a passaresta linha por todos estes pontos e na mesma ordem em quea mo os marcara. E se algum traar, de uma s vez, umalinha ora reta, ora circular, ora de qualquer outra natureza, possvel encontrar a noo, regra ou equao comum atodos os pontos desta linha, merc da qual essas mesmasmudanas devem acontecer. No existe, por exemplo, rostoalgum cujo contorno no faa parte de uma linha geom-trica e no possa desenhar-se de um s trao por certo mo-vimento regulado. Mas, quando uma regra muito comple-xa, tem-se por irregular o que lhe est conforme. Assim,pode-se dizer que, de qualquer maneira que Deus criasse o

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    mundo, este teria sido sempre regular e dentro de certa or-dem geral. Deus escolheu, porm, o mais perfeito, quer dizer,ao mesmo tempo o mais simples em hipteses e o mais ricoem fenmenos, tal como seria o caso de uma linha geomtri-ca de construo fcil e de propriedades e efeitos espantosose de grande extenso. Recorro a estas comparaes para es-boar alguma imperfeita semelhana com a sabedoria divi-na e dizer algo a fim de poder, pelo menos, elevar o nossoesprito a conceber de algum modo o que no se saberia bemexprimir. Mas de maneira alguma pretendo explicar assim ogrande mistrio de que depende todo o universo.

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  • VII. Que os milagres silo conformes ordem gera4 embora contrrios smximas subalternas, e do que Deusquer ou permite por vontade geral

    ou particular.

    Ora, visto nada se poder fazer fora da ordem, pode-sedizer que os milagres 20 tambm esto na ordem como asoperaes naturais, assim denominadas porque esto emconformidade com certas mximas subalternas, a que cha-mamos natureza das coisas; pois se pode dizer que esta na-tureza apenas um costume de Deus, do qual pode dis-pensar-se, por causa de uma razo mais forte do que a queo moveu a servir-se destas mximas. Quanto s vontadesgerais ou particulares 21 , conforme as encaremos, pode-se di-zer que Deus tudo faz segundo a sua vontade mais geral,conforme mais perfeita ordem que escolheu; mas pode-se tambm dizer que tem vontades particulares, exceesdessas mximas subalternas sobreditas, porque a mais ge-ral das leis de Deus, reguladora de toda a srie do univer-so, no tem exceo. Pode-se dizer ainda, tambm, queDeus quer tudo o que objeto de sua vontade particular;mas quanto aos objetos de sua vontade geral, tais como asaes das outras criaturas, particularmente das racionais,com as quais Deus quer concorrer 22 , preciso distinguir: sea ao boa em si, pode-se dizer que Deus a quer e orde-na algumas vezes, mesmo que no acontea; porm, se m em si e s por acidente se torna boa, porque a srie dascoisas e especialmente o castigo e a reparao corrigem suamalignidade e recompensam seu mal com juros, de sorte a

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    existir, finalmente, muito mais perfeio em toda a srie doque se todo o mal no tivesse sucedido, deve-se dizer queDeus a permite, e no que ele a quer, embora concorra paraela por causa das leis naturais que estabeleceu e porquesabe tirar da um bem maior.

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  • VIII. Explica-se em que consistea no o de uma substncia individual

    a fim de se distinguirem as aesde Deus e as das criaturas.

    muito difcil distinguir as aes de Deus das aesdas criaturas, pois h quem creia que Deus faz tudo, en-quanto outros imaginam que conserva apenas a fora quedeu s criaturas". A seqncia mostrar como se podem di-zer ambas as coisas. Ora, visto as aes e paixes pertence-rem propriamente s substncias individuais (actiones suntsuppositorum), torna-se necessrio explicar o que talsubstncia. correto, quando se atribui grande nmero depredicados a um mesmo sujeito e este no atribudo a ne-nhum outro, cham-lo substncia individual. Isto, porm,no suficiente, e tal explicao apenas nominal 24 . pre-ciso considerar, portanto, o que ser atribudo verdadeira-mente a um certo sujeito. Ora, consta que toda predicaoverdadeira tem algum fundamento na natureza das coisas,e quando uma proposio no idntica, isto , quando opredicado no est compreendido expressamente no sujei-to, preciso que esteja compreendido nele virtualmente. Aisto chamam os filsofos in-esse, dizendo estar o predicadono sujeito. preciso, pois, o termo do sujeito conter sem-pre o do predicado, de tal forma que quem entender per-feitamente a noo do sujeito julgue tambm que o predi-cado lhe pertence. Isto posto, podemos dizer que a nature-za de uma substncia individual ou de um ser completoconsiste em ter uma noo to perfeita que seja suficiente

