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Governador do AmazonasOmar José Abdel Aziz

Reitor da Universidade do Estado do AmazonasProfo. Dr. José Aldemir de Oliveira

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ANO-6,Nº 11 MANAUS, JULHO-DEZEMBRO,2008

ANO-7,Nº 12MANAUS, JANEIRO-JUNHO,2009

UNIVERSIDADE

DO ESTADO DO

A M A Z O N A SEdições

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Copyright © 2007Governo do Estado do AmazonasSecretaria de Estado da Cultura

Universidade do Estado do Amazonas – UEA

Universidade do Estado do AmazonasReitor José Aldemir de Oliveira

Pró-reitoria de Pós-Graduação e PesquisaMaria das Graças Vale Barbosa

Escola Superior de Ciências SociaisDiretor Randolpho de Souza Bittencourt

Programa de Pós-Graduação em Direito AmbientalCoordenador Sandro Nahmias Melo (2009); Serguei Aily

Franco de Camargo (2009-atual).

Solicita-se permutaSolicitase canje

Exchange desiredOn demande l’échange

Vogliamo cambioWir bitten um Austausch

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO AMAZONAS – UEAPrograma de Pós-Graduação em Direito Ambiental

Rua Leonardo Malcher, n.º 1728, 5.º andar,Centro, CEP: 69010-170

Manaus – Amazonas – BrasilTel./Fax. 55 92 3627-2725

E-mail: [email protected]: www.pos.uea.edu.br/direitoambiental/

Coordenadores(as)Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo Profa. Dra. Cristiane Derani

Coordenação EditorialProf. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoProf. Dr. Walmir de Albuquerque BarbosaProf. Dr. Ozório José de Menezes Fonseca

Conselho EditorialProfa. Dra. Cristiane DeraniProf. Dr. David Sánchez RubioProf. Dr. Fernando Antonio de Carvalho DantasProf. Dr. Joaquim Shiraishi NetoProf. Dr. Luiz Edson FachinProf. Dr. Ozorio José de Menezes FonsecaProf. Dr. Raymundo Juliano FeitosaProf. Dr. Sandro Nahmias MeloProf. Dr. Serguei Aily Franco de CamargoProfa. Dra. Solange Teles da SilvaProf. Dr. Walmir Albuquerque Barbosa

Revisão Técnica e NormativaDenison Melo de Aguiar

Diagramação e Projeto GráficoFrancisco Ricardo Lopes de Araújo

Revisão OrtográficaProfa. Rosa Suzana Batista Farias

Ficha catalográficaYcaro Verçosa dos Santos– CRB-11 287

Hiléia: Revista de Direito Ambiental daAmazônia. ano 6-7, n.º 11-12. UEA - EdiçõesGoverno do Estado do Amazonas / Secretariade Estado da Cultura / Universidade do Estadodo Amazonas, 2008.

p. 324 ISSN: 1679-9321 (Semestral)

1. Direito Ambiental – Amazônia I.Universidade do Estado do Amazonas

CDD: 344.046811

CDU 344 (811)

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .........................................................................11

PARTE I

A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL NA AMAZÔNIAJosé Heder Benatti ........................................................................15

TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHOPriscila Campana .........................................................................31

EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SULGladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza..............................................................................51

QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ES-TRATÉGIAS LOCAIS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURALNirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75

PARTE II

COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRAThaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121

TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS AO SEU RECONHECIMENTOAlex Justus da SilveiraFernando Antonio de Carvalho Dantas......................................................141

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A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Denison Melo de Aguiar Serguei Aily Franco de Camargo..................................................................159

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM: CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA DE PROXIMIDADELiana Amin Lima da SilvaJosé Augusto Fontoura Costa.......................................................................181

A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIAAline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207

A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGENTES NO CONTEXTO DA REPONSABILIZAÇÃO PENAL AMBIENTALAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo.................................................................235

NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS NO PROCESSO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICAJoaquim Shiraishi Neto................................................................................253

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PARTE III

PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMEN-TAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº 145/2002 DO MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A CO-OFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E BANIWAMoysés Alencar de Carvalho........................................................................271

SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO DA REGULAÇÃO JU-RÍDICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIO-DIVERSIDADESheilla Borges Dourado................................................................................287

Part IV - RESUMOS....................................................................................311

DISSERTAÇÕES DE MESTRADO (JULHO/2008 – JUNHO/2009)

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CONTENTS

PRESENTATION..............................................................................................11

PART I

THE LAW OF ADJUSTMENT AND LAND DEBATE ON SOCIAL JUSTICE AND ENVIRONMENTAL PROTECTION IN THE AMAZONJosé Heder Benatti...........................................................................................15

INHIBITORY COLLECTIVE PROTECTION AND ENVIROMENT OF WORK Priscila Campana............................................................................................31

THE EFFECTUATION OF ETHNIC AND COLLECTIVES LAWS: A BAT-TLE FOR THE TRADITIONAL COMMUNITIES OF THE SOUTH REGION Gladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza..............................................................................51

BREAKING COCONUT BABASSU LADIES FROM ARAGUAIA-TOCAN-TINS: LOCAL STRATEGIES OF SOCIAL AND CULTURAL REPRODUC-TIONNirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75

PART II

SKILLS MATERIALS IN CONTROL AND REGULATION OF FISHING ACTIVITY Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121

INDIGENOUS LANDS IN THE BANDS OF THE BORDER OF BRAZILIAN AMAZON: A BRIEF REVIEW OF OPPOSITES DISCOURSE ANALYSIS TO ITS RECOGNITION Alex Justus da SilveiraFernando Antonio de Carvalho Dantas.......................................................141

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THE “FARRA DO BOI” AND THE QUESTION BALANCING THE CON-STITUTIONAL PRINCIPLES Denison Melo de Aguiar Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................159

CONSIDERATIONS ON THE FEASIBILITY OF ARBITRATION: EQUI-TABLE DISTRIBUTION CONTRACTS FOR ACESS AND USE OF BIODI-VERSITY AND JUSTICE DEMOCRATIC NEARBY Liana Amin Lima da SilvaJosé Augusto Fontoura Costa.......................................................................181

THE NEED FOR PENAL PROTECTION AGAINST BIOPIRACY IN THE AMAZON Aline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207

THE CORPORATION AND THE CO-AUTHORS AGENTS IN THE CON-TEXT OF ENVIRONMENTAL CRIMINAL RESPONSABILITYAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo.................................................................235

NEW SOCIAL MOVEMENTS AND LEGAL STANDARDS IN THE PRO-CESS OF THE REDEFINING THE AMAZON REGION Joaquim Shiraishi Neto................................................................................253

PART III

LEGAL PLURALISM AS FUNDAMENTAL LEGAL VALUE OF BRAZIL-IAN STATE: A CASE STUDY ABOUT THE LAW Nº 145/2002 THE MU-NICIPALITY OF “SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA” AND THE CO-OF-FICIALIZATION OF LANGUAGES NHEENGATU, TUKANU E BANIWAMoysés Alencar de Carvalho........................................................................271

INDIGENOUS AND STATE IN SUBJECT FIELD OS LEGAL REGULA-TION OF TRADITIONAL KNOWLEDGE RELATED TO BIODIVERSITY Sheilla Borges Dourado................................................................................287

PART IV - MASTERS DEGREE DISSERTATIONS (JULY/2008 – JUNE/2009)

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Hiléia - Revista do Direito Ambiental da Amazônia n0 11 |Jul - Dez| 2008 n0 12 |Jan - Jun| 2009 11

APRESENTAÇÃO

A Hiléia, Revista de Direito Ambiental da Amazônia, tem como objetivo contribuir para o desenvolvimento de conhecimento científi co que corresponda às realidades sociais que são estudadas por pesquisadores no campo do Direito Ambiental e áreas afi ns. Possuindo, neste sentido, uma variedade de temas rela-cionados à complexidade das questões Amazônicas.

Esta edição é a condensação de dois números: 11 e 12 da Revista. Cor-respondente ao segundo semestre do ano 6 da revista, ou seja, Julho a Dezembro de 2008, número 11 e ao primeiro semestre do ano 7, isto é, Janeiro a Junho de 2009, número 12, na qual se encontram um conteúdo científi co que trata do Direito Ambiental e diversas áreas afi ns. Os artigos desta edição envolvem questões relativas aos povos e comunidades tradicionais e questões que se en-trelaçam com a realidade destas, constituindo-se num exemplo das diversidades étnicas e culturais da Amazônia Brasileira.

Importante também, agradecermos aos nossos (as) colaboradores (as): Professor Doutor José Aldemir de Oliveira, Magnífi co Reitor da UEA e a Pro-fessora Doutora Maria das Graças Vale Barbosa, Pró-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa que garantiram os recursos necessários à atualização da periodiza-ção da revista; aos Professores Doutores Ozorio Jose de Menezes Fonseca e Walmir de Albuquerque Barbosa e ao Mestrando Denison Melo de Aguiar (bol-sista CAPES), aos quais foram repassados os encargos de organização editorial dos três números da Hiléia, agora entregue aos nossos leitores; aos professores e colaboradores externos; e, fi nalmente, aos mestrandos e seus orientadores, e demais autores que contribuíram com seus estudos nesta revista.

Agradecemos, em especial, a Fundação de Amparo a Pesquisa do Es-tado do Amazonas – FAPEAM, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES e ao Conselho Nacional Científi co e Tecnológico - CNPQ pelo apoio fi nanceiro ao Programa de Pós-graduação em Direito Am-biental.

Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo Coordenador do Programa de pós-graduação em Direito Ambiental – Universidade do Estado do Amazonas

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ÍNDICE - PARTE I

A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL NA AMAZÔNIAJosé Heder Benatti..........................................................................................15

Introdução1. O Debate da grilagem e o desmatamento na Amazônia2. O que se entende por grilagem de terra pública3. Critérios para regularizar as ocupações irregulares e destinar as terras públicas4. Criação de espaços distintos: uma para a propriedade familiar e outra para a grande propriedade5. A política de regularização fundiário do Estado do Pará6. A Lei Federal Nº 11.952/2009 e o debate sobre justiça social e proteção ambientalConsiderações FinaisReferências

TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHOPriscila Campana............................................................................................31

1. Segurança no trabalho e a necessidade de prevenção2. A incapacidade da técnica ressarcitória na defesa dos direitos coletivos3.O sentido preventivo da tutela inibitória4. Fundamento legal da tutela inibitória e a sua antecipação5. O meio ambiente do trabalho6. O papel do Ministério Público do Trabalho e sua legitimidade7. Cabimento da ação civil pública?8. A utilização da ação inibitória coletivaConsiderações Finais

Bibliografi a

EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS DA REGIÃO SULGladstone Leonel da Silva JúniorRoberto Martins de Souza..............................................................................51

Introdução 1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da organização e da luta 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais2.2. Normas específi cas

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2.2.1. Quilombolas2.2.2. Faxinalenses2.2.3. Indígenas2.2.4. Pescadores Artesanais2.2.5. Cipozeiras2.2.6. Ilhéus3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; ConclusãoReferência Bibliográfi ca

QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARAGUAIA-TOCANTINS: ES-TRATÉGIAS LOCAIS DE REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURALNirson Medeiros da Silva Neto.......................................................................75

Introdução1. Sofrimento e mobilização: a vida e o trabalho das quebradeiras de coco babaçu e sua organização em movimento social2. Quebradeiras de coco face às “novas estratégias empresariais”Considerações FinaisReferências

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A LEI DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SOCIAL E PROTEÇÃO

AMBIENTAL NA AMAZÔNIA

José Heder Benatti *

Sumário: Introdução; 1. O Debate da grilagem e o desmatamento na Amazônia; 2. O que se entende por grilagem de terra pública; 3. Critérios para regularizar as ocupações irregulares e destinar as terras públicas; 4. Criação de espaços distintos: uma para a propriedade familiar e outra para a grande propriedade; 5. A política de regularização fundiário do Estado do Pará; 6. A Lei Federal Nº 11.952/2009 e o debate sobre justiça social e proteção ambiental; Considerações Finais; Referências.

Resumo: Um dos temas mais polêmi-cos atualmente diz respeito à proposta do Governo Federal (hoje transformada na Lei 11.952/2009), que visa a regulariza-ção fundiária de propriedades públicas nas regiões da Amazônia Legal. Em relação aos argumentos contrários a esta medida jurídica é a alegação de que a lei favorece a ocupação ilegal de terras públicas e contri-bui com a aceleração das taxas de desmata-mento em curso na região. Considerando-se os desacordos este artigo pretende refl etir sobre esse processo, levando em consideração as opiniões distintas, à luz da Constituição Federal de 1988, que es-tabeleceu novas bases para a relação entre sociedade e meio ambiente.

Palavras-chave: Regularização Fundiária, Direito de Propriedade, Meio Ambiente e Amazônia.

Abstract: One of the most polemic themes nowadays regards the proposal of the fed-eral government (now transformed in the law 11.952/2009) that aims the land regu-larization of public properties in the legal Amazonia regions. In relation to the argu-ments opposed to this legal measure is the allegation that the law favors the unlawful occupation of public lands and contributes with acceleration rates of deforestation in course in the region. Considering the dis-agreements this article aims to refl ect about this process, taking into consideration the distinct opinions in the light of the Federal constitution of 1988, which established new grounds for the relationship between society and environment.

Keywords: Land Regularization, Right Property, Environment and Amazon.

* Advogado, mestre em direito, doutor em ciência e desenvolvimento socioambiental, professor de direito da Universidade Federal do Pará, pesquisador do CNPq e Presidente do Instituto de Terras do Pará.

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INTRODUÇÃO

Um dos temas mais polêmicos das políticas agrária e ambiental do Governo Federal é o projeto de regularização de terras públicas na Amazônia Legal, convertido na Lei nº 11.952/2009. Dois argumentos contrários à inicia-tiva se destacam: o primeiro diz que, ao estabelecer a preferência de venda das terras aos seus ocupantes entre 15 módulos fi scais (média propriedade) e 2.500 hectares (grande propriedade), a lei iguala o grileiro, geralmente grande pro-prietário, ao posseiro, pequeno ocupante de terra pública. Isso representaria, na prática, um empreendimento imobiliário em favor do grileiro. O segundo argu-mento afi rma que a regularização fundiária, tal como foi proposta, aumentará o desmatamento da Amazônia. Do outro lado, os médios e grandes ocupantes das terras públicas rebatem as críticas, dizendo que foram para a Amazônia sob o estímulo de políticas públicas do passado, que lhes prometeram terra para trabalhar. Sob essa ótica, o desmatamento ocorreu porque, para ter assegurado o direito à propriedade, era necessário derrubar 50% da fl oresta da área ocupada. A questão se torna complexa por um motivo simples: todos os argumentos têm um fundo de verdade e não podem ser descartados a priori. Talvez estejamos diante daquilo que Carlos Drummond de Andrade chamou de “meia verdade”, no poema “A Verdade”.

Em meio a tantas opiniões distintas, é necessário buscar um consenso mínimo. O primeiro passo talvez seja o entendimento de que, a partir da Consti-tuição de 1988, a sociedade brasileira estabeleceu um novo contrato, com novas regras para o relacionamento da sociedade com o meio ambiente. Assim, o pas-sado não pode ser desculpa para a continuidade de comportamentos predatórios. O segundo ponto é a necessidade de se pactuar uma transição que assegure a su-peração desse passado. Dois elementos devem ser trabalhados nessa transição: o resgate do passivo ambiental causado pelo desmatamento da fl oresta, tendo como premissa a meta de desmatamento ilegal zero; e o preço justo da terra. Harmonizando esses dois pontos, a transição será mais rápida.

São esses pontos que pretendemos discutir nesse texto.

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1. O DEBATE DA GRILAGEM E O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA1

A privatização ilegal de terras públicas é uma constante na Amazônia. Contudo, diferentemente de outros períodos históricos, hoje se apresenta com um caráter singular na relação de apropriação individual, no contexto fundiário regional. A propriedade da terra não parece ser aqui um instituto totalmente enquadrada na concepção ocidental de propriedade2. A propriedade advinda da grilagem não possui título fundado em uma base legal: a área do imóvel rural não é demarcada e as atividades desenvolvidas dentro de seus limites são ilegais, pois a exploração da terra para o desenvolvimento das atividades agropastoris ou fl orestais não tem autorização do Poder Público. Além disso, são constan-tes as denúncias de violação das normas ambientais e a utilização do trabalho forçado. Logo, encontramos diferentes situações que podem ser inseridas em uma ou mais violações: ambientais, agrárias, civis, criminais e tributárias, numa lógica que leva à apropriação e concentração dos recursos naturais e fi nanceiros de forma ilícita.

Neste contexto a Amazônia se torna palco de disputa entre vários atores, com interesses distintos que culminaram nos problemas que, hoje, compõem o cenário amazônico, pela disputa da terra e dos recursos naturais. São violações dos direitos indígenas, das posses das populações tradicionais e posseiros familiares.

Diante deste complexo quadro, o combate à grilagem de terras e à vio-lência no campo não pode ser visto como uma política de curto prazo, nem se basear apenas em ações pontuais e desconexas. O primeiro passo a ser dado é superar a limitada capacidade de gestão dos órgãos competentes, para o orde-

1 As idéias apresentadas nesse item foram publicadas no livro “BENATTI, José Heder; SANTOS, Roberto Araújo; GAMA, Antonia Socorro Pena. A grilagem de terras públi-cas na Amazônia brasileira. Brasília: IPAM:MMA, 2006 (Série Estudos)” e também no trabalho “Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará. Belém: Iterpa, 2008”, sendo que este último pode ser encontrado no site www.iterpa.pa.gov.br .2 Entenda como propriedade ocidental a propriedade moderna, ou seja, é o imóvel (rural ou urbano) que é demarcada e registrada em cartório, mecanismo utilizado pelo Poder Público para transferir seu patrimônio para o domínio privado. Neste termo, quando referirmos à propriedade está tratando da área que possui título legítimo de propriedade, ou seja, não é um título falso. Já a posse, desde sua origem na história da humanidade, é um estado de fato que antecedeu à propriedade na apreensão e utilização dos bens, para a satisfação das necessidades do homem, sendo também um tipo de relação do homem com a terra.

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namento fundiário, seja no seu corpo técnico, seja no material.3

Outro elemento importante é ter a compreensão de que a consolidação da propriedade rural (pequena, média e grande)4, respeitando os pressupostos sociais e ambientais, representa um importante passo para o fortalecimento da cidadania e da proteção ambiental. Nesta linha de atuação, apresentam-se dois aspectos importantes do combate à grilagem de terra na Amazônia: a elaboração de critérios de regularização fundiária da pequena, média e grande ocupação; e critérios para a destinação de terras públicas, privilegiando a pequena proprie-dade familiar e a criação de assentamentos.

Existe um entendimento geral, do Estado e da sociedade brasileira, de que é fundamental acabar com a grilagem e dilapidação do patrimônio público. O receio está em como fazê-lo. Seja qual for o caminho escolhido o importante é partir do pressuposto de que a consolidação da propriedade privada e o estado de direito social – no caso amazônico, a institucionalização da propriedade privada (individual e coletiva) – é uma condição para a consolidação de um modelo democrático e participativo de distribuição e gestão da terra e dos recursos naturais e, consequentemente, de proteção do meio ambiente.

2. O QUE SE ENTENDE POR GRILAGEM DE TERRA PÚBLICA5

A grilagem é entendida como a legalização do domínio da terra através de documento falso. Também é compreendida como a apropriação ilícita de terras por meio da expulsão de pequenos ocupantes de terras públicas e índios. Portanto, trata-se de uma série de mecanismos de falsifi cação de documentos de propriedade de terras, negociações fraudulentas, chantagens e corrupções que têm envolvido o Poder Público e os entes privados.

O Livro Branco da Grilagem de Terras no Brasil (s/d:12) defi ne que “toda ação ilegal que objetiva a transferência de terras públicas para o patrimônio de

3 No âmbito do Estado do Pará e federal os governos têm investidos em pessoal com os concursos públicos, como na compra de equipamentos e estruturação dos órgãos fundiários e treinamento dos técnicos.4 Defi nimos como grande posseiro, para fi m de regularização fundiária, a faixa de ocu-pação com base na Lei Agrária e na Constituição Federal, ou seja, acima de 15 módulos fi scais e abaixo de 2.500 ha. Acima de 2.500 ha continua sendo um grande posseiro, mas a competência para deliberar sobre a regularização fundiária é do Congresso Nacional, conforme mandamento constitucional.

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terceiros constitui uma grilagem ou grilo”. Portanto, o termo grilagem denota uma ação ilegal (que pode consistir de atos ilegais ou atos irregulares) praticada por particulares, a fi m de se apropriarem das terras públicas. Portanto, podemos fazer a seguinte indagação: a grilagem de terra pública é ilegal ou irregular?

Se toda grilagem de terra é ilegal, não há alternativa para o governo a não ser recuperar a terra para o patrimônio público, pois a origem da ocupação está viciada e não há como admitir a confi rmação dos atos praticados. No entanto, se a grilagem pode ser classifi cada como irregular, basta a validação dos atos prati-cados para que as irregularidades estejam sanadas ou, pelo menos, parte das ir-regularidades. Em outras palavras, se os atos praticados da grilagem ofenderam as normas jurídicas, devido a alguns elementos intrínsecos a esses atos, há a possibilidade de serem ratifi cados, a fi m de que o ato se valide.

Assim, revendo a pergunta anterior, podemos fazer a seguinte indagação: toda grilagem de terra pública é ilegal ou dependendo de certas circunstâncias ou características pode ser enquadrada como irregular?

As diferentes formas de ocupação da Amazônia, seja com apoio legal e fi nanceiro do Poder Público ou por iniciativa própria, acabaram criando um cenário complexo que não pode ser enquadrado somente em uma defi nição um estereótipo de apropriação do patrimônio público. Deve-se considerar a com-plexidade para buscar as soluções, por isso que ao tratar os casos concretos de grilagem encontra-se situações de ilegalidade, como também de irregularidade.

É consenso de que combater a grilagem da terra e dos recursos naturais terá grande repercussão ambiental e na estruturação social, pois acaba com a violência como forma de se ter acesso aos bens públicos, e é também uma indi-

5 Divulga-se que o termo grilo ou grilagem tem sua origem na tentativa de transformar títulos falsifi cados, dando-lhes aparência de legais, com o emprego do inseto ortóptero – o grilo, tanto que o Dicionário Aurélio defi ne grileiro como sendo “Indivíduo que procura apossar-se de terras alheias mediante falsas escrituras de propriedade”. Logo, a terra grilada é aquela em que o título de propriedade é falso. O mecanismo utilizado, e que acabou denominando o processo de apropriação ilegal de terras públicas, era o de “comprar” dos cartórios ou de terceiro um falso título da terra e, para lhe dar uma certa aparência de autenticidade, o documento era colocado em uma gaveta com alguns gri-los. Passado algum tempo, os grilos iriam alimentar-se das bordas da escritura, expelir excrementos no documento e auxiliar na transformação do papel de cor branca para uma cor amarelada, fi cando com um aspecto envelhecido. Assim, o título de propriedade da terra com esse novo visual daria maior credibilidade ao seu possuidor, que alegaria já ser proprietário daquela gleba de terra há algum tempo. Atualmente, empregam-se outras tecnologias mais efi cazes para conseguir o mesmo objetivo, ou seja, a falsifi cação de documentos.

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cação de que existem mecanismos democráticos de se obter a terra.Neste contexto, discutir o fi m da grilagem na Amazônia é discutir a re-

lação entre a consolidação da propriedade privada e o Estado de direito social, ou seja, no caso amazônico, a institucionalização da propriedade privada (indi-vidual e coletiva) é uma condição para a consolidação de um modelo democrático e participativo de distribuição e gestão da terra e dos recursos naturais.

No processo de regularização fundiária não estamos nos referindo a qual-quer tipo de apropriação privada, por isso que afi rmamos que a grilagem pode ser classifi cada em ilegal e irregular. O reconhecimento do direito de proprie-dade privada em terras públicas está vinculado a uma apropriação individual ou coletiva da terra, compatível com a função sócio-ambiental do imóvel rural.

Outro elemento importante neste debate é a capacidade de garantir a dis-tribuição eqüitativa da propriedade privada e, que ao mesmo tempo, reconhecer os diferentes tipos de propriedades. Logo, deve-se garantir o acesso às diferentes formas de apropriação da terra e dos recursos naturais, de tal modo que uma con-cepção de uso não venha se sobrepor e a concentrar uma grande quantidade de terra. E ao garantir o acesso para o desenvolvimento das diferentes atividades sociais e econômicas, as propriedades fi cam comprometidas em cumprir a sua função social e ambiental. Assim, o acesso plural à terra e a função social da propriedade são duas manifestações das cláusulas do Estado democrático. Não se pode implementar uma, sem assegurar a efetividade da outra.

A importância da garantia do direito de propriedade, com essas duas di-mensões, está no fato de reconhecer o direito à terra às comunidades indígenas, às populações tradicionais, aos camponeses e aos médios e grandes posseiros6. Ao mesmo tempo em que se reconhece um direito, estão-se defi nindo deveres, pois se possibilita que a propriedade tenha um limite reconhecido, um cadastro confi ável, o uso da terra e dos recursos naturais legalizados e monitorados. Re-conhece-se o espaço de manifestação de liberdade do indivíduo ou da coletivi-dade e, concomitantemente, assegura-se que o exercício da autonomia privada esteja sujeito à função social e ambiental do imóvel rural.

3. CRITÉRIOS PARA REGULARIZAR AS OCUPAÇÕES IRREGULARES E DESTINAR AS TERRAS PÚBLICAS

A oposição à grilagem não será efi caz se limitar as políticas de comando e controle7, será preciso reconhecer que nem toda ocupação da terra pública é ilegal, em muitos casos a situação de irregularidade persiste por falta da atuação do Poder Público. Por isso o combate à grilagem de terra na Amazônia precisa

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focar em duas medidas:a) Apresentação de critérios de regularização fundiária da pequena, média

e grande ocupação, privilegiando a pequena propriedade familiar;8

b) Critérios para a destinação de terras públicas, para outros usos ou para fi m de proteção ambiental.

O fato de conceder algumas prerrogativas à pequena propriedade não ex-clui a possibilidade de destinar terras para a média e grande propriedade. Pelo contrário, a idéia é ter a pequena ocupação como parâmetro, a fi m de ajudar na construção dos critérios para a destinação de terras públicas para a grande pro-priedade, porque a Constituição Federal faz esse tratamento distintivo.

Mesmo quando utilizado o termo ocupação irregular, deve-se ter uma interpretação sistêmica da legislação brasileira, incluindo as normas agrárias e ambientais. Tradicionalmente tem-se interpretado um ato irregular de ocupa-ção da terra somente sob o prisma agrarista. Contudo, quando os princípios e comandos normativos ambientais são incluídos, um ato até então considerado legal pode ser caracterizado como irregular no uso dos recursos naturais. Neste âmbito, quais são os elementos necessários para assinalar uma ato irregular, tanto na concepção agrarista como ambientalista, ou seja, dentro de uma noção agroambiental?

Os requisitos necessários para que uma ocupação de terras pública faça jus à legitimação da posse deve ser respeitada a ocupação de terras devolutas, a qual é manifestada em cultura efetiva e moradia habitual. Logo, é condição sine qua non que a área esteja sendo ocupada. Além disso, nesse processo, é vedada a regularização de áreas com dimensão territorial inferior à fração mínima de parcelamento do módulo rural.

Outro aspecto a ser levado em consideração são os comandos normativos relativos ao meio ambiente. Assim, as áreas a serem regularizadas devem pas-

6 Lembrando que trabalhamos com a concepção de que a grande ocupação é a faixa de ocupação com base na Lei Agrária e na Constituição Federal, ou seja, compreende as posses acima de 15 módulos fi scais e abaixo de 2.500 hectares. 7 Os instrumentos de comando e controle são mecanismos de regulação direta, objeti-vando modifi cações no comportamento dos agentes por meio da imposição da lei, que tem um caráter punitivo para quem contraria o comando normativo. O instrumento fi xa parâmetros técnicos para as atividades econômicas, visando garantir o objetivo que se deseja alcançar. Com o instrumento de comando e controle, o Estado faz cumprir a lei através do monitoramento, fi scalização e da responsabilização do agente econômico, o que implica em recursos fi nanceiros sufi cientes no seu orçamento para garantir o fun-cionamento destes mecanismos.

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sar, antes da titulação, pelo enquadramento ambiental, ou seja, tem que buscar recuperar o passivo ambiental existente no imóvel rural. São exigências consti-tucionais necessárias para legitimar a ação do Poder Público no reconhecimento do direito à terra. O pressuposto básico é verifi car qual é a função dada a terra: a área ocupada está cumprindo a sua função socioambiental?

Incorporando o princípio da responsabilidade ambiental, a Constituição de 1988 é categórica ao defi nir, no art. 186, que a função social é cumprida quando a propriedade rural atender simultaneamente, segundos critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

a) aproveitamento racional e adequado da terra e dos recursos naturais;b) utilização racional dos recursos naturais disponíveis e preservação do

meio ambiente;c) observância das disposições que regulam as relações de trabalho;d) exploração que favoreça o bem-estar do proprietário e dos trabalhadores.Nesses mandamentos constitucionais estão explicitados os três elementos ne-

cessários para a efetivação da função social: o econômico, o social e o ambiental. A conciliação da utilidade privada (atividade agrária ou da função produtiva) e dos interesses públicos ocorre quando a exploração econômica leva em consideração os aspectos social e ambiental.

Resumindo, o imóvel rural tem a incumbência constitucional de produzir e proteger os bens ambientais. A função ecológica do imóvel rural é efetivada quan-do os serviços ambientais do ecossistema9 estão assegurados, ou seja, ao dar uma destinação útil à terra e aos recursos naturais (por meio do seu aproveitamento na agricultura, na pecuária e no manejo), o desenvolvimento da atividade agrária manterá um grau satisfatório dos serviços ecológicos10.

Logo, os critérios de regularização das áreas públicas ocupadas devem levar em conta esses princípios constitucionais, e as ocupações que não res-peitaram boa parte dos mandamentos constitucionais são ilegais e, portanto, não podem ser regularizadas.

4. CRIAÇÃO DE ESPAÇOS DISTINTOS: UMA PARA A PROPRIEDADE FAMILIAR E OUTRA PARA A GRANDE PROPRIEDADE

8 A Lei federal Nº 11.952/2009 apresenta os critérios para regularizar no âmbito das ter-ras da União na Amazônia, e a Lei Nº 7.289/2009 estabelece os critérios para regularizar as terras do Estado do Pará.

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Atualmente a terra não é somente fonte de alimentos, mas é um recurso natural importante para manutenção da biodiversidade, da produção do bio-diesel e outras matérias-primas para a indústria. O Brasil é um dos poucos países do mundo que ainda possui terra para expandir a atividade agrária, pagan-do um custo alto que é a destruição da fl oresta. Portanto, a tendência é aumentar a disputa por esse recurso cada vez mais escasso e valorizado.

É preciso buscar mecanismo que assegure espaço para o desenvolvimento da atividade agrícola familiar, um deles é o instituto jurídico que regula o acesso a terra, ou seja, o contrato de concessão de direito real de uso, substituindo o título defi nitivo.

Nesse momento de caos fundiário e forte disputa pela terra, é preciso criar dois espaços para que a propriedade familiar e a grande propriedade possam se desenvolver sem que esta abocanhe o espaço daquela.

A distinção da titulação entre concessão e título defi nitivo é apresentada como política pública, porque a atual situação caótica fundiária assim o exige. Se optássemos pela titulação defi nitiva para todas as propriedades e assenta-mentos, a médio prazo, teríamos o aumento da concentração da terra e inúmeras famílias sem terra em busca de novas áreas para ocuparem. Isso quer dizer que de nada adiantará o reconhecimento e a distribuição de lotes à pequena proprie-dade ou a criação de assentamentos.

Na política de regularização fundiária, um dos aspectos que estimula a con-centração de terra é o título do imóvel alcançar valor superior ao da produção agrária, provocando a venda da terra titulada. Essa tendência é maior em áreas com poucos imóveis rurais regularizados e com o aumento da demanda por terras legalizadas. Esse é o caso atual do Pará com a entrada do agronegócio que tem como meta implantar a soja, a cana-de-açúcar e o biodiesel.

O objetivo que se busca alcançar com a concessão consiste em tirar as áreas destinadas para a pequena propriedade da especulação imobiliária e es-

9 Ecossistema pode ser entendido como a comunidade de plantas, animais ou outros seres vivos, juntamente com o componente inorgânico do ambiente natural, encontrados num determinado habitat e interagindo entre si.10 Denominamos serviços ecológicos ou ambientais do ecossistema a manutenção da ca-pacidade de retenção de parte do ciclo de carbono, a manutenção do sistema hidrológico e climatológico, a função de barreira natural contra a propagação de incêndios fl orestais, a reciclagem de nutrientes, o fornecimento de matéria-prima, o controle da erosão e a manutenção da biodiversidade. De modo geral, os serviços ecológicos podem ser defi ni-dos como sendo as circunstâncias e os processos, dentro de cada ecossistema, e as espé-cies que fazem parte desse meio ambiente, que sustentam o ecossistema e possibilitam a realização da vida humana.

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timular as ações coletivas – tais como o associativismo – com o intuito de melhorar a produção e o preço da produção familiar. Quanto à grande pro-priedade, o objetivo é desestimular a procura, pois o estado não pode favorecer a concentração de terra. Assim, somente quando houver um mercado de terra estabilizado, com a regularização fundiária da média e da grande propriedade e com a política agrícola consolidada para a propriedade familiar, é que se poderá pensar em mudar a concessão para a titulação defi nitiva.

Outra política importante para assegurar o espaço para a pequena proprie-dade é a constitucionalização do limite ao direito de propriedade, que discutire-mos logo mais.

5. A POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIO DO ESTADO DO PARÁ

O Estado do Pará já iniciou o processo de ordenamento territorial e regu-larização fundiária com a Política Estadual de Ordenamento Territorial (PEOT). Essa política leva em conta os comandos normativos previstos na Constituição Federal e na Estadual, na legislação estadual e nos procedimentos administra-tivos do Instituto de Terras do Pará (ITERPA). Com isso, busca conciliar os princípios da produção agrária e da proteção ambiental.

Tendo como fi nalidade priorizar a propriedade familiar, o ITERPA foi reestruturado para que seja possível a criação de assentamentos. A atual orga-nização do órgão conta com a Coordenadoria de Projetos Especiais composta pela Gerência de Comunidades de Quilombos e pela Gerência de Projetos de Assentamento. Para tanto, o Estado criou três tipos de assentamentos: a) Projeto Estadual de Assentamento Sustentável (PEAS); b) Projeto de Assentamento Es-tadual Agroextrativista (PEAEX); e c) Território Estadual Quilombola (TEQ).

Os assentamentos criados pelo Estado receberão concessão de direito real uso, enquanto que os quilombolas receberão a titulação defi nitiva e coletiva, conforme estabelecem a Constituição Federal e a Estadual.

O objetivo que se busca alcançar com a concessão de direito real de uso nas áreas de assentamento é retirar as áreas destinadas para a pequena proprie-dade da especulação imobiliária e estimular as ações coletivas – tais como o associativismo – com o intuito de melhorar a produção e o preço da produção familiar. Quanto à grande propriedade, o objetivo é desestimular a procura, pois o Estado não pode favorecer a concentração de terra. Assim, somente quando houver um mercado de terra estabilizado, com a regularização fundiária da mé-dia e da grande propriedade e com a política agrícola consolidada para a pro-priedade familiar, é que se poderá pensar em mudar a concessão para a titulação

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defi nitiva.Nesse primeiro momento, a criação de assentamento é pensada como uma

política de regularização fundiária em áreas de ocupação humana, ou seja, não é política do ITERPA criar assentamentos em áreas sem ocupação humana. O que se busca para as áreas com cobertura vegetal natural é a proteção ambiental, pri-orizando instrumentos que assegurem a sua conservação. O mesmo tratamento se dará para o processo de regularização fundiária rural, isto é, não haverá alienação de terra pública com fl oresta para iniciar projetos agropecuários.

A inovação do estado do Pará é realizar a regularização com uma nova metodologia, isto é, a Varredura Fundiária priorizando a atuação no âmbito do município com ação governamental conjunta, envolvendo a Secretaria de Pro-jetos Estratégicos, a Secretaria de Meio Ambiente, a Secretaria de Agricultura, o Instituto de Terras do Pará e a Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Pará. Com ações conjugadas, espera-se titular, licenciar as atividades agrárias e discutir a produção agrícola do imóvel rural.

Busca-se, com essa política, um processo de gestão territorial contínua, transparente e democrática, pactuado com os diferentes atores sociais (federal, estadual, municipal e sociedade civil), além de realizar uma “varredura” fundiária. Sendo assim, os objetivos que tal política pretende alcançar são: diminuir a vio-lência rural e o desrespeito aos direitos humanos, assegurar o direito de pro-priedade aos diferentes segmentos sociais, diminuir o desmatamento, garantir a sustentabilidade ambiental e priorizando a ocupação familiar.

Os processos de regularização de posse deverão ser acompanhados de planta e de memorial descritivo georreferenciado cujos custos fi nanceiros para a sua elaboração deverão ser de responsabilidade da(o) benefi ciária(o) da legiti-mação, com exceção dos processos de da pequena propriedade, quando se tratar de doação, e a criação de assentamento.

Os títulos de domínio expedidos pelo órgão fundiário conterão cláusulas que obriguem o benefi ciário a manter, a conservar e, se for o caso, a restau-rar as áreas de preservação permanente e de reserva legal. Tais títulos também conterão como cláusula obrigatória que diz respeito à averbação à margem do registro do imóvel, junto ao cartório competente, da área de reserva legal.

Em decorrência da infra-estrutura tecnológica que está se organizando – a qual contará com cadastro dos imóveis georreferenciado e com técnicos capacitados para a execução do mapeamento através do sistema GPS –, a metodologia a ser utilizada na coleta das informações sobre as características físicas dos imóveis se refere ao georreferenciamento apoiado na Rede Geodésica Federal. Objetiva-se, com isso, organizar um banco de informação próprio das propriedades rurais e compartilhado tanto por instituições públicas (Federais, Estaduais e Munici-

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pais) quanto por registros imobiliários, servindo para melhor defi nição de di-visas municipais, de perímetros urbanos e de unidades de conservação. Com uma base cadastral estruturada, reunindo elementos necessários ao trabalho de reforma agrária e de ordenamento fundiário, o Estado poderá planejar e executar de forma sistemática as ações de democratização do acesso à terra, de combate à grilagem e de fi scalização do uso da propriedade rural.

A Varredura Fundiária irá levantar todos os imóveis rurais na área que está atuando, constituindo uma malha fundiária e de ocupação existente. Busca com isso obter informações sócio-econômicas da realidade da região, possibili-tando o ordenamento territorial, a titulação das ocupações legitimáveis, a cria-ção de assentamentos, o reconhecimento à terra aos quilombolas, bem como, destinar às terras públicas para proteção ambiental ou concessão fl orestal. A ocupação familiar terá prioridade na destinação das terras públicas com o intuito de fortalecer a agricultura familiar, com vistas ao seu desenvolvimento social, econômico e ambiental. Maiores informações podem ser adquiridas no site do instituto (www.iterpa.pa.gov.br).

6. A LEI FEDERAL Nº 11.952/2009 E O DEBATE SOBRE JUSTIÇA SO-CIAL E PROTEÇÃO AMBIENTAL

A Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regulariza-ção fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal. A novidade contida na norma foi a dispensa de licitação para áreas rurais até quinze módulos fi scais na Amazônia para quem ocupa desde dezembro de 2004, e por esse e outros comandos normativos rece-beu algumas críticas, entre elas as que relacionam a lei a consolidação da grila-gem ou como estímulo ao desmatamento. O Greenpeace chegou a afi rmar que a lei será o Programa de Aceleração da Grilagem – PAG, pelo fato que as áreas ocupadas até quinze módulos fi scais11 na Amazônia poderão ser compradas sem

11 O módulo fi scal (MF) é fi xado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e defi nido por lei pelo município, sendo regulamentado pelo art. 4º do Decreto Nº 8.485, de 06/05/80. No Pará a maioria dos municípios possui módulo fi scal entre 55 a 75 ha, com exceção de Ananindeua, Benevides, Marituba e Santa Bárbara, onde o módulo fi scal é de 7 ha. O Estado do Amazonas possui MF de 80 e 100 ha; no Acre a maioria é de 100 ha e um terço é de 70 ha; no Amapá, 50 e 70 ha; em Rondônia, 60 ha e, em Roraima, 80 e 100 ha (fonte: INCRA, 2001).

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licitação. O Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra (MST) fez a mesma crítica, dizendo que a norma jurídica possibilita a legalização da grilagem.

O Imazon – Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia fi cou no meio termo nas críticas. De um lado declara que o governo acerta ao tentar regularizar as terras ilegalmente ocupadas. De outro lado ressalva que a lei pode reforçar a expectativa entre os candidatos a posseiros e grileiros de que nova “regularização” ocorra no futuro, ampliando a ocupação de terras públicas.

Para saber qual será o efeito real da norma de regularização fundiária pelo menos duas perguntas devem ser respondidas: essa norma vai colaborar para aumentar a concentração de terra? Irá facilitar ou estimular o desmatamento na Amazônia? São duas perguntas que possuem abrangências distintas. A primeira está relacionada ao debate do acesso à terra da pequena propriedade e a outra a questão ambiental.

Na realidade, a Lei nº 11.952/2009, está inserida em um novo contexto político, onde os órgãos públicos agrários estaduais e federais (ITERPA, MDA e o INCRA), o IBAMA e a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará estão atuando em parceria para combater a grilagem e a violação do meio ambiente. Nesse novo contexto, o desmatamento não será o critério principal de legitima-ção da ocupação, mas a destinação socioambiental do imóvel rural.

O Estado deve ser pró-ativo e coordenar o processo do ordenamento terri-torial para que suas políticas públicas sejam efi cazes, pois a falta de uma política de destinação de bens públicos pode promover – e é o que, na maioria das vezes, ocorre, caso haja a falta dessa política – um ordenamento caótico das áreas ter-ritoriais por meio da grilagem. Essa forma espontânea de ordenamento é nociva aos direitos humanos e ao meio ambiente. Para tanto, é necessário estabelecer uma política de ordenamento territorial que inclua: regularização fundiária, li-cenciamento ambiental das propriedades rurais, cumprimento da função social da propriedade, controle, fi scalização e instrumentos econômicos12 capazes de

12 Um incentivo é um mecanismo de política que visa levar ou estimular os agentes econômicos a desenvolver determinadas ações e comportamentos para alcançar metas e objetivos predeterminados. O incentivo econômico encoraja as pessoas a ter certos comportamentos desejados. O incentivo fi scal é a isenção ou redução de impostos esta-belecidos em lei para estimular gastos privados em certas áreas ou programas.O incentivo pode ser criado para benefi ciar uma atividade, estimular comportamentos ou desestimulá-los. Dessa forma, os incentivos econômicos (fi nanceiros e fi scais) po-dem ser uma forte ferramenta para estimular a proteção dos recursos naturais no imóvel rural, pois possibilitam corrigir tendências do mercado que podem estar encorajando ações contrárias à conservação da natureza. Contudo, os incentivos econômicos são instrumento público complementar ao de comando e controle.

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estimular a gestão sustentável dos recursos naturais, de maneira especial, a fl o-resta.

O que causa insegurança e descontrole é a falta de defi nição do direito de propriedade como se encontra atualmente a região amazônica. A regularização fundiária que está se propondo busca desestimular o desmatamento e assegurar o controle das áreas públicas e privadas. Atualmente um quinto da Amazônia Legal permanece como “terra devoluta” e parte considerável das terras arreca-dadas pelo Poder Público nas décadas de setenta e oitenta não receberam uma destinação efetiva. Este fato leva o mesmo poder público a desconhecer quem e como suas terras estejam sendo ocupadas. O reconhecimento formal das dife-rentes formas de ocupação existentes permitirá ao Estado e a sociedade con-trole sobre o uso da terra e demais recursos naturais. Portanto, a regularização fundiária terá impacto positivo e não negativo, desde que priorize a ocupação familiar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resumindo, a regularização fundiária deve trabalhar com critérios de re-conhecimento do direito a terra (moradia, prazo mínimo de ocupação e função socioambiental do imóvel rural) como também com critérios de exclusão do direito a terra (área reivindicada que não cumpre a função social, e a utilização de trabalho forçado para realizar qualquer atividade laboral dentro do perímetro da área reivindicada), priorizando as posses familiares.

O nó górdio é o atual paradoxo da Constituição Federal, que ao es-tabelecer critérios para destinação das terras públicas para a propriedade familiar e a proteção ambiental, não criou nenhum obstáculo a concentração da terra.13 O principal comando constitucional que apresenta algum embaraço ao grande latifúndio é a obrigação de cumprir a função social da terra.14 Contudo, isso não é sufi ciente para impedir a formação da grande propriedade no Brasil, se faz necessário a constitucionalização do limite do direito de propriedade, esta-

13 O artigo 188 da Constituição Federal determina que “A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a política agrícola e com o plano nacional de re-forma agrária. O § 5º do artigo 225 preconiza que “São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais.”14 A função social da propriedade está presente nos artigos 5º, XXIII; 170, III e 186 da Constituição Federal.

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belecendo uma restrição ao tamanho da área e a quantidade de imóveis rurais que uma pessoa pode possuir no Brasil.

O debate principal para que se consiga uma verdadeira distribuição de terra no Brasil é limitar o direito de propriedade. Não é a proposta de regulariza-ção fundiária que inclua a média e grande ocupação que irá acelerar o processo de concentração de terra. A concentração de terra já existe e somente a políti-ca de reforma agrária não será sufi ciente para combater o grande latifúndio. A reforma agrária está contribuindo para garantir o acesso a terra à propriedade familiar, mas não é sufi ciente para limitar a concentração de terra, pois no mer-cado o acesso a terra é livre, desde que haja um proprietário querendo comprar e outro com interesse de vender o negócio pode se consolidar, sem levar em conta nenhum critério social ou ambiental.

Enquanto não houver uma restrição ao direito de propriedade, o processo de poucos possuírem muito continuará, com uma forte tendência de aumentar ainda mais a atual concentração de terra.

A campanha liderada pelos movimentos sociais que atuam na área agrária objetivando incluir na Constituição Federal uma emenda que estabelece um limite máximo à propriedade da terra no Brasil é um grande passo no combate a concentração da terra e dos recursos naturais.

Por outro lado, o mercado nacional e internacional está fechando o cerco às práticas predatórias e a sociedade vem exigindo comportamentos compro-metidos com a sustentabilidade ambiental e a responsabilidade social. O que precisamos agora é de uma política socialmente justa, ambientalmente susten-tável e economicamente inclusiva.

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REFERÊNCIAS

BENATTI, J. H.; SANTOS, R. A.; GAMA, A. S. P. A grilagem de terras públi-cas na Amazônia brasileira. Brasília: IPAM:MMA, 2006 (Série Estudos).

BRASIL. Constituição Federal do Brasil, 2008.

BRASIL. Lei Federal Nº 11.952/2009, apresenta os critérios para regularizar no âmbito das terras da União na Amazônia.

BRASIL. Lei Nº 7.289/2009, estabelece os critérios para regularizar as terras do Estado do Pará.PARÁ. Ordenamento territorial e regularização fundiária no Pará. Belém: Iterpa, 2008.www.iterpa.pa.gov.br

Artigo recebido em: 26/04/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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TUTELA INIBITÓRIA COLETIVA E O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

Priscila Campana*

Sumário: 1. Segurança no trabalho e a necessidade de prevenção; 2. A incapacidade da técnica ressarcitória na defesa dos direitos coletivos; 3.O sentido preventivo da tutela inibitória; 4. Fundamento legal da tutela inibitória e a sua antecipação; 5. O meio am-biente do trabalho; 6. O papel do Ministério Público do Trabalho e sua legitimidade; 7. Cabimento da ação civil pública?; 8. A utilização da ação inibitória coletiva Considera-ções fi nais; Bibliografi a

Resumo: A pesquisa objetiva analisar o instituto da ação inibitória e sua possível aplicação na tutela coletiva do meio am-biente trabalhista. Entende-se tal instru-mento processual como relevante porque sua fi nalidade não é a de reparar um di-reito já transgredido, mas sim a de impedir o prolongamento ou a reiteração do ilícito praticado. Assim, sustenta-se a distinção entre dano e ilícito para desmitifi car o paradigma processual civil tradicional que se preocupa tão-somente com a lesão e sua conseqüente reparação. A lógica da proteção inibitória é preventiva, onde não se aguarda a ocorrência do dano para que seja providenciada tutela. Desta forma, por meio de inspiração no direito ital-iano, é possível assentar no direito pátrio a ação inibitória, considerando que a ação civil pública tornou-se insufi ciente para garantir integralmente proteção ao meio ambiente laboral, e que o Ministério Pú-blico do Trabalho é agente legítimo na sua promoção.

Palavras-chave: meio ambiente do trab-alho; ação inibitória; direitos transindivid-uais

Abstract: The research aims to analyze the inhibitory institute and its possible collec-tive protection application of the work en-vironment. It is understood that such pro-cedural tool as relevant because its target is not for repairing the rights already trans-gressed, but to prevent the prolongation or the illicit reiteration practiced. Thus, it is supported the distinction between damage and illicit for demystifying the traditional civil procedural paradigm that is worried only about the damage and its consequent reparation. The inhibitory protection logic is preventive, where it is not awaited the damage occurrence to prepare the protec-tion. Therefore, through Italian law inspi-ration is possible to place on the paternal law the inhibitory protection, considering that the public civil action has become in-suffi cient to assure integrally the laboring environment protection; and that the Public State Prosecutor is the legitimated agent in its promotion.

Key-words: work environment; inhibitory protection; trans-individual rights.

* Pós-doutora em Direito (UFSC); Doutora em Direito (UFPR); Professora na Sociesc/SC e UnC/SC.

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1. SEGURANÇA NO TRABALHO E A NECESSIDADE DE PREVENÇÃO

Os comportamentos genéricos das empresas faltando às obrigações de cumprir e fazer cumprir normas de segurança dos empregados acaba por ser confi gurar fraude aos direitos sociais constitucionalmente garantidos. A Carta Magna de 1988 dignifi ca o trabalho, considerado como fundamento republi-cano, onde a ordem econômica deve estar insculpida na sua valorização.

Dessa forma, sistematizando o princípio de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, a Constituição Federal garante no artigo 7º, XXII “a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segu-rança”.

A falta de efetividade das normas protetivas laborais é um dos vários problemas da saúde do trabalhador brasileiro. O elevado número de acidentes trabalhistas, e de mortes, principalmente na área da construção civil, demonstram que o direito à saúde do trabalhador deve sair do plano abstrato normativo e ad-quirir ressonância prática. E, consequentemente, o melhor caminho não é a repa-ração da lesão mas sim a prevenção do ilícito, a obliteração da continuidade ou repetição da violação ao direito por parte, no caso, dos empregadores1.

De acordo com dados ofi ciais da Previdência Social, os acidentes do tra-balho causam em média cerca de três mil mortes por ano no país. Os indica-dores apontam que no setor privado, 653.090 acidentes foram registrados no ano de 2007, número maior que o de 2006, de 512.232 casos, e óbito de 2.804 cidadãos2.

A problemática insere-se no campo do menosprezo à saúde e vida do trabalhador quando o empregador, pela corrida ao lucro, não investe em ma-quinários seguros, em equipamentos modernos de trabalho e muito menos em Programas de Prevenção dentro de sua empresa. Conforme pesquisa a respeito, Sebastião Geraldo Oliveira3 pondera:

1 A prevenção de acidentes signifi ca melhor qualidade, produtividade e competitividade do produto, o que não entenderam ainda os empregadores atrasados, comenta Raimundo Simão de Melo. Ainda pondera que as estatísticas ofi ciais mostram dados aterrorizantes em relação ao número de acidentes típicos e de doenças profi ssionais e do trabalho, destacando-se, entre estas, a surdez profi ssional, a lesão por esforços repetitivos (LER), doenças de coluna, silicose e intoxicação por chumbo. In Segurança e meio ambiente do trabalho: uma questão de ordem pública, p. 48.2 Dados disponíveis em http://www.previdenciasocial.gov.br, acesso em 25.08.2009.

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O problema do acidente do trabalho e das doenças ocupa-cionais que lhes são equiparadas continua desafi ando as in-teligências do mundo inteiro, com estatísticas que abalam consciências. O local de trabalho é para o empregado ganhar a vida, não para encontrar a morte. (…) O com-bate às agressões à saúde do trabalhador pode ser travado em várias frentes. O êxito, entretanto, está condicionado à implementação de uma nova mentalidade, priorizando a luta pelo ambiente de trabalho saudável, porque até então os esforços estão sendo canalizados com muita ênfase para o socorro das vítimas, e com pouco empenho para a pre-venção dos danos.

Vê-se, com isto, que não é sufi ciente o controle judicial posterior às lesões, com cunho individualizado. Imprescindíveis, perante a comprovação da ilicitude dos atos fraudatórios e reiterados do empregador, medidas também genéricas, preventivas, que obliterem tais comportamentos violadores do di-reito, e que podem ser atingidas através de sua inibição4.

Perante tal quadro, a instituição essencial na defesa da ordem jurídica e dos interesses da sociedade, que é o Ministério Público, atua na prevenção e reparação dos danos causados aos trabalhadores vítimas de acidente trabalhista em função da ausência, por parte das empresas negligentes, de regular aplicação das normas de segurança, fundamentais à salubridade do meio ambiente trabalhista e, consequentemente à incolumidade física e mental do trabalhador.

O órgão ministerial atua obrigatoriamente nos processos relacionados a acidentes trabalhistas por causa da sua natureza, de ordem pública, e em razão

3 In Proteção jurídica à saúde do trabalhador, p. 290.4 Decisão da comarca de Cubatão, de 02.07.88, na Ap. cível 99.091-1, no episódio do incêndio da Vila Socó, confi rmou a responsabilidade da Petrobrás, nos seguintes ter-mos: “…é aquela estatal a proprietária do oleoduto e a única responsável pela sua con-servação e manutenção. E um dos fatores determinantes do evento foi precisamente a corrosão dos tubos, fazendo com que ocorresse o seu rompimento quando aumentada a pressão do combustível em decorrência do fechamento das válvulas. Por outro lado, como bem assinalou a r. sentença, é também a Petrobrás a responsável pela existência de sistemas de segurança capazes de detectar a ocorrência de vazamentos, como aquele que se verifi cou. Finalmente, também é a estatal responsável pela precariedade dos sistemas de comunicação com a Codesp relativamente à operação de bombeamento e indicação precisa dos dutos utilizados, como anotado pela perícia”. In CAMPOS, José L. Dias. Responsabilidade civil e criminal decorrente de acidente do trabalho na Constituição de 1988, p. 122.

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da qualidade da parte, geralmente mais débil na relação jurídica levada a juízo.Deste modo, a tutela ao meio ambiente do trabalho sadio transcendeu

o nível individual e tornou-se matéria de cunho público, já não mais somente interesse dos grupos sindicais em defesa de tais direitos, mas especialmente de toda a sociedade.

2. A INCAPACIDADE DA TÉCNICA RESSARCITÓRIA NA DEFESA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS

A doutrina tradicional do processo civil, num contexto individualista e patrimonialista, conformou seu sistema à supremacia da técnica ressarcitória como único remédio contra o ato ilícito, o ato violador ao direito.

A importância da responsabilidade civil na atualidade é fundada na preocu-pação de restauração de equilíbrio patrimonial e moral desfeito pelo evento dano-so, conforme vasta doutrina pátria explicada em Maria H. Diniz, Caio Mário da Silva Pereira, Sílvio Neves Baptista, entre outros5. Neste sentido o instituto é fonte de uma relação obrigacional que visa a prestação de ressarcimento, tão somente.

Contudo, embora esta lógica sirva especialmente aos direitos patrimo-niais tradicionais, passíveis de reposição da lesão com a conversão em pecúnia, é, ao mesmo tempo, insatisfatória quando pensada ao nível dos direitos não patrimoniais, pois preocupa-se somente com o ressarcimento dos danos, já ocorridos, e como ocorrerá a indenização.

Ocorre que, num enfoque que afasta o sistema da responsabilidade civil, a tutela dos direitos transindividuais, coletivos e difusos, requer não a recom-posição do statu quo ante (muitas vezes impossível de concretizar), ou sua in-

5 De acordo com Maria H. Diniz: “A responsabilidade civil constitui uma sanção civil, por decorrer de infração de norma de direito privado, cujo objetivo é o interesse particu-lar, e, em sua natureza, é compensatória, por abranger indenização ou reparação de dano causado por ato ilícito (...)”. Desse modo, a responsabilidade civil orienta-se à reparação do dano causado a outrem, desfazendo tanto quanto possível seus efeitos, restituindo o prejudicado ao seu estado anterior. In DINIZ, M. H. Curso de direito civil, p. 07. Para Caio Mário da Silva Pereira, “a responsabilidade civil consiste na efetivação da repa-rabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica a que se forma”. In PEREIRA,C. M. S. Responsabilidade civil, p. 11. No mesmo sentido Sí-lvio N. Baptista conceitua como “(...) a relação obrigacional decorrente do fato jurídico dano, na qual o sujeito do direito ao ressarcimento é o prejudicado, e o sujeito do dever o agente causador ou o terceiro a quem a norma imputa a obrigação”. BAPTISTA, S. N. Teoria geral do dano, p. 59.

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denização, mas sim, e sobretudo, a sua prevenção.Há casos em que, ocorrendo o dano, há irreversibilidade de recompor o

bem lesado. E quando ilícito e dano se afi rmam em momentos distintos, nada mais coerente do que evitar o dano atacando desde logo a prática do ilícito.

Ou seja, o sistema de responsabilidade civil nas atuais sociedades de mas-sa, que necessitam de tutela de seus bens coletiva e difusamente, é inoperante pois este visa somente restabelecer o equilíbrio violado pelo dano.

Por outro lado, para que haja a tentativa de satisfazer a tutela dos novos direitos emergentes, existe a necessidade de repensar a técnica civilista, baseada na resolução de confl ito tipo “Caio versus Tício”, e partir para a aceitação de tutelas coletivas.

A preocupação passou a ser a ocorrência de eventos lesivos irreparáveis e que não são passíveis de monetarização, como os direitos não patrimoniais transindividuais. Ao invés da clássica sanção ressarcitória, incabível neste caso, recorre-se a outra forma de tutela, a inibitória, que servirá operante antes da vio-lação e com efeitos diretamente reintegratórios dos direitos em hipótese amea-çados.

Neste passo, o tema da tutela inibitória vem assumindo papel importante, já tendo despontado no Processo Civil italiano.

Cristina Rapisarda6, referindo-se à incapacidade da tradicional tutela res-sarcitória em garantir efetivamente a tutela dos novos direitos, pontua que

la non patrimonialità pone in luce anche l’esigenza di forme di tutela ripristinatorie o, piú precisamente, reintegratorie, che mirino a garantire l’attuazione ‘dell’interesse specifi co per cui si invoca la tutela’, anzichè del diverso interesse alla restaurazione patrimoniale del soggetto leso, secondo il principio dell’equivalente monetario.

É preciso, antes de aprofundar a técnica reintegratória, distinguir os con-ceitos de dano e de ilícito civil.

Ocorre unifi cação do instituto do ilícito civil com a da responsabilidade por dano devido à idéia, originada de um processo histórico, que relacionava au-tomaticamente a tutela privada do bem com a recomposição do valor econômico deste no patrimônio do indivíduo lesado. O ressarcimento do dano era con-siderado o único modo de tutela contra o ilícito, que era confundido com a

6 RAPISARDA, Cristina. Profi li della tutela civile inibitoria, p. 81.

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lesão. Não se concebia o fato de que bens de grande importância, e direitos não patrimoniais, vitais para o desenvolvimento das pessoas, não são passíveis de ser valorados monetariamente de forma objetiva7.

Entretanto, este princípio de raiz romana deve restar superado com a tute-la inibitória, pois na proteção preventiva não é importante a análise da natureza do ilícito, a situação jurídica violada ou o dano ocorrido.

Há necessidade, para tanto, de se perceber que os institutos do dano e do ilícito são distintos.

A partir do ensaio de Renato Sconamiglio8 a doutrina italiana tem estabe-lecido a separação entre os conceitos de ilícito e de dano. O ilícito é o compreen-dido como a conduta, violadora, contrária ao direito, e o dano é o fato histórico e material que pode decorrer, eventualmente, do ilícito. Expõe o autor italiano sobre a diferença entre a lesão do direito e o dano:

Qui è suffi ciente osservare che nella prima ipotesi ricorre soltanto, ma in ogni caso, la trasgressione ad um coman-do giuridico: a cui l’ordinameto non può non reagire ap-prestando adeguati rimedi; e questo a prescindere dalla circostanza che l’interesse privato, dalla norma in astratto tutelato, sia stato in effetti colpito o si sia verifi cato un vero e proprio danno. Al contrario, nell’altra ipotesi, si verifi ca essenzialmente la lesione di um bene del soggetto, quale diviene possibile in concreto determinare com riferimen-to al soggetto medesimo o addirittura al suo patrimonio; e soltanto qualora tale bene sai giuridicamente protetto (danno ingiusto) si pone il problema del risarcimenti, la cui soluzione – da parte dello stesso legislatore – è ovviamente condizionata, peraltro, allésigenza di eliminare, per una via o per l’altra, il danno.

Com esta distinção em mente, é possível entender o sistema de tutela inibitória.

7 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela, p. 61.8 SCONAMIGLIO, Renato. Il risarcimento del danno in forma specifi ca. Rivista trimes-trale di diritto e procedura civile, 1957, p. 206.

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3. O SENTIDO PREVENTIVO DA TUTELA INIBITÓRIA

A ação inibitória é instrumento efetivo para o amparo dos direitos não patrimoniais, aí inseridos os denominados “novos direitos”, transindividuais de terceira geração, como o direito ao meio ambiente saudável.

Não se pode pensar que tais direitos possam ser satisfeitos com um tipo de tutela, como a ressarcitória, que age somente depois de ocorrida a lesão. Isto signifi caria não somente a aceitação do “pratico o ilícito, causo dano, mas pago”, como também expropriaria os próprios direitos, transformando-os em direito à pecúnia.

Explica Luiz Guilherme Marinoni, em obra orientadora sobre o assunto da técnica inibitória que

O direito à saúde, o direito ao meio ambiente saudável, os direitos do consumidor, não podem ser efetivamente tutela-dos através da tutela ressarcitória. A natureza não patrimo-nial dos “novos direitos” é incompatível com o simples res-sarcimento. A tutela ressarcitória diz respeito ao patrimônio; não ao direito ao bem. Assim, a tutela ressarcitória, mostra-se incapaz de assegurar os “novos direitos”(grifo nosso).9

Conforme o mesmo autor10, o comportamento ilícito, referente aos “no-vos direitos”, se caracteriza geralmente como continuidade da ação ou como repetição. Exemplifi ca com os casos de poluição ambiental, de venda de produ-tos danosos à coletividade, e de difusão de notícias lesivas à personalidade, e ressalta que a proteção destes direitos certamente fi ca na dependência de um tipo de amparo legal que imponha meios coercitivos a fi m de convencer o ob-rigado a não fazer ou a cumprir uma obrigação de fazer. Neste caso, a tutela ini-bitória garantiria a atuação deste interesse específi co em lugar do ressarcimento do dano via indenização.

Esta tutela de prevenção é chamada na Itália de tutela inibitória. E a mel-hor defi nição de tutela inibitória está na disposição do art. 156 da lei italiana nº 633/1941sobre o direito do autor:

Chi ha ragione di temere la violazione di un diritto (…) oppure intende impedire la continuazione o la ripetizione di una violazione già avvenuta, può agire in giudizio per

9 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela. P. 69.10 Idem, ibidem, p. 70.

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ottere che il suo diritto sai accertato e sai interdetta la vio-lazione.

Portanto, o sentido preventivo da tutela inibitória serve para impossibili-tar que o ilícito, que é ato violador ao direito, se repita, ou mesmo que venha a ser praticado, se ainda não se aconteceu.11

Com efeito, a tutela inibitória surge para amparar a necessidade de pre-venção do ilícito enquanto que a tutela ressarcitória se dirige somente contra o dano ressarcível. Esta última é tutela de um direito pecuniário equivalente ao valor do dano sofrido e que, além de pressupor este dano, expressa a responsabi-lidade fundada na culpa ou no dolo.

A inibitória representa tutela que não se associa aos efeitos, sejam ou não danosos, do ilícito.

É proposto um conceito de ilícito que seja independente do de fato danoso. Para que o ilícito esteja confi gurado, não se discute a sua consequência, danosa ou não, pois basta o ato contrário, violador do direito. Há ilícito quando há atividade contrária ao direito. Assim, pode haver ilícito sem que tenha ocorrido dano.

O objetivo da tutela inibitória não é o de reparar um direito já transgre-dido, como é o da tutela ressarcitória. Sua fi nalidade é a de impedir o prolon-gamento ou a reiteração do ilícito, supondo um ilícito já praticado, e portanto tendo incontestável caráter preventivo.

A tutela inibitória possui natureza preventiva porque é orientada para o futuro, e específi ca porque destinada à efetividade do exercício integral do di-reito.

Como a ação inibitória destina-se ao perigo da continuação ou repetição de ato contrário ao direito, atacando o ato ilícito, não pode ter o dano entre os seus pressupostos. Para a confi guração do ilícito basta a prática de um ato

11 Segundo Cristina Rapisarda, “l’esperibilità della tutela inibitoria dipende, normal-mente, dall’esistenza di um comportamento illecito che si concreti in una attività a carat-tere continuativo, ovvero in una pluralità di atti suscettibili di ripetizione. Il collegamen-to della tutela inibitori ad un illecito in parte già commesso non infl uisce in alcun modo sulla natura preventiva del rimedio, dato che la tutela esplica la sua effi cacia soltanto nei confronti del possibile illecito futuro. La tutela stessa prescinde, infatti, dagli effetti dell’atto o dell’attività illecita, siano essi dannosi o meno poichè si dirige unicamente contro il pericolo di ripetizione o di continuazione dell’illecito”. Op. cit., p. 90.

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contrário ao direito, mesmo que não seguido de um evento danoso. É sufi ciente a transgressão a um comando jurídico, pouco importando se tal transgressão levará a um dano ou não.

Portanto, o autor, requerendo a inibitória, deve provar o perigo da prática, da continuação ou da repetição do ilícito, e também que o ato será ilícito se praticado, ou que é ilícito, no caso de inibitória da continuação ou de repetição.

O juiz, por sua vez, na ação inibitória, não deverá analisar a existência de dano ao bem jurídico protegido, e nem tampouco exigir elementos como culpa ou dolo na prática ilícita.

Entretanto, se o ilícito ocorreu e não há mais possibilidade de que venha a ser novamente praticado, a única tutela viável é a reintegratória. Somente quan-do o ilícito ainda não foi praticado, ou pode prosseguir ou voltar a ocorrer, é que cabe a tutela inibitória

Portanto, na tutela ressarcitória visa-se o dano, e na tutela inibitória a prevenção contra a violação do direito.

Poderia ocorrer dúvida no caso em que a inibitória servisse para impe-dir a continuação do ilícito, parecendo ser na verdade tutela reintegratória12, na eliminação de situação ilícita anterior. Entretanto, a tutela inibitória não elimina o ilícito, mas atua sobre a vontade do réu para que o ilícito não continue. Ou seja, “a forma de atuação desta inibitória pressupõe que o ilícito somente será eliminado se ocorrer o adimplemento voluntário, o que signifi ca que a tutela apenas força o réu a eliminar ou cessar o ilícito”.13

Em outras palavras, em princípio, tal tutela teria por objetivo se opor à continuação ou repetição de um ilícito. Mas alguns autores admitem a ação inibitória para prevenir o ilícito de forma pura, sem que tivesse ocorrido antes.

A questão de prevenção do ilícito de forma pura é bem mais difícil de ser tratada, em função das provas. O problema está em provar que o ilícito pro-vavelmente será praticado, matéria mais complexa do que nos casos em que o ilícito já foi praticado e se receia somente o seu prosseguimento ou reiteração.

Neste estudo dirigido à tutela inibitória coletiva, se dará enfoque ao pri-meiro caso, em que a ação visa impedir a prática prolongada ou repetida do ilícito.

4. FUNDAMENTO LEGAL DA TUTELA INIBITÓRIA E A SUA ANTECIPAÇÃO

A tutela de direitos em comento, não obstante expressa no ordenamento jurídico italiano, encontra respaldo nos diplomas legais brasileiros. Recorre-se ao princípio geral de prevenção, básico em qualquer ordenamento jurídico que

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se empenhe em garantir os direitos fundamentais.Do mesmo modo, esta garantia, contextualizada em um Estado social,

onde a Constituição Federal de 1988 é marcada por direitos sociais que devem ser tutelados de modo difuso e coletivo, é possível a realização da tutela ini-bitória como instituto sócio-jurídico.

A Constituição brasileira afi rma, em seu art. 5º, XXXV, que “a lei não ex-cluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. A expressão “ameaça a direito” é claramente preventiva e denota a intenção de se garantir a tutela inibitória. Isto acontece haja vista que o direito de acesso à justiça tem como pressuposto o direito à adequada tutela jurisdicional e este, a seu turno, o direito à proteção preventiva, inserido em um contexto valorativos do Estado social.

O Código de Defesa do Consumidor reafi rma o princípio constitucional do direito à adequada tutela jurisdicional por meio do artigo 83, que dispõe que para a tutela dos direitos difusos e coletivos são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela e, por meio do artigo 84, que garante o direito à tutela difusa ou coletiva, e dispõe que o juiz poderá impor multa diária, independente do pedido do autor, na sentença ou na tutela antecipatória. Quer dizer, há garantia legal do direito à tutela inibitória difusa ou coletiva e a possibilidade do juiz em impor multa na sentença inibitória ou na tutela inibitória antecipatória.

Deste modo, o artigo 461 do Código de Processo Civil14 representa a fonte da tutela inibitória, justamente porque o juiz, de acordo com esta norma, pode, na tutela antecipatória ou na sentença, impor a multa para pressionar o obrigado ao cumprimento do dever e ainda se valer do amplo poder a ele conferido para efetivar a tutela específi ca ou para a obtenção do resultado prático equivalente. Este artigo do Código de Processo Civil abarca a prevenção de um ilícito origi-nado da inobservância de um dever.

Tal dispositivo constitui uma tutela específi ca dando ao juiz possibilidade, ao conceder a tutela inibitória (fi nal ou antecipatória) de impor multa diária ao réu, sem que o autor tivesse pedido.

Quanto à tutela antecipatória inibitória, o art. 461, em seu parágrafo ter-ceiro, é claro ao permitir a antecipação da tutela das obrigações de fazer e não fazer, ao que, por decorrência, signifi ca a possibilidade da antecipação da tutela inibitória.

Quais os pressupostos para a concessão da tutela antecipatória inibitória?

12 Visa-se a necessidade de supressão do ilícito.13 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela inibitória, nota no. 1081 da Tese

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Para a obtenção desta antecipatória, o demandante da inibitória deverá demonstrar, mesmo que de modo sumário, o perigo da prática, do prossegui-mento ou da reiteração do ilícito. Deve ser explicitada a probabilidade do perigo do ilícito e que, se a tutela for concedida ao fi nal, provavelmente ele já terá sido praticado. O justifi cado receio não é de dano, mas de ilícito.

Ainda deve o demandante demonstrar, sumariamente, que o ato caso seja executado, ou que já foi executado no caso de prolongamento ou repetição, é dotado de ilicitude.

Assim, o art. 461, fundamenta no diploma processual civil a tutela ini-bitória, porque além de permitir ao juiz dar ordens e conceder tutela ante-cipatória, autoriza que o juiz, de ofício, estabeleça multa diária objetivando o cumprimento da obrigação.

Em uma de suas obras dirigidas à antecipação da tutela, Luiz Guilherme Marinoni15 explica que:

Ninguém prefere o ilícito à prevenção; negar o direito à prevenção do ilícito é admitir que o cidadão é obrigado a suportar o ilícito, tendo apenas direito à indenização, ou, ainda, é dizer que todos têm direito a praticar um ilícito desde que se proponham a reparar o dano. Na verdade, não conferir à tutela inibitória expressão atípica é o mesmo que criar um sistema de tutelas em que impera a “monetização”

14 Dispõe o artigo que “Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específi ca da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. § 1º - a obrigação somente se converterá em perdas e danos se o autor o requerer ou se impossível a tutela específi ca ou a obtenção do resultado prático cor-respondente. § 2º - a indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (artigo 287). § 3º - sendo relevante o fundamento da demanda e havendo justifi cado receio de inefi cácia do provimento fi nal, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justifi cação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modifi cada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. § 4º - o juiz poder’, na hipó-tese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente do pedido do autor, se for sufi ciente ou compatível com a obrigação, fi xando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito. § 5º - para a efetivação da tutela específi ca ou para a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a re-querimento, determinar as medidas necessárias, tais como a busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividade nociva, além de requisição de força policial”.15 MARINONI, Luiz Guilherme. A antecipação da tutela, p. 75.

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dos direitos, o que é absolutamente incompatível com os direitos com conteúdo não patrimonial” (grifo nosso).

Ou seja, negar a tutela inibitória para os direitos que não podem ser adequadamente tutelados através da técnica ressarcitória porque não são direitos patrimoniais, é negar atuação concreta ao contido na norma constitu-cional.

Quanto ao artigo 287 do Código de Processo Civil, mostra-se insufi ciente para propiciar efetiva tutela preventiva, pois reserva a incidência da multa “para o caso de descumprimento da sentença”, desconsiderando que o ilícito pode ser praticado antes de fi ndado o processo de conhecimento. Acabaria sendo con-ferido ao réu lícito exercício do ilícito, nesta situação.

Outras vantagens do artigo 461 do Código de Processo Civil sobre o art. 287 do CPC, é que possibilita a efetivação da tutela sem o processo de execução, e dá ao juiz os poderes necessários para que a tutela possa ser realmente prestada (com a obtenção do resultado prático equivalente ao do adimplemento).

5. O MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

Historicamente, as transformações na sociedade, decorrentes do desen-volvimento do sistema capitalista, signifi caram industrialização e urbanização, fazendo surgir massas operárias e reivindicações a direitos sociais. Além dos direitos civis e políticos, os indivíduos passaram a demandar outros interesses, como os relativos às condições de trabalho dignas.

Na indústria moderna os perigos do trabalhador aumentaram a tal ponto que a tutela aos interesses sociais adquiriu plano de matéria pública. Assim, a Constituição da República, em seu artigo 7º, inciso XXII, já impõe a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segu-rança”. No inciso XXVII, “proteção em face da automação, na forma da lei”, e no inciso XXVIII “seguro contra acidentes de trabalho, sem excluir a indeniza-ção a que está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa”.

Ou seja, o trabalhador, ao colocar à disposição sua força de trabalho, tem direito não somente ao pagamento de salários mas também direito a um local sa-lubre de labor, com adequadas condições ambientais, propícias ao desempenho de suas atividades e livre de riscos acidentários. Portanto, a qualidade do ambi-ente de trabalho fi ca na dependência da adoção e efetividade de regras garanti-doras da segurança e da saúde do trabalhador, preservando sua disposição física e mental e evitando acidentes.

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Entretanto, o conceito de meio ambiente do trabalho não possui literali-dade expressa na lei, sendo compreendido somente a partir da defi nição de “meio ambiente”, em termos gerais16.

Assim, foi a lei federal nº 6938, de 31.08.1981, dispondo sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e sobre o Sistema Nacional do Meio Ambiente, que defi niu “meio ambiente”.

Nestes termos, especifi cando tal conceito para a área ora abordada, a do direito trabalhista, pode-se dizer que é o “local em que se desenrola boa parte da vida do trabalhador, cuja qualidade de vida está, por isso, em íntima dependên-cia da qualidade daquele ambiente”17. Quer dizer, embora seja “artifi cial”, é dig-no de tratamento especial, haja vista o artigo 200, VIII da Constituição Federal que estabelece que uma das atribuições do sistema único de saúde consiste em colaborar na proteção do ambiente, nele implícito o do trabalho.

Diversas convenções internacionais trataram do tema, sendo destaque a de nº 155 de 1981, que dispõe sobre “o desenvolvimento pelos países de uma política nacional de saúde, segurança e meio ambiente do trabalho, incluindo local de tra-balho, ferramentas, máquinas, agentes químicos, biológicos e físicos; operações e processos, as relações entre trabalhador e meio físico; ocupa-se da necessidade de fi scalização através de um sistema apropriado; trata da determinação dos graus de risco existente nas atividades e processos e operações proibidos, limitados ou sujeitos a controle, bem como realização de pesquisas de acidentes de trabalho e publicação de informações; dispõe sobre exigências às empresas voltadas para a adoção de técnicas de garantia de segurança nos locais de trabalho e controle dos agentes químicos”.18

Assim, o meio ambiente do trabalho é um complexo de proteção a direitos invioláveis da saúde e da integridade física dos trabalhadores que o frequentam. O meio ambiente do trabalho seguro representa direito social dos trabalhadores, direito não patrimonial garantido na Constituição Federal de 1988.

6. O PAPEL DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO E SUA LEGITIMI-DADE PARA AGIR

A Constituição Federal, incentivando a prevenção de acidentes, ampliou as atribuições do Ministério Público do Trabalho e “novas ações” passaram a ser ajuizadas, obrigando o empregador no cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, assegurando um meio de trabalho sadio.

Foi o texto constitucional de 1988 que, ao prever, em seu artigo 114, IX, a competência da Justiça do Trabalho para processamento e julgamento de

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“outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”, que possibilitou ações civis públicas e ações inibitórias trabalhistas.

Na própria Constituição, em seu artigo 129, III, foi atribuído ao Minis-tério Público a legitimidade para o ajuizamento de ações coletivas, civis públi-cas, ensejando a possibilidade da utilização deste instrumento processual pelo Ministério Público do Trabalho, e, por via de consequência, a competência da Justiça Obreira para o seu julgamento, na medida em que a esfera de atuação do órgão ministerial circunscreve-se à jurisdição trabalhista, por força do disposto no caput do artigo 83 da Lei Complementar nº 75/93.

É, aliás, expresso o inciso III do artigo 83 deste mesmo diploma legal quanto à competência da Justiça Laboral para o julgamento de ações coletivas propostas pelo órgão ministerial do trabalho. O artigo supracitado prevê que faz parte do conjunto das atribuições do Ministério Público do Trabalho “promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhis-tas”.