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    para compreender e fazer deduzir de si todos os predica-dos do sujeito a que se atribui esta noo 25 ; ao passo que oacidente um ser cuja noo no contm tudo quanto sepode atribuir ao sujeito a que se atribui esta noo. Assim,abstraindo do sujeito, a qualidade de rei pertencente a Ale-xandre Magno no suficientemente determinada para umindivduo, nem contm as outras qualidades do mesmo su-jeito, nem tudo quanto compreende a noo deste prncipe,ao passo que Deus, vendo a noo individual ou a ecceidadede Alexandre, nela v ao mesmo tempo o fundamento e a ra-zo de todos os predicados que verdadeiramente dele se po-dem afirmar, como, por exemplo, que vencer Dario e Poro,e at mesmo conhece nela a priori (e no por experincia)se morreu de morte natural ou envenenado, o que ns spodemos saber pela histria. Igualmente, quando se consi-dera convenientemente a conexo das coisas, pode-se afir-mar que h desde toda a eternidade na alma de Alexandrevestgios de tudo quanto lhe sucedeu, marcas de tudo o quelhe suceder e, ainda, rastos de tudo quanto se passa nouniverso, embora s a Deus caiba reconhec-los todos.

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  • IX Cada substncia singular exprimetodo o universo sua maneira; e em

    sua noo esto compreendidos todosos seus acontecimentos com todas

    as circunstncias e toda a sriedas coisas exteriores.

    Seguem-se daqui vrios paradoxos considerveis, en-tre outros, por exemplo, no ser verdade duas substnciasassemelharem-se completamente e diferirem apenas solonumero; e o que Santo Toms afirma neste ponto dos an-jos ou inteligncias (quod ibi omne individuum sit specieinfima)26 verdade de todas as substncias, desde que setome a diferena especfica como a tomam os gemetrasrelativamente s suas figuras; item, que uma substncia spoder comear por criao, e s por aniquilamento pere-cer; no se dividir uma substncia em duas, nem de duasse formar uma, e assim, naturalmente, o nmero de subs-tncias no aumenta nem diminui, embora freqentementeelas se transformem. Ademais, toda substncia como ummundo completo e como um espelho de Deus, ou melhor,de todo o universo, expresso 2' por cada uma sua manei-ra, quase como uma mesma cidade representada diversa-mente conforme as diferentes situaes daquele que a olha.Assim, de certo modo, o universo multiplicado tantas ve-zes quantas substncias houver, e a glria de Deus igual-mente multiplicada por todas essas representaes de suaobra completamente diferentes. Pode-se at dizer que todasubstncia traz de certa maneira o carter da sabedoria in-finita e da onipotncia de Deus e imita-o quanto pode. Poisexprime, embora confusamente, tudo o que acontece no

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    universo, passado, presente ou futuro, o que tem certa se-melhana com uma percepo ou conhecimento infinito; ecomo todas as outras substncias por sua vez exprimem estae a ela se acomodam, pode-se dizer que ela estende seu po-der a todas as outras, imitao da onipotncia do Criador.

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  • X Que b algo slido na opinio dasformas substanciais, mas que estas

    formas no alteram em nada osfenmenos e no devem de modo

    algum ser empregadas para aexplicao dos efeitos particulares.

    Parece que tanto os antigos como muitas pessoas h-beis e acostumadas a meditaes profundas, que h scu-los ensinaram teologia e filosofia, algumas sendo recomen-dveis pela sua santidade, tiveram algum conhecimento doque acabamos de dizer. Eis por que introduziram e manti-veram as formas substanciais 2S to desacreditadas atual-mente. Porm, no se afastam tanto da verdade nem so toridculos como imagina o comum de nossos novos filso-fos. Concordo que a considerao destas formas no porme-nor da fsica intil e que no se deve empreg-las na ex-plicao dos fenmenos em particular. Eis onde falharamos nossos escolsticos e, a exemplo seu, os mdicos do pas-sado, pensando dar a razo das propriedades dos corposrecorrendo s formas e qualidades, em vez de examinaremo modo de operao, como quem se contentasse em dizerque um relgio tem a qualidade horodtica, proveniente desua forma, sem considerar em que consiste tudo isto". Oque, com efeito, pode bastar ao comprador, desde o mo-mento em que abandone esse cuidado a outrem. Mas estafalha e mau uso das formas no devem nos levar a rejeitaruma coisa cujo conhecimento to necessrio em metafsi-ca que, sem ele, creio que no se poderia conhecer bem osprimeiros princpios, nem elevar suficientemente o espritoao conhecimento das naturezas incorpreas e das maravi-

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    lhas de Deus. No entanto, assim como um gemetra no temnecessidade de embaraar o esprito no famoso labirinto dacomposio do contnuo, e nenhum filsofo moral, e aindamenos um jurisconsulto ou poltico, precisa entrar a fundonas grandes dificuldades existentes na conciliao do livre-arbtrio com a providncia de Deus, visto poder o geme-tra terminar todas as suas demonstraes e o poltico todasas suas deliberaes sem nenhum deles entrar nestas dis-cusses, que, contudo, so necessrias e importantes na fi-losofia e teologia; do mesmo modo pode um fsico explicaras experincias servindo-se quer das experincias maissimples j realizadas, quer das demonstraes geomtricase mecnicas, sem necessidade do recurso a consideraesgerais, que pertencem a uma outra esfera; e se recorre, paraesse fim, ao concurso de Deus, ou ento de alguma alma,arquou outra coisa desta natureza, to extravagante comoquem numa importante deliberao prtica quisesse entrarem grandes raciocnios sobre a natureza do destino e danossa liberdade. Com efeito, os homens cometem com fre-qncia esta falta, inconsideradamente, quando embaraamo esprito na considerao da fatalidade, e mesmo, por ve-zes, afastam-se por este motivo de alguma boa resoluoou de algum cuidado necessrio30 .

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  • XI. Que no so completamente dedesprezar as meditaes dos telogos

    e filsofos chamados escolsticos.

    Sei afirmar um grande paradoxo ao pretender reabilitarde certo modo a antiga filosofia, e recordar postliminio;1 asquase banidas formas substanciais. Porm, talvez no mecondenem levianamente quando souberem que mediteidemoradamente sobre a filosofia moderna; dediquei muitotempo s experincias da fsica e demonstraes da geome-tria, e bastante tempo estive persuadido da vacuidade destesentes, retomados afinal quase fora e bem contra minhavontade, depois de eu prprio ter procedido a investigaesque me levaram a reconhecer no fazerem os nossos moder-nos justia devida a Santo Toms e a outros grandes homensdaquele tempo, e haver nas opinies dos filsofos e telo-gos escolsticos bem maior solidez do que se imagina, des-de que delas nos utilizemos com propriedade e no lugar de-vido 32 . Estou mesmo persuadido de que um esprito exato emeditativo encontraria nelas um tesouro de imensas verdadesmuito importantes e absolutamente demonstrativas, desdeque se desse ao trabalho de esclarecer e assimilar os pen-samentos deles maneira do gemetras analticos.

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    XII. Que as noes que consistem naextenso contm algo de imaginrio

    e no poderiam constituir asubstncia dos corpos.

    Porm, para retomar o fio das nossas consideraes,creio que quem meditar sobre a natureza da substncia,acima explicada, verificar no consistir apenas na exten-so, isto , na grandeza, figura e movimento, toda a nature-za do corpo, mas ser preciso necessariamente reconhecernela algo relacionado com as almas e que vulgarmente sedenomina forma substancial, muito embora esta . no modi-fique em nada os fenmenos, tanto como a alma dos irra-cionais, se a possuem 33 . Pode-se at mesmo demonstrarque a noo da grandeza, da figura e do movimento nopossui a distino que se imagina e que contm algo ima-ginrio e relativo s nossas percepes, como o so ainda(embora bastante mais) a cor, o calor e outras qualidadessemelhantes, cuja existncia verdadeira na natureza das coi-sas fora de ns se pode pr em dvida. Por isso tais esp-cies de qualidades no podem constituir qualquer substn-cia. E se no h nenhum outro princpio de identidade nocorpo, alm do que acabamos de dizer, nunca um corposubsistir mais do que um momento. No entanto 34 , as almase as formas substanciais dos outros corpos so bem dife-rentes das almas inteligentes, nicas que conhecem as suasaes e, no s nunca perecem naturalmente, mas tambmconservam sempre o fundamento do conhecimento do queso. Eis o que as torna nicas suscetveis de castigo e de re-

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  • compensa e cidads da repblica do universo, de que Deus monarca. Tambm se deduz daqui o dever de todas as res-tantes criaturas as servirem. A este propsito voltaremos afalar mais amplamente.

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    XIII. Como a noo individual de cadapessoa encerra de uma vez por todasquanto lhe acontecer, nela se vem asprovas a priori da verdade de cada

    acontecimento ou a razo de terocorrido um de preferncia a outro.

    Estas verdades, porm, emboraasseguradas, no deixam de ser

    contingentes, pois fundamentam-se nolivre-arbtrio de Deus ou das criaturas,cuja escolha tem sempre suas razes,

    inclinando sem necessitar.

    Entretanto, antes de prosseguirmos preciso resolveruma grande dificuldade, que pode surgir dos fundamentosacima apresentados3 '. Dissemos que a noo de uma subs-tncia individual contm, de uma vez por todas, tudo quan-to lhe pode acontecer, e que, considerando esta noo, nelase pode ver tudo o que verdadeiramente possvel enun-ciar dela, como na natureza do crculo podemos ver todasas propriedades que se podem deduzir dela. Parece, porm,com isto, destruir-se a diferena entre as verdades contin-gentes e necessrias, no haver lugar para a liberdade hu-mana e reinar sobre todas as nossas aes, bem como so-bre todos os restantes acontecimentos do mundo, uma fa-talidade absoluta. Contestarei isto afirmando ser precisodistinguir o que certo e o que necessrio. Toda a genteconcorda estarem assegurados os futuros contingentes, vis-to Deus os prever, mas no se reconhece por isto que elessejam necessrios 36 . Mas (dir-se-) se qualquer concluso sepode deduzir infalivelmente de uma definio ou noo, ela