No exame do artigo 6º, XIV da Lei Complementar nº 75/93 chega-se à mesma conclusão, pois esta disciplina os instrumentos de atuação do Ministério Público da União, em todos os seus ramos, e aponta a possibilidade de pro-moção de outras ações necessárias ao exercício de suas funções institucionais, em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, especialmente quanto ao meio ambiente (alínea “g”).

Ocorrendo portanto, lesões a direitos e interesses coletivos dos emprega-dos de empresa, e de trabalhadores que venham postular um emprego junto a mesma, por meio de ações ou omissões violadoras de normas jurídicas trabal-histas, exsurge, de forma clara, a legitimidade do Ministério Público do Trabalho para a providência de ações coletivas.

E isso em função do enfoque de que o direito individual deve ser comple-mentado ao direito social, esse entendido como àquele ligado a grupos e regu-lando interesses de coletividades. Ou seja, conceitos como “interesses coleti-vos” vêm à tona, tendo como fundamento a superação da idéia de lides travadas individualmente.

16 Otavio Brito Lopes, seguindo na esteira de Édis Milaré, entende que a disciplina jurídica do meio ambiente comporta aspecto natural, cultural e artifi cial e que “o meio ambiente do trabalho, que acolhe o indivíduo durante grande parte de sua vida, encontra-se inserido na espécie meio am-biente artifi cial, e suscita, como salientado, especiais cuidados”. In Segurança e saúde no trabalho: situação atual das negociações entre empregadores e trabalhadores e as perspectivas de mudanças nos sitemas de relações de trabalho, p. 150.17 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional, p. 04.

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Assim, ao Ministério Público compete, perante à Justiça Laboral, o ajuizamento de ações para defesa de direitos coletivos desrespeitados, eis que condições salubres, seguras e higiênicas são interesses indisponíveis dos trabalha-dores, individualmente e coletivamente, conforme artigo 83, III, da Lei Comple-mentar nº 75/93. O fundamento legal também está de acordo com o artigo 1º, IV, da Lei 7347/85, que dispõe que a ação civil pública objetiva resguardar, entre outros, qualquer interesse difuso ou coletivo lesado.

7. CABIMENTO DA AÇÃO CIVIL PÚBLICA?

O texto legal, pioneiro na expressão “ação civil pública”, foi o artigo 3º, III, da Lei Complementar federal 40/81. Contudo o instituto somente veio a ter sua utilização consagrada depois da Lei 7347/85, que tratou da defesa do meio ambiente, do consumidor e de valores culturais, diploma este que passou a ser conhecido como Lei da Ação Civil Pública.

A importância de tal lei insere-se no reconhecimento pelo ordenamento jurídico da necessidade de tutelar interesses transindividuais, diante da com-plexidade social e do aumento das suas demandas no contexto das transforma-ções históricas e políticas. Seria o reconhecimento da proteção aos direitos de terceira geração (BOBBIO, 1992; SARLET, 2003).

Entretanto, na tutela dos direitos não patrimoniais, como visto anterior-mente, é mais importante a prevenção do ilícito do que o ressarcimento do dano. E questiona-se o cabimento da ação civil pública quando, em situações de pre-venção dos atos ilícitos, é mais apropriada a ação inibitória para proteção de tais direitos transindividuais e não passíveis de monetarização.

Conforme o artigo 1º, IV da Lei 7347/85, a ação civil pública objetiva resguardar, entre outros, qualquer interesse difuso ou coletivo lesado. Ou seja, em essência, a ação civil pública é instrumento que visa, por meio da apuração de responsabilidade por danos causados a interesses diversos, à reparação dos bens lesados.

Em assim sendo, via ação civil pública os interesses difusos ou coletivos são objetos de proteção somente quando houver “lesão” ao direito, confundin-do-se o momento em que ocorre com o ilícito da prática.

Sobressai-se deste modo, a discussão ocorrida anteriormente a respeito da diferença existente entre dano e ilícito e a importância do estudo da tutela

18 Idem, ibidem, p. 05.

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inibitória como sistema preventivo do ilícito e não do dano.Assim, a necessidade de tutela preventiva, manifestada pelos novos direi-

tos, requer, além de adequados instrumentos legais, também a revisão das técni-cas de ressarcimento fundadas na confusão que ocorre entre ilícito civil e dano.

A ação civil pública mostra-se, deste modo, insufi ciente para a tutela inte-gral dos direitos transindividuais, que necessitam de proteção especial, indepen-dentemente da ocorrência do dano.

8. A UTILIZAÇÃO DA AÇÃO INIBITÓRIA COLETIVA

Já tendo sido criado o instituto do mandado de segurança preventivo con-tra atos de autoridade, seria necessário ser erigido um instrumento equivalente contra atos ou omissões de particulares.19

Na prática, ocorre a situação exposta a seguir.O Ministério Público do Trabalho, recebendo autos de investigação de

acidente fatal de empregado de empresa, ocorrido por negligência na prevenção de risco de choque elétrico, tem como providência a instauração de “procedi-mento de apuração” a fi m de verifi car a ocorrência de prática generalizada da empresa no descumprimento da legislação trabalhista. A partir de então, passa a acompanhar a atuação da empresa, realizando audiência em fase de inquérito, e solicitando à Superintendência Regional do Trabalho fi scalizações específi cas nos locais de trabalho, para conhecer de irregularidades quanto a este meio am-biente, protegido por normas de segurança próprias.

Por meio desta conjuntura de informações, o Ministério Público é capaz de apreender se a empresa é contumaz no descumprimento da legislação sobre segurança e medicina do trabalho, deixando de garantir a seus empregados di-reitos sociais mínimos constitucionalmente assegurados e, ante a negligência desta, de propor a ação inibitória.

Perante a falta de uma disciplina própria da tutela inibitória é que, com o nome de “ação civil pública com pedido de tutela antecipada”, fundada nos artigos 461 do Código de Processo Civil e artigo 83 do Código de Defesa do Consumidor, era intentada ação de, na verdade, inibição do ilícito, já que o dano ocorrera em um caso mas que, poderia vir a ocorrer outras vezes e havia neces-

19 José Carlos Barbosa Moreira, citado por Luiz Guilherme Marinoni, in Tutela ini-bitória. Tese apresentada ao Concurso de Professor Titular de Direito Processual Civil da Universidade Federal do Paraná, p. 72.

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sidade de refrear a continuação do ilícito praticado.A prova utilizada confi gura-se na existência de continuidade nas irregu-

laridades, como uso incompleto de equipamentos de proteção individual pelos empregados, a falta de proteção de correiras dos guinchos, falta de cancelas no acesso ao elevador de materiais, etc.

Neste caso, cabível é a tutela inibitória positiva, porque o ilícito praticado é a omissão. A obrigação é a da empresa em assegurar aos seus empregados as normas assecuratórias no meio ambiente de trabalho.

Com isto, percebe-se que o ilícito e a possibilidade de lesão atingem in-teresses difusos e coletivos, inclusive de forma cumulativa.

Um parâmetro, no âmbito trabalhista, que diferencie esses dois tipos de interesses está no fato dos integrantes do universo atingido pela lesão, ou sua possibilidade, terem, ou não, um vínculo de emprego. Na hipótese positiva, se estará frente a interesses coletivos; caso contrário, de interesses difusos de uma massa formada por pessoas que ligam-se, somente, por uma situação fática.

Ou seja, quando a ilicitude atinge não só os atuais empregados da empre-sa mas também todos os trabalhadores que possam vir a postular um emprego junto a mesma, se estará perante a proteção de interesses difusos e coletivos, cumulados.

E se antes a ação civil pública, fruto de novas concepções instrumentais do processo, era o mais efi ciente meio na proteção coletiva do direito à saúde do trabalhador, solucionando globalmente o que cada reclamação trabalhista procura reparar individualmente, a ação inibitória coletiva está mais à frente, tutelando não o dano, mas o ilícito, sua repetição ou sua continuidade.

Há casos porém, em que o ilícito e o dano ocorrem juntamente, e é mais difícil separar tais conceitos. Prevenir o ilícito signifi ca, ao mesmo tempo, pre-venção do dano.

É o que ocorre quando, por exemplo, o empregador obriga o empregado

20 As normas jurídicas trabalhistas, protetivas do trabalhador são revestidas do princípio da indisponibilidade, pois pressupõe que o empregado não aceitaria livremente trabalhar em condições menos desfavoráveis do que as que a lei lhe garante. Por isso uma possível disposição de direito signifi caria a sombra de coação. Desta forma, pondera Ives Gandra M. Filho em seu artigo A defesa dos interesses coletivos pelo Ministério Público doTra-balho, que “a indisponibilidade dos direitos trabalhistas constitui a garantia de que o em-pregador não forçará o empregado a aceitar condições de trabalho prejudiciais, alegado concordância deste, na medida em que se considerem indisponíveis os direitos trabal-histas mínimos”., p. 1298. No caso, caberia ação inibitória para impedir a continuidade da prática ilícita do empregador em coagir os empregados a renunciarem a seus direitos.

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a assinar em branco documentos trabalhistas20, como condição de permanência no emprego. Neste caso, a tutela inibitória agiria contra a prática violadora do direito, contra a sua continuidade e, concomitantemente contra o próprio dano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Atualmente, o direito coletivo, transindividual como é considerado, ad-quiriu nova importância no contexto de tutelas. Para a proteção dos direitos caminha-se para a tendência de deixar para trás a resolução de confl itos tipo “Caio versus Tício”, dotados de individualismo, para se enfrentar questões que atrelam vários indivíduos por meio de elos fáticos, observando uma melhora na prestação jurisdicional e no acesso à justiça.

O direito trabalhista, em sua gênese, é coletivista, tendo surgido como direito de segunda dimensão. Entretanto, historicamente, havendo resgate desta origem, hoje é visto num contexto mais amplo, inserido num meio cuja preocu-pação é com tutelas sob formas transindividuais. Tal disciplina legal adotou, sob certo sentido, cunho de ordem pública em muitas de suas questões.

Deste modo, sendo dever do Ministério Público do Trabalho a proteção dos direitos coletivos e difusos no âmbito do ambiente laboral, observa-se que a ação civil pública, principal instrumento para este fi m, já não atende a todas as necessidades para tutelar integralmente tais direitos.

A tutela inibitória surge, portanto, aqui, como um avanço processual de proteção aos interesses difusos e coletivos que possuem os trabalhadores no meio ambiente laboral, que tem como uma de suas preocupações a questão da segurança e higiene.

Neste contexto, a ação inibitória é um efetivo meio para amparar direitos não patrimoniais, como o direito a um ambiente sadio de trabalho, denominado “novo direito”, ou transindividual, porque sua fi nalidade não é o de reparar um direito já transgredido, mas sim a de impedir o prolongamento ou a reiteração do ilícito praticado. Tal tutela é preventiva porque dirige-se ao futuro e, específi ca porque destina-se à garantir o exercício integral do direito.

Desta maneira, vislumbra-se a não necessidade de aguardar que ocorra dano, lesão ao direito, para que seja providenciada tutela devida de proteção.

Não é preciso que se espere a ocorrência, por exemplo, de morte em aci-dente de trabalho, para que se ataque o ilícito da falta de segurança no trabalho, promovido pela empresa responsável. Por meio do artigo 461 do Código de Pro-cesso Civil, tutela-se perfeitamente este tipo de direito material, que é o de co-letivamente, promover ao trabalhador um ambiente seguro e salubre de labuta.

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Artigo recebido em: 26/04/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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EFETIVAÇÃO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLE-TIVOS: UMA BATALHA DAS COMUNIDADES

TRADICIONAIS DA REGIÃO SUL

Gladstone Leonel da Silva Júnior*Roberto Martins de Souza**

Sumário: Introdução; 1. Os reconhecimentos jurídicos históricos, a partir da orga-nização e da luta; 2. Aparatos normativos garantidores e a utilização do positivismo de combate; 2.1. Normas gerais utilizadas pelas comunidades tradicionais; 2.2. Normas específi cas; 2.2.1. Quilombolas; 2.2.2. Faxinalenses; 2.2.3. Indígenas; 2.2.4. Pescadores Artesanais; 2.2.5. Cipozeiras; 2.2.6. Ilhéus; 3. O choque entre as concepções liberais do direito e os reconhecimento de direitos étnicos e coletivos; Conclusão; Referência Bibliográfi ca

Resumo: Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibili-dade social é algo histórico para os povos e comunidades tradicionais frente à socie-dade. O reconhecimento de direitos por estes grupos decorrentes da articulação e organização dos mesmos, além de inédito, mediante realização de diversas ações co-letivas, tem gerado novos paradigmas no campo jurídico. Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, tem, historicamente, resultado na implemen-tação de políticas públicas nas quais se encontram fundados os processos como o êxodo rural, a favelização nos centros ur-banos, o aumento da pobreza e a degrada-ção ambiental dos territórios tradicionais. Existem normas positivadas tanto no or-denamento jurídico nacional, quanto no internacional, as quais são utilizadas para

Abstract: In the south region, especially in Paraná and Santa Catarina, the social invis-ibility is something historical to the people and traditional communities in front the society. The recognition of laws by these groups appear for an articulation and orga-nization of the same, by means of realiza-tion of some collective actions, originating new paradigms in the juridical knowledge. This “invisibility” of people and traditional communities have, historically, produced the implementation of public politics like agrarian exodus, the poor neighbourhoods of urban center, the increase of poverty and the nature degradation of traditional terri-tories. There are write laws in the national laws and international, that can be utilized to guarantee fundamental rights of people and traditional communities. One of the way to utilize these laws is called “positiv-

* Advogado, Mestrando em Direito Agrário - UNESP. Endereço eletrônico: [email protected]** Sociólogo, Doutorando em Sociologia UFPR, Asssessor da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais. Endereço eletrônico: [email protected]

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INTRODUÇÃO

Identidades coletivas diferenciadas emergem no Brasil, revelando nas últimas décadas a existência de diversos grupos étnicos, organizados em movi-mentos sociais, que buscam garantir e reivindicar direitos, que sempre lhes foram negados pelo Estado. Desta forma, compreendem-se sem exaustão os motivos para o qual um país tão diverso em sua composição étnica, racial e cul-tural, a persistência de confl itos oriundos de distintas visões de mundo e modos de vida, que desencadeiam desde o período colonial, lutas pela afi rmação das identidades coletivas, territorialidades especifi cas e reconhecimento dos direitos étnicos.

O processo de reconhecimento dessa imensa diversidade sociocultural do Brasil é acompanhado de uma extraordinária diversidade fundiária e ambiental ainda que pouco conhecida no país e, mais ainda, pouco reconhecida ofi cial-mente pelo Estado brasileiro. As denominadas comunidades ou povos tradicio-nais encontram-se ainda, em sua grande maioria, na invisibilidade, silenciadas por pressões econômicas, fundiárias, processos discriminatórios e excluídas da formulação e proposição das políticas públicas. Todavia, buscam compor, cada um deles, com suas formas próprias de inter-relacionamento, grupos e comuni-

garantir direitos fundamentais dos povos e comunidades tradicionais. Uma das for-mas de utilização destas normas é conhe-cida como positivismo de combate, sendo travada uma luta para prevalência de direi-tos dos grupos subalternos. Questiona-se ainda a construção do Direito sob uma óti-ca individual e formalista, a qual difi culta o reconhecimento de direitos coletivos e plurais. Hoje, apesar do liberalismo ser o paradigma da ciência jurídica, o Direito está se inserido nas práticas sociais, produ-to proveniente da dialética de uma práxis cotidiana, conforme estimulado pelas co-munidades tradicionais.

Palavras-chave: comunidades tradiciona-is, direitos étnicos, direitos coletivos, posi-tivismo de combate e pluralismo jurídico.

ism of battle”, when is engaged a fi ght to prevail the rights of subaltern groups. It is wrangled the development of right with an individual and formalist optical, that diffi -cult the recognize of collective and plural rights. Today, in spite of liberalism be the paradigm of juridical science, the right is insert in the social practice, product coming from dialectical of a praxis produced day by day, alike stimulated by the traditional com-munities.

Key words: traditional communities, ethnic laws, collectives laws, positivism of battle, juridical pluralism.

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dades tradicionais autodefi nidas coletivamente, juridicamente reconhecidas e au-to-reguladas internamente pela gestão tradicional dos recursos naturais.

Destarte atualmente serem estimadas em cerca de 4,5 milhões de pessoas pertencentes a distintos povos e comunidades tradicionais no Brasil, ocupando uma área equivalente a 25% do território nacional, tais grupos na condição de estigmatizados socialmente, são sistematicamente vítimas de diversas formas de violência oriundas face confl itos contra seus antagonistas, bem como das ações universalistas inscritas nas políticas de governo que diluem o fator étnico nas diferenças econômicas, tratando tais grupos como segmentos populacionais “carentes”, sujeitos à atenção das políticas assistenciais, desfocando das deman-das prementes relacionadas ao reconhecimento jurídico-formal, o acesso ao ter-ritório e aos recursos naturais essenciais à sua existência.

A mobilização social em torno dos direitos coletivos é observada, es-pecialmente a partir de 1988, quando do início do processo de emergência e visibilidade na sociedade brasileira, de grupos até então ocultados social e juri-dicamente, os quais passam a se organizar mediante realização diversas ações coletivas visando seu reconhecimento. Grupos estes, que se desenvolvem sem a necessidade de reproduzirem a lógica de uma sociedade eminentemente con-sumista, mas, prezando, de fato, pela sustentabilidade em seus diferentes aspec-tos atrelada, principalmente ao fator étnico. A visibilidade social e reconheci-mento de direitos destes grupos decorrentes da articulação dos mesmos, além de inédito, têm gerado novos paradigmas no campo jurídico. Paradigmas, até então, desconhecidos, normas pouco reconhecidas ou ignoradas por tratarem de “povos originários”.

Na região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a invisibilidade social é uma das principais características dos povos e comunidades tradiciona-is. Até pouco tempo atrás, a inexistência de estatísticas e censos ofi ciais fez com que estes grupos elaborassem seus levantamentos preliminares numa tentativa de afi rmarem sua existência coletiva em meio a tensões, disputas e pressões que ameaçam seus diretos étnicos e coletivos garantidos pela Constituição Federal de 1988 e, diversos outros dispositivos jurídicos infraconstitucionais1.

Destas demandas surge, na região Sul, a Rede Puxirão dos Povos e Comu-nidades Tradicionais, fruto do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrido no fi nal do mês de Maio de 2008, em Guarapuava, interior do Paraná. Neste espaço de articulação, distintos grupos étnicos, a saber: xetá, guaranis, kaingangs, faxinalenses, quilombolas, pescadores artesanais, caiçaras,

1 Trecho do Relatório do 1º Encontro Regional dos Povos e Comunidades Tradicionais realizado em Guarapuava, nos dias 27 e 28 de Maio de 2008.

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cipozeiras e ilhéus; tais segmentos se articulam na esfera regional fornecendo condições políticas capazes de mudar as posições socialmente construídas neste campo de poder. Ademais, a conjuntura política nacional corrobora com essas mobilizações étnicas, abrindo possibilidades de vazão para as lutas sociais con-tingenciadas há pelo menos 3 séculos, somente no Sul do País.

1. OS RECONHECIMENTOS JURÍDICOS HISTÓRICOS, A PARTIR DA ORGANIZAÇÃO E DA LUTA

Na análise da formação e da luta destas comunidades tradicionais do Sul do Brasil, cabe compreender exemplos de julgados nacionais que repercutirão em todos estes grupos sociais espalhados pelo país. O julgamento do caso da reserva indígena Raposa Serra do Sol é um dos marcos de efervescência e luta por direitos das diversas comunidades tradicionais espalhadas Brasil a fora. Em-bora, os índios sejam os povos que possuem o maior amparo jurídico no tocante a diversidade normativa, não tem seus direitos, inúmeras vezes, efetivados.

Este julgado, além de chamar a atenção das violações históricas prati-cadas contra os índios por pessoas que utilizavam daquelas terras como mero instrumento mercadológico, mobilizou a Suprema Corte do país a encontrar res-postas jurídicas que tem a possibilidade de garantir a permanência e sobrevivên-cia destes povos de maneira digna nas terras que habitam originalmente.

Cabe citar alguns trechos do Voto do Ministro Relator deste caso, Dr. Carlos Ayres Britto, apresentando um posicionamento paradigmático do STF (Supremo Tribunal Federal) quanto à relevância de direito dos índios e conse-quentemente de comunidades, que lutam pelo reconhecimento de seus espaços tradicionalmente ocupados.

Em determinada parte do voto, o eminente Ministro trata do histórico de discriminação sofrida, omissão do Estado Brasileiro e deturpação de visão da sociedade que analisa esta situação, de acordo com o apresentado superfi cial-mente pelo senso comum. Vejamos.

Pelo que, entregues a si mesmo, Estados e Municípios, tanto pela sua classe dirigente quanto pelos seus extratos econômicos, tendem a discriminar bem mais do que pro-teger as populações indígenas. Populações cada vez mais empurradas para zonas ermas ou regiões inóspitas do país,

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num processo de espremedura topográfi ca somente redis-cutido com a devida seriedade jurídica, a partir, justamente da Assembléia Constituinte de 1987/1988.2

Quanto à forma de atuação do Estado, o voto possui algo primoroso na análise e papel devido quanto ao relacionamento com as comunidades tradicio-nais, expondo o seguinte;

Seja como for, é do meu pensar que a vontade objetiva da Constituição obriga a efetiva presença de todas as entidades federadas em terras indígenas desde que em sintonia com o modelo de ocupação por ela concebido3.

Aqui, observa-se o lastro de autonomia e respeito garantido as comu-nidades tradicionais, que historicamente optaram por desenvolverem peculiar meio de vida que deve ser, sobretudo, assegurado pelas entidades que compõe o Estado. Por mais que, ao fi m do julgamento, o Estado tenha garantido o acesso a estas áreas.

Tanto os indígenas, exemplifi cadas pelo julgamento do caso Raposa Serra do Sol, quanto às outras comunidades tradicionais existentes em nosso país bus-cam, cada vez mais, garantirem seus direitos, visto que as ameaças aos seus es-paços ocupados estão sendo concretizadas pelo avanço do modelo econômico de concentração fundiária aliado ao desrespeito ambiental em confl ito e oposição às modalidades de uso comum dos recursos naturais desenvolvidas secular-mente pelas comunidades tradicionais como praticas inerentes à sua cultura.

À semelhança dos povos indígenas na Amazônia, os confl itos sociais em voga no Sul do Brasil pouco se diferenciam, a não ser pela sua ocultação das violentas formas de repressão aos movimentos sociais empreendidas por seus antagonistas em regiões de ocupação agrária antiga, como no caso da Guerra do Contestado. De outra maneira, o processo de produção da “invisibilidade so-cial” dos povos e comunidades tradicionais no Sul, não teve um percurso muito distinto do restante do País.

2 Numeração referente às folhas do relatório e do voto do Ministro Carlos Ayres Britto no caso emblemático do julgamento da ação que envolve a demarcação indígena de Ra-posa Serra do Sol. Relatório publicado em Brasília, dia 27 de Agosto de 2008. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388, Brasília, DF, 27 de agosto de 2008, p. 32. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Popular nº 3388, Brasília, DF, 27 de agosto de 2008, p. 33.

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A ocupação territorial ancorada nas atividades econômicas e centradas sequencialmente nos ciclos da mineração, do gado, erva-mate, madeira, inicia-das ainda no século XVII, conduziram ao domínio das terras, quem dispusesse de capital econômico e social, capaz de inclusão no circuito mercadológico vi-gente. Sistematicamente, os povos e comunidades tradicionais, foram expulsos, eliminados ou imobilizados em sua força de trabalho como componentes funda-mentais do processo de expropriação e exploração econômica, sem a qual não haveria extração produtiva e geração de riqueza.

Atualmente, o “silenciamento” destes grupos tem sido provocado por empreendimentos econômicos de grande impacto socioambiental gerando a ex-propriação ou usurpação de seus territórios, como os impactos causados por usinas hidrelétricas e mineradoras; grilagens de terras em áreas de apossamento; aquecimento do mercado de terras motivado pelo agronegócio ou mesmo pela invasão de empreendimentos de lazer (chácaras), assim como pela implantação de Unidades de Conservação de uso integral, provocando gradualmente a dis-persão e esvaziamento desses grupos sociais a partir obstrução de suas condições de reprodução física e social.

Afi nal, um breve cenário possibilita antever que as pressões sobre os po-vos e comunidades tradicionais ainda são intensas, sobretudo, desde a década de 1960, a partir de 3 origens. A primeira é o avanço da “agricultura moderna”. Notadamente reconhecido como “Celeiro agrícola do País”, o Paraná, desde a década de 1970, sustenta sucessivamente a evolução nos recordes de produção e exportação de commodities agrícolas e fl orestais, tais como, soja, gado, pinus, eucaliptos e recentemente, cana-de-açúcar. Somente a soja em 15 anos (1990 a 2005) teve ampliada sua área plantada em 70,8%. Já o complexo madeira, perde neste período apenas para o complexo soja. Sendo considerado o maior produtor nacional de papel fi bra longa, o Paraná ocupa 2,8% do seu território ou 560 mil hectares, com a meta de ocupar até 5% da área do Estado até 2010.

A farta presença de recursos hídricos observadas na geografi a do Estado do Paraná, implicaram numa segunda tensão direta contra as comunidades tradi-cionais, qual seja, a implantação de projetos de usinas geradoras de energia, produzida por meio de hidrelétricas, sobretudo, a partir da construção de Itaipu, na década de 1980. Nos anos seqüentes, o Paraná ampliou sua produção energé-tica, impulsionado pela construção de diversas barragens no Rio Iguaçu e, mais recentemente, com os investimentos da COPEL – Companhia Paranaense de Energia, dirigidos à construção de PCHs nos rios Piquiri e Ivaí, além do já avan-çado processo de pré-implantação (vencidas as barreiras jurídicas e ambientais) da Usina Hidrelétrica de Jataizinho no baixo rio Tibagi.

Soma-se a esses empreendimentos impulsionados pelas políticas publi-

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cas desenvolvimentistas, as políticas conservacionistas, de cunho ambientalista, referidas a implantação de unidades de conservação de uso integral, a partir de 1980, tal como o Parque Nacional de Superagui, criado em 1989, com 21.000 ha, e o Parque Nacional de Ilha Grande criado em 1997, com 78.875 ha, entre outros.

Este período, marcado por grandes investimentos do Estado, associado à capitais privados, produziu mais que o aclamado progresso econômico pro-palado pelas agências públicas. De um modo violento, gerou um desastre social e ambiental sem precedentes na história da região. Demarcando a instalação de um modelo de desenvolvimento extremamente impactante aos recursos naturais, e violador dos direitos humanos, resultando na expropriação de bens, terras e di-reitos de grupos sociais culturalmente diferenciados.

Tal “invisibilidade” dos povos e comunidades tradicionais, reiteradas pela ideologia dos “vazios demográfi cos” e associada ao desenvolvimento baseado nas premissas do universalismo, tem, historicamente, resultado na implementa-ção de políticas públicas nas quais encontram-se fundados os processos como o êxodo rural, a favelização nos centros urbanos, o aumento da pobreza e a de-gradação ambiental dos territórios tradicionais. Isto também se traduz no atual baixo investimento de esforços na promoção do desenvolvimento sustentável dessas comunidades.

Tal afi rmação faz consonância com a tônica dos relatos e manifestações de mais de 120 representantes desses grupos étnicos participantes no 1º En-contro Regional de Povos e Comunidades Tradicionais. Invariavelmente, as ex-posições relatam confl itos relativos ao acesso à terra, ou, no caso, ao território. Visto que estas comunidades sabem que assegurar o acesso ao território signifi -ca manter vivos na memória e nas práticas sociais os sistemas de classifi cação e de manejo dos recursos, os sistemas produtivos, os modos tradicionais de dis-tribuição e consumo da produção. Isso além de sua dimensão simbólica: no ter-ritório estão impressos os acontecimentos ou fatos históricos que mantêm viva a memória do grupo; nele também estão enterrados os ancestrais e encontram-se os sítios sagrados.

Em que pese favorável que Xetás, Guaranis, kaingangs, Quilombolas, Faxinalenses, Caiçaras, Pescadores Artesanais, Cipozeiros e Ilhéus, tenham con-quistado de forma gradual reconhecimento jurídico-formal, por meio de suas mo-bilizações, ainda impõe-se na esfera do Estado, limites burocráticos, jurídicos e políticos para sua efetivação, além do que é notório que suas principais deman-das – especialmente a territorial – encontra-se “engessada”. Em outros casos, nos deparamos com grupos sociais que ainda nem sequer possuem instrumen-

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tos disponíveis para o reconhecimento jurídico-formal pelo Estado, como é o caso dos ilhéus, cipozeiros, caiçaras, pescadores artesanais, portanto não dispõe de programas governamentais específi cos dirigidos a garantia de seus direitos diferenciados e fundamentais, registrando-se inúmeros confl itos territoriais com empreendimentos governamentais, sejam parques de conservação ambiental ou obras públicas.

O que signifi ca dizer, que no âmbito da região Sul, especialmente no Paraná e Santa Catarina, a Constituição Federal de 1988, marco histórico do pro-cesso de redemocratização política do Brasil, sendo entendida como elemento primordial na solidifi cação dos direitos individuais e coletivos, ainda não opera abertamente com o reconhecimento de formas diferenciadas de organização so-cial e cultural de distintos segmentos da sociedade brasileira. Esse é o caso, por exemplo, dos direitos diferenciados reconhecidos aos povos indígenas e comu-nidades quilombolas, mas não assimilados pela burocracia do Estado (Governos estaduais e municipais, em especial) ao permanecer operando com adaptações às políticas universalistas, evitando instituir uma “política de identidades”, as-sentada em novas instituições. No caso de identidades étnicas e coletivas emer-gentes, como dos caiçaras, pescadores artesanais, cipozeiros e ilheiros, se quer há menção da existência desses grupos, sua localização, situações de confl ito e demandas. O que denota desconhecimento público e uso de pré-noções classifi -catórias que impelem estes grupos a categorias econômicas e situações sociais, tal como “pobres”, “assalariados temporários”, “bóias-frias”, “pequenos agri-cultores”, “agregados”, “pescadores” ou “agricultores familiares”.

Ao estabelecer prerrogativas diferenciadas para esses povos e comuni-dades, a Carta Magna opera de forma direta nos princípios fundamentais da constituição do próprio Estado Brasileiro, uma vez que se fl exibilizam os con-ceitos vigentes sobre o que é a sociedade brasileira, a forma como ela é com-posta e como ocorreu a sua formação. Em última instância, a consolidação de tais direitos revela não só o reconhecimento por parte do Estado da diversidade sociocultural existente no Brasil, mas também a necessidade de se repensar con-ceitos atinentes às noções de desenvolvimento, propriedade e uso dos recursos naturais, de forma que os mesmos passem a incluir princípios mais adequados às realidades diferenciadas desses povos e comunidades.

Buscando fomentar a produção da visibilidade social desses grupos, des-de 2003, tem sido estimulada no Paraná iniciativas que visam a identifi cação desses grupos, tal como o Mapa da presença Indígena e o Mapeamento dos Quilombolas no Paraná. Em 2005, inicia-se, em articulação com os movimentos sociais, o Projeto Nova Cartografi a Social, vinculado ao PPGSCA da Universi-dade Federal do Amazonas – UFAM com apoio do Centro Missionário de Apoio

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ao Campesinato - CEMPO e Instituto Equipe de Educadores Populares - IEEP, na produção da Auto cartografi a Social desses povos e comunidades tradicio-nais. Mais do que exercitar uma nova cartografi a, tal pesquisa tem estimulado processos organizativos associados ao auto-reconhecimento e reconhecimento publico da existência coletiva desses grupos sociais. Neste percurso de quase 3 anos, contabilizamos a identifi cação de diversos povos e comunidades tradi-cionais interessados em constituir formas organizativas capazes de reivindicar seu reconhecimento face ao Estado, bem como encaminhar suas demandas aos órgãos competentes, numa explicita tentativa de que cessem violações e amea-ças contra seus direitos. Todavia, ainda são muitos os obstáculos burocráticos, políticos, jurídicos e econômicos para que os mesmos se realizem.

A formação da Rede Puxirão dos Povos e Comunidades Tradicionais no Paraná, exemplifi ca bem toda esta movimentação, possibilitado entre outras ações a identifi cação de demandas comuns à estes grupos, como as descritas no direito aos territórios tradicionais. A despeito serem constatadas variadas for-mas de violações de direitos étnicos e coletivos, os referidos grupos apreendem a necessidade de ocuparem seu lugar de direito assegurado pela Constituição Federal, especialmente na percepção de que constituem identidade coletivas motivadas por expressões culturalmente diferenciadas. Visando operacionalizar tais demandas, sobressaem apoiadas por assessorias especifi cas inúmeros cursos e ofi cinas intituladas de Formação de Operadores de Direito, organizadas e re-alizadas nas comunidades e tem a função de promover a apropriação e domínio destes conhecimentos e instrumentos específi cos qualifi cando a ação dos su-jeitos. Esta estratégia resulta em pressão perante os poderes públicos por parte destes grupos, além da consolidação de um ordenamento jurídico desconhecido e pouco estimulado pelo Estado. Essa ação fi ca nítida no estabelecimento de uma nova relação com o Ministério Publico Estadual e Federal, que gradual-mente também se apropriam desses conhecimentos normativos posicionando-se na defesa dos grupos citados.

Cabe então, apresentar algumas iniciativas e instrumentos normativos utilizados frequentemente pelos povos e comunidades tradicionais no âmbito da Rede Puxirão e, que tem dado um suporte mínimo, tanto de forma genérica, como normas específi cas, as quais relacionamos num segundo momento por grupos específi cos.

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2. APARATOS NORMATIVOS GARANTIDORES E A UTILIZAÇÃO DO POSITIVISMO DE COMBATE

Existem normas positivadas tanto no ordenamento jurídico nacional, quanto no internacional, as quais são utilizadas para garantir direitos fundamen-tais dos povos e comunidades tradicionais. Estas normas, também, são fruto de lutas históricas travadas em vários cenários e épocas, as quais hoje representam um instrumento dentro do campo jurídico para a efetivação destes direitos que chamamos de étnicos e coletivos.

Uma das formas de utilização destas normas é conhecida como positivismo de combate. Isto signifi ca que, estas normas postas são utilizadas pelos grupos sociais de uma forma contra-hegemônica, combatendo as injustiças e desigual-dades através da própria regra positivada, ou seja, gerando um confl ito legal com o propósito de derrubar o status quo.

É exatamente a luta, dentro do aparato ofi cial do Estado (juízos, tribunais, repartições administrativas etc.), pela efetivação das normas que expressam de modo autêntico os interesses populares. Ou seja, por meio do “positivismo de combate” trava-se uma luta pelo cumprimento das leis de interesse das classes subalternizadas, as quais, na maioria das vezes, permanecem apenas no plano retórico do orde-namento jurídico – são as chamadas leis que “não pegam”. Essas leis e normas, em boa medida, integram a estrutura jurídico-positiva do Estado tão somente com o objetivo de atingir um efeito “encantatório”, proporcionando a sen-sação, desmentida pela realidade, de que os interesses da maioria estão efetivamente assegurados pelo direito4.

O professor Antônio Alberto Machado chega a sugerir a troca do termo “positivismo de combate”, para evitar que o termo se confunda com a ideologia positivista, para o de “positividade de combate”. Certo é que, as normas a serem analisadas servem para alimentar esta luta incessante por efetivação de direitos.

4 MACHADO, A. A. O Direito Alternativo. Franca, 1997. Disponível em: <http://neda.ubbihp.com.br/direitoalternativo.pdf.>. Acesso em: 04 de Março de 2006. p.3-4.

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2.1. NORMAS GERAIS UTILIZADAS PELAS COMUNIDADES TRADICIONAIS

Começamos com a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). Esta estabelece algumas normas internacionais que devem ser obedecidas em todos os países que assinaram a Convenção, inclusive o Brasil.

O conteúdo da Convenção trata das comunidades que estão estabelecidas historicamente no território, desenvolvendo suas culturas próprias, costumes e formas de vida. Reconhecendo então, as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições, formas de existência e seu desenvolvimento econômico, mantendo e fortalecendo suas identidades, culturas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde estão situadas.

Esta Convenção por ser reconhecida internacionalmente, através do acor-do estabelecido entre os países, possui uma força e importância na defesa dos di-reitos humanos em todo o planeta. Isto porque, a Organização Internacional do Trabalho é uma agência ligada as Nações Unidas (ONU). Desta forma, podemos afi rmar que a luta e o direito das comunidades tradicionais tem reconhecimento internacional.

Outro instrumento normativo necessário de explicitar-se é nossa Carta Maior. A Constituição Federal é o conjunto de normas mais importantes de um país. Ali, estão contidos os pontos principais e mais importantes para o desen-volvimento e organização do Brasil.

A partir do momento que uma destas normas preveja o direito dos diver-sos grupos formadores da nossa sociedade, fi ca demonstrada uma importân-cia maior para este assunto. A partir desta lei maior, outras poderão continuar surgindo, como ocorre nos dias de hoje. Vejamos o que dispõe o artigo 216 da Constituição Federal;

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da so-ciedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão;II - os modos de criar, fazer e viver;III - as criações científi cas, artísticas e tecnológicas;IV - as obras, objetos, documentos, edifi cações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científi co.

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Este artigo expõe que, os diferentes grupos e comunidades organizadas em nosso país possuem um direito legítimo de terem sua identidade e modo de vida preservado. Está claro, o objetivo de preservar o patrimônio cultural brasileiro, que é formado por diversas comunidades espalhadas pelo país.

Além do mais, o artigo 215, § 1º da Constituição Federal dispõe sobre a importância da manifestação cultural e, consequentemente dos hábitos e formas de vida das diversas comunidades formadoras do nosso país.

Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das mani-festações culturais.§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (grifo nosso)

Outro instrumento que deve ser levado em consideração na garantia de direitos das comunidades tradicionais de forma geral se trata do Decreto nº 6040/2007 e o Decreto nº 10884/2006.

O Decreto nº 6040/2007 reconhece a Comissão Nacional de Comunidades Tradicionais, como entidade representativa dos Povos Tradicionais Brasileiros. Contendo no Decreto, também, a importância dos Territórios Tradicionais e do Desenvolvimento Sustentável das Comunidades como elementos necessários para a ampliação de direitos.

Nele está instituído a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Hoje, fi nalmente existe uma norma que reconhece a organização e os direitos dos diversos povos formadores do nosso país, especifi cando o direito já concedido no artigo 216 da Constituição Federal.

Já o Decreto nº 10884/2006, trata de tema bem parecido com o decreto anterior. Ele altera alguns pontos da Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais. Esta Comissão poderá coordenar a elaboração e implementação de Políticas de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais.

Este Decreto apresenta ações que esta Comissão Nacional das Comu-nidades Tradicionais poderá tomar. Assim poderá ser fortalecido e garantido os direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos e culturais, com respeito e valorização à identidade dos diferentes povos, suas formas de organização e instituições.

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2.2. NORMAS ESPECÍFICAS

2.2.1. QUILOMBOLAS

As comunidades quilombolas, sinônimo histórico de resistência, estão re-conhecidas, não só pelas legislações já apresentadas, como também em aspectos específi cos e normas pontuais que asseguram alguns direitos.

Tal caso está exemplifi cado no artigo 68 do Ato das Disposições Consti-tucionais Transitórias, o qual garante as terras tradicionalmente ocupadas por estes povos.