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  • ser necessria. Ora, sustentamos estar j virtualmente com-preendido em sua natureza ou noo, como as proprieda-des na definio do crculo, tudo o que deve acontecer aqualquer pessoa. Assim, a dificuldade ainda subsiste. Pararesolv-la solidamente, digo que h duas espcies de cone-xo ou consecuo: absolutamente necessria aquela cujocontrrio implique contradio (esta deduo d-se nas ver-dades eternas, como as da geometria); a outra s neces-sria ex hypothesi, e, por assim dizer, por acidente, mas contingente em si mesma, quando o contrrio no impli-que contradio. E esta conexo funda-se no sobre asidias absolutamente puras e sobre o simples entendimen-to de Deus, mas sobre os seus decretos livres e sobre a s-rie do universo37 . Exemplifiquemos38 . Visto que Jlio Csarhaver de tornar-se ditador perptuo e senhor da Repbli-ca e suprimir a liberdade dos romanos, esta ao estcompreendida em sua noo, porquanto supomos ser da na-tureza da noo perfeita de um sujeito compreender tudoacerca dele, a fim de o predicado a estar contido, utpossitinesse subjecto. Poderia dizer-se no ser devido a esta no-o ou idia que Csar praticar tal ao, pois ela s lheconvm porque Deus sabe tudo. Insistir-se-, porm, nacorrespondncia de sua natureza ou forma a esta noo e,desde que Deus lhe imps essa personagem, -lhe dora-vante necessrio satisfaz-la. Aqui poderia responder recor-rendo aos futuros contingentes, pois estes no possuemainda nada de real, a no ser no entendimento e vontadede Deus, e, visto que Deus lhe deu de antemo esta forma, preciso que correspondam a ela de toda maneira. Masprefiro resolver dificuldades a escapar delas pelo exemplode outras dificuldades semelhantes, e o que vou dizer servi-r para esclarecer tanto uma quanto outra. agora, portan-to, que preciso aplicar a distino das conexes. Digo que seguro mas no necessrio o que sucede em conformida-de a estas antecipaes e que, se algum fizesse o contr-

    26

    rio, no faria coisa em si mesma impossvel, embora sejaimpossvel (ex hypothesi) que tal acontea. Porque se al-gum homem fosse capaz de levar a cabo toda a demonstra-o, em virtude da qual provaria esta conexo do sujeito,Csar, . e do predicado, a sua empresa bem-sucedida, mos-traria, efetivamente, ter a ditadura futura de Csar seu fun-damento em sua noo ou natureza, e por ela mostrar-se-iaa razo pela qual preferiu atravessar o Rubico a deter-senele, e por que ganhou em vez de perder a batalha de Far-slia, e ser razovel39 e, por conseqncia, seguro tal acon-tecer; mas no que necessrio em si, nem que seu contr-rio implica contradio. Quase como razovel e seguroque Deus far sempre o melhor, embora o que menosperfeito no implique contradio. Ver-se-ia no ser to ab-soluta como a dos nmeros ou da geometria a demonstra-o deste predicado de Csar, mas que supe a srie decoisas livremente escolhidas por Deus, e que est fundadasobre o primeiro decreto livre divino, que estabelece fazersempre o mais perfeito, e sobre o decreto feito por Deus(depois do primeiro) a propsito da natureza humana, ouseja: que o homem far sempre, embora livremente, o quelhe parece melhor. Ora, toda verdade fundada nesses tiposde decreto contingente, apesar de certa; porque esses de-cretos no mudam a possibilidade das coisas e, como jdisse, ainda que Deus seguramente escolhesse sempre omelhor, tal no impede o que menos perfeito de ser econtinuar possvel em si, embora no acontea, porque no sua impossibilidade, mas sim sua imperfeio, que o fazrejeitar. Ora, nada, cujo oposto possvel, necessrio. Fi-car-se-, portanto, apto a resolver aqueles tipos de dificul-dade, por maiores que paream (e efetivamente no somenos prementes, na opinio dos que trataram alguma vezesta matria), desde que se considere convenientementeque todas as proposies contingentes tm razes para serantes assim do que de outra maneira, ou ento (o que o

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  • mesmo) possuem provas a priori da sua verdade, tornan-do-as certas e revelando que a conexo do sujeito e do pre-dicado destas proposies tem seu fundamento na naturezade um e de outro. No possuem, porm, demonstraes denecessidade, visto tais razes se fundarem apenas no princ-pio da contingncia ou da existncia das coisas, quer dizer,sobre o que ou parece ser o melhor, entre diversas coisasigualmente possveis. Por seu lado, as verdades necessriasse fundam no princpio de contradio e na possibilidadeou impossibilidade das prprias essncias, sem ter em con-ta a livre vontade de Deus ou das criaturas.