Art. 68. Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade defi nitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.

Observa-se que a Constituição Federal de 1998 explicitou bem o direito das comunidades às suas terras, cabendo ao governo tomar as medidas ne-cessárias para emitir os títulos de propriedade.

Apesar do aparato normativo, pouco foi feito para efetivação do ato. O governo reconhecia a propriedade, mas nada fazia para que a comunidade pudesse permanecer, retomar ou seguir vivendo em suas terras.

No início do governo Lula, um grupo de trabalho foi formado com a missão de elaborar um plano para que o governo pudesse titular defi nitivamente as comunidades quilombolas.

Isto resultou na promulgação e entrada em vigor do Decreto 4.887/2003, que passou a valer em setembro de 2005. Este decreto criou um mecanismo para o reconhecimento e titulação das terras e os instrumentos jurídicos para a garantia do direito à terra das comunidades quilombolas.

Hoje, quem determina quem é quilombola, é a própria comunidade, através da “auto-atribuição”. Após a auto–atribuição, a Fundação Palmares de-verá expedir uma certidão, que é o documento ofi cial sobre o auto-reconheci-mento da comunidade.

Atualmente, os direitos territoriais quilombolas vêm sendo questionados e ameaçados com a edição de nova instrução normativa, em substituição a IN 20/2005 do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). A mudança afeta os procedimentos de identifi cação e titulação de tais territórios. A justifi cativa do governo federal para a alteração é evitar que iniciativas em curso, no Judiciário e no Congresso Nacional, suspendam ou anulem o Decreto

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nº4.887/2003 que regulamentou o processo administrativo de reconhecimento dos direitos territoriais previstos no Art. 68 do ADCT da Constituição Federal5.

Apesar dos avanços conquistados, os resultados foram pequenos. Das 2.228 comunidades quilombolas conhecidas no Brasil, apenas em 27 o governo conseguiu fi nalizar os procedimentos de titulação. Há 278 procedimentos inicia-dos pelo Incra, em todo o país.

2.2.2. FAXINALENSES

Quanto aos Povos Faxinalenses existem algumas normas que abarcam e garantem na integralidade o direito destes povos.

A lei 15.673/2007 é o exemplo vigente disto, confi rmando num patamar estadual (no Paraná) algo já colocado em normas internacionais, nacionais e também estaduais, reconhecendo plenamente os povos faxinalenses como co-munidades tradicionais, inclusive seus acordos comunitários.

Este tipo de positivação dialética, decorrente da luta dos Povos Faxina-lenses e seu Movimento Social, Articulação Puxirão dos Povos Faxinalenses, dá ensejo a um processo transformativo que pode acontecer mesmo dentro das esferas institucionais.

Várias questões devem ser ressaltadas para o entendimento das peculiari-dades destes povos e o quão relevante são estes direitos. O primeiro ponto é a descrição dos elementos peculiares das comunidades faxinalenses, salientando a forma de vida e as características próprias deste povo.

Importante salientar também, o auto-reconhecimento da identidade faxi-nalense, onde cabe ao próprio grupo social se reconhecer como tal, desde que seu modo de viver seja o característico desta comunidade tradicional, no caso a faxinalense.

Um próximo ponto é a vinculação do poder público, no reconhecimento dos faxinalenses através de certidão de auto-reconhecimento. Algo que deixa mais evidente a necessidade de se assegurar o direito destes povos.

Por fi m, o caráter de legitimidade existente nos acordos comunitários, feito entre os próprios faxinalenses, sendo reconhecidos pelo poder público esta prática da comunidade.

5 Informação encontrada as 17:30, do dia 11 de Setembro de 2008, no site http://www.isa.org.br/inst/esp/consulta_previa/sites/default/fi les/carta_cp_terras_quilombolas%20.pdf.

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Outra norma que pode ser citada é o Decreto nº 3446/97 – ARESUR (Áreas Especiais de Uso Regulamentado). Este Decreto, por ser estadual, vale para as áreas que se encontram dentro do Estado do Paraná. Ele reconhece e caracteriza claramente, a existência do modo de produção denominado “Sistema Faxinal”, buscando criar condições para a melhoria da qualidade de vida das comunidades residentes, a manutenção do seu patrimônio cultural e preservação dos recursos ambientais. Não cabendo então, nenhum outro modo de produção ou forma de ações que diferenciem do jeito de ser dos faxinalenses dentro das áreas.

Alguns faxinais ainda não foram reconhecidos por este Decreto, pois o reconhecimento se dá caso a caso, por faxinal. Nas áreas devem conter sua de-nominação, superfície, os limites geográfi cos, diretrizes para conservação ambi-ental, que deverão ser analisados pelo Secretário de Estado do Meio Ambiente, que defi nirá a área através de um ato administrativo.

Assim, as áreas poderão ser registradas no Cadastro Estadual de Unidades de Conservação – CEUC – desde que caracterizado o uso coletivo da terra para produção animal, a produção agrícola de policultura alimentar e a conservação ambiental, característica dos povos faxinalenses.

Além disso, os Municípios em que estão reconhecidas áreas de faxinais através do Decreto ARESUR, podem receber o ICMS (Imposto de Circulação de Mercadorias e Serviços) Ecológico, sendo uma fonte de renda a mais para o Município, que através de leis municipais podem reverter estas verbas para fomento do próprio Faxinal.

2.2.3. INDÍGENAS

Em 1750 a Espanha queria trocar com Portugal as terras das missões dos jesuítas, conhecida como os Sete Povos das Missões, pela colônia de Sacramento. O problema é que os Sete Povos das Missões eram habitados por milhares de ín-dios6.

Este trecho da lenda de Sepé Tiaraju ilustra bem o tratamento que histori-camente é dado aos índios no Brasil, sendo apresentados desrespeitosamente

6 Informação obtida às 16:13 do dia 15 de Setembro de 2008 no endereço eletrônico <http://www.clicklivro.com.br/content/view/8491/72/>.

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como uma questão problemática. Contudo, problemática quanto ao interesse de grupos que só viam a terra e os recursos naturais com um olhar exploratório, diferentemente da maneira sustentável e vital desenvolvida pelos índios.

Certamente os indígenas representam hoje no Brasil um dos povos orga-nizados, mais ativos e radicalizados em defesa dos seus direitos frente ao Estado. Estão em evidência por ocupações de prédios de órgãos do Estado como Funasa e Funai, e lutando permanentemente pela retomada dos seus territórios invadi-dos, como no caso já citado de Raposa Serra do Sol.

Os indígenas reivindicam direitos ancestrais, de povos literalmente originários, do que hoje constitui o território brasileiro. Segundo a descrição do Ministro Carlos Ayres Britto, “o termo originários a traduzir uma situação jurídico-subjetiva mais antiga do que qualquer outra, de maneira a preponderar sobre eventuais escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em favor de não índios.7” Como garantias, estes povos obtiveram o reconhecimento da Constituição Federal brasileira, a qual reserva um capítulo8 específi co só para tratar dos indígenas. Vejamos um dos artigos;

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização so-cial, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preserva-ção dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. (...)

Aqui estão dispostos elementos importantes, os quais reconhecem e ga-rantem direitos essenciais ao desenvolvimento do modo de vida das diferentes tribos indígenas espalhadas por todo o país.

Na Constituição do Estado do Paraná, também podem ser encontradas normas específi cas garantidoras dos direitos indígenas. Assim está disposto no

7 Trecho do voto do Ministro Carlos Ayres Brito relator no julgamento do caso Raposa Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal (STF). 8 Capítulo VII, Título VIII, da Ordem Social, Constituição da República Federativa do Brasil.

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artigo 216 da referida norma.

Art. 226. As terras, as tradições, usos e costumes dos gru-pos indígenas do Estado integram o seu patrimônio cultural e ambiental, e como tais serão protegidos.Parágrafo Único. Esta proteção estende-se ao controle das atividades econômicas que danifi quem o ecossistema ou ameacem a sobrevivência física e cultural dos indígenas.

Existem ainda, outras normas que tratam de temas específi cos dos direi-tos indígenas, como Decreto 1.775/1996 sobre demarcação de Terras indígenas; Decreto 1.141/94 dispondo sobre ações de proteção ambiental saúde e apoio “as atividades produtivas para as comunidades indígenas; diversas normas relacio-nadas à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), entre outras.

2.2.4. PESCADORES ARTESANAIS

Os pescadores artesanais, ainda possuem um reconhecimento específi co, existindo pouca incidência normativa direcionada a este tipo de comunidade tradicional.

Áreas marítimas e de águas interiores tem sido, nas últimas décadas ob-jetos de confl itos, muitas vezes violentos entre a pesca industrial, geralmente de fora da região, e a artesanal, feita pelos pescadores das comunidades litorâneas.

Recentemente, uma norma específi ca foi sancionada, a qual dispõe sobre as colônias e federações de pescadores, tratando de características mais organi-zativas. Observa-se o conteúdo limitado da lei 11.699/2008, embora demonstre um primeiro passo para o reconhecimento concreto e integral de toda e qualquer comunidade de pescadores artesanais, seja qual for suas respectivas formas de se organizarem.

Existem ainda, algumas leis municipais específi cas espalhadas pelo país, que buscam garantir e reconhecer alguns direitos aos pescadores artesanais, sen-do importante fomentar este debate nos municípios em que estas comunidades estão inseridas.

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2.2.5. CIPOZEIRAS

Os povos caracterizados como “cipozeiras”, por viverem e se identifi ca-rem quanto grupo, justamente pelo trabalho tradicionalmente desenvolvido de extração do cipó em Santa Catarina, constituem outro tipo de comunidade que busca sair da invisibilidade jurídica e social fazendo valer seus direitos históri-cos.

Estes grupos, atualmente, se concentram na região de Garuva, município de Santa Catarina. Além da extração do cipó imbé, atuam como pequenos produtores rurais. Assim, os grupos que trabalham com esta matéria-prima e desenvolvem uma forma de vida por conta da cultura desenvolvida no manejo do cipó, estão situados entre as pessoas mais desfavorecidas do município.

Hoje, eles são perseguidos e diversas vezes confundidos, equivocada-mente com extratores de palmitos. Por isso, apesar de não existirem normas específi cas, estão se organizando e lutando pelo reconhecimento da forma de vida desenvolvida por estes grupos.

2.2.6. ILHÉUS

Ainda existem os povos ilhéus, comunidades tradicionais que habitam ou habitavam o arquipélago da Ilha Grande, localizadas no alto do Rio Paraná, próximo às divisas do Paraná e Mato Grosso do Sul.

Alguns deixaram as terras por conta da construção de Itaipu, depois da Usina da Ilha Grande e fi nalmente, do Parque Nacional da Ilha Grande na região. As alternativas que se apresentam para aqueles que permanecem nos municípios ribeirinhos são poucas: o trabalho assalariado em propriedades agrícolas; os vo-lantes (bóia-fria); os pequenos comércios (biscateiros) e alguns serviços ligados ao turismo e à pesca9.

Atualmente, os ilhéus enfrentam problemas frente a órgãos como IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e IAP (Instituto Ambiental do Paraná). Existe ainda, falta de compreensão frente ao Ministério Público, sendo inclusive, estes povos pressionados a deixarem as ilhas que ocu-pam.

9 GODOY, A. M. G. Populações Tradicionais no Parque Nacional da Ilha Grande. In-formação obtida as 14:50 do dia 16 de Setembro de 2008 no endereço eletrônico http://www.dge.uem.br/geonotas/vol5-4/amalia.shtml.

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Esta é uma luta, que apesar de antiga, começa a se articular com outras e busca possibilidades de garantir a retomada dos direitos coletivos deste tipo de comunidade.

3. O CHOQUE ENTRE AS CONCEPÇÕES LIBERAIS DO DIREITO E OS RE-CONHECIMENTO DE DIREITOS ÉTNICOS E COLETIVOS

Começar uma movimentação na sociedade civil reivindicando direitos atribuídos a uma coletividade, e não meramente particulares e localizados, apre-senta um panorama real de percepção e concretização de garantias constitucio-nais devidas, e consideração de fato das comunidades tradicionais em nosso país. Muitas destas comunidades brasileiras se formaram à margem do processo socioeconômico hegemônico e sobreviveram pelos tempos mantendo muitas tradições e práticas sociais antigas. Daí, a importância em valorizar a diversidade social, econômica e cultural produzida por eles. Ademais, aliado as próprias ne-cessidades humanas fundamentais, novos tipos de confl itos de massa surgem e o direito deve ter uma resposta adequada e garantidora a estas novas questões.

Uma grande difi culdade na efetivação destes direitos passa pela visão jurídica formalista, dogmática e liberal-individualista dentro da história do di-reito, além da concepção monista que eleva a fi gura do Estado como a única grande fonte normativa, excetuando em algumas oportunidades em que con-cedem também aos costumes e outros, certamente em menor relevância, este status de fonte do direito.

Como primeiro exemplo, podemos destacar uma categoria operacional do direito, que é o conceito de relação jurídica apreendido em nossas Universidades. Este geralmente ocorre de um sujeito a outro prevendo demandas que vinculam de forma individual, em sua essência, a busca por um bem da vida. O bem é suscetível de apropriação, quase sempre pautada na linguagem possessiva do meu, seu, posso, tenho, entre outras, tipicamente individualista. O sujeito que se reproduz no conceito de relação jurídica tem sido essencialmente privatístico.

É lançado o dilema de um conceito de relação jurídica próprio, que pre-veja e dê respostas adequadas às demandas coletivas. Algo que não ousaremos adentrar neste momento.

Logo, observa-se a derrocada de um modelo jurídico estatal, que através de seus Códigos e de seu próprio Poder Judiciário, limita-se a regulamentar confl itos de cunho individualistas e patrimoniais, afastando-se das demandas sociais coletivas. Estes problemas tornam-se visíveis, visto que nos encontramos “formados numa cultura jurídica incapaz de entender a sociedade e seus confl itos e há má vontade

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em discutir a democratização efetiva deste ramo do Estado,10”no caso específi co, o Judiciário.

Outra questão emergencial que difi culta a efetivação, em muitas opor-tunidades, destes direitos postos é a visão estreita utilizada para as fontes norma-tivas, enfatizando a fi gura do Estado, infl uenciado por entes privados, tendo em vista a própria organização da sociedade dentro da lógica capitalista. O monis-mo estatal “se explica ideologicamente, eis que o Estado moderno é construção da classe dominante no mundo ocidental, organizado burocraticamente para servir seus próprios interesses de proprietários.11” Dessa forma, os grupos subalternos absorvem aquilo como o único direito, submetendo-se a todo e qualquer tipo legal posto.

Por mais, que a luta das comunidades tradicionais consiga avançar pontu-almente, com normas garantidoras advindas dentro da lógica formalista do Es-tado, cabe ainda lutar para que estas normas, além de emanar deste ente, brotem, de fato, destes povos e organizações populares.

Tendo presente a perspectiva de um pluralismo comuni-tário-participativo, há de se chamar a atenção para o fato de que a insufi ciência das fontes clássicas do monismo estatal determina o alargamento dos centros geradores de produção jurídica mediante outros meios normativos não-convencionais, sendo privilegiadas neste processo, as práti-cas coletivas engendradas pelos movimentos sociais.12

O que se busca salientar com estas indagações é que, este princípio mo-nista de alcance ontológico, o qual possui sua gênese na fi gura do Estado, é tão só uma das faces do Direito. A outra face deve ser considerada e “seu projeto político é o da conquista dos espaços normativos pela organização social dos oprimidos, primeiro passo no sentido da libertação.13”

O Direito autêntico e global não pode ser isolado em cam-pos de concentração legislativa, pois indica os princípios

10 FARIA, J. E.; LOPES, J. R. L. Pela democratização do Judiciário. In: FARIA, José Eduardo. Direito e Justiça. A função social do Judiciário. São Paulo: Ática, 1989. p.163. 11 COELHO, Luiz Fernando. Teoria Crítica do Direito. 2ªed. Porto Alegre: Sergio Anto-nio Fabris Editor, 1991, p. 263.12 WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico:. Fundamentos de uma nova cultura no Di-reito. 2ªed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997, p.137. 13 COELHO, L. F. Op. cit., p. 291.

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e normas libertadores, considerando a lei um simples aci-dente no processo jurídico, e que pode, ou não, transportar as melhores conquistas14.

O Direito deve estar inserido nas práticas sociais, produto proveniente da dialética de uma práxis do dia-a-dia e não encastelado nos gabinetes insti-tucionalizados de funcionamento do burocratismo do Estado, tão gerador de injustiças. Infelizmente, após tantos anos de estudo os juristas conhecem melhor os corredores dos Fóruns e Tribunais, do que os caminhos e as trilhas das comu-nidades que contribuem para a construção do meio cultural, há séculos em nosso país.

Podemos estar vivendo momentos pré-paradigmáticos. Os paradigmas ju-rídicos e políticos estão em crise, sem ainda terem nascido novos. O liberalismo é paradigma da ciência jurídica. Os novos direitos exigem nova teoria.

CONCLUSÃO

Tendo por base o estudo realizado, alguns direcionamentos podem ser visualizados diante da luta das comunidades tradicionais, sobretudo do Sul do Brasil, e os delineamentos jurídicos apresentados.

Nota-se uma inquietação e organização crescente entre os povos e co-munidades tradicionais, na ânsia de serem reconhecidos, de fato, como sujeitos coletivos de direitos. Contudo, nem sempre o Direito dá as respostas esperadas por estas comunidades, mas tão só, reproduz seus feitos de maneira disforme a uma situação que nada se equipara a uma relação entre indivíduos e lógico-formalista.

Sendo assim, além da batalha por reconhecimento de direitos que germinam da própria luta histórica, advinda destas comunidades, desconstruindo a mística da teoria monista estatal, em diversas situações, o entrave ocorrerá entre as normas postas, vigentes no ordenamento. Roberto Lyra Filho oferece o fundamento para resolução desta questão e efetivação destes direitos humanos;

o padrão de legitimidade, na concorrência das normas, está no vetor histórico, donde se extrai a resultante mais avança-da duma correlação de forças em que se torna reconhecível

14 LYRA FILHO, R. O que é Direito. 12ªed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1991, p.10.

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a vanguarda, marca-se o posicionamento progressista e se atua para garantir suas reivindicações, tratando de espremer o sumo e o extrato do processo libertador a que se dá o nome de direitos humanos15.

Nessa monta, os direitos humanos são postos, de fato, como garantias decorrentes e possibilitadas diante de uma luta histórica, em que novos sujeitos continuamente são forjados, enquanto perdurar a desigualdade social e de direi-tos no país.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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WOLKMER, A. C. Pluralismo Jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no Direito. 2ªed. São Paulo: Ed. Alfa Omega, 1997.

Artigo recebido em: 29/05/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU DO ARA-GUAIA-TOCANTINS: ESTRATÉGIAS LOCAIS DE

REPRODUÇÃO SOCIAL E CULTURAL

Nirson Medeiros da Silva Neto*

Sumário: Introdução; 1. Sofrimento e mobilização: a vida e o trabalho das quebradeiras de coco babaçu e sua organização em movimento social; 2. Quebradeiras de coco face às “novas estratégias empresariais”; Considerações Finais; Referências.

RESUMO: O artigo que segue apresenta os resultados de uma investigação empíri-ca junto às quebradeiras de coco babaçu da região do Araguaia-Tocantins. O texto considera a existência da vida econômica, embora muito peculiar, dos grupos tradi-cionais, assim como a possibilidade de o contanto com o sistema de mundo capi-talista reafi rmar os pontos de vistas tradi-cionais e, por conseguinte, produzir desen-volvimento da cultura local. Veremos que as trabalhadoras pesquisadas, através do Movimento Interestadual das Quebradei-ras de Coco Babaçu, não somente produ-zem objetivando a comercialização como inclusive têm buscado intervir no mercado a fi m de garantir condições mais competi-tivas aos produtos manufaturados tradicio-nalmente por suas famílias de pequenos produtores rurais. Isto, todavia, não elim-ina a possibilidade de relações simbolica-mente violentas das quebradeiras com a economia de mercado, também sobremodo comuns, que, ao invés de reafi rmar, des-caracterizam o modo de viver e trabalhar tradicional, tal como o fazem as chamadas

ABSTRACT: This article presents the results of an empirical inquiry about breaking coconut babassu ladies from Araguaia-Tocantins region, that objecti-fi ed to understand the strategies, practi-cal and representations of related agricul-tural workers in regards to the protection of their traditional knowledge. The text consider the existence of the economic life, though so peculiar, of the traditional groups, and the possibility of the contact with the capitalist world system to reaffi rm traditional points-of-view and, therefore, to produce the local culture development. The interviewed workers, through the In-terstate Movement of the Breaking Coco-nut Babassu Ladies, do not produce objec-tifying the commercialization as also they have look to interact in the market in order to guarantee more competitive conditions to the products manufactured tradition-ally for their families of small agricultural producers. This, however, does not elimi-nate the possibility of symbolically violent relations of the breaking coconut babassu ladies with the market economy, which is

* Doutorando em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Pará. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará. Bolsista da CAPES.

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INTRODUÇÃO

As quebradeiras de coco babaçu encontram-se entre aquelas populações cujas lutas e mobilizações têm contribuído para a construção contemporânea da noção de “tradicional”, ao se defi nirem enquanto uma “comunidade tradicional”, ajustando-se aos termos da Convenção sobre Diversidade Biológica que obti-veram clara expressão na conceituação do artigo 7°, III, da MP n. 2.186-16/01: “comunidade local: grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades de quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicio-nalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas”. O processo de identifi cação destas mulheres enquanto população tradicional, a um só tempo social e político, é concomitante à construção de uma identidade coletiva a partir do I Encontro Interestadual

“novas estratégias empresariais” que hoje realizam uma “modernização conserva-dora e predatória” da Amazônia. Por es-tas e outras razões que serão expostas, as quebradeiras buscam a reprodução de seus elementos sociais e culturais por intermé-dio de uma vasta pauta de reivindicações, gestadas no âmbito de um movimento so-cial, associadas à garantia das condições de produção e reprodução de seu modo de vida e trabalho e de sua cultura, que vão desde uma melhor inserção de seus produtos no mercado até a valorização da mulher no campo e o reconhecimento de uma forma de juridicidade, por elas de-senvolvida e praticada, que lhes garante o livre acesso e uso comum dos babaçuais, independentemente se localizados em pro-priedades privadas ou terras públicas, ou seja, a denominada “lei” do babaçu livre ou do coco liberto.

PALAVRAS-CHAVE: Quebradeiras de Coco Babaçu; Araguaia-Tocantins; Movi-mento Social; Populações Tradicionais.

also very common, that, instead of reaf-fi rming, they deprive of characteristics the way of traditional living and working, as the called “new enterprise strategies” do that today carry through a “conservative modernization” of the Amazon. For these and other reasons that will be displayed, the breaking coconut babassu ladies look for the reproduction of their social and cultural elements through a vast guideline of claims associate to the guarantee of the production conditions and reproduction of their products in the market until the woman’s valuation in the fi eld and the ac-knowledgment of a legality from, for them developed and practiced, which guaran-tee the free access and use of the babassu palms, independently if they are located in private properties or public lands, that is, the “law” called free babassu or free co-conut.

KEYWORDS: Breaking Coconut Ba-bassu Ladies; Araguaia-Tocantins; Social Movement; Traditional Populations.

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das Quebradeiras de Coco Babaçu, realizado entre os dias 24 e 26 de setembro de 1991, onde reside a gênese do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), reunindo no âmbito desta identidade, objetivada em movimento social, um conjunto de mulheres que realizavam variadas ativi-dades (parteiras, artesãs, professoras, costureiras, doceiras, boleiras, etc.) entre as quais se destacava o trabalho comum a todas de coleta e quebra do coco ba-baçu (ALMEIDA, 1995).

A coleta e quebra do coco babaçu – realizada tradicionalmente mediante o uso de um jacá (cesto produzido com palha de palmeira de babaçu, destinado à cata dos frutos), um machado e um macete (pedaço de madeira especialmente talhado para golpear os cocos sobre a lâmina do machado) – é uma prática ex-trativista e de benefi ciamento destinada tanto ao consumo na esfera familiar como à comercialização, no mais das vezes em pequena escala, e que funciona localmente como uma forma de complementação de outras práticas laborais de-senvolvidas preferencialmente por homens, tais como: a agricultura ou roça, se-gundo a linguagem local; o trabalho com a capina e/ou preparo de pasto, chama-da pelas trabalhadoras rurais pesquisadas de trabalhar na juquira; as atividades como vaqueiro nas fazendas próximas aos povoados, eminentemente masculina e por isso destinada geralmente aos maridos e fi lhos das quebradeiras; e, em alguns casos, a pecuária, seja de gado bovino, seja de caprino ou mesmo suíno, no âmbito doméstico. Além disso, trabalhar no coco, expressão que as mulheres estudadas costumam usar para designar sua forma de trabalho, é uma atividade laboral capaz de gerar alguma renda, ainda que bastante reduzida, que propicia a aquisição de certos bens de consumo não disponibilizados pela produção nativa e que, todavia, são imprescindíveis à economia e subsistência familiares.

O processo organizativo das quebradeiras de coco babaçu, conforme veremos abaixo, é orientado não só ao planejamento de sua integração na produção, mas igualmente à demanda por melhores condições de vida, por um mais amplo acesso à terra em áreas onde os grandes latifúndios têm avançado, por melhorias do óleo de babaçu para enfrentar as baixas dos preços nos merca-dos local, nacional e internacional, pela proteção legal das palmeiras de babaçu e, até mesmo, pelo enfrentamento de alguns tabus quanto a questões de gênero e sexualidade (SIMONIAN, 2001). Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006b) explica ainda que o movimento das quebradeiras de coco encontra-se entre aqueles que apresentam uma consciência ambiental aguçada, posicionando-se contra a devastação e o desmatamento e realizando assim um processo de politiza-ção da natureza. Além desta sensibilidade especial para as questões ambientais, estes movimentos apresentam por característica o estabelecimento de intensas lutas por processos de territorialização pautados em representações e práticas de

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uso comum da terra que, segundo Almeida (2006c, pp. 23-4):

[...] designam situações nas quais o controle dos recursos básicos não é exercido livre e individualmente por um de-terminado grupo doméstico de pequenos produtores diretos ou por um de seus membros. Tal controle se dá através de normas específi cas, combinando uso comum de recursos e apropriação privada de bens, que são acatadas, de ma-neira consensual, nos meandros das relações sociais es-tabelecidas entre vários grupos familiares, que compõem uma unidade social. Tanto podem expressar acesso es-tável à terra, como ocorre em áreas de colonização antiga, quanto evidenciam formas relativamente transitórias car-acterísticas das regiões de ocupação recente. Tanto podem se voltar prioritariamente para a agricultura, quanto para o extrativismo, a pesca ou para o pastoreio realizados de maneira autônoma, sob forma de cooperação simples e com base no trabalho familiar. As práticas de ajuda mútua, in-cidindo sobre os recursos naturais renováveis, revelam um conhecimento aprofundado e peculiar dos ecossistemas de referência. A atualização destas normas ocorre, assim, em territórios próprios, cujas delimitações são socialmente re-conhecidas, inclusive pelos circundantes. A territorialidade funciona como fator de identifi cação, defesa e força, mes-mo em se tratando de apropriações temporárias dos recur-sos naturais, por grupos sociais classifi cados muitas vezes como “nômades” e “itinerantes”.

As ações políticas destas populações tradicionais, nas palavras de Edna Castro e Rosa Acevedo (1998), centram-se em reivindicações de permanência na terra, visto que o território é-lhes condição de existência, de sobrevivência física, e fator imprescindível, somado a outros (por exemplo, etnicidade e gênero), para a construção de sua identidade: remanescentes de quilombos, quebradei-ras de coco babaçu, ribeirinhos, indígenas, etc. A concepção de territorialidade destas populações, porém, “só pode ser percebida no interior das relações que estruturam a organização dessas comunidades” por não estar “subordinada por-tanto à lógica da propriedade privada que preside o direito brasileiro, por ser de natureza distinta”, mantendo, “na concepção e na prática, terras comuns, pois institucionalizam um sistema de regras que alimentam o seu modo de produção” (CASTRO & ACEVEDO, 1998, p. 158).

No âmbito de tais lutas pela afi rmação de práticas e representações de uso comum da terra, o movimento das quebradeiras de coco apresenta um elemento

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muito peculiar, que é a estratégia de enfrentamento da noção jurídica de proprie-dade privada por intermédio da sustentação de uma concepção, inscrita nos usos e representações sociais das quebradeiras e reconhecida pelos habitantes locais da circunvizinhança (inclusive por alguns fazendeiros afetados, que estão entre seus principais adversários políticos, acompanhados pelas empresas de produção de fer-ro-gusa e de celulose, assim como dos chamados catadores de coco e carvoeiros), de acesso livre às terras privadas – no mais das vezes, fazendas voltadas para a produção de monoculturas agrícolas ou para a pecuária – onde há incidência de babaçuais e utilização comum dos frutos das palmeiras. Este fato também aproxima as quebradeiras de coco babaçu de outros grupos sociais que têm posto em causa as políticas públicas que “continuam sendo pensadas de forma ‘universal’, levando à constituição do ‘reino de um único direito’, o que mais tem servido para ‘apagar’ as diferenças existentes do que para garantir o direito às diferenças” (SHIRAI-SHI NETO, 2006, p. 13). Em outras palavras, as quebradeiras possuem uma con-siderável afi nidade com aqueles agentes coletivos que, pelo seu próprio modo de viver e processo histórico, têm demonstrado e buscado reconhecimento para o fenômeno do pluralismo jurídico, isto é, a coexistência em um mesmo espaço geopolítico de duas ou mais ordens jurídicas não raramente contraditórias entre si (SANTOS, 2005b).

A forma de vida das quebradeiras de coco, seu processo de mobilização e as estratégias que desenvolvem para garantir a reprodução material e simbólica de seus elementos culturais e modo de organização social e trabalho, é veraz-mente interessante para se refl etir quanto à proteção das formas de vida tradicio-nais, especialmente porque trata-se de uma população que tem contribuído para a ampliação dos cânones do que seja “tradicional” e cuja forma de ser tradicional está intimamente relacionada com a construção social e política de uma identi-dade coletiva, ou seja, um processo de (re)tradicionalização ou (re)invenção de tradições, nos termos de Eric Hobsbawn (2006), assim como oferece elementos para questionar a fecundidade ou não da relação entre o sistema capitalista e o sistema de mundo das populações tradicionais. A experiência vivenciada pelas quebradeiras é ainda um caso exemplar de estratégias localmente desenvolvidas por grupos sociais nativos, relativamente bem sucedidas, a fi m de preservar suas tradições diante dos dilemas locais que enfrentam cotidianamente, questionando cânones do direito, como a idéia de monismo jurídico e a rigidez da noção de propriedade privada.

As linhas que seguem resultam de uma incursão empírica junto às quebra-deiras de coco babaçu do Araguaia-Tocantins, ou região tocantina, que ocorreu entre os dias 30 de julho e 19 de agosto de 2007. Neste período, foram realiza-das observações diretas e entrevistas semi-estruturadas – algumas individuais,

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outras em grupos – com quebradeiras de coco e agricultores nos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais e sedes regionais do MIQCB, localizados nas principais cidades da região tocantina, assim como na Reserva Extrativista do Ciriaco (município de Cidelândia) e nos povoados de Petrolina (Imperatriz) – Estado do Maranhão –, Sete Barracas (São Miguel), Piquizeiro (Axixá), Juverlândia (Sítio Novo) – Estado do Tocantins –, Santa Rita (Brejo Grande), Vila Metade (São Domingos do Araguaia) e outros dois localizados nos municípios de São João do Araguaia e Palestina – Estado do Pará. Todas as entrevistas ocorridas nos povoados deram-se nas casas de lideranças comunitárias locais, a maioria engajada no MIQCB, e foram antecedidas ou sucedidas por observações nas proximidades destas residências que objetivaram visualizar in locus o modo de vida e o ofício das trabalhadoras pesquisadas. Além destas entrevistas, houve colóquios com representantes do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambi-ente e dos Recursos Naturais Renováveis) e do CENTRU (Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural), em Imperatriz (MA).

1. SOFRIMENTO E MOBILIZAÇÃO: A VIDA E O TRABALHO DAS QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU E SUA ORGANIZAÇÃO EM MOVI-MENTO SOCIAL

“O bom das quebradeiras, o lado bom, é a mobilização”.

Querubina Neta, do Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)1.

Vimos na introdução deste artigo que as quebradeiras de coco babaçu constituem um conjunto de mulheres identifi cadas por uma forma de trabalho comum (coleta e quebra de coco babaçu e atividades correlatas de benefi cia-mento do fruto) e cuja identidade é objetivada em movimento social, sendo inte-grantes de famílias de trabalhadores rurais nativos do Maranhão ou migrantes do Nordeste que vivenciaram um processo histórico de ocupação da zona ecológica do babaçu e que, no dizer de Jair do Amaral Filho (1990), desdobram-se em três categorias de pequenos produtores: 1) pequenos produtores com propriedade de terra, ou pequenos produtores-proprietários; 2) pequenos produtores “autôno-mos”, ou posseiros, ocupantes de terras devolutas; e 3) pequenos produtores in-seridos em grandes propriedades, ou pequenos arrendatários e foreiros. Dentro da terceira categoria deveriam ainda ser incluídos aqueles que têm livre acesso

1Entrevista realizada no dia 31.07.2007.

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aos babaçuais e, no entanto, não pagam nem renda nem foro, embora Ama-ral Filho não os mencione. Por este motivo, são as considerações de Almeida (1995, p. 39) mais precisas na classifi cação das quebradeiras conforme os meios de produção que estas detêm:

Há “quebradeiras sem terra”, ou seja, sem acesso direto à terra para moradia, cultivo e extração, residindo nas chama-das pontas de rua e na beira das rodovias com atividades acessórias de assalariamento eventual (empregadas do-mésticas e de prestação de serviços de lavadeira, doceiras, confeiteiras). Há também trabalhadoras extrativistas com acesso garantido. Localizam-se em terras desapropriadas, adquiridas e decretadas (Reserva extrativista) por órgãos governamentais ou com posses consolidadas. Há ainda quebradeiras em terras de herança tituladas ou não, com ou sem [documentação] formal de partilha; bem como as que se localizam em terras de terceiros, pagando aforamento ou ocupando-as centenariamente com ou sem consentimento de terceiros (Caso “terras dos índios” de Viana).

Antes do processo de organização das quebradeiras não era raro ditas trabalhadoras rurais serem representadas através de imagens folclóricas ou pic-tóricas que as confundiam com a própria natureza, quer dizer, com a paisagem dos cocais, o exotismo da fl oresta, as matas onde havia incidência de babaçu, afi rma Almeida (1995). A estruturação da identidade coletiva foi um fator deci-sivo para desfazer esta “imobilidade iconográfi ca”, inserindo as trabalhadoras, de modo organizado, “nas estruturas do campo do poder e nos circuitos do mer-cado”, desnaturalizando-as e dando-lhes uma nova condição. O universo das quebradeiras passa então a ser política e economicamente (re)construído, não mais se confundindo, “necessariamente, com as áreas de ocorrência de baba-çuais”. A elaboração de uma identidade coletiva, destarte, confere “signifi cado político a uma categoria historicamente de uso cotidiano” (ALMEIDA, 1995, p. 19), re-signifi cando, por seguimento, não somente a vida das quebradeiras, mas igualmente suas ações sociais especialmente nos mundos da política e da economia, embora também, e de forma bastante acentuada, no âmbito doméstico e de seus pares, os demais trabalhadores rurais. Concomitantemente, e no sentido diametralmente oposto, a organização das quebradeiras em movimento social autônomo politiza a natureza, elas separando-se dos babaçuais e construindo-se como sujeitos sociais, pois a defesa e conservação dos recursos naturais são, no dizer de Almeida (2006b), atos políticos que estabelecem novas formas de solidariedade.

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Esta re-signifi cação da vida das quebradeiras de coco e de suas relações com os demais agentes sociais, sem embargo, não descaracteriza – ao contrário, até mesmo reforça – certos aspectos da condição original do modo de viver de tais mulheres trabalhadoras. Na zona ecológica do babaçu, desde há muito, a ligação do fruto com as práticas agrícolas é sobremaneira notável, estando inti-mamente relacionada com a divisão do trabalho familiar ao longo do calendário agrícola. Geralmente entre os meses de agosto a novembro, a mão-de-obra mas-culina está ocupada no preparo da terra, realizando limpeza, queima e capina. E este é exatamente o período em que os cocos de babaçu alcançam o auge de sua maturação, sendo então abundantemente encontrados nos pés das palmeiras – as quebradeiras costumam coletar tão-somente os frutos maduros caídos, ao invés de derrubar os cachos verdes, prática esta (a derrubada dos cachos) que repre-sentam como predatória, visto que a única utilidade que o coco imaturo apre-senta é a feitura de carvão.

O trabalho feminino e infantil na preparação da terra, durante tal período, faz-se prescindível, sendo, no entanto, essencial na coleta e quebra dos cocos, de sorte a extrair as amêndoas oleaginosas e vendê-las in natura ou benefi ciá-las, obtendo assim um complemento de renda. As atividades de quebra e principal-mente de coleta do coco, em alguns núcleos familiares, apresentam também a participação de homens nesta época do ano, especialmente naqueles casos em que o babaçu é a única fonte de renda em tal período2. A feitura de carvão e a colheita da palha não raro são igualmente práticas partilhadas entre homens e mulheres. Já no período de fi nal de dezembro a fevereiro, quando intensifi cam-se as chuvas, um maior número de membros da família, incluindo mulheres e crianças, é comumente alocada para as atividades de plantio e capina, transfor-

2 De forma um tanto bem-humorada, algumas quebradeiras costumavam dizer que o “bom marido” é justamente aquele que “cata os cocos no mato” e traz para a mulher quebrar em casa. Esta representação do “bom marido”, porém, desvela a dura realidade que é a coleta do coco babaçu, normalmente realizada por mulheres que, com cestos feitos da palha da palmeira, carregam às vezes por longas distâncias os cocos quando os fazendeiros autorizam a coleta mas não a quebra dos frutos em suas propriedades.3 Um depoimento que corrobora estas informações foi dado por Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007: “Sempre a gente trabalhou na área de babaçu e na agricultura, consorciado os dois, porque quando é tempo de en-tressafra a gente ia trabalhar na roça”. “A entressafra começa em janeiro, fevereiro, março, abril, aí em maio já começa, aí é o tempo em que a gente já tem colhido o arroz, etc. Também quando é época da colhida do feijão, a gente deixa de quebrar o coco para colher o feijão. Então, a gente trabalha as duas coisas, não é só com a quebra do coco, mas também a gente trabalha na roça”.

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mando as atinentes ao babaçu em secundárias. Todavia, no período entre a capi-na e a colheita, a extração do babaçu volta a se intensifi car, só sendo novamente reduzida quando é chegado o tempo de se colher o que foi plantado no início do ciclo agrícola (MAY, 1990)3.