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    XIV. Deus produz diversas substnciasconforme as diferentes perspectivas

    que tem do universo e, por suainterveno, a natureza prpria decada substncia implica que o que

    acontece a uma corresponda ao queacontece a todas as outras, semque ajam imediatamente umas

    sobre as outras.

    Conhecido, de certo modo, em que consiste a nature-za das substncias, temos de explicar a dependncia quetm umas das outras e as suas aes e paixes. Ora, em pri-meiro lugar, bem manifesto que as substncias criadasdependem de Deus, que as conserva e at continuamenteas produz por uma espcie de emanao40 , como produzi-mos os nossos pensamentos. Pois Deus, virando, por assimdizer, de todos os lados e maneiras o sistema geral dos fe-nmenos que considera bom produzir para manifestar asua glria, e observando todos os aspectos do mundo detodas as formas possveis (porque no existe nenhuma re-lao que escape sua oniscincia), faz com que o resulta-do de cada viso do universo, enquanto contemplado deum certo lugar, seja uma substncia expressando o univer-so conforme a essa perspectiva, desde que Deus ache con-veniente realizar o seu pensamento e produzir esta subs-tncia 4'. E como a viso de Deus sempre verdadeira, asnossas percepes igualmente o so, mas nossos juzos,que so apenas nossos, nos enganam. Ora, j dissemos maisacima, e segue-se do que acabamos de dizer, que cada subs-tncia como um mundo parte, independente de qual-quer outra coisa, excetuando Deus. Assim, todos os nossos

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  • fenmenos, quer dizer, tudo quanto alguma vez pode acon-tecer-nos, so apenas conseqncias de nosso ser. E comoesses fenmenos conservam uma certa ordem conforme nossa natureza ou, por assim dizer, ao mundo existente emns, o que nos permite, para regular nossa conduta, a pos-sibilidade de efetuar observaes teis, justificadas peloacontecimento de fenmenos futuros e assim podermos,muitas vezes, sem engano julgar o futuro pelo passado, istoseria suficiente para se afirmar que esses fenmenos soverdadeiros, sem nos afligirmos a investigar se existem forade ns e se outros os apercebem tambm. No entanto, bem verdade que as percepes ou expresses de todas assubstncias se entrecorrespondem de tal sorte que qual-quer um, seguindo atentamente certas razes ou leis queobservou, se encontra com outro que fez o mesmo, comoquando vrias pessoas, tendo combinado encontrar-se reu-nidas em algum lugar e em um dia prefixado, podem efeti-vamente faz-lo, se o desejarem. Ora, se bem que todos ex-primam os mesmos fenmenos, nem por isso as suas ex-presses se identificam; suficiente que sejam proporcio-nais 42 . Do mesmo modo vrios espectadores crem ver amesma coisa e efetivamente se entendem entre si, emboracada um veja e fale na medida da sua perspectiva. Somen-te Deus, de quem todos os indivduos emanam continua-mente, e que v o universo no s como eles vem, mastambm de modo inteiramente diverso de todos eles, podeser causa desta correspondncia dos seus fenmenos e tor-nar geral para todos o que particular a cada um. De outraforma no haveria possibilidade de ligao. De certo modoe no bom sentido, embora afastado do usual, poder-se-dizer que nunca uma substncia particular atua sobre umaoutra substncia particular, e tampouco padece 43 , se os even-tos de cada uma so considerados apenas como conseqn-cia de sua simples idia ou noo completa; pois esta idiacontm j todos os predicados ou acontecimentos e expri-

    30

    me todo o universo. Com efeito, nada pode acontecer-nosalm de pensamentos e percepes, e todos os nossos futu-ros pensamentos e percepes no passam de conseqn-cias, embora contingentes, dos nossos pensamentos e per-cepes anteriores, de tal modo que, se eu fosse capaz deconsiderar distintamente tudo quanto nesta hora me acon-tece ou aparece, nessa percepo poderia ver tudo quantome acontecer e aparecer sempre, o que no falharia eaconteceria da mesma maneira, embora tudo quanto exis-tisse fora de mim fosse destrudo, desde que restassem Deuse eu44 . Visto, porm, atribuirmos a outras coisas, como s cau-sas agentes sobre ns, aquilo de que nos apercebemos deuma certa maneira, preciso considerar o fundamento destejuzo e o que h de verdadeiro nele 4 '.

    31

  • XV. A ao de uma substncia finitasobre outra consiste apenas no

    acrscimo do grau de sua expresso,junto diminuio do da outra, namedida em que Deus as obriga a se

    acomodarem entre si.

    A fim de conciliar a linguagem metafsica com a prti-ca, mas sem entrar em longa discusso, basta notar por oraque nos atribumos de preferncia e com razo os fenme-nos que exprimimos mais perfeitamente, e atribumos soutras substncias o que cada uma exprime melhor. Assim,uma substncia de extenso infinita, enquanto exprimetudo, torna-se limitada pela maneira da sua expresso maisou menos perfeita. assim, portanto, que se pode conce-ber que as substncias se estorvem mutuamente ou se limi-tem e, por conseguinte, neste sentido pode-se afirmar queelas agem umas sobre as outras, sendo por assim dizer obri-gadas a acomodar-se entre si, pois pode suceder que umamudana aumente a expresso de uma, diminuindo a de ou-tra 46 . Ora, a virtude de uma substncia particular exprimirbem a glria de Deus, e por isso que ela menos limita-da. E cada coisa, quando exerce sua virtude ou potncia,quer dizer, quando age, muda para melhor e se estende en-quanto age. Assim, pois, quando se d uma mudana afe-tando vrias substncias (como efetivamente qualquer mu-dana toca a todas), creio poder dizer-se que, devido a isso,aquela substncia que passa imediatamente a um mais altograu de perfeio ou a uma expresso mais perfeita exercesua potncia e age, e a que passa a um menor grau revelasua fraqueza e padece 47 . Tambm sustento que toda ao

    32

    de uma substncia que tem perfeio implica algum prazer etoda paixo, alguma dor, e vice-versa. Pode muito bem acon-tecer, no entanto, uma vantagem presente ser desfeita em se-guida por um mal muito maior. Donde se conclui a possi-bilidade de pecar agindo ou exercendo sua potncia e en-contrando prazer nela48 .

    33

  • XVI. O concurso extraordinrio deDeus est compreendido no que a nossaessncia exprime, pois esta expressose estende a tudo, mas ultrapassa as

    foras da nossa natureza ou da nossaexpresso distinta, que finita e segue

    certas mximas subalternas.

    Presentemente, s resta explicar a possibilidade deDeus exercer algumas vezes influncia sobre os homens ousobre as outras substncias por um concurso extraordinrioe miraculoso, pois, segundo parece, nada pode suceder-lhes de extraordinrio ou de sobrenatural, j que todos osseus acontecimentos so apenas conseqncias da sua na-tureza. Mas preciso recordar o que dissemos antes relati-vamente aos milagres do universo, sempre conformes leiuniversal da ordem geral, embora acima das mximas su-balternas. E, desde que toda pessoa ou substncia comoum pequeno mundo exprimindo o grande, pode-se dizer,igualmente, que essa ao extraordinria de Deus sobreessa substncia no deixa de ser miraculosa, muito emboracompreendida na ordem geral do universo, enquanto ex-pressado pela essncia ou noo individual dessa substn-cia49 . Por isto, se compreendemos na nossa natureza tudoque ela expressa, nada nela sobrenatural, pois se estendea tudo, j que um efeito exprime sempre a sua causa S, eDeus a verdadeira causa da substncia. Porm, como o quea nossa natureza expressa com maior perfeio lhe perten-ce de maneira particular (pois nisto consiste a sua potncia,e esta limitada, como acabo de explicar), h muitas coisasultrapassando as foras da nossa natureza e ainda a de to-das as naturezas limitadas. Por conseguinte, no intuito de

    34

    falar mais claramente, digo que os milagres e concursos ex-traordinrios de Deus possuem de caracterstico o no po-derem ser previstos pelo raciocnio de algum esprito cria-do, por mais esclarecido que seja, porque a distinta com-preenso da ordem geral ultrapassa a todos, ao passo quetudo o que chamamos de natural depende das mximasmenos gerais, que as criaturas podem compreender. Paraas palavras serem to irrepreensveis como o sentido, seriabom unir certas maneiras de falar a certos pensamentos, epoderia denominar-se nossa essncia ou idia o que com-preende tudo quanto exprimimos, e, como exprime a nos-sa unio com o prprio Deus, no tem limites e nada a ul-trapassa. Porm, o que em ns limitado poder chamar-se a nossa natureza ou potncia, e, a esse respeito, tudo oque ultrapassa as naturezas de todas as substncias criadas sobrenatural.

    35

  • XVII. Exemplo de uma mximasubalterna ou lei da natureza. Contra

    os cartesianos e vrios outros,demonstra-se que Deus conservasempre a mesma forca, mas no amesma quantidade de movimento.

    J vrias vezes mencionei as mximas subalternas ouleis da natureza e parece conveniente dar um exemplo de-las 5 '. Vulgarmente os nossos filsofos modernos se servemdesta famosa regra da conservao por Deus da mesmaquantidade de movimento no mundo 52 . Com efeito ela pa-rece bem plausvel, e no passado53 eu a tinha por indubi-tvel. Porm, reconheci depois onde estava o erro. queDescartes, assim como outros hbeis matemticos, acredita-ram que a quantidade de movimento, quer dizer, a veloci-dade multiplicada pela grandeza do mvel, convm inteira-mente fora motriz, ou, para falar geometricamente, queas foras esto na razo composta das velocidades e doscorpos54 . Ora, muito razovel a mesma fora conservar-sesempre no universo55 . Igualmente se observa com nitidez,quando se presta ateno nos fenmenos, a inexistncia domovimento mecnico perptuo, porque, ento, a fora deuma mquina, que sempre diminui um pouco devido fric-o e logo termina, se renovaria e por conseqncia aumen-taria de per si sem qualquer novo impulso externo. Nota-setambm no haver diminuio na fora de um corpo, a noser na medida em que ele a transmite a corpos contguos ous suas prprias partes, se possuem movimento indepen-dente. Acreditaram, assim, que podia tambm dizer-se daquantidade de movimento o que pode ser dito da fora. No