O trabalho no coco, entretanto, não é absolutamente cessado em nenhum período do ano, especialmente porque, além de um complemento de renda, cer-ta quantidade de produtos que possuem tanto valor-de-uso doméstico quanto valor-de-troca (e aqui leia-se efetivamente troca e venda) é manufaturada pelas quebradeiras. Entre tais produtos destacam-se: o azeite e o leite de coco, pro-duzidos a partir das amêndoas e que são utilizados no preparo de alimentos, substituindo o óleo de cozinha convencional e funcionando como condimento; o sabão de coco, também produzido do óleo da amêndoa, só que em um estágio mais bruto; a massa ou farinha de babaçu, confeccionada através do uso do mesocarpo do fruto, que, entre outras utilidades, é usada para fazer mingaus e bolos, constituindo uma alternativa ao amido de milho e ao trigo; o carvão, feito, depois de retiradas as amêndoas, das cascas ou dos frutos apodrecidos, sendo a principal fonte de combustível de que as quebradeiras se valem para o cozimento de alimentos, pois apresenta um custo consideravelmente menor em relação ao gás de cozinha; o artesanato, como bolsas, cestos, abanadores, pingentes, etc., produzidos a partir da palha das palmeiras e do endocarpo dos cocos; entre outros produtos menos usuais4. Estes são apenas alguns exemplos de produtos que integram, atualmente, o cotidiano das famílias das quebradeiras e a economia do babaçu. Dentre eles, os produtos oriundos do mesocarpo e o artesanato, hoje amplamente difundidos entre as quebradeiras e que são toma-dos por estas como tradicionais, já são resultado da ação do MIQCB que, com relativa freqüência, promove cursos a fi m de ampliar a capacidade produtiva dos camponeses e diversifi car os produtos, gerando assim maior renda para as unidades familiares. Os demais produtos, entretanto, constituem práticas tradi-cionais transmitidas de geração para geração, e sempre com valor-de-uso e de troca, segundo afi rma uma quebradeira do povoado de Petrolina5:

[...] os homens trabalhava na roça, as mulheres ia deixar comida e o resto do dia a gente ia quebrar coco, vendia,

4 Como, por exemplo, o sabão-em-pó de babaçu que, durante a incursão empírica, ob-servei ser produzido apenas por uma quebradeira, dona Romana, no município de Palestina (PA), que afi rmara ter aprendido a técnica em um curso ministrado no âmbito do MIQCB.5 Entrevista realizada em 15.08.2007.

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para fazer o complemento da renda, aquela rendazinha de vender amêndoa, tinha aquele dinheirinho que já ajudava para comprar alguma coisa para dentro de casa e também tirava o óleo. Ali a gente não comprava o óleo, aquilo já ser-via para temperar a comida, daquele óleo já fazia o sabão para lavar roupa, já era uma economia que não era preciso a gente comprar; da casca fazia o carvão6, como ainda até hoje a gente faz isso, já faz parte desde que eu me entendo por gente. Eu via a minha mãe praticando e eu aprendi a fazer e até hoje eu faço.

Este fragmento de entrevista começa por indicar, também, uma outra face dos dilemas vivenciados pelas quebradeiras de coco. Trata-se de sua condição de mulher trabalhadora em um meio, o rural, de heranças patriarcais e, com efei-to, de histórica predominância da dominação masculina. O patriarcalismo, neste caso, relaciona-se de uma maneira muito próxima à dicotomia entre a “casa” e a “rua”, isto é, o espaço doméstico, onde existe maior controle das relações so-ciais, ambiente de afeto, intimidade, calma, harmonia e descanso, sendo também o local das preocupações com a família, regido e formado pelo parentesco, e de uma normalizada, e por isso muito comum, dominação masculina e dos mais velhos; e o espaço da “rua”, ao contrário, universo do castigo, do perigo, da luta e do trabalho, assim como das coisas públicas, tal qual a atividade política, onde existe alguma incerteza nas relações, hierarquias não pautadas no parentesco ou idade e, por fi m, aproximações não “naturais” entre pessoas, mas sim eletivas (DAMATTA, 1997). O dilema das quebradeiras, no relativo a estes espaços, consiste no fato de que, mesmo antes da instituição do Movimento (que poten-cializou ainda mais tal dilema ao inserir as mulheres no cenário político, como veremos mais adiante), a divisão do trabalho agroextrativista não elimina de todo a separação entre os universos de “casa” e da “rua”, todavia não a realiza igualmente de todo, existindo uma dialética casa/rua na forma de organização social e do trabalho nas áreas onde se observa a presença de babaçuais explo-rados por camponeses. Esta dialética se, por um lado, minora a hegemonia do masculino nas atividades extra-domésticas, sobrecarrega, por outro, o feminino de funções laborais externas e domésticas, inserindo-o no âmbito da “rua”, mas não o aliviando do da “casa”.

As trabalhadoras rurais, ao tempo que dividem com os homens as ativi-dades produtivas características da “rua” – segundo ensina Roberto DaMatta (1997, p. 93), “a rua é equivalente à categoria mato ou fl oresta do mundo rural” –, não deixam de estar incumbidas das atividades da “casa”, como o preparo e transporte de alimentos para os maridos e fi lhos que trabalham na roça, quando

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não estamos tratando de quebradeiras com maridos adoentados, separadas ou viúvas, o que, conforme observei na pesquisa de campo, é uma condição cor-riqueira entre as mulheres entrevistadas, fato que amplia ainda mais seus dilemas ao exigir-lhes a concentração das atividades da roça e da coleta e quebra de coco; oferecimento dos suportes material (alimentação, saúde), simbólico (educação, cultura) e afetivo necessários aos fi lhos menores, muitos, no caso das quebra-deiras mais jovens, em tenra idade; transmissão do ofi cio de quebrar coco e das tradições correlatas; e, por fi m, as difi culdades inerentes à reprodução biológica, como gestação, pós-parto, amamentação, acompanhamento de fi lhos pequenos, entre outras. Sobre esta questão, é interessante anotar que foi deveras comum as mulheres pesquisadas relatarem que criaram todos os seus fi lhos, 05 a 08 fi lhos em média, ou às vezes até mais, trabalhando no coco, e retirando desta atividade a renda mínima necessária ao sustento de sua família. Por reiteradas vezes ouvi palavras como estas, extraídas das entrevistas realizadas nos povoados de Juverlândia e Petrolina e dos depoimentos obtidos no município de Praia Norte:

1) Casadas e dividindo o trabalho no coco com o trabalho doméstico:Eu criei 05 fi lhos aqui em Praia Norte trabalhando exata-mente exercendo a profi ssão do coco. O meu marido trabalhava de roça e sempre a minha profi ssão foi essa.[...] eu tive 07 fi lhos, tive oportunidade de criar 06 [...]. Então, toda vida foi na luta do coco, quebrando coco para sobreviver com minha família. Eu era pobre e eu não rene-go mesmo, o marido na roça e eu no coco, então viemos de lá para cá. Quando chegamos aqui a mesma luta, no coco, então para mim o coco é tudo, tudo mesmo, para mim o coco é tudo, porque do coco foi que eu quebrei e criei meus fi lhos, 06 fi lhos, e a luta de casa.2) Marido adoentado:[...] criei 10 fi lhos quebrando babaçu, quebrando babaçu eu comprava roupa, calçado, carne no fi m da semana, material de escola, porque os fi lhos de 06 anos para frente já iam me ajudar a juntar e quebrar para nós sobreviver, porque nós só tinha o babaçu e o marido muito doente trabalhava na roça e não tinha como dar de comer, aí nós tinha que trabalhar porque era só no babaçu [...].3) Separada do marido:[...] eu criei a minha família separada do meu marido, criei 05 fi lhos aqui no Praia Norte, e esse tempo todo da minha vida trabalhando de roça e de coco. Agora, já estou assim cansada da idade, não estou mais agüentando ir para a roça,

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mas vou para o coco, né?4) Viúva:[...] eu era casada, nós trabalha muito de roça e eu quebrando o coco, deixava fi lho em casa, deixava a bóia já feita para os meninos que não eram grandes, eram pequenos, e não sa-biam ainda fazer, aí a gente comia e ia para a roça. Quando nós chegava lá eu deixava a comida para eles e ia quebrar coco, ia fazer o carvão para fazer o almoço do outro dia, chegava com o coco, a gente botava a água na panela para tirar o azeite. Aí o meu marido adoeceu, morreu, aí fi quei só, adoeci, até hoje vivo doente, mas vou levando a vida, e não quebro coco mais.

A condição de mulher trabalhadora, ainda que partilhe as atividades labo-rais e a geração de renda com os trabalhadores homens, dispõe as quebradeiras em estruturas ainda mais complexas de desapreço à e exclusão da posição femi-nina dentro de uma sociedade herdeira de habitus do patriarcado rural de séculos anteriores. A divisão do trabalho da “rua” não é sufi ciente para retirar do estado oculto a violência simbólica, que às vezes se converte em física, que coloca o gênero feminino e seus respectivos interesses em degraus inferiores na hierar-quia social. A dominação masculina aparece então naturalizada, como se fi zesse parte da “ordem das coisas”, ensina Bourdieu (1999, p. 18): “a visão androcên-trica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. Isto explica porque, a despeito de sua importância econômica, muitas quebradeiras afi rmaram que, antes da organização em movi-mento social, a atividade de coleta e quebra de coco babaçu era percebida como depreciativa, e, na realidade, ainda é assim vista por muitas pessoas da região tocantina, incluindo algumas quebradeiras e seus maridos, mas principalmente as jovens fi lhas de quebradeiras que não desejam seguir a profi ssão de suas mães por entender que se trata de uma atividade indigna. Esta visão androcêntrica da atividade de coleta e quebra do babaçu, em uma outra dimensão, a dos fazen-deiros e seus empregados, toma ainda proporções sobremaneira mais violentas e perversas, certamente em razão dos antagonismos de classe – que funcionam, no caso, como fatores de maximização da discriminação de gênero –, havendo sido registradas na pesquisa relatos sobre violências sexuais por parte de jagunços e atrocidades como a seguinte:

Uma mulher estava quebrando coco lá na área de um fazen-deiro e ele mandou o capataz dele ver quem é que estava lá dentro, e encontrou a mulher. Ele chegou, começou a tirar uma prosa com ela e tudo, ele se levantou para dizer que

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ia embora, jogou um laço nela, laçou no pescoço, amarrou no cavalo e saiu arrastando ela; ela se segurou com as duas mãos, mas ele arrastou muito, ela fi cou toda estraçalhada, toda rasgada, toda...7

Além destes estruturais reforçadores negativos da prática extrativa por mulheres, o medo das cobras (muito freqüentes no mato onde se coleta o baba-çu), o baixo preço dos produtos, a necessidade de entrar em terras alheias (práti-ca que, quando não autorizada pelo fazendeiro, mesmo existindo uma lei mu-nicipal que a legaliza, chegou a ser depreciativamente chamada de “roubo” por uma quebradeira8, o que explicita como a atividade é vista por muitas pessoas da região tocantina) – passando por debaixo dos arames farpados, enfrentando o gado e às vezes cachorros ou mesmo empregados da fazenda –, o duro trabalho de carregar cestos de cocos ou de amêndoas, a baixa escolaridade da maioria das quebradeiras e a vida eminentemente rural – apesar de, não raro, desenvolvida em locais próximos de centros urbanos como as cidades de Imperatriz (MA), Marabá (PA) e Araguatins (TO) –, todos estes fatores parecem contribuir ainda mais para a desvalorização do trabalho das camponesas estudadas, embora tais fatores, que também são comuns aos homens, não costumem ser chamados para avaliar de forma degradante o trabalho masculino. O excerto de entrevista9 que segue é exemplifi cativo do modo como era ou é percebida a atividade de coleta e quebra do babaçu:

[...] minha mãe não queria não que a gente fosse quebradei-ra, porque ela queria que a gente deixasse de viver aqui, ela achava que ia acontecer a questão da reprodução sempre: a

7 Palavras de Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007.8 “Cata o coco nas terras dos outros. Esse daqui deixa, nós apanha; esse daqui não deixa, nós vamos bem escondidinha, nós rouba, nós rouba o coco. É! Minha irmã, trabalho, né? Porque o dono não deixa, mas nós tem que apanhar, meu amigo, nós tem que apanhar daqui. Minha amiga, nós vamos bem devagarzinho, para o dono não perceber. Nós sai, com um saco aqui no ombro, reparando se vem ou se não vem; quando não vem, nós enche o saco e bota aqui e faz de conta que nós estamos quebrando, se fazendo de besta, né? Nós rouba coco porque nós não temos terra. É o jeito de nós trabalhar para nós dar de comer à nossa família. Quando não tem mais nas terras que dê para nós quebrar, nós vamos quebrar na terra dos outros” (entrevista realizada em 14.08.2007, no município de Praia Norte – TO).9 Realizada em 31.07.2007 com Vanusa da Silva Lima, fi lha e irmã de quebradeira de coco.

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fi lha já era quebradeira, casou, mas aí casou com uma pes-soa que as possibilidades fi nanceiras não eram tão grandes, então ela tinha que continuar quebrando.[...] a minha mãe deixou de quebrar coco defi nitivamente porque ela tinha pavor. Ela acha que não tinha vantagem, que também era denegrir a imagem.[...]Tinha uma imagem que não era boa e economicamente não era viável. Minha mãe quebrava coco, quebrava coco, que-brava coco, e quando era no fi nal do ano ela dizia que não tinha um vestido novo para ir para a reunião da escola da minha irmã. Ela ia com havaiana com um pé de uma e um pé de outra, aproveitando as havaianas, e o vestido remen-dado. Ela dizia isso. [...] E aí ela teve foi muita difi culdade, sempre teve muita difi culdade. Então quando ela conseguiu sair da roça, do coco, ela defi nitivamente não quis mais voltar, ela não tinha vontade. [...] Ela via isso de forma muito negativa, porque realmente era muito desvalorizado.

Diante destas difi culdades e dilemas enfrentados pelas quebradeiras de coco, acrescidos da ampliação quase desgovernada de diversas atividades econômicas de alto impacto ambiental, especialmente a pecuária extensiva, ge-rando um processo de devastação dos babaçuais, e do cerceamento das práticas tradicionais de acesso livre às palmeiras de babaçu e uso comum da terra, algu-mas lideranças locais – que já integravam os movimentos sociais de trabalha-dores rurais do Araguaia-Tocantins – começaram a promover a organização da categoria em movimento social autônomo, afi rmando a identidade das quebra-deiras e suas reivindicações de classe e gênero. O primeiro grande evento que marca esta história foi o I Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Ba-baçu, ocorrido em 1991, a partir do qual emergiu o MIQCB. Entretanto, desde a década de 1980 já havia se iniciado um processo de fundação de cooperativas e associações representativas das mulheres trabalhadoras rurais, bem como a bus-ca por avanços tecnológicos no benefi ciamento do babaçu, montando-se prensas (denominadas de forrageiras pelos camponeses) e adotando-se técnicas mais aprimoradas de processamento (ALMEIDA, 1995). Um caso exemplar disso foi a ASMUBIP (Associação Regional das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Bico do Papagaio), fundada em 1992. Segundo Raimunda Nonata Nunes Rogrigues10, atual presidente da associação, esta teve sua origem dentro do próprio Sindicato

10 Entrevista realizada em 14.08.2007, na sede da ASMUBIP, em São Miguel (TO).

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dos Trabalhadores Rurais do município de São Miguel (TO), a partir de discussões sobre “coisa de mulher, da saúde da mulher, da reprodução, como ela poderia estar fazendo um exame, porque na época morria muita gente de doenças que poderiam ser curadas, como um câncer do colo do útero”, as mulheres sendo “muito massacradas pela sociedade em geral, não só pelos maridos, também pela questão da perda da propriedade”.

Acontece que dentro do próprio sindicato, um universo até então domi-nado pela masculinidade, o espaço das mulheres era bastante reduzido, e na divisão interna do trabalho só restava ao feminino uma função muito aproxi-mada às do domínio da “casa”, embora se estivesse no da “rua”, no espaço público e de atividade política: o serviço de secretária “que fi cava lá o tempo todinho servindo, o trabalho lá dentro do escritório”, diz Raimunda Nonata. E nas pautas de discussão política quase não havia momento para debater coisas de mulher. Então as trabalhadoras rurais começaram a estruturar uma associação que cuidasse mais detidamente de seus interesses e peculiaridades. De confor-midade com Raimunda Gomes da Silva11, uma das fundadoras da ASMUBIP e do MIQCB, as discussões em torno do babaçu foram antes de tudo estratégias para debater a questão da mulher trabalhadora rural: “Não era também só a questão do babaçu, era também a questão da mulher ter discernimento da vida dela, na questão da saúde, da vivência da família que estava muito difícil”, posto que “era difícil os maridos deixar as suas mulher estar discutindo suas vidas, e a gente começou pelo babaçu”. A ASMUBIP, no entanto, não foi criada como uma associação de quebradeiras de coco, o que justifi ca-se, segundo a entrevistada, por suas fundadoras entenderem que o trabalho extrativista do babaçu, realizado quase totalmente por mulheres, não pode ser compreendido de forma desarticulada da agricultura, parcialmente também praticada por pessoas do gênero feminino:

A gente não quis fazer uma associação só de quebradeiras; fazer uma associação só de quebradeiras é difícil porque não existe ninguém que viva só de extrativismo, não existe, mesmo a pessoa tendo terra, ela pode até viver quebrando coco para comprar o que comer, mas na época assim pega um pedaço de roça, um pedaço de terra, ela faz assim uma divisão, ela colhe arroz, feijão, de qualquer maneira para botar para dentro de casa para ajudar na manutenção da família; nem o cara que tira a seringa, nem a quebradeira de coco, nem ninguém, quem vive da natureza, não vive só das coisas que natureza produz, vive também daquilo [que]

11 Entrevista realizada em 14.08.2007, na casa da entrevistada, em São Miguel (TO).

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produz na terra, que brota debaixo da terra, que se planta debaixo da terra e que se colhe.

Porém, além das questões inerentes à condição feminina no meio rural, havia indiscutivelmente a necessidade de oferecer-se respostas a outros problemas estruturais correlacionados com os da mulher no campo, como a desvalorização social do babaçu e, por conseguinte, do trabalho das quebradeiras, a baixa nos preços dos produtos, a proibição de acesso aos babaçuais e a destruição osten-siva destes, que apresentavam efeitos diretos na vida de tais mulheres, problemas estruturais estes que estavam muito proximamente associados à expansão da pecuária e de monoculturas como a soja e o eucalipto na pré-Amazônia, acrescidos do acirra-mento dos confl itos sociais entre fazendeiros e grileiros e os trabalhadores rurais na segunda metade da década de 1980. Conforme ressalta Raimunda Nonata:

[...] quando a gente criou a associação essa questão da valo-rização do produto, das atividades da quebradeira, ela era uma coisa que já estava acabando aqui na região, nós estava assim desde 1987. Parou a atividade, nós estava largando de quebrar coco. Logo, a região estava tomada de fazen-deiro, tinha poucos assentamentos, o povo estava na luta pela terra nos anos 80 e a região estava no auge do confl ito. Então, nesse tempo o confl ito vinha de todo lado, e aí o pes-soal que se dizia dono das terras estava degradando tudo, né? Não deixava as companheiras pegar coco para quebrar, então o valor do coco foi lá para baixo, não tinha ninguém mais comprando coco na região, elas não tinha o que que-brar, as companheiras não podia entrar para pegar, aí o con-fl ito estava muito grande, as pessoas tinham medo de... né? Foi até arrastado mulher de dentro de quinta, amarrada no cavalo, para não pegar o coco [...].

A fi m de reverter este quadro de parca valorização do trabalho extrativista de babaçu, a ASMUBIP desenvolveu, segundo Miguel Henrique P. Silva (2000), três estratégias principais: 1) a instalação de núcleos que, aliás, foram implanta-dos antes mesmo da formalização da associação, objetivando discutir os prob-lemas associados às mulheres, entre eles a violência, o preço das amêndoas e a preservação do meio ambiente, obtendo-se através destas discussões uma liga-ção mais intensa das lutas de gênero com as ações de conscientização ambiental e política; 2) a implantação de cantinas nos povoados mais afastados das sedes localizadas na área urbana dos municípios, visando suprir as necessidades bási-cas das sócias da associação, sendo então vendidas ou trocadas por amêndoas de

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babaçu mercadorias como café, açúcar, querosene, esponja de aço, lápis, creme dental, etc., incluindo o próprio babaçu; e 3) após o surgimento de mercadinhos nos referidos povoados, as cantinas foram gradativamente substituídas por pos-tos de compra, onde a associação compra as amêndoas sem, no entanto, oferecer a alternativa de troca por mercadorias. Atualmente, apenas as estratégias 1 e 3 continuam sendo utilizadas. Estas estratégias estimularam as quebradeiras, que estavam abandonando o trabalho no coco enquanto uma forma de geração de renda (o babaçu enquanto valor-de-troca, pois jamais deixou de ter valor-de-uso), a retomar e expandir a atividade extrativista, contribuindo, além disso, para a elevação no preço dos produtos derivados do babaçu e até mesmo para uma mudança no modo como o extrativismo do coco era socialmente percebido, conferindo maior visibilidade à, por assim dizer, causa das quebradeiras, conso-ante afi rmação de Raimunda Nonata:

[...] com a vinda da associação começou a comprar o coco também delas, aí elas voltaram a quebrar coco porque a associação não ia incentivar elas a quebrar porque é uma coisa que elas sabiam quebrar, não é uma coisa que você vai aprender hoje aqui, começar a aprender, né? Mas é uma coisa que você já sabia, parou de fazer e aquela renda que tu tinha acabou, não tinha mais. Aí, com a vinda da asso-ciação, elas começaram a quebrar e até hoje a associação precisa de comprar, comprar babaçu, mas se ela não tem dinheiro, eles estão comprando por aí o babaçu, né? Tem alguém comprando, então a associação é um concorrente deles, então nós temos dinheiro nas contas, mas se não tem, eles compram o babaçu por pouquinho dinheiro, assim por 60, 70 [centavos de real por quilo], mas quando a associa-ção chega para comprar aí eles aumentam o preço, então, quer dizer, a associação é uma coisa que está obrigando eles a colocar um valor no babaçu, né? Porque se nós com-pra, eles também compram, e se nós compra de um preço eles aumentam mais o preço, então eu acho que é uma coisa positiva isso aí. E depois da associação o preço também... a divulgação também do babaçu, da atividade aumentou muito nesses últimos anos. Eu estou sentindo assim que a sociedade mesmo está falando muito do babaçu, né?

O MIQCB surgiu, temporalmente, em paralelo à ASMUBIP, embora espa-cialmente abrangendo quatro Estados: Maranhão, Piauí, Tocantins e Pará. Ape-sar disso, as relações entre ambas as instituições são deveras muito próximas, algumas quebradeiras de coco entrevistadas chegando a considerar que ambas

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constituem um único movimento social: “as pessoas que criaram o Movimento Interestadual eram as mesmas pessoas que estavam no movimento aqui”12, “as quebradeiras de coco, onde tem o núcleo da ASMUBIP, são as mesmas pessoas que estão sendo trabalhadas no Movimento Interestadual, então é uma coisa só, né? É só o nome que muda”. A institucionalização do Movimento conferiu maior força material e simbólica às iniciativas das associações de trabalhadoras rurais que lhe antecederam, reforçando não somente as reivindicações comuns aos demais trabalhadores rurais – como as lutas por acesso e uso da terra –, mas principalmente algumas particularidades do modo de vida das quebradeiras de coco que lhes faziam defrontar com questões próprias, isto é, peculiaridades que diferenciavam as quebradeiras dos outros trabalhadores rurais e geravam uma identificação (identidade coletiva) entre aquelas, como as questões da preservação dos babaçuais, do livre acesso às palmeiras de babaçu e do uso comum dos frutos. Na pauta das lutas e reivindicações do MIQCB, segundo consta em um abaixo-assinado constituído no II Encontro Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu, estavam e ainda estão, por exemplo:

1. Desapropriação de todas as áreas de confl ito na região dos babaçuais.2. O coco liberto: acesso às palmeiras de babaçu para as mulheres e crianças extrativistas, mesmo nas propriedades privadas que não cumpram sua função social.3. Fim da derrubada das palmeiras de babaçu.4. Fim da violência contra trabalhadores rurais nas áreas dos babaçuais.5. Recursos para o desenvolvimento de cooperativas. [...].6. Imediata implementação das ações de assentamento nas áreas já desapropriadas e das reservas extrativistas.7. Cumprimento do Estatuto da Criança e do Adolescente na zona rural.8. Medidas que assegurem o cumprimento do Decreto de Reservas Extrativistas (ALMEIDA, 1995, p. 40).

O Movimento Interestadual, do mesmo modo que a ASMUBIP, tem

adotado um conjunto de estratégias a fi m melhorar as condições de vida e tra-balho das quebradeiras, retirando-as da invisibilidade que só tende a reproduzir

12 Evidentemente que a entrevistada se referia às pessoas da região do Araguaia-Tocan-tins que contribuíram para a institucionalização do MIQCB, sendo ela sabedora de que este Movimento para ser criado contou com a participação de quebradeiras dos quatro Estados onde atua.

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as violências físicas e simbólicas que historicamente vêm sofrendo e confer-indo uma nova dignidade às suas atividades agroextrativistas: “essas mulheres tinham até vergonha de dizer que eram quebradeiras, tinham vergonha de estar colocando sua identidade como quebradeira, mas depois desse trabalho que a gente vem fazendo melhorou muito, desde a apresentação da mulher, a auto-esti-ma e também a questão da renda familiar”13. Uma das principais estratégias é a implantação de prensas, denominadas localmente de forrageiras, nos povoados que, apesar de poderem apresentar – se não utilizados equipamentos de proteção (que, de fato, conforme as observações de campo, não costumam ser usados) – prejuízos à saúde das quebradeiras em razão do volume de barulho e poeira produzido pela máquina14, contribuem sobremaneira para o melhoramento das condições de trabalho, agilização do benefi ciamento do babaçu (manufatura de produtos como o azeite, o sabão e a massa ou farinha de babaçu) e, conseqüente-mente, inserção dos produtos no mercado e aumento dos preços, não deixando o controle destes somente a cargo de comerciantes-atravessadores, o que têm inclusive estimulado que um número maior de trabalhadoras rurais da região dedique-se à atividade extrativista, tudo isto ocorrendo pelo fato de que o uso da forrageira substitui o trabalho artesanal de moer as amêndoas, após torradas, estritamente com o uso de pilão, uma atividade demorada e extremamente des-gastante, segundo afi rmam as quebradeiras:

Antes da forrageira era difi culdade demais, a gente que-brava 10 quilos de coco, torrava no pilão e era muito difícil dar 05 litros de azeite. Quando a gente estava com muita coragem de pilar até ele fi car fi ninho, dava mais, mas só quando a gente estava com coragem, mas cansada de fazer esse serviço não dava para tirar muitos litros. Hoje é uma facilidade. Antes uma dona de casa que tirava azeite de 10 quilos de coco ela passava um tempão, porque só para tor-rar e passar um pilão era custoso demais. Agora não, a pes-soa faz 10 quilos de coco e volta para casa, rapidinho eu môo ele volta aí. [...] 40 quilos que já moí hoje15.Tinha delas que nem tiravam azeite e depois da forrageira hoje já tira o coco e traz, gente mesmo que nunca quebrou assim, apesar de eu nunca ver ela quebrar coco para tirar

13 Palavras de Emília Alves da Silva Rodrigues, em entrevista realizada no dia 02.08.2007.14 De acordo com Denise, do Centro de Educação do Trabalhador Rural (CENTRU), em entrevista realizada no dia 01.08.2007.15 Depoimento de uma quebradeira do povoado de Juverlândia, em 11.08.2007.

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azeite, até mesmo eu estava admirando essa companheira com o coco dela. Ela disse assim: “Ah! Hoje eu fi z 20!”. Eu disse: “Ah! Então está bom.” Porque ela não moia coco, nunca tinha moído o coco dela, nunca tinha nem visto ela quebrando; agora ela mói coco, então é uma oportunidade muito grande para gente16.Nossa, Denise, eu estou tão feliz porque chegou essa for-rageira aqui, porque agora eu pego o meu coco, boto aqui, passo o óleo, pronto! Acabou num minuto. A gente vai fazer o azeite, rapidinho, rapidinho. Isso diminui muito o nosso trabalho17.

Outra das principais estratégias utilizadas pelo MIQCB é a diversifi cação

dos produtos e o estudo da cadeia produtiva do babaçu. Tal estratégia vem sendo desenvolvida mediante o oferecimento de cursos, ofi cinas e debates públicos cuja fi nalidade é empreender um levantamento dos diversos usos domésti-cos e comerciais possíveis tendo o babaçu como matéria-prima, assim como através de estudos técnicos acerca da economia do babaçu e seus entraves sócio-econômicos, como os trabalhos “Economia do babaçu: levantamento preliminar de dados”, de Almeida, Shiraishi Neto e Mesquita (2000), e “Guerra ecológica nos babaçuais: o processo de devastação dos palmeirais, a elevação do preço de commodities e o aquecimento do mercado de terras na Amazônia”, de Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005). A diversifi cação dos produtos é um efeito mais imediato e visível desta estratégia sobre a vida das quebradeiras, passando-se a desenvolver derivações do babaçu como a farinha ou massa do mesocarpo, uma das mais bem sucedidas e promissoras iniciativas, que vem sendo produzida, embalada e vendida pelas quebradeiras, tendo uma boa aceitação no mercado lo-cal – por exemplo, as trabalhadoras do povoado de Petrolina estão vendendo sua produção para escolas da rede municipal localizadas na zona rural do município de Imperatriz (MA), para ser usada como merenda escolar de alunos do ensino fundamental, o produto também sendo encontrado nas prateleiras de farmácias de manipulação da região; a abertura de mercados como estes incentivou tais camponesas a buscar fi nanciamento junto ao Banco do Brasil para a construção

16 Dizeres de outra quebradeira do povoado de Juverlândia, em entrevista realizada na mesma data.17 Palavras de Denise, relatando uma conversa pregressa que tivera com uma quebra-deira do povoado de Petrolina. É importante anotar que, no caso de Petrolina, a prensa não foi obtida por intermédio do MIQCB, mas sim através do CNS (Conselho Nacional dos Seringueiros) e da comunidade católica dos Irmãos do Campo.

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da Casa e da Fábrica do Mesocarpo, a fi m de empreender um armazenamento e produção da massa ou farinha em maior escala18. O artesanato, embora em estágio bem mais incipiente que os produtos do mesocarpo – fato que se dá ao menos entre as quebradeiras entrevistadas –, é uma outra alternativa promissora à geração de renda para as famílias agroextrativistas da região pesquisada, mas que carece ainda de um desenvolvimento maior para apresentar efeitos mais signifi cativos na vida e na renda das quebradeiras de coco babaçu.

Uma terceira entre as estratégias primaciais do MIQCB é a tentativa de afi rmação reiterada do direito de acesso livre das quebradeiras aos babaçuais, fl exibilizando o direito de propriedade privada e ainda, o que é uma conseqüên-cia direta da realização plena do direito de acesso, exigindo dos proprietários a conservação de uma certa quantidade de palmeiras por hectare de terra. Esta estratégia recorre inicialmente à formação histórica de um direito tradicional, não-ofi cial e, portanto, não-escrito, de usufruto comum das palmeiras e de acesso livre aos babaçuais preexistente ao processo de apropriação privada das terras da zona ecológica do babaçu e, com efeito, paralelo em relação à ordem jurídica estatal. Não se trata, pois, de um recurso tão-somente a costumes, isto é, a comportamentos regulares e irrefl etidos, repetidos apenas por serem habituais. Trata-se, mais do que isto, de uma juridicidade informal, de uma “lei” do coco livre praticada há várias gerações pelos trabalhadores agroextrativista da zona do babaçu e que é representada por estes como constituindo uma “legalidade” que então deve ser respeitada pelos proprietários de terra e garantida pelo Es-tado, até mesmo porque, antes da intensifi cação dos confl itos sociais na região nos anos 1980, os fazendeiros locais não costumavam se opor à referida prática, fazendo ela parte da cultura nativa.

Dita estratégia desdobra-se na reivindicação, perante o Poder Legisla-tivo dos municípios onde há incidência de babaçuais e atuação do MIQCB, da aprovação de leis municipais do babaçu livre, garantindo o acesso aos palmei-rais pelas famílias das quebradeiras e proibindo a derrubada não racionalizada das palmeiras, sendo autorizado somente o desbaste ou raleamento, mantendo-se no mínimo 40 a 80 (o que varia de conformidade com cada lei municipal) palmeiras adultas e novas (chamadas de pindovas ou pindobas) por hectare. Diante das pressões sociais e políticas, diversos municípios dos Estados do Ma-ranhão, Piauí, Tocantins e Pará aprovaram as chamadas “Leis do Babaçu Livre”, legalizando e, assim, formalizando o direito que as quebradeiras repetidamente alegam como tradicional. Sobre esta estratégia, porém, tratarei mais detida-mente no Capítulo III. Mas por agora importa mencionar que ela funcionou,

18 Informações obtidas em entrevista coletiva realizada no dia 15.08.2007.

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e funciona até hoje – apesar das difi culdades, observadas durante a incursão empírica em todos os povoados pesquisados, de efetividade principalmente no tocante à preservação das palmeiras –, como um instrumento de valorização das práticas de usufruto comum dos babaçuais ao retirá-las do estado de ilegalidade perante a ordem jurídica ofi cial, servindo como um mecanismo de defesa, e mesmo de prevenção, diante das arbitrariedades de alguns proprietários. Nas palavras de duas quebradeiras do município de Praia Norte (TO):

1) O que eu acho assim da “Lei do Babaçu Livre” é que ela melhorou um pouco para nós... De primeiro, para a gente pegar um coco era a maior difi culdade, era os donos das terras correrem atrás da gente, às vezes dizia nome para a gente. Hoje, não, está mais melhor, hoje a gente entra, a gente pega os cocos.2) Bastante, mudou, porque antigamente nós não tinha esse direito de nós chegar, entrar. Era os donos bem na foto, né? Hoje, nós tem, para dizer para os donos que nós não vamos [caçar] vaca e sim catar coco. Por que eles podem caçar uma vaca e nós não pode catar o coco? Nós cata por eles... eles não dizem nada, então mudou, né?

A luta pela implementação de Reservas Extrativistas (RESEXs) de ba-baçu é também uma forma estratégica que, localmente, as quebradeiras e suas famílias, respaldadas pelo Movimento Interestadual, têm utilizado para repro-duzir suas práticas e representações tradicionais. Conforme um diagnóstico sócio-econômico realizado pelo MIQCB (SHIRAISHI NETO et al., 2003), a criação das RESEXs de babaçu, quais sejam, a do Ciriaco, a da Mata Grande e a do Extremo Norte, todas localizadas na região do Araguaia-Tocantins, não foi resultante de um processo de reivindicação das trabalhadoras rurais, as quais, à época, concentravam suas disputas no sentido da garantia do acesso e uso da terra. Por esta razão, o critério utilizado para a seleção de que áreas seriam con-vertidas em Reserva foi o de maior densidade de babaçu em terrenos contínuos. Tais áreas, de consonância com Shiraishi Neto et al. (2003), porém, não pos-suíam vasta presença de camponeses que trabalhavam com o agroextrativismo, visto que estes trabalhadores costumam exercer a atividade em terrenos que não lhes pertencem, estando sujeitos ou não a contratos de arrendamento ou aforamento.

Este fato, somado à inação do Estado no tocante à desapropriação das fazendas afetadas e às demais providências legais necessárias à implementa-ção efetiva das RESEXs, ocasionou que, até os dias de hoje, as Reservas de babaçu ainda não fossem totalmente implementadas. Atualmente, no entanto,

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as quebradeiras entendem que ditas Reservas constituem uma forma alterna-tiva de reforma agrária, algo assemelhado aos PAs mas com peculiaridades, como expressa bem Euvaldo19, funcionário do IBAMA que há mais de dez anos acompanha as lutas das quebradeiras: “eu aprendi desde cedo que a Reserva Extrativista é uma forma também de reforma agrária, porém mais voltada para a preservação ambiental”. Por força disso, as trabalhadoras agorextrativistas vêm lutando para garantir a efetividade das RESEXs, que desde 1992 estão por ser plenamente viabilizadas. Não obstante, uma quebradeira da Reserva do Ciria-co – cuja implementação é a mais adiantada, em comparação com a da Mata Grande e a do Extremo Norte, tendo sido desapropriadas cerca de 70 a 75% das fazendas situadas em sua área de abrangência, segundo Euvaldo e o diagnóstico do MIQCB (SHIRAISHI NETO et al., 2003) – insiste em quanto a RESEXs onde reside foi importante para a reafi rmação das tradições de coleta e quebra de coco babaçu e para a geração de renda familiar:

Eu percebo que mudou muito, é porque os companheiros que não tinham hoje têm, hoje ele tem como alimentar a família dele. Muitas coisas que aconteciam aqui dentro hoje não acontecem. Os fazendeiros que tinham aqui dentro hoje não estão mais, só está os trabalhadores rurais. Hoje se eles vão plantar uma banana eles já dizem: “Aqui eu vou plantar banana, ali eu vou plantar mandioca, ali o feijão”. E naquele tempo não podia fazer isso até porque o fazendeiro já estava com o material na mão dizendo assim: “Essa da-qui é para tu trabalhar!” E aí foi uma das coisas que mudou muito, porque no tempo dos fazendeiros não podia fazer isso, plantar feijão aqui e mandioca para acolá, tinha que encher de arroz. Mas como hoje nós estamos com o pedacinho de trabalho na mão, agora pode fazer isso. Hoje nós temos a cantina aí para comprar babaçu, hoje vêm pessoas de fora que já diz: “Hoje nós vamos passear, mas já vamos preve-nidos para comprar um azeite, uma amêndoa do coco para nós trazer, vamos comprar o mesocarpo”.

Para além do Movimento Interestadual, as quebradeiras de coco babaçu desenvolvem histórica e localmente outras ações com o intuito de garantir a reprodução material e simbólica de suas práticas e representações tradicionais. Uma destas ações é a cooperação para a coleta e quebra do babaçu, ainda que

19 Em entrevista realizada no dia 16.08.2007, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Imperatriz (MA).

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tenha sido bastante comum, nas observações de campo, perceber quebradei-ras realizando suas atividades isoladamente, no mato ou nos quintais de suas casas. Conforme relata Almeida (1995, p. 38), principalmente quando existe a probabilidade de confrontos direitos com fazendeiros e seus empregados, as “mulheres dirigem-se em grupo para os babaçuais e, não obstante ser individual o ato da quebra, elas o fazem próximas umas das outras, conversando” e, co-mumente, cantando, suas “posições, entremeadas com os montes de coco respectivos”, descrevendo “a figura aproximada de um círculo”.