    36

    entanto, para mostrar a diferena, suponho que um corpo,caindo de uma certa altura, adquire a fora de subir at elade novo 56 , se o leva assim a sua direo, a menos que se en-contrem alguns obstculos. Por exemplo, um pndulo subi-ria perfeitamente altura de onde desceu se a resistncia doar e alguns outros obstculos pequenos no lhe tivessem di-minudo um pouco a fora adquirida. Suponho, tambm,ser necessria tanta fora para elevar um corpo A, de umalibra, altura CD de quatro toesas, quanta para elevar umcorpo B, de quatro libras, altura EF de uma toesa. Tudoisto admitido pelos nossos filsofos modernos. , pois,manifesto que, tendo o corpo A cado da altura CD, adqui-riu tanta fora, precisamente, como o corpo B cado da al-tura EF; pois, tendo chegado a F o corpo (B) e tendo ali for-a para subir novamente at E (pela primeira suposio),tem por conseguinte a fora de levar um corpo de quatrolibras, isto , o seu prprio corpo, altura EF de uma toesa,e da mesma forma, tendo chegado a D o corpo (A) e ten-do ali fora para voltar a subir a C, tem a fora de elevar umcorpo de uma libra, isto , o seu prprio corpo, altura CDde quatro toesas. Logo (pela segunda suposio), a foradestes dois corpos igual. Vejamos agora se a quantidadede movimento tambm a mesma de ambos os lados. Masaqui, precisamente, ficar-se- surpreso por encontrar gran-dssima diferena, pois j foi demonstrado por Galileu 57 sera velocidade adquirida pela queda CD o dobro da veloci-dade obtida pela queda EF, embora a altura seja qudrupla.Multiplicando, pois, o corpo A, que como 1, pela sua ve-locidade, que como 2, o produto ou a quantidade de mo-vimento ser como 2; e, por outro lado, multiplicando ocorpo B, que como 4, pela sua velocidade, que como 1,ser como 4 o produto ou a quantidade de movimento.Logo, a quantidade de movimento do corpo (A) no pontoD a metade da quantidade de movimento do corpo (B) noponto F e, no entanto, so iguais as suas foras. H, portan-

    37

  • to, grande diferena entre a quantidade de movimento e afora, como se queria demonstrar. Por aqui se v como afora deve ser avaliada pela quantidade do efeito que podeproduzir', por exemplo, pela altura a que se pode levantarum corpo pesado de certo tamanho e espcie, o que mui-to diferente da velocidade que se lhe pode imprimir. E paralhe dar o dobro da velocidade necessrio mais do dobroda fora. Nada mais simples do que esta prova, e se Des-cartes errou neste ponto foi por demasiada confiana emseus pensamentos, mesmo quando no estavam suficiente-mente amadurecidos. Espanta-me, porm, seus sectrios nose haverem depois apercebido deste erro, e receio que elescomecem pouco a pouco a imitar alguns peripatticos deque escarnecem, e, como estes, se acostumem a consultaros livros do mestre de preferncia razo e natureza.

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    XVIII. A distino da fora e daquantidade de movimento importante,

    entre outras razes, para julgar anecessidade do recurso a consideraesmetafisicas independentes da extenso,

    a fim de explicar os fenmenosdos corpos.

    Esta considerao da fora distinguida da quantidadede movimento de grande importncia, no s na fsica ena mecnica, para encontrar as verdadeiras leis da naturezae regras do movimento e at para corrigir vrios erros deprtica que se intrometeram nos escritos de alguns hbeismatemticos, como ainda em metafsica, para melhor com-preenso dos princpios, pois o movimento, se no se lheconsidera o que compreende precisamente e formalmente,ou seja, uma mudana de lugar, no coisa inteiramentereal, e, quando vrios corpos mudam de situao entre si, impossvel determinar, pela simples considerao destasmudanas, a qual dentre eles se deve atribuir o movimentoou o repouso, como me seria possvel mostrar geometrica-mente se me quisesse deter agora neste assunto. , porm,algo mais real a fora ou causa prxima destas mudanas eexiste bastante fundamento para atribu-la a um corpo depreferncia a outros . Assim, s por este meio se pode co-nhecer a qual o movimento pertence de preferncia. Ora,esta fora algo diferente da grandeza, da figura e do mo-vimento, e por a pode-se julgar no consistir apenas na ex-tenso e suas modificaes tudo o que se concebe no cor-po, como se persuadem os nossos modernos. Assim, fomosobrigados a restaurar alguns entes ou formas por eles bani-dos. E parece cada vez mais (embora possam explicar-se