Em alguns povoados, como o de Juverlândia, no município de Sítio Novo (TO), é possível se observar a prática de uma outra forma de cooperação que não se dá no interior das fazendas, mas sim no âmbito doméstico ou na pequena pro-priedade de uma quebradeira. Trata-se do que as mulheres pesquisadas chamam de quebra de meia, prática que consiste na coleta individual dos cocos e na que-bra destes em cooperação com outras quebradeiras, sendo que parte da produção é então compartilhada com a camponesa que coletou os cocos. Habitualmente a quebra de meia é realizada na residência ou na propriedade da quebradeira coletora do babaçu. Em alguns casos, as trabalhadoras rurais realizam uma es-pécie de revezamento entre casas ou terrenos e, naturalmente, pessoas coletoras. Entretanto, foi percebido na pesquisa de campo que a concentração da atividade de coleta na pessoa de uma única quebradeira também ocorre em alguns povoa-dos, tal fato não raro suscitando entre as camponesas um certo desconforto dada a proximidade desta relação com a de sujeição – o pagamento ao fazendeiro de parte do babaçu extraído em suas terras é também chamado pelas quebradeiras de quebra de meia –, embora ela poupe as trabalhadoras que quebram de meia do duro trabalho de catar e transportar os cocos para suas casas. A quebra de meia é ainda uma alternativa estratégica à escassez de babaçu causada pela devastação e pelo cerceamento do acesso aos palmeirais – não raramente violento, física e simbolicamente – por parte dos proprietários de terras, de consonância com o que depõe a quebradeira Silene20:

A dona B. junta coco, a dona L. junta coco no terreno delas ou então em casa; a gente vem, tem direito a 05 quilos. Se esse coco tivesse aí, se não tivesse a derrubação das palmei-ras, se a gente tivesse livre acesso aos babaçuais a gente não tinha essa necessidade de quebrar coco de meia para elas. Não que elas faça uma má coisa, eu até elogio o ato delas, porque é muito difícil juntar coco, é um trabalho enorme. Sem falar no esforço físico, elas dão almoço para a gente,

20 Entrevista realizada em 11.08.2007, no povoado de Juverlândia, em Sítio Novo (TO).

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a gente pode trazer a família toda, até o marido em casa se não for para a roça vem almoçar junto; aqui é uma grande facilidade que elas fazem para a gente, mas se esse baba-çual fosse livre, com livre acesso para nós quebradeira, nós não tinha necessidade de quebrar coco de meia para os outros porque a gente tinha esse babaçual, mas os fazendeiros não deixam que a gente quebre coco, tem fazendeiro aí der-rubando palmeira, jogando veneno na pindoba, e disse se achar uma quebradeira dentro do terreno dele, se tiver com os cachorros, põe os cachorros, se não tiver cachorro vai amarrar a quebradeira, vai buscar os cachorros e pegar a quebradeira e jogar os cachorros nela. [...]Ela cata, traz junto na carga e dá. Junto, em casa, a gente quebra, só depois de quebrado é que divide com ela, aí leva o da gente para casa. Aí dá de ajudar na luta de casa porque coco é fundamental na vida aqui das quebradeiras [...].

Outra estratégia controvertida – porque estabelece uma forma de sujeição das trabalhadoras rurais a um conglomerado empresarial –, embora bastante efi caz para a reafi rmação material e simbólica das tradições associadas à coleta e quebra de coco babaçu, é a adotada pelas quebradeiras de coco do povoado de Petrolina, em Imperatriz (MA). Referido povoado está localizado em uma área circundada de plantações de eucalipto destinadas à produção de papel e celulose pertencente a um megaconsórcio formado, segundo Helciane de Fátima Abreu Araújo (2000), pela associação das empresas Votorantim e Ripasa (com 55% do capital), Companhia Vale do Rio Doce (30%) e Nissho Iwai Corporation (15%). Este projeto, no entanto, pertencia originalmente a CELMAR (Papéis e Celu-lose do Maranhão S/A)21. À época que o projeto era conduzido pela empresa maranhense, e isto foi transmitido para o consórcio de empresas que hoje o con-duz, as quebradeiras de Petrolina – todas camponesas sem terra, residentes em um pequeno vilarejo –, pressionadas pela expansão de carvoarias e pela queima do coco inteiro que ameaçavam sua subsistência (ARAÚJO, 2000), assim como pela devastação ambiental e pelo cerceamento do acesso aos babaçuais por parte

21 Os dados obtidos durante a pesquisa apresentaram contradições no referente a que consórcio de empresas dá hoje prosseguimento ao projeto da CELMAR. Segundo Al-meida, Shiraishi Neto e Martins (2005, p. 60), a “CELMAR passou a ser denominada legalmente como Ferro Gusa Carajás, que é um projeto siderúrgico apoiado numa as-sociação entre a Companhia Vale do Rio Doce (CVRD) e a empresa norte-americana Nucor”. Já conforme Almeida (2000), trata-se de um consórcio entre a CVRD, a Nissho Iwai e a Suzano/Feffer.

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de fazendeiros, fi rmaram, em 1998, um contrato de comodato com a CELMAR a fi m de garantir o acesso aos palmeirais existentes na Reserva Legal do projeto, local, portanto, de preservação ambiental obrigatória, a quatro quilômetros do povoado.

É importante anotar que este contrato foi acordado muito antes da pro-mulgação da “Lei do Babaçu Livre” do município (que se dera em 2003), con-sistindo, portanto, em um caminho alternativo inédito e controvertido, mas so-bremaneira efi ciente do ponto de vista nativo, de garantir o “livre” acesso aos babaçuais, sob, evidentemente, condições impostas pela empresa e atendendo também a interesses desta, como o de demonstrar, a partir disso, sua “responsabili-dade” sócio-ambiental (ainda que esteja desenvolvendo um projeto de alto impacto social e ao meio ambiente e a relação com as quebradeiras tenha iniciado, segun-do informações obtidas nas entrevistas, por iniciativa destas, que procuraram a empresa por sentirem-se ameaçadas). A partir da garantia de matéria-prima que o contrato proporcionou, as quebradeiras puderam desenvolver projetos como a construção da Casa e Fábrica do Mesocarpo, que já têm, incipientemente, co-laborado para o aumento da renda familiar, o que funciona como um estímulo à atividade extrativista no povoado. Nas palavras de Teresinha22, presidente da Associação das Quebradeiras de Coco Babaçu de Petrolina (fundada três meses antes da celebração do contrato objetivando, justamente, consolidá-lo formal-mente):

A empresa... quando a gente chegou até eles para falar que estava queimando o carvão, como nenhuma de nós (nós so-mos 44) tinha terra, nós fi camos preocupadas onde que nós ia coletar o coco, se os fazendeiros não estavam deixando a gente entrar mais, a gente viu que era uma empresa muito grande e que a gente tinha que se apegar a eles, que eles não tem precisão, eu acho, não sei, né? Não tem muita pre-cisão desse coco. Na verdade eles disseram, quando a gente chegou até eles, disseram que nem conhecia o que era isso, a gente foi e explicou para eles o que é que nós estava pre-cisando, o que é que a gente queria, que era entrar e coletar o coco igual como a gente já vinha fazendo; eles disseram que sem problema, que a gente podia entrar, mas depois trouxeram o contrato para nós assinar. Esse contrato, como eu já falei, a gente não paga nada, é só zelar a área. [...]Na verdade a área em que a gente trabalha, com o contrato de comodato com a empresa, ela é uma área de reserva da

22 Entrevista realizada em 15.08.2007, no povoado de Petrolina, em Imperatriz (MA).

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empresa, nela tem uma área de eucalipto muito pequena, aqui próximo, toda é uma área de reserva da empresa que ele tem obrigação de botar, e nessa área, como ela já falou, a gente tem o direito de extrair só o coco de babaçu, a gente não tem direito a tocar em outras [árvores]. Até porque a nossa vontade é preservar mesmo, preservar a árvore, nós somos contra a derrubada das palmeiras, nós se organiza-mos foi justamente por isso, para evitar, para denunciar a derrubada. [...] Eu não sei as companheiras, eu ainda dou graças a Deus deles ter cedido essa área para nós porque os fazendeiros não iam fazer isso, arrendar essas terras para nós, porque eles não querem aproveitar que nem nós aproveita, eles querem o mais fácil porque eles queimam hoje e amanhã eles têm dinheiro, e assim... Já a empresa, ela deixou nós montarmos essa estrutura aí que nós já falamos com eles que eles não vão deixar de ceder essa área aí para nós porque a gente está trabalhando esse tempo todo, de 98 para cá, e nunca tivemos problema com a empresa, nunca teve problema, a família da gente nunca teve problema, e eles disseram que é para nós não se preocupar não que não vai faltar coco. Aí eu digo assim: eu agradeço porque mesmo tendo muito coco nessa área e eles não precisam, mas se não fosse a fi rma nós não tinha mais onde entrar não, os fazendeiros não deixam não, mas não deixam mesmo, e a fi rma apesar de ter o contrato nós pode entrar, nós tem bar-raco dentro da área, nós vamos para lá, passa o dia lá na beira do brejo, aquela paz e, ave Maria, nem se compara, muito bom, pedindo a Deus que eles continuem cedendo essa área para nós.

As estratégias descritas apenas exemplifi cativamente acima, e os casos das mulheres de Juverlândia e Petrolina são dos mais exemplares justamente por não serem “bem vistos” por parcela das camponesas integrantes do MIQCB, demonstram que as quebradeiras de coco babaçu constituem uma população que, como as estudadas por Marshall Sahlins (1988), é produtora de sua própria história, ainda que estabeleça relações muito próximas com o colonizador siste-ma capitalista – o movimento social das quebradeiras, conforme percebido, sem-pre buscou relacionar-se com a economia de mercado, o babaçu jamais deixando de possuir para as trabalhadoras pesquisadas valor-de-uso e valor-de-troca, ainda que esta interação nem sempre lhes favoreça –, visando, no entanto, através destas relações de interculturalidade, garantir uma forma de desenvolvimento

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do ponto de vista local, isto é, das quebradeiras, o que Sahlins chamara de “de-velop-man” (no presente caso, um verdadeiro “develop-woman”), reafi rmando assim os projetos nativos de garantir a reprodução material e simbólica das práticas e representações das quebradeiras por intermédio de uma melhor inser-ção no mercado, ou seja, em condições competitivas mais favoráveis ou menos desfavoráveis, dos produtos oriundos do babaçu manufaturados localmente.

Sem embargo, a institucionalização do movimento das quebradeiras de coco babaçu, principalmente a partir do MIQCB, foi um evento de sobeja im-portância para estabelecer rupturas signifi cativas com uma história reifi cada de sujeição das trabalhadoras rurais aos pecuaristas herdeiros do antigo sistema do patriarcado rural e suas respectivas relações de patronagem. Trata-se de um evento importante também para transformar as relações entre as quebradeiras e os interesses masculinos predominantes nas lides dos trabalhadores rurais do Araguaia-Tocantins, re-signifi cando o papel, outrora passivo e agora pró-ativo, da mulher no meio rural e nas disputas de natureza político-econômica, além de re-signifi car igualmente as relações domésticas de dominação, conferindo uma relevância cada vez maior ao trabalho feminino tanto dentro quanto fora, mas principalmente fora, do âmbito da “casa”. Isto, porém, não elimina outros problemas estruturais que as quebradeiras de coco babaçu têm enfrentado atu-almente, com o surgimento de novos agentes econômicos na pré-Amazônia e, por conseguinte, novos confl itos sociais, que vêm transformando a paisagem e as formas de trabalho na região do Araguaia-Tocantins e afetando sensivelmente a vida das quebradeiras.

2. QUEBRADEIRAS DE COCO FACE ÀS “NOVAS ESTRATÉGIAS EMPRE-SARIAIS”

Na zona ecológica do babaçu, hodiernamente, é perceptível uma ofen-siva sobre os modos de produção tradicionais denominada pelos documentos do MIQCB de “novas estratégias empresariais”, as quais apóiam-se precipuamente na elevação do preço de commodities como carne in natura, soja, papel e celu-lose, ferro-gusa, biodiesel e madeira. A elevação no preço destas commodities conduz a uma concomitante expansão de atividades como a pecuária, a sojicul-tura, o plantio de eucalipto e mamona, a exploração madeireira, entre outras, na região tocantina. Tais estratégias empresariais demandam vastas extensões de terra, o que acentua as já intensas pressões sobre os recursos naturais e o mercado de terras na pré-Amazônia, pondo assim em situação de risco as terras tradicional-mente ocupadas pelas quebradeiras de coco babaçu e, consequentemente, a forma

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de vida e trabalho destas mulheres.As “novas estratégias empresariais” realizam um processo predatório

bastante singular, pois não se trata da subida de preço de uma commodity em particular, como outrora já ocorrera na história da região – por exemplo, quando do despertar de interesse empresarial pela pecuária extensiva e pelo plantio de soja –, mas sim de diversas commodities paralelamente (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005). A devastação dos palmeirais e sua consecutiva substi-tuição por pastagens e monoculturas agrícolas, conforme Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005, p. 34), aparece agora “combinada com a intensifi cação da extração ilegal de madeiras, com a disseminação de plantações de eucalipto e a produção ilegal de carvão vegetal”, principalmente do carvão produzido a partir do coco de babaçu inteiro, isto é, não-benefi ciado. Estas estratégias, dadas as suas características, acabam por contribuir para um aumento vertiginoso no preço das terras, visto que “os preços mais elevados das commodities estimulam as transações de compra e venda de terras, os atos de arrendamento de imóveis rurais, bem como estimulam as ações de apossamento ilegítimo por grupos em-presariais interessados em extensas áreas” (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005, p. 34).

Além de novas motivações para o cerceamento do acesso livre aos ba-baçuais, as “novas estratégias empresariais” ocasionam alguns outros efeitos predatórios, como a devastação dos palmeirais para a plantação de capim, desti-nado à pecuária, ou de monoculturas agrícolas e como a coleta e queima indis-criminada do coco inteiro que, juntamente com o advento de novas categorias de trabalhadores rurais com um grau bastante elevado de imobilização e sujeição a setores dominantes do sistema capitalista (grandes empresas e latifundiários, por exemplo), ou seja, os catadores e carvoeiros, afetam a sustentabilidade dos cocais e desestruturam o modo de vida e trabalho das quebradeiras, que se re-cusam, principalmente as mais organizadas, a serem convertidas – tal como o empresariado planeja e gostaria – em meras catadeiras e/ou carvoeiras, abrindo mão assim das atividades tradicionais de benefi ciamento do babaçu. As que-bradeiras enfrentam na atualidade, portanto, problemas como a intensifi cação da derrubada das matas onde exercem seu ofício e as iniciativas que preten-dem reduzir as atividades das famílias extrativistas à simples coleta do coco babaçu que, além de afetar o modo de produção tradicional, ameaça a própria identidade das quebradeiras, segundo atentamente observa Almeida, Shiraishi Neto e Martins (2005). Os mesmos autores lembram ainda que estas iniciati-vas empresariais fomentam a comercialização do coco inteiro, utilizado como matéria-prima por empresas que benefi ciam mecanicamente e em larga escala o babaçu, e sua transformação em carvão, que é usado seja como insumo nas

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usinas que produzem ferro-gusa, seja como combustível de uso doméstico para famílias de baixa renda sitas em núcleos urbanos próximos às áreas de coleta.

Os catadores de coco e carvoeiros diferenciam-se das quebradeiras e dos demais trabalhadores rurais organizados em movimentos sociais principalmente por sua condição de imobilização e dependência estrutural dos proprietários de terra e empresas, estabelecendo com estes contratos, no mais das vezes infor-mais, de trabalho, arrendamento ou fornecimento dos cocos de babaçu transfor-mados em carvão ou in natura. Os carvoeiros são nada mais do que uma mo-dalidade de catadores que, além da coleta, incumbem-se de produzir o carvão a partir da matéria-prima catada nos babaçuais de sua propriedade ou de terceiros, arrendados ou não, mediante contrato de trabalho ou não. Conforme uma das obras elaboradas no âmbito do MIQCB, os catadores de coco, geralmente do gênero masculino (embora se encontre entre eles também quebradeiras, a maio-ria desarticulada do Movimento):

Consistem em trabalhadores aliciados por interesses das carvoarias e indústrias guseiras e de óleos vegetais para o desempenho de tarefas remuneradas por produção. Tra-ta-se de atividades eventuais de coletar o coco inteiro e transportá-lo para os fornos. Tais tarefas são executadas em condições análogas ao trabalho escravo. Os trabalha-dores passam dias arranchados nos cocais, sobrevivendo em condições subumanas e sem nenhum direito trabalhista assegurado. Imobilizados por dívidas e adiantamentos não têm como resistir a seus contratantes e acabam aceitando toda sorte de imposições (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005, pp. 24-25).

O trabalho dos catadores, de acordo com Almeida, Shiraishi Neto e Mar-tins (2005), dá-se mediante o uso de um saco ou cesto, o chamado jacá, car-regado às costas e no qual o trabalhador vai colocando os cocos coletados, que podem ser verdes ou maduros, velhos ou ainda umedecidos, estando nos cachos ou no chão. Os catadores amontoam os cocos catados para, em seguida, serem recolhidos por veículos transportadores de propriedade de atravessadores, de-nominados de gaiolões ou caçambas, que fazem a intermediação informal entre os catadores e as empresas de ferro-gusa e de óleos vegetais ou prestam serviços contratados por estas. Referida forma de trabalho, de conformidade com os au-tores acima mencionados, opõe-se diametralmente ao trabalho realizado pelas quebradeiras, caracterizado por uma relativa autonomia em relação aos setores empresariais e pela condição eminentemente feminina das extrativistas, além do

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trabalho de cata dos cocos não requerer maiores qualifi cações, enquanto que o das quebradeiras exige saberes práticos acerca do ecossistema e de como pro-ceder na coleta e quebra do babaçu, o conjunto destes saberes, acrescidos de regras relativas ao saber-fazer produtos derivados do babaçu e à arte de elabo-ração de objetos artesanais a partir das folhas, fi bras e palhas, constituindo um conhecimento tradicional. Por estes motivos, a atividade das quebradeiras apre-senta, diferentemente do que ocorre no caso dos catadores, uma consciência ambiental aguçada e uma sabedoria transmitida de geração para geração quanto ao manejo dos palmeirais, muito nítidas no cuidado que estas trabalhadoras têm com os olhos d’água, no desbaste que realizam a fi m de “evitar uma densidade de palmeiras que coloque em risco a quantidade produzida”, na seleção de ár-vores com melhores frutos, no respeito às regras de não cortar os cachos, no modo de benefi ciar o fruto, “rompendo compassada e manualmente a casca e separando o núcleo para extrair a amêndoa, intacta e sem danos”23 (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005, p. 44).

Segundo Querubina Neta24, coordenadora da Regional Imperatriz do MIQCB, a tendência de cata do coco inteiro confere maiores justifi cativas para

23 Ainda sobre este conhecimento tradicional, dissera Querubina Neta, em entrevista realizada no dia 31.07.2007: “A palmeira... é muito interessante o seu processo. Você planta ela, com 09 meses começa a sair o olhinho, racha o coco, planta ele na terra fértil. Com 09 meses brota a primeira palhinha. Com 15/16 anos ela brota o primeiro cacho, brotando aquele cacho, quando ela está abrindo o pendão, ela geme igualzinho a mulher parindo, do mesmo jeito [...]. Quando se escutar aquele gemido, pode procurar que tem uma palhinha soltando o pendão. E com 09 meses aquele coco começa a cair, é igualzinho a uma mulher, não tem o que tirar.Tem que ter a lua para você utilizar a palha do coco, tanto para cobrir casa para ela durar mais, quanto para fazer esses artesanatos. Tem que ter o período da lua para se retirar a palha. Se tu tirares na lua nova, ele rende muito pouco, quebra demais, seca mais rápido, dá um trabalho desgramado. Tu tens que aproveitar a crescente da lua, chegamos à conclusão de o porquê que o trabalho é ex-clusivo para mulher. É uma ciência. Para tirar o óleo, tem que ter horário para isso: tem que cerrar o coco à noite, moer cedo para aproveitar o crescer do sol, o nascer do sol, porque o óleo é limpo e rende mais. Então, é uma ciência muito grande, e uma ciência de mulher. Para fazer sabão do óleo do coco ou sabonete, desses que eu sei fazer, tu não podes fazer com muita gente, o máximo que tu podes trabalhar são 04 pessoas. Na hora de processar sabão ou sabonete, ou o que for que esteja fazendo, de 04 pessoas para frente é uma ciência que eu não sei, porque se mistura um momento com o outro, um aumenta, outro diminui, não dá certo. É uma ciência”.24 Entrevista realizada no dia 31.07.2007, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Im-peratriz (MA).

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o cerceamento do acesso aos babaçuais “porque ele [o proprietário] agora está arrendando o coco, está vendendo. Antes ele impedia só para não entrar, hoje ele está impedindo para não entrar porque ele já ganha uma porcentagem nesse aluguel desse babaçu que está vendendo para a Ferro Gusa”. A estrita coleta do coco babaçu e a feitura do carvão a partir dele vêm tornando-se uma alternativa de geração imediata e relativamente constante de renda não somente para os tra-balhadores rurais, mas igualmente para fazendeiros e arrendatários. Isto oferece mais uma motivação para impedir que as quebradeiras acessem os palmeirais, justamente porque se estabelece uma relação de concorrência não apenas entre estas e os catadores, mas também entre quebradeiras e fazendeiros e arrenda-tários, e sem dúvida as indústrias de ferro-gusa contribuem sobejamente para o acirramento destes confl itos ao disseminarem baterias de fornos para a produção de carvão, estimulando assim o cerceamento e o arrendamento das terras tradi-cionalmente ocupadas pelas quebradeiras.

Estes são confl itos, porém, que nem sempre se dão dentro dos babaçuais e diariamente. No interior dos palmeirais, no entanto, há o embate mais cotidiano entre quebradeiras e catadores, antagonismo que tem requerido das primeiras novos cuidados no trabalho de coleta, tais como a prática de esconder os cocos, a fi m de que não sejam roubados por outra mulher (dada a “escassez” de maté-ria-prima que a atividade dos catadores ocasiona) ou pelos próprios catadores, e o transporte dos cocos para locais mais remotos e de difícil acesso (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005). Sobre os impactos que as “novas es-tratégias empresariais” têm produzido na vida das quebradeiras do Estado do Pará, Shiraishi Neto (2000, pp. 165-6) afi rma, referindo-se à situação da Vila São José, no município de São Domingos do Araguaia:

A derrubada das palmeiras tem reduzido as áreas de coleta e diminuído os recursos disponíveis, provocando situações não vivenciadas pelas quebradeiras em outras regiões, como a própria disputa pelo coco ou uma pegar o coco juntado pela outra quebradeira. Ou seja, o recurso que era comum, acessível a todas as mulheres e famílias, após ser privatizado, passa a ser destruído.[...]Outra situação que decorre é que as áreas de coleta de ba-baçu e as próprias palmeiras entre si acabam fi cando cada vez mais distantes de suas residências, acabando por au-mentar o trabalho das mulheres de juntar e trazer os cocos, tornando mais penosa a atividade. Para as mulheres está cada vez mais difícil a atividade do babaçu. Elas têm de coletar o coco em lugares cada vez mais distantes.

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As quebradeiras desenvolvem estratégias próprias para enfrentar estes problemas estruturais nos quais estão inseridas. Uma destas estratégias – aliás, mais uma tática emergencial de sobrevivência – é mencionada por Shiraishi Neto (2000) e consiste na burla à vigilância dos fazendeiros e arrendatários, entrando nos cocais escondidas, sorrateiramente. Segundo uma quebradeira do povoado do Piquizeiro25, quando os fazendeiros proibiam a entrada nos cocais, “a gente fi cava na pesquisa, entrando escondidinho porque era obrigado, porque você sabe que aqui as pessoas são fraca de condição”, tendo, portanto, precisão (expressão nativa que indica estado de necessidade) de acessar aos babaçuais. Maria Batista26, de um povoado do município de Praia Norte (TO), descreve com mais detalhes esta prática, representando-a, no entanto, como roubo ainda que legítimo: “nós vamos bem escondidinha, nós rouba, nós rouba o coco”, “nós vamos bem devagarzinho, para o dono não perceber”, “nós sai, com um saco aqui no ombro, reparando se vem ou se não vem”, “quando não vem, nós enche o saco e bota aqui e faz de conta que nós estamos quebrando, se fazendo de besta”. Esta é uma estratégia que, entretanto, possui limitações por criar um clima de desconfi ança entre quebradeiras e fazendeiros e arrendatários, intensi-fi cando os confl itos.

Durante a pesquisa de campo, em um rumo diverso, foi possível observar iniciativas tendentes a estabelecer parcerias entre adversários estruturais. Uma delas foi a discussão das quebradeiras do Pará e do Tocantins, por intermédio do MIQCB, quanto à possibilidade de estabelecer um contrato de fornecimento de cerca de mil litros/mês de óleo de babaçu à uma indústria de sabão localizada no município de Redenção (PA). Além desta iniciativa, observou-se uma reunião de planejamento com representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) que objetivou, entre outras coisas, reconstruir a cadeia produtiva do babaçu na mesorregião do Bico do Papagaio, com a participação das quebradeiras, e sensibilizar o empresariado para sua efetiva realização (MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, 2007). Es-tes dois exemplos consistem em partes de uma estratégia menos confl itante, mas ainda bastante incerta quanto aos benefícios que trará a médio e longo prazos às trabalhadoras extrativistas, com os interesses empresariais dominantes: a de es-tabelecer parcerias diretas – sem intermediários (comerciantes-atravessadores) – com empresas que sob outras condições apresentar-se-iam como antagonistas. As incertezas patentes destas relações e a possibilidade de elas imiscuírem-se

25 Entrevista realizada no dia 11.08.2007, no povoado do Piquizeiro, em Axixá do Tocantins.26 Entrevista realizada em 14.08.2007, no município de Praia Norte (TO).

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tão-somente nos interesses capitalistas em detrimento dos interesses das quebra-deiras, são assemelhadas às que exigem de Almeida (2000, pp. 33-4) algumas ponderações, quando afi rma que as “novas estratégias empresariais”:

[...] querem discutir a economia do babaçu através das pos-sibilidades de seu uso como carvão nas usinas de ferro-gusa da região de Carajás ou através de ações associativas pro-postas por indústrias de papel e celulose. Percebe-se que tais estratégias empresariais estão se confundindo com políticas governamentais [...]. Ambas falam de “parceria” com as trabalhadoras agroextrativistas e apontam para o reconhecimento de um novo capítulo do extrativismo na Amazônia, porém essa interlocução parece eivada de con-fusões que, inclusive, podem resultar em medidas desorga-nizadoras da economia do babaçu27.

Ditas incertezas apresentam-se justamente porque, além de nem sempre corresponderem às expectativas e necessidades das quebradeiras, as “novas es-tratégias empresariais” realizam o que os documentos do MIQCB chamam de “modernização predatória”, pois tendem a devastar rápida e quase inteiramente os recursos naturais, menosprezando a fragilidade dos ecossistemas. Por enfa-tizarem o mercado de commodities, empreendem uma exploração desregulada, despreocupada com a preservação sócio-ambiental, depreciando celeremente o meio ambiente e os modos de organização social e trabalho nativos, a intensidade da exploração fl utuando de conformidade com as variação dos preços naquele mercado. Esta “modernização predatória” é também “modernização conserva-dora”, favorecendo os projetos de dominação tradicional (no sentido weberiano, descrito alhures) ao restringir o acesso livre aos palmeirais e confrontar as famí-lias de quebradeiras e catadores, produzindo formas de imobilização social e

27 Um indicativo desta possibilidade de desorganização da economia tradicional foi ob-servado exatamente em uma reunião de planejamento promovida pelo MMA, onde um representante do SENAI insistia reiteradamente na necessidade de utilização de máqui-nas para o benefi ciamento do babaçu, especialmente para a retirada das amêndoas, por ser este um trabalho penoso e demorado, em face das resistências e contra-argumen-tos também reiterados das quebradeiras participantes da reunião, que então buscavam demonstrar que se a prática de quebra fosse substituída por maquinários o trabalho das quebradeiras se reduziria à coleta e queima do babaçu, transformando-as em catadeiras e carvoeiras, descaracterizando sua própria identidade.

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dependência estrutural (ALMEIDA, SHIRAISHI NETO & MARTINS, 2005).Além do caso dos catadores e, por seguimento, dos carvoeiros, o caso do

advento da CELMAR em Imperatriz é um outro exemplo da “modernização pre-datória e conservadora” de que estou falando, pois converteu trabalhadores agro-extrativistas relativamente autônomos em empregados temporários incumbidos da devastação dos babaçuais (outrora sua única fonte de renda e subsistência, acompanhada apenas da roça), que então foram gradativamente substituídos por vastas plantações de eucalipto, também realizadas pelos camponeses locais por ordem da empresa contratante, que exploraria tal matéria-prima para a produção de papel e celulose, a médio e longo prazos prejudicando a forma de sobre-vivência dos moradores locais, conforme relata uma quebradeira do povoado de Petrolina:

Quando foi um dia, que eu não estou lembrada o dia da semana, os homem da fi rma chegaram, já chegaram com a roupa e os calçado e tudo, meu marido nessa época pas-sou 09 meses trabalhando e o meu cunhado passou 01 ano, aí entraram nessa mata, nesses mato para estar sendo as veredas. [Pesquisador pergunta: “Trabalhando para a fi r-ma?”] É! Trabalhando para a fi rma. [...] Era fazenda picada, como a gente chama vereda, sabe? No mato faz aquelas divisas, coloca aqueles cantos, não sei quantos metros. E aí chegou o tempo de plantar o eucalipto, o eucalipto já estava desse tamanho. [Pesquisador pergunta: “O pessoal aqui também trabalhava no plantio do eucalipto?”] Sim, do eucalipto... Chegou nessa época, antes do eucalipto chegou a desmatação, derrubava a palmeira... É! Derrubava para separar a área que eles iam plantar o eucalipto. Antes do eucalipto era tudo palmeiral, e foi derrubando a palmeira e acabando e hoje nós estamos assim... Está fraco de roça.

Além do projeto da antiga CELMAR, hoje Ferro Gusa Carajás, as siderúrgi-cas do município de Açailândia (MA), a TOBASA Bioindustrial, sita no município de Tocantinópolis (TO), e as indústrias de ferro-gusa localizadas em Marabá (PA), como a COSIPAR, tornam-se as grandes antagonistas das quebradeiras de coco babaçu do Araguaia-Tocantins, exatamente porque contribuem para a mudança na paisagem rural e nas formas de viver e trabalhar tradicionais que têm, há várias gerações, garantido a subsistência dos camponeses nativos e mi-grantes do leste maranhense e do semi-árido nordestino. Trata-se agora de uma colisão de interesses que se adere aos confrontos habituais entre quebradeiras e proprietários de terra; no entanto, difere destes confrontos especialmente por en-

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volver projetos de interesse econômico ainda mais poderosos do que a pecuária expansiva e não menos predatórios que esta.

Exemplo de tais projetos é a ainda incipiente, mas iminente, discussão quanto à produção de biodiesel na pré-Amazônia. Os debates consistem, segun-do informações tomadas em entrevistas com Denise Leal e Emília Rodrigues28, também em uma colisão de interesses: por um lado, as estratégias empresari-ais que defendem que o biodiesel deve ser produzido tomando por insumo a mamona, o que exigiria vastas plantações (monocultura agrícola) obedecendo um modelo assemelhado ao das antigas plantations, requerendo naturalmente a devastação dos babaçuais e a conversão do trabalho agroextrativista em trabalho assalariado destinado ao plantio e colheita da mamona; e, por outro lado, as quebradeiras defendendo a produção do biodiesel a partir do babaçu, cuja coleta e benefi ciamento inicial então seria realizado pelos trabalhadores locais, o que, porém, requereria uma verdadeiramente improvável agilização do processo de reforma agrária (por intermédio de PAs ou de RESEXs) na região tocantina a fi m de que os camponeses pudessem ocupar legítima e legalmente as terras onde há incidência de babaçuais, não estando condicionados aos interesses dos grandes proprietários que, em havendo a valorização do babaçu, certamente ten-deriam a pretender explorar os recursos dos palmeirais localizados no interior de suas propriedades, convertendo – mais uma vez, embora por outra via – os trabalhadores agroextrativistas em assalariados e dependentes economicamente do setor empresarial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, esboço algumas conclusões:

1. Em função do movimento social das quebradeiras reafi rmar, desde sua formação, e de modo reiterado, a cultura associada ao trabalho no coco, reinventan-do-a cotidianamente, pode-se inferir que suas ações promovem um processo de (re)tradicionalização ou (re)invenção de tradições. Este processo é sinônimo de “reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da repetição quase que obrigatória”, forçando assim a visualização de “contrastes entre as constantes mudanças e inovações do mundo moderno e a tentativa de estruturar de maneira

28 Entrevistas realizadas nos dias 01 e 02.08.2007, respectivamente.

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imutável e invariável ao menos alguns aspectos da vida social” (HOBSBAWN, 2006, p. 10). A tradicionalidade, no caso das quebradeiras, refere-se então a reivindicações contemporâneas de um grupo social que vem participando do processo de construção da própria defi nição do que seja tradicional, através de mobilizações e da elaboração de uma identidade coletiva objetivada em movi-mento social (ALMEIDA, 2006a). Desta forma, o tradicional é social e politica-mente construído, lembra Alfredo Wagner Berno de Almeida (2006a). Tradição, nestes termos, não deve ser confundida necessariamente com regularidade e repetição não-consciente e/ou irrefl etida, noções que mais bem se ajustam ao conceito weberiano de costume (WEBER, 1999). Ao contrário, como explica Almeida (2006a, p. 11), tradicionalidade, aqui, diz melhor respeito a processos reais de uma população que transforma “dialeticamente suas práticas, mesmo quando” as converte “em normas para fi ns de interlocução, redefi nindo suas relações sociais e com a natureza, tais processos nos levando a pensar em” uma comunidade dinâmica, “cujos princípios encontram-se em transformação”.

2. Em razão deste processo de (re)tradicionalização, as quebradeiras de coco babaçu constituem uma população que, como as estudadas por Marshall Sahlins (1988), é produtora de sua própria história, ainda que estabeleça re-lações muito próximas com o colonizador sistema capitalista – pois o movi-mento social das quebradeiras tem buscado relacionar-se com a economia de mercado, o babaçu possuindo para as trabalhadoras pesquisadas valor-de-uso e valor-de-troca –, visando, no entanto, através destas relações, garantir uma for-ma de desenvolvimento do ponto de vista local, isto é, das quebradeiras, o que Sahlins chamara de “develop-man” (no presente caso, um verdadeiro “develop-woman”), reafi rmando assim os projetos nativos de garantir a reprodução mate-rial e simbólica das práticas e representações das quebradeiras por intermédio de uma melhor inserção no mercado, ou seja, em condições competitivas mais favoráveis ou menos desfavoráveis, dos produtos oriundos do babaçu manu-faturados localmente. A institucionalização do movimento das quebradeiras de coco babaçu foi um evento de sobeja importância para estabelecer rupturas sig-nifi cativas com uma história reifi cada de sujeição das trabalhadoras rurais aos pecuaristas herdeiros do antigo sistema do patriarcado rural e suas respectivas relações de patronagem. Trata-se de um evento importante também para transfor-mar as relações entre as quebradeiras e os interesses masculinos predominantes nas lides dos trabalhadores rurais do Araguaia-Tocantins, re-signifi cando o papel, outrora passivo e agora pró-ativo, da mulher no meio rural e nas disputas de natureza político-econômica, além de re-signifi car igualmente as relações do-mésticas de dominação, conferindo uma relevância cada vez maior ao trabalho feminino tanto dentro quanto fora do âmbito da “casa”.

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3. Todavia, nem todas as relações estabelecidas entre quebradeiras de coco e setores dominantes do capitalismo são promissoras para o grupo de mulheres trabalhadoras rurais. O caso das chamadas “novas estratégias empre-sariais” é exemplar disto. Trata-se de uma forma de contato de dada população tradicional, a das quebradeiras e seus familiares, com esferas do capitalismo direcionadas eminentemente para uma exploração ostensiva, expansiva e des-regulada dos recursos naturais, tendente ainda a uma crescente intervenção no e descaracterização do sistema cultural, sócio-organizativo e laboral dos tra-balhadores agroextrativistas da região do Araguaia-Tocantins. Um dos efeitos destrutivos destas estratégias é a conversão de quebradeiras e agricultores em catadores e carvoeiros, quer dizer, em formas mais imobilizadas de trabalho no campo, dependentes dos proprietários ou arrendatários e que não raramente chegam a assemelhar-se ao trabalho escravo, o que é uma forma de violên-cia simbólica (BOURDIEU, 2005; 2008), que às vezes transmuta-se em física, ocultando o arbitrário de uma cultura e um determinado modo de produção cuja afi rmação e reprodução, em longo prazo, interessa mormente ou tão-somente a setores hegemônicos do capitalismo, como os médios e grandes latifundiários e as indústrias de óleos vegetais e ferro-gusa. Estas estratégias do empresariado que exerce suas atividades na região tocantina têm produzido impactos sociais e ambientais notadamente agressivos, em especial porque inculcam habitus labo-rais diametralmente opostos à forma de trabalho e aos esquemas de ação, pensa-mento, apreciação e percepção que caracterizam o modo de vida e a cultura das quebradeiras e suas famílias de pequenos produtores rurais.

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Artigo recebido em: 29/05/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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ÍNDICE - PARTE II

COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRAThaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................121

Introdução1. Desenvolvimento da Atividade Pesqueira2. Histórico das Políticas Setoriais da Pesca3. Competências Materiais: O Ministério da Pesca e suas atribuições4. Competências4.1. Política Nacional4.2. Normatização4.3. Fiscalização4.4. Educação e pesquisa4.5. Ações conjuntasConclusõesReferências

TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRONTEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS AO SEU RECONHECIMENTOAlex Justus da SilveiraFernando Antonio de Carvalho Dantas.......................................................141

Introdução1.A proposital indiferença em relação aos povos indígenas no Brasil2. Um breve panorama dos discursos contrários à demarcação de Terras Indígenas3. A ausência de compreensão das diferentes territorialidades indígenasConclusãoReferências

A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEAMENTO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS Denison Melo de Aguiar Serguei Aily Franco de Camargo.................................................................159

Introdução1. A farra do Boi 2. Da decisão do Supremo Tribunal Federal

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3. Do Balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e fl ora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tu-tela de manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88)Considerações FinaisReferências

CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM: CONTRATOS DE REPARTIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA DE PROXIMIDADELiana Amin Lima da SilvaJosé Augusto Fontoura Costa.......................................................................181

Introdução1. Admissibilidade da Arbitragem2. Antinomia Jurídica3. Diálogo entre a Lei da Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor4. Viabilidade da Arbitragem Ambiental5. (In) Disponibilidade dos Direitos Difusos6. Cláusula arbitral nos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefíciosConclusãoReferências Bibliográfi cas.

A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIAAline Ferreira de Alencar Fernando Antônio de Carvalho Dantas Maria Auxiliadora Minahim........................................................................207

Introdução1. Biopirataria na Amazônia Brasileira1.1 A necessidade de Tutela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria1.2 A importância da identifi cação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria1.3 Refl exões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira Considerações FinaisReferências

A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGENTES NO CONTEXTO DA REPONSABILIZAÇÃO PENAL AMBIENTALAntônio Ferreira do Norte FilhoSerguei Aily Franco de Camargo.................................................................235

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Introdução1. Pessoa jurídica: defi nição e classifi cação2. Previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambi-ente3.Penas cominadas à pessoa jurídica por lesão ao bem ambiental4. Da discussão acerca do cabimento ou não da responsabilização penal da pessoa jurídica5. Concurso de agentes perpetradores do injusto ambientalConclusãoReferências

NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS NO PROCES-SO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICAJoaquim Shiraishi Neto................................................................................253

1. Disputa pela redefi nição da Região Amazônica2. “Novo” Direito e “Novos Movimentos Sociais”3. “Práticas Jurídicas” localizadas: “Novos” padrões jurídicosConsiderações FinaisBibliografi aDocumentos e Periódico

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COMPETÊNCIAS MATERIAIS NO CONTROLE E REGULAMENTAÇÃO DA ATIVIDADE PESQUEIRA

Thaísa Rodrigues Lustosa de Camargo Serguei Aily Franco de Camargo **

Sumário: Introdução; 1. Desenvolvimento da Atividade Pesqueira; 2. Histórico das Políticas Setoriais da Pesca; 3. Competências Materiais: O Ministério da Pesca e suas atribuições; 4. Competências; 4.1. Política Nacional; 4.2. Normatização; 4.3. Fiscaliza-ção; 4.4. Educação e pesquisa; 4.5. Ações conjuntas; Conclusões; Referências.

Resumo: Com a criação do o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-cursos Naturais Renováveis (IBAMA) em 1989, centralizou-se o controle e a regu-lamentação da atividade pesqueira, mas não houve a unifi cação da competência material no que se refere à pesca, haven-do, simultaneamente, confl itos e lacunas. A recente criação do Ministério da Pesca e Aqüicultura (MPA) dá nova importância à temática, levantando a questão das com-petências. Atualmente, o MPA encontra-se em fase de estruturação. Com isso, espera-se que questões relativas à distribuição de atribuições entre os órgãos do sistema do MMA e o novo Ministério sejam sanadas, evitando maiores entraves ao desenvolvi-mento do setor.

Palavras-chave: Atividade pesqueira; Competência material; Ministério da Pes-ca e Aqüicultura.

Abstract: Through the creation of Brazil-ian Institute of Environment and Renew-able Natural Resources (IBAMA) in 1989, fi sheries control and ruling were central-ized in this bureau, but it was not material competences unifi cation concerned to fi sh-eries, remaining confl icts and gaps. The nearly creation of Fishery and Aquaculture Ministry (FAM) highlighted this subject, demonstrating the importance of the dis-cussion about material competences. Now-adays, FAM is beginning the institutional building process. In this case it is expected that questions about administrative attri-butions distribution among environmental bureaus and the new Ministry be solved, avoiding obstacles to the development of fi shery sector.

Keywords: Fishery activity; Material com-petence; Fishery and Aquaculture Minis-try.

* Advogada, pesquisadora e mestranda em Direito Ambiental pela Universidade do Es-tado do Amazonas. Bolsista do CNPq. ** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins.

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INTRODUÇÃO

Criado através da Lei nº 7.735/89, o Instituto Brasileiro do Meio Ambi-ente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) foi um marco na história brasileira, pois, pela primeira vez, a gestão ambiental passou a ser integrada. Antes, a temática era tratada por diferentes Ministérios. O Ministério do Inte-rior, através da Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), desde 1973 cui-dava do trabalho político e de gestão de responsabilidade. Vinculados ao Minis-tério da Agricultura havia o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), responsável pela gestão das fl orestas; e a Superintendência de Pesca (SUDEPE), gestão do ordenamento pesqueiro. Por fi m, atrelado ao Ministério da Indústria e Comércio, a Superintendência da Borracha (SUDHEVEA) tinha o objetivo era viabilizar a produção da borracha. A união destes quatro órgãos deu origem ao IBAMA.

Neste período de descentralização, deram-se importantes passos em ma-téria ambiental como a elaboração da Política Nacional do Meio Ambiente - Lei nº 6.938/81, em que se estabeleceu o Sistema Nacional de Meio Ambiente (SISNAMA) e o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), único conselho com poder de legislar. Recepcionada pela Constituição Republica de 1988, a Lei ainda está em vigor.

Na década de 90, a questão ambiental cresceu em importância. Foi criado o Ministério do Meio Ambiente (1992); o Conselho Nacional de Recursos Hí-dricos (1997); a Agência Nacional das Águas (2000); o Conselho Nacional de Recursos Genéticos (2001); o Serviço Florestal Brasileiro (2006) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (2007). Também houve o sur-gimento de novas legislações: Lei das Águas (1997); Lei dos Crimes Ambientais (1998); a lei que estabelece a Política Nacional de Educação Ambiental (1999); a que estabelece o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (1999) e a Lei de Gestão de Florestas Públicas (2006).

Atualmente, têm-se, em nível federal, os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; do Meio Ambiente; da Pesca e Aqüicultura (recém-criado), além das autarquias - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-cursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto Chico Mendes de Conserva-ção da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes.

Nesse sentido, busca-se, através deste trabalho, identifi car as competên-cias materiais no que se refere à atividade pesqueira, principalmente, as com-petências do recém-criado Ministério da Pesca e Aqüicultura.

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1. DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE PESQUEIRA

Nos termos do art. 7° da Lei n° 11.959/09, o desenvolvimento da ativi-dade pesqueira deve se dar de forma sustentável, através da gestão do acesso e uso dos recursos pesqueiros (I); da determinação de áreas especialmente prote-gidas (II); do controle e a fi scalização da atividade pesqueira (IX), entre outros.

Ao poder público compete a regulamentação da Política Nacional de De-senvolvimento Sustentável da Atividade Pesqueira, devendo estabelecer, no que concerne aos recursos pesqueiros (art. 3°): os regimes de acesso (I); a captura total permissível (II); o esforço de pesca sustentável (III); os períodos de de-feso (IV); as temporadas de pesca (V); os tamanhos de captura (VI); as áreas interditadas ou de reservas (VII); as artes, os aparelhos, os métodos e os siste-mas de pesca e cultivo (VIII); a capacidade de suporte dos ambientes (IX); as necessárias ações de monitoramento, controle e fi scalização da atividade (X); a proteção de indivíduos em processo de reprodução ou recomposição de es-toques (XI).

Para o exercício da atividade (art. 24), toda pessoa (física ou jurídica, além da embarcação) deve estar previamente inscrita no Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP) e no Cadastro Técnico Federal (CTF). Segundo a Instrução Normativa nº 03/04 da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca, que dispõe sobre operacionalização do Registro Geral da Pesca, o RGP contemplará as se-guintes categorias de registro (art. 3º):

I - Pescador Profi ssional, devendo ser classifi cado como:a) Pescador Profi ssional na Pesca Artesanal; eb) Pescador Profi ssional na Pesca Industrial.II - Aprendiz de Pesca;III - Armador de Pesca;IV - Embarcação Pesqueira;V - Indústria Pesqueira;VI - Aqüicultor; eVII - Empresa que Comercia Organismos Aquáticos Vivos.Parágrafo único. O registro de que trata o caput poderá ser precedido de permissões de pesca e autorizações, conforme disposto na presente Instrução Normativa ou previsto em legislação.

A documentação necessária varia de acordo com a categoria de registro. Contudo, de modo geral, não se constitui num entrave burocrático, uma vez

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que são exigidos documentos simples, como: identidade, CPF, comprovante de residência, documento de inscrição no PIS/PASEP, duas fotos 3x4, além do pagamento de taxa

Além do RGP, também se faz necessário ato prévio autorizativo da auto-ridade competente, que podem ser (art. 25 da Lei n° 11.959/09):

I – concessão: para exploração por particular de infra-es-trutura e de terrenos públicos destinados à exploração de recursos pesqueiros;II – permissão: para transferência de permissão; para importação de espécies aquáticas para fi ns ornamentais e de aqüicultura, em qualquer fase do ciclo vital; para con-strução, transformação e importação de embarcações de pesca; para arrendamento de embarcação estrangeira de pesca; para pesquisa; para o exercício de aqüicultura em águas públicas; para instalação de armadilhas fi xas em águas de domínio da União;III – autorização: para operação de embarcação de pesca e para operação de embarcação de esporte e recreio, quando utilizada na pesca esportiva; e para a realização de torneios ou gincanas de pesca amadora;IV – licença: para o pescador profi ssional e amador ou es-portivo; para o aqüicultor; para o armador de pesca; para a instalação e operação de empresa pesqueira; V – cessão: para uso de espaços físicos em corpos d’água sob jurisdição da União, dos Estados e do Distrito Federal, para fi ns de aqüicultura. (grifo nosso)

O ato autorizarivo deve assegurar (art. 5°): a proteção dos ecossistemas e a manutenção do equilíbrio ecológico, observados os princípios de preservação da biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais (I); a busca de me-canismos para a garantia da proteção e da seguridade do trabalhador e das popu-lações com saberes tradicionais (II); e, por fi m a busca da segurança alimentar e a sanidade dos alimentos produzidos (III).

2. HISTÓRICO DAS POLÍTICAS SETORIAIS DA PESCA

A questão ambiental de modo geral, e a pesca mais especifi camente, é assunto de competência de diversos órgãos executivos, cujas atribuições apre-sentam-se confl itantes em algumas oportunidades, e vagas em outras. Ao longo

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da construção da estrutura organizacional da República, houve a criação e a extinção de órgãos voltados à temática ambiental, bem como a modifi cação de suas competências.

Inicialmente, o Decreto nº 73.030/73 cria a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA), subordinada ao Ministério do Interior, com a orientação voltada à conservação do meio ambiente, e o uso racional dos recursos naturais, destacando-se que a mesma atuava em articulação com o Ministério do Planeja-mento e Coordenação Geral. Entre suas atribuições, tinham-se (art. 4°):

a) acompanhar as transformações do ambiente através de técnicas de aferição direta e sensoreamento remoto, iden-tifi cando as ocorrências adversas, e atuando no sentido de sua correção;b) assessorar órgão e entidades incumbidas da conservação do meio ambiente, tendo em vista o uso racional dos recur-sos naturais;c) promover a elaboração e o estabelecimento de normas e padrões relativos à preservação do meio-ambiente, em especial dos recursos hídricos, que assegurem o bem-estar das populações e o seu desenvolvimento econômico e so-cial;d) realizar diretamente ou colaborar com os órgãos espe-cializados no controle e fi scalização das normas e padrões estabelecidos;e) promover, em todos os níveis, a formação e treinamento de técnicos e especialistas em assuntos relativos à preserva-ção do meio ambiente;f) atuar junto aos agentes fi nanceiros para a concessão de fi nanciamentos a entidades públicas e privadas com vista à recuperação de recursos naturais afetados por processos predatórios ou poluidores;g) cooperar com os órgãos especializados na preservação de espécies animais e vegetais ameaçadas de extinção, e na manutenção de estoques de material genético;h) manter atualizada a Relação de Agentes Poluidores e Substâncias Nocivas, no que se refere aos interesses do País;i) promover, intensamente, através de programas em escala nacional, o esclarecimento e a educação do povo brasileiro para o uso adequado dos recursos naturais, tendo em vista a conservação do meio ambiente.

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Em 1989, tal Secretaria é extinta com a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), através da Lei n°7.735/89 (conversão da MP n° 34/89), como se verá mais a frente. O Art. 4º da referida Lei estabelece a transferência de toda estrutura e competência da SEMA ao IBAMA:

O patrimônio, os recursos orçamentários, extra-orçamen-tários e fi nanceiros, a competência, as atribuições, o pes-soal, inclusive inativos e pensionistas, os cargos, funções e empregos da Superintendência da Borracha - SUDHEVEA e do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal - IBDF, extintos pela Lei nº 7.732, de 14 de fevereiro de 1989, bem assim os da Superintendência do Desenvolvimento da Pesca - SUDEPE e da Secretaria Especial do Meio Am-biente - SEMA são transferidos para o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, que os sucederá, ainda, nos direitos, créditos e obrigações, decorrentes de lei, ato administrativo ou contrato, inclusive nas respectivas receitas. (grifo nosso)

Outro órgão de destaque é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abas-tecimento. O Ministério é originário da Secretaria de Estado de Negócio da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, criada pelo Decreto Imperial n° 1067 de 1860. Em 1892, a Secretaria foi transformada no Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas, que, após 17 anos, reincorporou a pasta da agricultura, com a nova denominação de Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Na década de 30, passou a fazer parte da estrutura governamental da República e nos anos 80 perdeu a competência sobre assuntos relativos à reforma agrária e recursos fl orestais e pesqueiros.

Como autarquia federal subordinada ao Ministério da Agricultura, a Lei Delegada n° 10/62 criou a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), com as seguintes atribuições (art. 2°):

I - elaborar o Plano Nacional de Desenvolvimento da Pesca (PNDP) e promover a sua execução;II - prestar assistência técnica e fi nanceira aos empreendi-mentos de pesca;III - realizar estudos, em caráter, permanente, que visem à atualização das leis aplicáveis à pesca ou aos recursos pesqueiros [fauna e fl ora de origem aquática], propondo as providências convenientes;

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IV - aplicar no que couber, o Código de Pesca e a legislação das atividades ligadas à pesca ou aos recursos pesqueiros;V - pronunciar-se sobre pedidos de fi nanciamentos desti-nados à pesca formulados a entidades ofi ciais de crédito;VI - coordenar programas de assistência técnica nacional ou estrangeira;VII - assistir aos pescadores na solução de seus problemas econômico-sociais.

Referida Lei dispõe ainda que a antiga SUDEPE podia (art. 3°):

I - executar, diretamente, ou mediante convênio, acordo ou contrato, projetos relativos ao desenvolvimento da pesca;II - complementar, quando conveniente a ação dos órgãos estaduais e exercer, supletivamente, a fi scalização do cumprimento das normas federais no âmbito de suas atri-buições;III - propor a fi xação de preços de produtos pesqueiros para efeito do redesconto de títulos negociáveis representativos de mercadorias depositadas;IV - propor a fi xação de preços do gelo e outros produtos essenciais à pesca e ao benefi ciamento e distribuição do pescado;V - avaliar a necessidade de importações em função do PNDP fi xando quantitativos e recursos para satisfazê-la, em cooperação com os órgãos de controle do comércio ex-terior;VI - formar e aperfeiçoar pessoal especializado;VII - efetuar operações de revenda e fi nanciamento de embarcações, equipamentos e outros artigos essenciais às atividades pesqueiras;VIII - efetuar quaisquer operações fi nanceiras com as enti-dades ofi ciais de crédito, inclusive sob garantia do Tesouro Nacional;IX - propor a concessão de licenças especiais visando à boa execução do PNDP;X - subscrever capital de empresas que executem projetos industriais essenciais no âmbito do PNDP;XI - assumir, através de convênio, a administração de setores federais e estaduais ligados às atividades pesquei-ras;XII - pronunciar-se sobre iniciativas de órgãos públicos, que afetem a pesca;

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XIII - praticar quaisquer outros atos necessários ao desem-penho de suas atribuições.

Na década de 90, a competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento sofreu diversas adequações através de novas legislações. Com a Medida Provisória n° 150, convertida na Lei nº 8.028/90, recuperou-se tradi-cionais atribuições, com exceção do abastecimento, além das ações de coor-denação política e da execução da reforma agrária e dos assuntos de irrigação. Posteriormente, incorporou os assuntos de abastecimento, de política agrícola e de desenvolvimento rural (Lei nº 8.344/91).

Assim como sua competência, sua denominação também sofreu alterações. Em 1992, passou a ser designado de Ministério da Agricultura, Abastecimento e Re-forma Agrária (Lei nº 8.490/92), contudo, manteve suas atribuições. Em 1996, a Medida Provisória n° 1450/96, convertida na Lei nº 9.649/98, trouxe novamente a temática dos recursos pesqueiros e redistribuiu a competência referente à con-dução e execução da política de reforma agrária. Na oportunidade, o Ministério, que passou a se chamar Ministério da Agricultura e do Abastecimento, rece-beu a competência relacionada ao apoio da produção e ao fomento da ativi-dade pesqueira, a ser exercida através do Departamento de Pesca e Aqüicultura (DPA). Dessa forma, o MMA e o IBAMA permaneceram com as atribuições da política de preservação, conservação e do uso sustentável dos recursos naturais.

Com a Medida Provisória n° 1911-8/99, são incorporadas competências do Ministério da Indústria e Comércio, como os assuntos relativos à política do café, açúcar e álcool e ao planejamento e exercício da ação governamental nas atividades do setor agro-industrial canavieiro. O termo “pecuária” é agregado à denominação ministerial através da MP n° 2.216-37/01, tornando-se, assim, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Com a edição da MP n° 103/03, convertida na Lei n° 10.683/03, nova-mente, os assuntos pesqueiros são retirados da competência ministerial, passando à responsabilidade da criada Secretaria Especial da Aqüicultura e Pesca (SEAP), ligada diretamente à Presidência da República. Possuindo status de Ministé-rio, a SEAP surge com o intuito de fomentar e desenvolver o setor pesqueiro, permanecendo a gestão compartilhada do uso dos recursos pesqueiros com o Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Criado em 1992, o MMA possui o intuito de

[...] promover a adoção de princípios e estratégias para o conhecimento, a proteção e a recuperação do meio ambi-ente, o uso sustentável dos recursos naturais, a valorização

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dos serviços ambientais e a inserção do desenvolvimento sustentável na formulação e na implementação de políticas públicas, de forma transversal e compartilhada, participativa e democrática, em todos os níveis e instâncias de governo e sociedade.1

A Lei nº 10.683/03 (art. 27, XV) estabeleceu sua competência sobre:

a) política nacional do meio ambiente e dos recursos hí-dricos;b) política de preservação, conservação e utilização susten-tável de ecossistemas, e biodiversidade e fl orestas;c) proposição de estratégias, mecanismos e instrumentos econômicos e sociais para a melhoria da qualidade ambien-tal e o uso sustentável dos recursos naturais;d) políticas para a integração do meio ambiente e produção;e) políticas e programas ambientais para a Amazônia Le-gal; e f) zoneamento ecológico-econômico.

Seus órgãos colegiados são os Conselhos Nacional do Meio Ambiente (CONAMA); Nacional da Amazônia Legal (CONAMAZ); Nacional de Recur-sos Hídricos; Deliberativo do Fundo Nacional do Meio Ambiente; de Gestão do Patrimônio Genético; e as Comissões de Gestão de Florestas Públicas; e Na-cional de Florestas (CONAFLOR). Como entidades vinculadas, o MMA possui quatro autarquias: a Agência Nacional de Águas (ANA); o Instituto de Pesqui-sas Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ); o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA); e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), estes dois últimos de in-teresse do presente plano de atividades.

A Medida Provisória n° 34/89, posteriormente convertida na Lei n° 7.735/89, extinguiu a Secretaria Especial do Meio Ambiente (SEMA) do Minis-tério do Interior e a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca (SUDEPE), autarquia vinculada ao Ministério da Agricultura (art. 1°), e criou o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), como autarquia vinculada ao Ministério de Meio Ambiente (art. 2°).

1 MMA, 2009.

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Com a Lei nº 11.516/07, é criado o Instituto Chico Mendes de Conserva-ção da Biodiversidade - Instituto Chico Mendes, como autarquia federal vincu-lada ao Ministério do Meio Ambiente, com a fi nalidade de (art. 1°):

I - executar ações da política nacional de unidades de con-servação da natureza, referentes às atribuições federais relativas à proposição, implantação, gestão, proteção, fi s-calização e monitoramento das unidades de conservação instituídas pela União;II - executar as políticas relativas ao uso sustentável dos recursos naturais renováveis e ao apoio ao extrativismo e às populações tradicionais nas unidades de conservação de uso sustentável instituídas pela União;III - fomentar e executar programas de pesquisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e de educação ambiental;IV - exercer o poder de polícia ambiental para a proteção das unidades de conservação instituídas pela União; eV - promover e executar, em articulação com os demais órgãos e entidades envolvidos, programas recreacionais, de uso público e de ecoturismo nas unidades de conservação, onde estas atividades sejam permitidas.

Frente à criação do Instituto, as fi nalidades do IBAMA são re-estabe-lecidas pela referida Lei (art. 5°), que altera o art. 2° da Lei n° 7.735/89, quais sejam:

I - exercer o poder de polícia ambiental;II - executar ações das políticas nacionais de meio ambi-ente, referentes às atribuições federais, relativas ao licen-ciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fi scalização, monitoramento e controle ambiental, observadas as dire-trizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente; eIII - executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente.

O parágrafo único do art. 1° Lei nº 11.516/07 destaca ainda que o IBAMA passa a exercer o poder de polícia de forma suplementar ao Instituto.

Em 1998, com a criação do Departamento de Pesca e Aqüicultura (DPA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento fi ca com algumas atri-

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buições do IBAMA. No entanto, como demonstra Surgik2, na prática, houve uma sobreposição de competências entre o DPA e o citado órgão fi scalizador.

Recentemente, a Lei n° 11.958, de 26 de junho de 2009 dispõe, em seu art. 2°, sobre a transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura. A criação e as competências desse novo Ministério serão objeto de análise no próximo tópico.

A Lei nº 11.959/09, que dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvi-mento Sustentável da Aqüicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a Lei nº 7.679/88, e dispositivos do Decreto-Lei nº 221/67. Entre os tópi-cos mantidos do Decreto-Lei, tem-se: a exigência de inscrição das embarcações na Superintendência do Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE; a exigência de inscrição das indústrias pesqueiras no Registro Geral da Pesca, sob responsabi-lidade de SUDEPE; a concessão de licença anual para o exercício da pesca a amadores, nacionais ou estrangeiros; a exigência do registro de aquicultores amadores ou profi ssionais; o estabelecimento do pagamento de taxas às em-presas que comercializam animais aquáticos; e a instituição do Registro Geral de Pesca. Apesar de mantidos, referidos artigos referem-se, na atualidade, ao Ministério da Pesca, uma vez que a SUPEDE é um órgão extinto.

A nova lei modifi cou o conceito de pesca, que era compreendida pelo Decreto-Lei 221/67, como “[...] todo ato tendente a capturar ou extrair elemen-tos animais ou vegetais que tenham na água seu normal ou mais freqüente meio de vida” (art. 1°). Com a Lei n° 11.959/09, tem-se a pesca como “toda operação, ação ou ato tendente a extrair, colher, apanhar, apreender ou capturar recursos pesqueiros” (art. 2°, III).

Dessa forma, verifi ca-se a mudança da nomenclatura de “elementos ani-mais ou vegetais” para “recursos pesqueiros”, tornando, assim, a legislação mais técnica e com conceitos específi cos. Nos termos do inciso I do art. 2° da citada Lei, recursos pesqueiros são “os animais e os vegetais hidróbios passíveis de exploração, estudo ou pesquisa pela pesca amadora, de subsistência, científi ca, comercial e pela aqüicultura”.

Referida Lei também trouxe a defi nição de atividade pesqueira, como “[...] todos os processos de pesca, explotação e exploração, cultivo, conser-vação, processamento, transporte, comercialização e pesquisa dos recursos pesqueiros”. (art. 4° da Lei n° 11.959/09). Dessa forma, toda a cadeia de pesca é englobada – captura, transporte, benefi ciamento, estocagem e comercialização.

A Lei 11.959/09 estabeleceu ainda no art. 33 que a punição das condutas

2 Avaliação Crítica da aplicabilidade da Legislação do Setor Pesqueiro. In: O setor pesqueiro na Amazônia, 2007, p.101.

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e atividades lesivas aos recursos pesqueiros e ao meio ambiente será feita nos termos da Lei n° 9.605/98, e de seu regulamento; além de prever que o estímulo às pessoas físicas ou jurídicas que desenvolvem a atividade pesqueira será feito através dos benefícios da política agrícola, como o crédito rural, da capacitação da mão-de-obra, voltada ao desenvolvimento sustentável, e do estímulo à pes-quisa.

O art. 2° do Decreto-Lei n° 221/67 estabelecia que a pesca poderia se efetuar com fi ns comerciais, desportivos (amadores) ou científi cos. Referido artigo foi expressamente revogado pela Lei n° 11.959/09 que, por sua vez, clas-sifi ca a pesca (art. 8°) em comercial (artesanal ou industrial) ou não comercial (científi ca, amadora e de subsistência); e a aqüicultura (art. 19) em: comercial; científi ca ou demonstrativa; de recomposição ambiental; familiar ou ornamen-tal.

O art. 27, XXIV, h da Lei n° 10.683/03 (alterado pela Lei n° 11.958/09) apresenta como modalidades de pesca: comercial, compreendendo as categorias industrial e artesanal; de espécimes ornamentais; de subsistência e; amadora ou desportiva.

Desta forma, verifi ca-se a existência de diversos órgãos competentes, as-sim como a evolução legislativa e normativa sobre o tema que, ao longo dos anos, vem modifi cando conceitos referentes à pesca e às atribuições dos atores envolvidos. Razão pela qual, faz-se necessário verifi car claramente as com-petências de cada entidade, os gargalos e as lacunas normativos existentes.

3. COMPETÊNCIAS MATERIAIS: O MINISTÉRIO DA PESCA E SUAS ATRI-BUIÇÕES

Conforme já disposto, o Ministério da Pesca foi criado pela Lei n° 11.958, de 26 de junho de 2009, que altera a Lei n° 10.683/03, a partir da transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura. Entre suas competências, têm-se (art. 27, XXIV da Lei n° 10.683/03):

a) política nacional pesqueira e aquícola, abrangendo produção, transporte, benefi ciamento, transformação, comer-cialização, abastecimento e armazenagem; b) fomento da produção pesqueira e aquícola;c) implantação de infra-estrutura de apoio à produção, ao

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benefi ciamento e à comercialização do pescado e de fo-mento à pesca e aqüicultura;d) organização e manutenção do Registro Geral da Pesca;e) sanidade pesqueira e aquícola;f) normatização das atividades de aqüicultura e pesca;g) fi scalização das atividades de aqüicultura e pesca no âm-bito de suas atribuições e competências;h) concessão de licenças, permissões e autorizações para o exercício da aqüicultura e das seguintes modalidades de pesca no território nacional, compreendendo as águas con-tinentais e interiores e o mar territorial da Plataforma Con-tinental, da Zona Econômica Exclusiva, áreas adjacentes e águas internacionais, excluídas as Unidades de Conserva-ção federais e sem prejuízo das licenças ambientais previs-tas na legislação vigente [...];i) autorização do arrendamento de embarcações estrangei-ras de pesca e de sua operação, observados os limites de sustentabilidade estabelecidos em conjunto com o Ministé-rio do Meio Ambiente; j) operacionalização da concessão da subvenção econômica ao preço do óleo diesel instituída pela Lei n° 9.445, de 14 de março de 1997;l) pesquisa pesqueira e aquícola; em) fornecimento ao Ministério do Meio Ambiente dos dados do Registro Geral da Pesca relativos às licenças, permissões e autorizações concedidas para pesca e aqüi-cultura, para fi ns de registro automático dos benefi ciários no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e Utilizadoras de Recursos Ambientais.

Apesar da transformação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca em Ministério, os dispositivos da Lei n° 10.683/03 que tratavam sobre a trans-ferência de competências do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimen-to para referida Secretaria foram mantidos:

Art. 32. São transferidas as competências:[...]VI - do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimen-to, relativas à aqüicultura e pesca, para a Secretaria Espe-cial de Aqüicultura e Pesca;Art. 33. São transferidos:[...]

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III - o Departamento de Pesca e Aqüicultura, da Secretaria de Apoio Rural e Cooperativismo do Ministério da Agricul-tura, Pecuária e Abastecimento para a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República

O Ministério compreenderá, em sua estrutura organizacional, as Super-intendências Federais de Pesca e Aqüicultura, unidades descentralizadas cuja jurisdição limita-se a cada Estado da Federação e ao Distrito Federal, que pos-suem a competência de (art. 9° da Lei n° 11.958/09): fomento e desenvolvimento da pesca e da aqüicultura (I); apoio à produção, ao benefi ciamento e à comercialização do pescado (II); sanidade pesqueira e aquícola (III); pesquisa e difusão de infor-mações científi cas e tecnológicas relativas à pesca e à aqüicultura (IV); assuntos relacionados à infra-estrutura pesqueira e aquícola, ao cooperativismo e asso-ciativismo de pescadores e aqüiculturas e às Colônias e Federações Estaduais de Pescadores (V); administração de recursos humanos e de serviços gerais (VI); programação, acompanhamento e execução orçamentária e fi nanceira dos recursos alocados (VII); qualidade e produtividade dos serviços prestados aos usuários e aperfeiçoamento da gestão da Superintendência (VIII).

O Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca, por seu turno, possui a competência de formular a política nacional de sua área, propondo diretrizes para o desenvolvimento e fomento da produção; apreciar as diretrizes para o desenvolvimento do plano de ação da pesca e aquicultura e propor medidas destinadas a garantir a sustentabilidade da atividade, nos termos do art. 29, §7° da Lei n° 10.683/03.

O § 4o do art. 27 da supracitada Lei dispõe ainda que a competência do Ministério do Meio Ambiente para o zoneamento ecológico-econômico “[...] será exercida em conjunto com os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abas-tecimento; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Integração Nacional; e da Pesca e Aquicultura”.

O MMA também deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (art. 27, § 6o da Lei n° 10.683/03), quais sejam: “fi xar as normas, critérios, padrões e medidas de ordenamento do uso sustentável dos recursos pesqueiros, com base nos melhores dados científi cos e existentes, na forma de regulamento” (I); e “subsidiar, assessorar e participar, em interação com o Ministério das Relações Exteriores, de negociações e eventos que envolvam o comprometimento de di-reitos e a interferência em interesses nacionais sobre a pesca e aqüicultura” (II).

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4. COMPETÊNCIAS

4.1. POLÍTICA NACIONAL

O MMA possui competência sobre a política nacional do meio ambiente e dos recursos hídricos e a política de preservação, conservação e utilização sustentável de ecossistemas, e biodiversidade e fl orestas, nos termos do art. 27, XV, a e b da Lei nº 10.683/03. O Conselho Nacional de Pesca, do MPA, por seu turno, tem competência sobre a política nacional pesqueira e aquícola, abran-gendo produção, transporte, benefi ciamento, transformação, comercialização, abastecimento e armazenagem (Lei n° 11.958/09, art. 27, XXIV).

O primeiro confl ito encontra-se na própria política, uma vez que os recur-sos pesqueiros integram diversos ecossistemas, possuindo diversidade especí-fi ca e, em grande parte desconhecida (v.g. na bacia Amazônica, onde estimativas mais conservadoras indicam cerca de 2000 espécies de peixes, enquanto outras chegam a indicar até 5.000, para um universo descrito de algumas poucas cen-tenas). Cabendo, dessa forma, aos dois Ministérios versarem sobre o assunto. A duplicidade de regulamentação sobre um mesmo recurso natural, proveniente de ministérios com orientações distintas pode ensejar problemas práticos, inter-ferindo na distribuição das competências materiais.

As ações de execução das políticas fazem parte da esfera das autarquias do MMA: IBAMA e Chico Mendes. No primeiro caso, as ações referem-se “[...] às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fi scaliza-ção, monitoramento e controle ambiental [...]” (Lei nº 7.735/89, art. 2°, II). O Instituto Chico Mendes possui uma atribuição mais restrita, sendo competente especifi camente para executar ações em unidades de conservação instituídas pela União (Lei nº 11.516/07, art. 1°, I), o que também está incluído nas atri-buições genéricas do IBAMA.

4.2. NORMATIZAÇÃO

O Ministério da Pesca e Aqüicultura incorporou a competência da extinta SUDEPE de normatizar as atividades de aqüicultura e pesca (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, f – alterado pela Lei n° 11.958/09). No entanto, o Conselho Na-cional do MMA é o único com poder verdadeiramente normativo. A legislação também prevê que o MMA deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA nas temáticas relacionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (art.

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27, § 6°, I), quais sejam: “fi xar as normas, critérios, padrões e medidas de orde-namento do uso sustentável dos recursos pesqueiros, com base nos melhores da-dos científi cos e existentes, na forma de regulamento”. Esta “parceria” forçada tende a entravar a normatização em função das diferenças de orientação dos dois ministérios: enquanto o MMA possui visão tradicionalmente conservacionista, o MPA parece ter sido criado com uma orientação mais produtivista.

4.3. FISCALIZAÇÃO

A fi scalização das atividades de aqüicultura e pesca é competência do MPA no âmbito de suas atribuições e competências (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, g). Contudo o poder de polícia ambiental pertence ao IBAMA (Lei n° 7.735/89, art. 2°, I), excetuando a fi scalização nas unidades de conservação instituídas pela União, onde passa ter um poder de polícia suplementar ao do Instituto Chico Mendes (Lei nº 11.516/07, art. 1°, IV).

Na prática, este tipo de distribuição de atribuições provoca problemas operacionais. Na região do Pantanal do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, quem fi scaliza a atividade de pesca esportiva são órgãos estaduais, que ignoram se os pescadores portam licenças federais (expedidas até então pelo IBAMA), exigindo apenas o porte das estaduais. Esta prática provoca evasão de divisas da esfera federal para as estaduais.3

4.4. EDUCAÇÃO E PESQUISA

Cabe às Superintendências Federais de Pesca e Aqüicultura do MPA a competência pela pesquisa pesqueira e aquícola (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, l). Ao Instituto Chico Mendes, fomentar e executar programas de pes-quisa, proteção, preservação e conservação da biodiversidade e de educação ambiental (Lei nº 11.516/07, art. 1º, III).

A questão da promoção da educação ambiental era melhor explicitada na legislação da extinta Secretaria Especial do Meio Ambiente (Dec. nº 73.030/73, art. 4), cujas competências incluíam: promover, em todos os níveis, a formação e treinamento de técnicos e especialistas em assuntos relativos à preservação do meio ambiente; promover, intensamente, através de programas em escala nacio-

3 BERNADINO, Geraldo. Gestão de recursos pesqueiros. Manaus, Universidade do Estado do Amazonas, 17 de abril de 2009.

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nal, o esclarecimento e a educação do povo brasileiro para o uso adequado dos recursos naturais, tendo em vista a conservação do meio ambiente.

4.5. AÇÕES CONJUNTAS

Há ainda as previsões de parcerias entre o MMA e o MPA. O MMA tam-bém deverá atuar em conjunto e sob a coordenação do MPA nas temáticas rela-cionadas ao uso sustentável dos recursos pesqueiros (Lei n° 10.683/03, art. 27, §6o, I), como, por exemplo, o estabelecimento de limites de sustentabilidade para autorização de embarcações estrangeiras (art. 27, XXIV, i), conforme já citado.

O MPA deve fornecer ao Ministério do Meio Ambiente os dados do Registro Geral da Pesca relativos às licenças, permissões e autorizações conce-didas para pesca e aqüicultura, para fi ns de registro automático dos benefi ciários no Cadastro Técnico Federal de Atividades Potencialmente Poluidoras e Uti-lizadoras de Recursos Ambientais (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, m).

O MMA também deve atuar em parceria com o Ministério das Relações Exteriores para “subsidiar, assessorar e participar de negociações [...] e eventos que envolvam o comprometimento de direitos e a interferência em interesses nacionais sobre a pesca e aqüicultura” (Lei n° 10.683/03, art. 27, XXIV, §6°, II).IBAMA deve executar as ações supletivas de competência da União, de confor-midade com a legislação ambiental vigente.

CONCLUSÕES

Antes da criação da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca e, poste-riormente, do Ministério da Pesca e Aqüicultura, a atividade pesqueira estava ligada ao Ministério do Meio Ambiente, que possui visão mais conservacionista (incentivando o manejo adequado e a utilização racional desses recursos). Após o lançamento do Programa Fome Zero e o início das atividades da SEAP, a visão passa a ser produtivista, com enfoque maior sobre a aqüicultura e insumos de produção pesqueiros, principalmente sobre o fomento ao setor.

Com o Ministério da Pesca e Aqüicultura, a discussão em torno das com-petências toma maior relevância e especifi cidade, apesar da falta de clareza e incertezas futuras, posto que o MPA encontra-se em fase de estruturação.

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Mesmo sabendo-se que a temática ambiental é única e que os recursos pesqueiros não podem ser observados e compreendidos separadamente do meio ambiente como um todo, as diversas previsões de ações conjuntas entre o MMA e o MPA ou das previsões de competências ministeriais simultâneas geram problemas práticos, como sobreposição de regras e/ou lacunas.

No momento, com o fi nal recente do período de vacatio legis da norma que criou o MPA, e início do seu processo de estruturação, resta aguardar pelas articulações interministeriais, minimizando eventuais confl itos de competência e atuação prática dos órgãos da administração pública.

REFERÊNCIAS

BERNADINO, G. Gestão de recursos pesqueiros. Manaus, Universidade do Estado do Amazonas, 17 de abril de 2009. Entrevista concedida a Serguei Aily Franco de Camargo.

BRASIL. Decreto nº 73.030, de 30 de outubro de 1973. Cria, no âmbito do Ministério do Interior, a Secretaria Especial do Meio Ambiente - SEMA, e da outras providências. Disponível em: http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=2025 56. Acessado em 20 de julho de 2009. _____. Decreto-Lei n° 221, de 28 de fevereiro de 1967. Dispõe sobre a proteção e estímulos à pesca e dá outras providências. Disponível em: http://www.plan-alto.gov.br/ccivil_03/ Decreto-Lei/Del0221.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fi ns e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L6938.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei nº 7.735, 22 de fevereiro de 1989. Dispõe sobre a extinção de órgão e de entidade autárquica, cria o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re-cursos Naturais Renováveis e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/ L7735.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

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_____. Lei nº 8.344, de 27 de dezembro de 1991. Dá nova redação aos arts. 19, inciso VI e 23, inciso V, da Lei nº 8.028, de 12 de abril de 1990, e 19, inciso II, da Lei nº 8.029, de 12 de abril de 1990, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8344.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei nº 8.490, de 19 de novembro de 1992. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8490.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9605.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1998. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Dis-ponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/L9649.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei n° 10.683, de 28 de maio de 2003. Dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L10683.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei n° 11.958, de 26 de junho de 2009. Altera as Leis nos 7.853, de 24 de outubro de 1989, e 10.683, de 28 de maio de 2003; dispõe sobre a transforma-ção da Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aqüicultura; cria cargos em comissão do Grupo-Di-reção e Assessoramento Superiores – DAS e Gratifi cações de Representação da Presidência da República; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L11958. htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei nº 11.959, de 29 de junho de 2009. Dispõe sobre a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aqüicultura e da Pesca, regula as atividades pesqueiras, revoga a Lei no 7.679, de 23 de novembro de 1988, e dispositivos do Decreto-Lei no 221, de 28 de fevereiro de 1967, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L11959.htm. Acessado

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em: 21 de julho de 2009.

_____. Lei Delegada n° 10, de 11 de outubro de 1962. Cria a Superintendência do Desenvolvimento da Pesca e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/Leis/Ldl/Ldl10.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

_____. Medida Provisória n° 2.216-37, de 31 de agosto de 2001. Altera disposi-tivos da Lei no 9.649, de 27 de maio de 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências. Dis-ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/MPV/2216-37.htm. Acessado em: 21 de julho de 2009.

INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS - IBAMA. História do IBAMA. Disponível em: http://www.ibama.gov.br/ institucional/historico. Acessado em 20 de julho de 2009.

MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, PECUÁRIA E DESENVOLVIMENTO. Histórico do MAPA. Disponível em: http://www.agricultura.gov.br. Acessado em 20 de julho de 2009.

MINISTÉRIO DA PESCA E DA AQÜICULTURA – MPA. Histórico da SEAP. Disponível em: http://tuna.seap.gov.br/seap/html/sobre_secretaria/historico_main.html. Acessado em 21 de julho de 2009.

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SURGIK, A. C. S. Avaliação Crítica da aplicabilidade da Legislação do Setor Pesqueiro. In: O setor pesqueiro na Amazônia: análise da situação atual e tendências do desenvolvimento a indústria pesqueira / Projeto Manejo de Re-cursos Naturais da Várzea. Manaus: IBAMA/ProVárzea, 2007.