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  • matemtica ou mecanicamente todos os fenmenos parti-culares da natureza por quem os entenda) que, pelo me-nos, os princpios gerais da natureza corprea e da prpriamecnica so muito mais metafsicos do que geomtricos epertencem, sobretudo, a algumas formas ou naturezas indi-visveis, como causas das aparncias, mais do que massacorprea ou extensa60. Esta reflexo capaz de reconciliara filosofia mecnica dos modernos com a circunspeco dealgumas pessoas inteligentes e bem intencionadas, que comalgum fundamento se sentem receosas pelo afastamentoexagerado dos entes imateriais em prejuzo da piedade

    40

    XIX Utilidade das causasfinais na fsica.

    Como no gosto de julgar ningum com m inteno,no acuso os nossos novos filsofos que pretendem banirda fsica as causas finais. Sou, todavia, obrigado a reconhe-cer que me parecem perigosas as conseqncias desta opi-nio, principalmente quando as associo quela refutada noincio deste discurso, e que parece pretender suprimi-las emabsoluto, como se Deus no se propusesse fim nem bemalgum ao agir, ou como se o bem no fosse o objeto da suavontade 62 . Pelo contrrio, tenho para mim que nelas quedeve procurar-se o princpio de todas as existncias e leisda natureza, porque Deus se prope sempre o melhor e omais perfeito. Posso bem admitir3 que estamos sujeitos anos excedermos quando pretendemos determinar os finsou resolues de Deus, mas tal apenas acontece quandopretendemos limit-los a algum desgnio particular, acredi-tando que ele s teve em vista uma nica coisa, ao passoque Deus tem em vista tudo, ao mesmo tempo. Assim acon-tece quando cremos no ter Deus feito o mundo seno parans. Grande abuso este, embora seja muito verdadeiro t-lo feito inteiramente para ns, e nada haver no universoque no nos diga respeito e no se acomode, ainda, s con-sideraes que tem Deus a nosso propsito, segundo os prin-cpios postos mais acima'. Assim, quando vemos algum bomefeito ou perfeio proveniente ou decorrente das obras de

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  • Deus, podemos afirmar com segurana que Deus dessemodo se props a faz-lo, pois Deus nada faz por acaso,nem se assemelha a ns, a quem por vezes escapa fazer obem. por isso que, muito longe de se poder errar nesteassunto, como sucede aos polticos exagerados que imagi-nam excessivo refinamento nos desgnios dos prncipes, ouaos comentadores que procuram demasiada erudio noseu autor, nunca se poderia atribuir demasiadas reflexes aesta sabedoria infinita e no h matria alguma onde me-nos se possa temer o erro, enquanto apenas se afirme edesde que aqui se fuja das proposies negativas, que limi-tam os desgnios de Deus. Todos os que vem a admirvelestrutura dos animais so obrigados a reconhecer a sabe-doria do autor das coisas 65 . Aconselho aos que tm algumsentimento de piedade e mesmo de verdadeira filosofia aafastarem-se das frases de alguns espritos demasiadamen-te pretensiosos, que dizem que vemos porque temos olhos,e no dizem que os olhos foram feitos para ver. difcilpoder-se reconhecer um autor inteligente da natureza, quan-do se est seriamente baseado nestas opinies que tudoatribuem necessidade da matria ou a um certo acaso (sebem que ambas devam parecer ridculas aos que com-preendem o acima explicado), visto que o efeito deve cor-responder sua causa66 , e at se conhece melhor pelo co-nhecimento da causa, e desarrazoado introduzir uma in-teligncia soberana ordenadora das coisas, para logo emseguida, em vez de recorrer sua sabedoria, servir-se ex-clusivamente das propriedades da matria para explicar osfenmenos. Tal como se um historiador, querendo explicaruma conquista realizada por um grande prncipe ao tomarqualquer praa de importncia, em vez de nos mostrar comoa previdncia do conquistador lhe fez escolher o tempo emeios convenientes, e como seu poder removeu todos osobstculos, quisesse dizer que assim acontecera porque oscorpsculos da plvora, tendo-se libertado em contato com

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    uma fasca, haviam escapado com velocidade bastante paraatirar um corpo duro e pesado contra as muralhas da pra-a, enquanto as ramificaes dos corpsculos componentesdo cobre do canho estavam muito bem entrelaadas, demodo a no se separarem por efeito dessa velocidade.

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  • XX. Notvel passagem de Scrates,no Fdon de Plato, contra os filsofos

    demasiado materiais.

    Isto faz-me lembrar uma bela passagem de Scrates,no Fdon 67 de Plato, maravilhosamente de acordo com osmeus sentimentos a este respeit