Artigo recebido em: 30/05/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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TERRAS INDÍGENAS NAS FAIXAS DE FRON-TEIRA DA AMAZÔNIA BRASILEIRA: UMA BREVE ANÁLISE DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS AO SEU

RECONHECIMENTO

Alex Justus da Silveira *Fernando Antonio de Carvalho Dantas **

Sumário: Introdução; 1.A proposital indiferença em relação aos povos indígenas no Brasil; 2. Um breve panorama dos discursos contrários à demarcação de Terras Indíge-nas; 3. A ausência de compreensão das diferentes territorialidades indígenas; Conclusão; Referências.

Resumo: O presente artigo tem como obje-to de análise alguns dos discursos que tem sido difundidos no sentido de questionar o reconhecimento das terras indígenas na faixa de fronteira da Amazônia brasileira, sob o argumento de que essas representam vazios demográfi cos e que, por isso, impli-cam num risco à segurança e à soberania nacional. Este trabalho também trata, ainda que de forma sucinta, sobre o histórico de esquecimento e negligência em relação aos povos indígenas brasileiros, que refl etiu di-retamente na formação de um inconsciente coletivo fortemente marcado pela margin-alização do índio na sociedade nacional, de forma a velar a importância deste povo à memória da sociedade Brasileira.

Palavras-chave: direito indigenista, di-reito territorial indígena, Estado Nacional, fronteiras nacionais,

Abstract: The current article aims to analyse the speeches that has been spread with the objective to question the recogni-tion of indigenous territories in the bor-derline zone in Brazilian Amazon, under the argument that this territories has very reduced demographic density, which rep-resents a risk to sovereignty and national safety. Moreover, the article still propose to point out the historic of forgetness and negligence about the indigenous people in Brazil, wich refl ected directly to create an inconscient collective at the national soci-ety in sense of hide the importance of in-digenous people in the Brasilian memory.

Key-words: indigenous law, indigenous territory, National State, border zone.

* Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas – UEA. **Doutor em Direito e Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas-UEA.

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INTRODUÇÃO

Os processos de reconhecimento de terras indígenas nas faixas de fron-teira do território brasileiro vêm suscitando inúmeros debates nos ambientes político, social, econômico, ambiental e jurídico. Discursos alarmistas, como os que propagam a idéia de que as terras indígenas constituem vazios demográfi -cos, ou então, que as extensões territoriais indígenas são muito vastas proporcio-nalmente ao número de indígenas, tratam o reconhecimento das terras indígenas em faixas de fronteira como ameaça à segurança e à soberania nacional.

A grande questão é que tais fundamentos vêm sendo incorporado por vári-os segmentos da sociedade brasileira, e o mais importante, estão sendo tratados como verdades absolutas, de maneira a desconsiderar qualquer versão contrária e de forma a incitar demais atores sociais a se posicionarem como antagonistas aos interesses e direitos indígenas.

A difusão de discursos que questionam a necessidade de grandes exten-sões de terras aos indígenas, ou então, o argumento de que a demarcação de Terras Indígenas signifi ca a ausência do Estado brasileiro e a possibilidade de atuação estrangeira nessas regiões, é constituído por argumentos preconceituo-sos, desconhecedores da legislação em vigor e repleto de interesses obscuros com objetivos bem defi nidos.

A idéia que a sociedade tem sobre os povos indígenas é de que o índio já deixou de existir, e o que resta são meros descendentes ou remanescentes de índios que um dia habitaram idilicamente as terras que hoje compõem o Brasil. A própria educação que o Estado e as instituições de ensino particular oferecem reforça a imagem dos índios apenas como personagem coadjuvante da história do Brasil.

O que se pretende com este artigo é demonstrar que alguns discursos que tem se difundido no cenário nacional omitem o verdadeiro sentido de sua existência. Alguns segmentos sociais tem se apropriado de discursos diversos a fi m de legitimar interesses obscuros que muitas vezes passam despercebidos aos olhos dos menos atentos.

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1. A PROPOSITAL INDIFERENÇA EM RELAÇÃO AOS POVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Na história econômica brasileira, João Pacheco de Oliveira Filho lembra que o índio é constantemente apontado como um óbice ao desenvolvimento da colônia, depois do Império, e por fi m, um obstáculo à evolução econômica do Estado brasileiro. O índio só é retratado na historiografi a econômica do Bra-sil no período das drogas do sertão, “certamente pelas suas características de nomadismo e rusticidade de que estava investida tal atividade.” (OLIVEIRA FILHO, 1999, 197)

Outro exemplo do descaso em relação à fi gura do índio se deu no ciclo da borracha, período no qual o índio é mencionado apenas por sua ferocidade e agressividade; esquece-se, entretanto, de sua importância no trato com a se-ringa, no conhecimento da fl oresta, na arte da caça e da pesca, e ignoram-se os milhares de indígenas que trabalhavam sob um cruel e indigno trabalho escravo regido pelo sistema de aviamento característico dos seringais da Amazônia.

Esta idéia preconceituosa e simplista sobre os povos indígenas brasileiros, na visão de Benedito do Espírito Santo Pena Maciel, ainda persiste no imaginário de grande parte da sociedade brasileira. A memória escrita pelos “vencedores” e difundidas por meio dos livros de ensino primário e secundário “se transforma em ideologia e mostra seu poder de dominação e destruição da memória indí-gena”. (MACIEL, 2006, 195)

É neste contexto de destruição e menosprezo da memória indígena na his-toriografi a de construção do Brasil, que se esquece da importância que os grupos indígenas tiveram na consolidação das fronteiras brasileiras atuais. A expansão das fronteiras da colônia portuguesa contou com a contribuição dos bandeiran-tes paulistas e dos sertanistas da Amazônia, no sentido de garantir um espaço à Coroa portuguesa que não era previsto no Tratado de Tordesilhas anteriormente fi rmado, na medida em que essas áreas que vinham sendo ocupadas pelos portu-gueses estavam fora das linhas traçadas pelo pacto tordesilhano.

A fronteira fora empurrada sem cessar e sem quase inci-dente, em direção oeste, sobre as posições espanholas. Aplaudindo a marcha serena e segura, o governo de Lisboa estabeleceu novas entidades administrativas nesses sertões, desbravados pela energia e pelo espírito aventureiro de seus homens da América. Vilas, cidades, comarcas, paróquias, bispados tinham sido criados. O povoamento e a explora-

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ção da terra pelo trabalho agrário, pela criação de gado, pela exploração do subsolo, pela coleta da matéria prima ativa eram uma realidade incontestável. (REIS, 1947, 47)

Como o Tratado de Tordesilhas não teve efi cácia no seu cumprimento, iniciou-se a partir de 1730 novas negociações, que culminou com a assinatura do Tratado de Madri, em 1750. O Tratado de Madri também não surtiu o efeito esperado, no entanto, sua importância para a consolidação das fronteiras lu-sitana é de grande relevância, na medida que inseriu nos cenários de discussão sobre fronteiras, o princípio do uti possidetis, que em linhas gerais, garantia o direito de propriedade àquele que estivesse ocupando efetivamente o território. (GOES FILHO, 1999)

A partir deste momento, Portugal se dá conta da importância e das van-tagens que teria no caso de sustentar o conceito de fronteira que tivesse como característica fundamental a presença antrópica de seus “aliados” e passa a sus-tentar esta defi nição. O Império lusitano, neste momento, tomou “consciência da importância dos índios amazônicos como seus partidários e também como mão-de-obra indispensável, principalmente nos serviços de coleta de drogas do sertão, na caça e na pesca.” (TORRES, 2006, 129)

Neste período, a Metrópole passa a dar uma importância enorme aos in-dígenas, sobretudo na região amazônica, incentivando

a ocupação de pontos estratégicos, a organização de nú-cleos de povoamento com a própria gentilidade, o estabe-lecimento da ordem política, com equipamento adminis-trativo representado pelas autoridades civis e militares, o amansamento e incorporação, à cristandade e à soberania lusa, das multidões gentias, pela ação direta e ofi cial dos missionários a serviço do Estado, a experiência agrária, a distribuição das sesmarias aos colonos que foram che-gando, a miscigenação intensiva que aos poucos criou no-vos tipos sociais sufi cientemente integrados na região, os muitos outros aspectos de atividade que dão fundamento às empresas coloniais e ao estabelecimento dos domínios e constituíram elementos impressivos no empreendimento lusitano no vale. (REIS, 1947, 48-49)

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Apreende-se que uma das estratégias de ocupação da Amazônia sempre levou em consideração a presença indígena no sentido de fortalecer os núcleos de povoamento português na região. O índio, portanto, era considerado elemen-to essencial para a consolidação da hegemonia portuguesa na região Amazônica. Anos mais tarde, verifi car-se-á que a defi nição das fronteiras levou em con-sideração a posse dos seus colonos numa dada região, fato este que não se concretizaria sem a presença do índio para fortalecer os núcleos de povoamento na Amazônia.

Mesmo diante de fatos historicamente comprovados, na memória coletiva do povo brasileiro não indígena, pouco se sabe da importância destes povos para a constituição do território brasileiro atual. Verifi ca-se por meio de estudos historiográfi cos, que as autoridades portuguesas dos séculos XVIII, XIX, e XX se legitimaram do discurso de ocupação portuguesa na região a fi m de obter as vantagens que posteriormente foram consagradas nos Tratados de Madri e de Utrecht. Não se pode esquecer que essa ocupação se deu na forma de núcleos de povoamento que Portugal afi rmava ter consolidado, legitimando-se, portanto, do uti possidetis para garantir seu direito de domínio de vastas regiões. O que se esquece de trazer à tona é o fato de que o povoamento destes núcleos “portugue-ses” era constituído predominantemente por indígenas.

Sobre essa memória coletiva, é de suma importância apreendermos que ela “pode ser manipulada e dominada pelo estado e pela sociedade majoritária, que através de vários mecanismos (religião, escola, imprensa, arte etc) pode decidir o que é importante lembrar e o que deve ser esquecido ou silenciado”. (MACIEL, 2006, 213)

Pode-se dizer que esta estratégia de invizibilização dos povos indígenas brasileiros e de negligência da sua importância histórica se deu em razão da pretensa formação de uma unidade étnica idealizada primeiramente pela Metró-pole e posteriormente pelo Estado Moderno. Esta imagem que pretendia ser mostrada aos demais Estados impunha o ideal imaginário de um único povo, cuja coesão fortaleceria e consolidaria a nação brasileira, na qual os povos indí-genas deveriam estar inseridos.

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2. UM BREVE PANORAMA DOS DISCURSOS CONTRÁRIOS À DEMARCA-ÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS

Na atualidade, grande parte dos argumentos que têm sido utilizados con-tra os interesses e direitos indígenas e que tem se difundido nos mais variados meios de comunicação, constituem-se em discursos falaciosos e tendenciosos, que negam a existência de práticas sociais constitutivas de formas diferencia-das de organização social, de usos e costumes diferentes dos da sociedade ma-joritária brasileira, e que escondem a obscura relação de poder cujo objetivo é velado.

Difunde-se a idéia de que nas terras indígenas situadas na faixa de fron-teira brasileira existe uma maior atuação de organizações internacionais do que da própria máquina do Estado. Alega-se, também, que os índios terão autonomia plena nas terras indígenas, o que pode torná-las em Estados Indígenas autôno-mos e independentes.

Esses discursos vêm sendo usados no sentido de rever, fl exibilizar e até mesmo limitar alguns dos direitos territoriais indígenas; e isso está refl etido na própria decisão da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujo acórdão impôs uma série de limitações aos direitos constitucionais indígenas. As terras indígenas situadas nas faixas de fronteira brasileira são um exemplo nítido das forças exer-cidas por alguns segmentos da sociedade brasileira que objetivam uma revisão ou até mesmo, uma reelaboração dos direitos territoriais indígenas.

Propaga-se a idéia de que as Terras Indígenas constituem uma grave ameaça à soberania e à segurança nacional, e alega-se, neste contexto, que o reconhecimento de direitos territoriais indígenas é somente um subterfúgio das grandes potências para promover a internacionalização da Amazônia. João Pa-checo de Oliveira Filho ainda lembra que neste momento delicado de fortaleci-mento de argumentos, resgatam-se antigas teorias que conjuram a possibilidade da existência de “enclaves étnicos” e “quistos culturais” para a promoção da tão almejada unidade nacional. (OLIVEIRA FILHO, 1999)

Francisco de Oliveira nos lembra que o receio ante a cobiça internacional sobre a Amazônia data de meados do século XIX, quando em 1853 propôs-se a abertura do Amazonas à navegação internacional. Essa proposição estaria baseada no pouco aproveitamento produtivo da região, e com isso, havia a ne-cessidade de “tornar a fronteira amazônica uma fronteira viva, isto é, dinâmica, produtiva. (OLIVEIRA, 1994, 04)

Tendo como base antigas teses que defendiam a relativização da sobera-nia na Amazônia, como a mencionada por Francisco de Oliveira, foi no período militar que o Estado brasileiro implementou uma urgente política de desenvolvi-

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mento e de integração da região Amazônica, a fi m de evitar possíveis interven-ções internacionais numa região onde o Estado não estivera presente. A política de abertura de estradas e de incentivo à ocupação da região foi muito constante neste período, cuja concepção sobre a região estava pautada na política do “in-tegrar para não entregar"1.

A síntese da “intervenção” pode ser resumida em tamponar fronteiras, vulneráveis tanto pela sua rarefação demográ-fi ca quanto por estarem habitadas por indígenas, menores de idade, defi nidos assim pela própria Constituição e pela longa prática da relação entre “civilizados” e as nações in-dígenas, prática e teoria às quais não faltava a legitimidade “científi ca” de uma antropologia tradicional que considera-va os índios como faltos de história, portanto sem passado, sem presente e sem futuro. (OLIVEIRA,1994, 05)

Foi neste contexto que o Estado brasileiro iniciou ações combinadas de diplomacia e militarização no sentido de “tamponar as fronteiras” da região amazônica. O Pacto Amazônico2, do qual o Projeto Calha Norte3 é um desdo-

1 O lema ‘integrar para não entregar’ apareceu primeiro no Projeto Rondon. Que tratava de substituir o trabalho dos ‘missionários’ pelo trabalho dos técnicos: ofereceu-se a milhares de universitários a oportunidade de prestar diversos serviços nas comunidades pobres do interior do Brasil. (OLIVEIRA; 1994: 06)2 O Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) foi celebrado em Brasília, no dia 3 de julho de 1978, pelos oito países amazônicos (Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Gui-ana, Peru, Suriname e Venezuela). Trata-se de um instrumento jurídico de natureza téc-nica que tem por objetivo promover o desenvolvimento harmonioso e integrado da bacia amazônica, de maneira a permitir a elevação do nível de vida dos povos daqueles países, a plena integração da região amazônica às suas respectivas economias nacionais, a troca de experiências quanto ao desenvolvimento regional e o crescimento econômico com preservação do meio-ambiente. 3 O Programa Calha Norte (PCN) tem como objetivo principal contribuir com a ma-nutenção da soberania na Amazônia e contribuir com a promoção do seu desenvolvi-mento ordenado. Foi criado em 1985 pelo Governo Federal e atualmente é subor-dinado ao Ministério da Defesa. Visa aumentar a presença do poder público na sua área de atuação e contribuir para a Defesa Nacional. Na sua etapa de implementação, o Pro-jeto tinha sua atuação limitada, prioritariamente na área de fronteira; hoje o programa foi expandido e, visando proporcionar a vigilância da fronteira, proteção e assistências às populações, as ações do Programa pretendem fi xar o homem na região amazônica. Extraído da página eletrônica: https://www.defesa.gov.br/programa_calha_norte/index.php Acesso em 21/06/09, às 15h33min. .

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bramento, foi uma das estratégias utilizadas no sentido de mitigar o receio ante a cobiça internacional. A abertura de estradas também foi uma política estratégica adotada pelo Governo brasileiro porque julgava condição indispensável para o controle das fronteiras nacionais.

Nesta época, a recusa na demarcação de terras indígenas se constituiu na política de fronteiras adotada pelo Governo Militar, que já enfrentava combati-vamente a idéia de haver uma supranacionalidade dos povos indígenas nas suas respectivas terras. Francisco de Oliveira, em análise sobre este momento vivido no período militar e na região amazônica, assinala que

a “síndrome ianomâmi” denuncia precisamente o medo à supranacionalidade desta e de outras nações indígenas. O reconhecimento da supranacionalidade indígena teria como conseqüência pôr em xeque o Estado-Nação brasileiro e os mais da Grande Amazônia. (OLIVEIRA, 1994, 05)

Apreende-se que no regime militar houve uma preocupação intensa com uma defi nição geopolítica que convergisse com a segurança nacional, razão pela qual tanto se priorizou a construção de infra-estrutura que interagisse as fron-teiras nacionais com as demais regiões do país.

Segundo Francisco de Oliveira, quando a idéia do governo militar incen-tivou as frentes de expansão para a região amazônica, oferecendo infra-estru-tura, incentivos fi scais e apoio aos Grandes Projetos para a fi xação do homem nessa região, olvidava-se que

a Amazônia não era uma “terra sem homens para homens sem terra”, mas sim uma região habitada por índios, pos-seiros e seringueiros, atravessada por confl itos fundiários que se agravaram depois da construção das estradas, dos Grandes Projetos e dos incentivos fi scais. (OLIVEIRA, 1994, 08)

Com isso, os problemas fundiários na Amazônia pioraram ainda mais, pois as terras que julgavam inabitadas eram ocupadas por povos indígenas e outros povos tradicionais. De acordo com Francisco de Oliveira, isso gerou grandes confl itos na região, pois essas terras que acreditavam estar vazias eram ocupadas por não-gente, e que segundo os critérios do branco, não tinham ca-pacidade cultural para cuidar das vastas riquezas da região. (OLIVEIRA, 1994)

Este controle estratégico-político exercido pelo Estado ainda hoje tem difi culdade, ou até mesmo, não tem interesse no reconhecimento de territórios

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sociais dos povos tradicionais como parte da problemática fundiária brasileira. Com isso, muitas das terras indígenas têm seu reconhecimento sido questionado em face de interesses antagonistas que representam os mais variados interesses, dentre esses, o interesse econômico.

Os interesses sobre as terras indígenas são tão escusos e os mais varia-dos possíveis que se chega a construir discursos que afi rmam que os índios constituem parcela privilegiada da população rural brasileira, e que esse privilé-gio se dá em função dos povos indígenas deterem grandes extensões territoriais, as quais tem sido exploradas de forma predatória e de onde obtém grandes lu-cros “(seriam então ‘índios ricos’ e também virtualmente ‘antiecológicos’, pois seriam predadores do meio ambiente’)”. (OLIVEIRA FILHO, 1999, 206)

Observa-se, desse modo, que a busca por discursos com conteúdo de abrangência diversifi cado tem sido apropriado por atores sociais que almejam legitimar interesses setoriais. Faz- se um apelo à exploração predatória das ter-ras indígenas por ter consciência que o campo dos confl itos ambientais - in-trínseco à problemática de escassez de recursos - pode ser utilizado para per-suadir grande parcela da sociedade brasileira a se voltar contra os interesses e direitos indígenas. E isso como forma de legitimar o acesso às terras indígenas e, portanto, ao acesso de recursos do meio material, utilizando-se de argumentos que simbolizem o equilíbrio ambiental, a qualidade de vida, o bem comum e a resolução do problema da fome no mundo.

Isso dá uma idéia do quanto tais discursos são ameaçadores aos direitos territoriais indígenas, pois as estratégias veladas de sua real intenção podem trazer à discussão propostas que venham a comprometer e a relativizar os di-reitos dos povos indígenas. Discursos como este, no entanto, não são difíceis de serem desconstruídos, na medida em que as terras indígenas são as maiores áreas de preservação e conservação da natureza, superando até mesmo as Uni-dades de Conservação de Proteção Integral no que concerne o grau de efi cácia na preservação e conservação dos recursos naturais.

Na Cartilha denominada ‘Povos e Terras Indígenas e seu papel na con-servação da Floresta Amazônica’, elaborada em conjunto pela Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira – COIAB -, Fundação Vitória Amazônica – FVA -, e pelo Instituto de Conservação Ambiental The Nature Conservancy do Brasil, constatou por meio da análise de imagens de satélite que:

O desmatamento no entorno das Terras Indígenas é muito maior do que dentro delas. O estudo constatou que em uma faixa de 10 quilômetros ao redor destas Terras, o nível de desmatamento é quase 10 vezes maior que no seu interior.

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Em Rondônia, como já foi falado, as áreas desmatadas den-tro das Terras Indígenas são um pouco maiores que 3%. No entorno destas mesmas Terras, os índices aumentam quase dez vezes! No Maranhão, enquanto o desmatamento den-tro das Terras Indígenas atinge cerca de 25%, no entorno essa porcentagem chega 60% de desmatamento. No Pará, o desmatamento no entorno chega a quase 25% e as taxas de desmatamento para o interior das áreas analisadas são de 11%. No Mato Grosso estes índices são bem parecidos com os encontrados no Pará. Esses dados mostram que, mesmo nos Estados com maiores índices de desmatamento dentro das Terras Indígenas, os valores verifi cados ainda são mui-to menores do que os encontrados no entorno das Terras Indígenas. (POHL; POHL; BORGES; VENTICINQUE; DURIGAN; BATISTA; SZTUTMAN & FLORES, 2009, 07)

Apoiando-se num forte controle da mídia, os antagonistas dos interesses indígenas apresentam esta parcela da população brasileira como um obstáculo à consolidação da soberania nacional e até mesmo à proteção ambiental, como já analisado. Tratam-se de justifi cativas caluniosas que incitam cada vez mais a sociedade brasileira contra os povos indígenas.

Essas afi rmações consistem e refl etem uma relação de poder que está em jogo, em interesses cujos meios obscuros para atingir os fi ns idealizados não se preocupam em reiterar um discurso antigo e preconceituoso sobre os povos indígenas. João Pacheco de Oliveira Filho afi rma que os argumentos contrários aos interesses indígenas simbolizam a “tentativa de construção de um ‘bode ex-piatório’ para o distorcido panorama agrário obrigatório”. (OLIVEIRA FILHO, 1999, 206)

O presente artigo tem como objetivo trazer à reflexão do leitor a problemática do discurso que difunde as terras indígenas em faixas de fronteira como fator de insegurança e de risco à soberania nacional. Será que realmente as Terras Indígenas constituem um risco à soberania nacional ou os discursos que tem sido proferido neste sentido ocultam interesses escusos de alguns segmentos sociais?

Esse questionamento vem se refl etindo nas atuais discussões sobre terras indígenas em faixas de fronteira, o que demonstra uma forte tensão relativa ao reconhecimento jurídico da categoria jurídica “terra indígena”. O argumento utilizado para contestar o dispositivo constitucional que atesta o reconhecimen-to das terras tradicionalmente ocupadas através da territorialidade específi ca de cada grupo indígena, é que as terras indígenas em faixas de fronteira represen-

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tam um risco à soberania nacional.Esse risco se daria em função da livre atuação de Organizações Interna-

cionais Não-Governamentais, o perigo de extensões tão grandes de terra possuir tão baixa ocupação, o receio de que os povos que habitam estas terras sejam infl uenciados internacionalmente a buscar autonomia e independência orga-nizacional, e o fato de se tratar de áreas estratégicas para conter a ação “in-imiga”.4

Ora, caso o discurso contrário à demarcação de terras indígenas em faixas de fronteira seja realmente a atuação estrangeira nessas áreas sem a devida au-torização do Poder Público, deve-se ter em mente que o problema não são os índios e tampouco suas terras, e sim, a omissão do Estado no que se refere às políticas de segurança nacional.

Muitos comentários sobre a impossibilidade das Forças Armadas e Polí-cia Federal ingressarem nas terras indígenas para poder realizar o trabalho de fi scalização das fronteiras nacionais, ou então, dos indígenas não permitirem a entrada de brasileiros em suas terras, admitindo, porém, a presença estrangeira - que lhes pagam bons frutos -, tem-se difundido nos mais variados meios de comunicação.

Trata-se de um discurso equivocado, na medida existir um Decreto datado de 07 de outubro de 2002, que trata especifi camente sobre a atuação das For-ças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas e, sobretudo, nas terras indígenas situadas nas faixas de fronteira nacional. Esse Decreto, de número 4412/02, estabelece que no exercício das atribuições constitucionais e legais das Forças Armadas e da Polícia Federal nas terras indígenas, estão compreendidas as seguintes atividades:

4 Em matéria publicada no jornal “Estadão”, veiculado em sua maior parte no Estado de São Paulo, o jornalista José Maria Tomazela escreveu sobre a defesa nacional por meio de suas fronteiras: “Dos 25 mil homens de que o Exército dispõe para defender a Amazônia de ameaças que vão do tráfi co de drogas à cobiça internacional pelas nossas riquezas naturais, apenas 240 vigiam mais de 2 mil quilômetros de fronteira com as Guianas e o Suriname, na chamada Amazônia oriental. Destes, um contingente de 17 soldados tem a missão de proteger uma faixa de 1.385 quilômetros de fronteira seca no extremo norte do Pará. Se fossem distribuídos nesse território, caberia a cada homem a vigilância sobre 12.150 quilômetros quadrados, dez vezes a área da cidade do Rio de Janeiro. Informação obtida através do site http://www.estadao.com.br/nacional/not_nac159692,0.htm em 21/05/2008.

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Art. 1° [...]I) A liberdade de trânsito e acesso, por via aquática, aérea ou terrestres, de militares e policiais para a realização de deslocamentos, estacionamentos, patrulhamento, poli-ciamento e demais operações ou atividades relacionadas à segurança e integridade do território nacional, à garantia da lei e da ordem e à segurança pública;II) A instalação e manutenção de unidades militares e policiais, de equipamentos para fi scalização e apoio à navegação aérea e marítima, bem como das vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessárias;III) A implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira.

Apreende-se que a legislação infra-constitucional, prevê expressamente a liberdade de trânsito, patrulhamento, policiamento, instalação e manutenção de unidades militares e policiais. Prevê, também, a construção de vias de acesso e demais medidas de infra-estrutura e logística necessária às Forças Armadas e à Polícia Federal nessas terras, além de possibilitar implantação de programas e projetos de controle e proteção da fronteira.

O Decreto retrata a falácia do discurso que se difunde no sentido de ori-entar a sociedade brasileira a acreditar que as terras indígenas constituem fator impeditivo do Estado brasileiro ingressar nessas áreas e exercer a fi scalização que julgar conveniente, o que representaria um risco à segurança e à soberania nacional.

Esses discursos omitem o fato de que cabe ao Poder Público assegurar a defesa nacional, e o reconhecimento de terras indígenas em faixas de fronteira não impedem o pleno exercício do dever constitucional das Forças Armadas de manter a integridade e a soberania nacional, sobretudo nessas regiões.

As estratégias discursivas e persuasivas demonstram o quanto a situação é confl ituosa. Os interesses dos mais diversos segmentos sociais estão em jogo, e as terras indígenas, pode-se afi rmar, estão no epicentro deste terremoto, onde a justifi cativa para deslegitimar terras indígenas tem sido constantemente refor-çadas por atores sociais que são porta-voz de “discursos competentes” capazes de infl uenciar e mobilizar a sociedade de forma contrária aos interesses e aos direitos indígenas.

Por discurso competente, Marilena Chauí entende tratar-se de um instru-mento de dominação no mundo contemporâneo, por meio do qual

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a linguagem sofre uma restrição que poderia ser assim resumida: não é qualquer um que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer cir-cunstância. O discurso competente confunde-se, pois, com a linguagem institucionalmente permitida ou autorizada, isto é, com um discurso no qual os interlocutores já foram previamente reconhecidos como tendo o direito de falar e ouvir, no qual os lugares e as circunstâncias já foram pre-determinados para que seja permitido falar e ouvir e, enfi m, no qual o conteúdo e a forma já foram autorizados segundo os cânones da esfera de sua própria competência. (CHAUÍ, 2000, 07)

Pode-se afi rmar que muitos desses discursos estão institucionalmente au-torizados e munidos de um conteúdo nacionalista, na medida em que vários são os meios de comunicação que anunciam essas falas no intuito de re-legitimar a teoria integracionista sobre os povos indígenas. Trata-se de um discurso que historicamente proclamou e ainda persiste em aclamar a idéia da integração/as-similação dos índios na sociedade nacional.

Esta é apenas uma das formas pela qual os discursos são acionados no sentido de justifi car os objetivos desejados. Neste contexto, “não são decisivas nestes embates a ‘veracidade’ ou a capacidade de ‘atestação’ científi ca dos ar-gumentos, mas as estratégias discursivas de persuasão enquanto a tornar gerais objetivos determinados.” (ACSELRAD, 2004, 20)

Percebe-se que em algumas problemáticas indígenas, sobretudo nas questões fundiárias, o discurso nacionalista e discriminatório é bastante invo-cado, fazendo referência ao índio como um ser aculturado, que não comunga a cultura do não índio e que ao mesmo tempo não manteve ou mantém seus anti-gos usos, costumes e tradições, isto é, sua “antiga” cultura - como se essa fosse algo estático no tempo e no espaço.

3. A AUSÊNCIA DE COMPREENSÃO DAS DIFERENTES TERRITORIALI-DADES INDÍGENAS

A política integracionista que vigorou no Brasil até o advento da Consti-tuição Federal de 1988, não logrou êxito completo nos cinco séculos de contato com esses povos, esbulho de suas terras e escravidão. Esta mesma política gerou um estigma de inferioridade aos índios, que não eram considerados integrados/

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assimilados, e tampouco considerados índios, uma vez que o sincretismo cul-tural – como ocorre em toda e qualquer sociedade - foi intenso devido a proximi-dade e infl uência com o não indígena.

Nesse contexto, Carlos Frederico Marés de Souza Filho afi rma que até o presente momento a diversidade cultural dos povos indígenas brasileiros ainda não foi compreendida. “O próprio termo índio, genérico, insinua que todos estes povos são iguais. O senso comum acha que todos têm uma mesma cultura, lín-gua, religião, hábitos e relações jurídicas civis e de família.” (SOUZA FILHO, 2006, 38)

A falta de compreensão dos modos de criar, fazer e viver dos grupos in-dígenas brasileiros acaba por resultar na incompreensão da sociedade nacio-nal no que se refere à demarcação das terras indígenas. Cada grupo possui sua territorialidade específi ca, na medida em que a apropriação cultural do mundo material é única de grupo para grupo. A própria demarcação das terras indígenas é interpretada por muitos grupos indígenas como um fator de limitação de sua liberdade, já que muitos povos indígenas tem como característica o nomadismo.

A idéia de negação ao direito territorial indígena, representada por meio de “discursos competentes” contrários a demarcação de terras indígenas nas faixas de fronteira, de maneira contínua e em grandes parcelas territoriais, induz a sociedade a questionar o por que certas terras indígenas são tão grandes com-paradas com outras que são tão pequenas. Por que essa discrepância?

Existem algumas comparações que são veiculadas nos meios de comuni-cação que são dignas de menção, como por exemplo: a Terra Indígena Yanomâ-mi equivale a um país europeu, ou então, mais de 40% do Estado de Roraima é terra indígena. Essas informações induzem a população a se questionar real-mente da necessidade de demarcações tão grande de terras, uma vez que o senso comum de grande parte da população brasileira desconhece as peculiaridades dos diversos grupos indígenas brasileiros.

A ilusão de que as terras indígenas são muito vastas e que seriam muito maiores do que o necessário para a reprodução física, social e cultural dos povos indígenas, não procede, ao passo que a forma de ocupação e o nível tecnológi-co utilizado nessas terras não são os mesmos empregados nas áreas ocupadas por não indígenas, portanto, jamais se poderá ter como padrão comparativo os paradigmas etnocêntricos da sociedade urbano-industrial ou até mesmo do campesinato brasileiro.

Essas afi rmações, que em geral são proferidas por autoridades governa-mentais e atores sociais que detêm grande poder econômico ou prestígio políti-co, conferem uma parcela de “legitimidade” a um discurso que para prevalecer depende da aceitação dos sujeitos sociais e políticos. Esses sujeitos, por sua

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vez, muitas vezes acabam por apreender esses discursos como imparciais e neu-tros, razão pela qual “não é paradoxal nem contraditório em um mundo como o nosso, que cultua patologicamente a cientifi cidade, surgirem interdições ao discurso científi co”. (CHAUÍ, 1997, 07)

Apreende-se, com isso, que a difusão de discursos preconceituosos, alarmistas e eivado de interesses obscuros de relação de poder sobre as questões territoriais indígenas, tem sido analisado sem o devido estudo científi co, omitin-do, dessa forma, o alcance objetivo destes discursos.

CONCLUSÃO

Discursos preconceituosos e alarmistas tem se fortalecido num cenário de especulação econômica onde as terras indígenas são tidas como óbices ao desenvolvimento do Estado e fatores impeditivos para o progresso da nação, cuja característica precípua é a homogeneidade. Aqui reside o perigo de um discurso que se utiliza de uma unidade inexistente, que é a nação brasileira, para contrapor e fortalecer argumentos que são contrários aos direitos territoriais in-dígenas arduamente reconhecidos.

Verifi ca-se que alguns atores sociais tem procurado se apropriar de dis-cursos que tem uma conotação nacionalista - como é o argumento de risco à soberania nacional - para que a sociedade nacional se mobilize em prol do in-teresse desses atores, a fi m de que unidos e mobilizados socialmente, passem a idealizar a relativização dos direitos territoriais indígenas estabelecidos pela Constituição Federal de 1988.

As terras indígenas situadas nas faixas de fronteira são as que tem sido mais frequentemente questionadas, sob o argumento de que vastas extensões territoriais nessas áreas colocam em risco à segurança e à soberania nacional. Nesta mesma perspectiva, afi rma-se que essas áreas em faixas de fronteira estão suscetíveis à intervenção estrangeira. Esquece-se, entretanto, que nos casos de interferência estrangeira nesses locais, pressupõe-se a ausência, a omissão do Estado, e não a culpa dos povos indígenas, cujo conceito de território é distinto da lógica instituída pelo Estado Moderno.

O inconsciente coletivo de grande parte do povo brasileiro carrega uma herança negativa acerca dos povos indígenas. Desconhece-se o fato de que as territorialidades indígenas transcendem as fronteiras políticas instituídas pelos

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Estados modernos, da mesma forma que se negligencia a importância desses povos na consolidação das atuais fronteiras do Estado brasileiro. O fato é que muitos discursos tem se difundido no sentido de relativizar os direitos originários dos índios sobre suas terras tradicionalmente ocupadas, e isso em detrimento de in-teresses bastante variados, dentre eles e o mais importante: o interesse econômi-co. Com isso, verifi ca-se a necessidade de mais estudos a respeito do tema, na medida em que ainda são muito incipientes os debates e as refl exões críticas a respeito do assunto.

REFERÊNCIAS

ACSELRAD, H. As práticas espaciais e o campo dos confl itos ambientais. In: Confl itos ambientais no Brasil. Org.: Henri Acselrad. Rio de Janeiro: Relume Dumará. 2004.

CHAUÍ, M. S. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 7° Ed. . São Paulo: Cortez, 1997.

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POHL, L.; POHL, L.; BORGES, S. H.; VENTICINQUE, E.; DURIGAN, C. C.; BATISTA, F. A.; SZTUTMAN, M. & FLORES, L. Povos e terras indígenas e seu papel na conservação da fl oresta amazônica. Cartilha; Manaus: COIAB, 2009.

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TORRES, S. M. S. Defi nindo fronteiras lusas na Amazônia colonial: O Tratado de Santo Ildefondo (1777-1790). In: Rastros da memória: histórias e trajetórias das populações indígenas na Amazônia. Org.: Patrícia Sampaio Melo; Regina de Carvalho Erthal. Manaus: EDUA, 2006.

Artigo recebido em: 01/06/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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A FARRA DO BOI E A QUESTÃO DO BALANCEA-MENTO DE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Denison Melo de Aguiar*Serguei Aily Franco de Camargo **

Sumário: Introdução; 1. A farra do Boi 2. Da decisão do Supremo Tribunal Federal; 3. Do Balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e fl ora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88); Con-siderações Finais; Referências.

Resumo: Este artigo trata da relação da farra do boi, com a análise e aplicação jurídica do princípio da ponderação na colisão de dois direitos fundamentais. Pro-cura-se mostrar como a relação e a inter-ferência desses institutos podem acontecer no contexto da ponderação, sem que haja a anulação de um princípio. Inicialmente, procura-se compreender antropologica-mente a farra do boi e suas peculiaridades; depois, a descrição do julgado do Supremo Tribunal Federal – STF e por fi m, a rela-ção entre a farra do boi e a ponderação de direitos.

Palavras chaves: farra do boi, princípio da proporcionalidade; colisão de direitos Fundamentais.

Abstract: This article deals with the rela-tionship of a particular case, the farra do boi, with the legal analysis and application of the principle of balance in the collision of two fundamental rights. It aims to show how the relationship and the interference of these institutes can happen in the con-text of weight, without the cancellation of a principle. Initially, we seek to understand the anthropological the farra do boi and its peculiarities, then the description of the tri-al of the Supremo Tribunal Federal - STF, and fi nally, the relationship between farra do boi and the balance of rights.

Key words: farra do boi, the principle of proportionality; collision of fundamental rights.

* Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas; Advo-gado; Bolsista da CAPES. Contato: [email protected].** Professor, Pesquisador e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direto Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas - UEA e Professor Adjunto I junto ao Departamento de Direito da Uninilton Lins.

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INTRODUÇÃO

A farra do boi é uma manifestação cultural bastante atacada pela mídia. A partir do momento em que a farra do boi ganhou notoriedade, o evento foi traduzido em sinônimo de tortura e crueldade animal.

Dentro deste contexto, houve a judicialização do caso, e como resposta o Supremo Tribunal Federal - STF decidiu, por maioria proibir a prática da farra do boi no litoral catarinense. O princípio do balanceamento ou proporcio-nalidade, conforme Silva (2002) possui “uma estrutura racionalmente defi ni-da, que se traduz na análise de suas três sub-regras (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito) e tem como fi nalidade harmonizar dois princípios, neste caso concreto, em colisão, assim sendo, é uma maneira jurídica de compatibilizar a farra do boi com os preceitos legais contra a crueldade ani-mal. Ressalte-se que independente da decisão do STF, a prática continua.

Assim sendo, a farra do boi, é um exemplo da necessidade da ponderação entre o direito ao bem estar animal e a crueldade contra os mesmos (art. 225, par. 1o., inc. VII, CF/88) como forma de expressão cultural (art. 215, par. 1o. e 216 caput, CF/88), no que tange ao balanceamento a ser feito através do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

1. A FARRA DO BOI

A farra do boi1 é uma manifestação cultural praticada na região de Flori-anópolis. conforme Conceição (2003), possui origem açoriana e no Brasil ganhou outras conotações De acordo com Conceição2, a Ilha de Florianópolis foi colo-nizada por açorianos, levados pelos portugueses em 1747. Com aqueles imi-grantes vieram as “Brincadeiras de Boi”, tendo como principais: Dança do Boi Mamão; Boi de Campo; Boi de Vara e Farra do Boi. De acordo com o mesmo

1 A farra do boi é uma manifestação cultural considerada como saudável, e a violência consentida e empregada nos bois desta brincadeira, faz parte da ritualística desta, con-forme a cultura, já a “farra do boi” (com aspas), é a brincadeira feita sem ponderações, que nos termos de Lacerda, seria o “judiar” o boi, ou seja, empregar violência sem ponderações e sem a ritualística da festa, desvirtuando a brincadeira e sendo altamente criticada internamente pelos farristas.2 CONCEIÇÃO, José Antonio da. A polêmica Farra do boi. 2003. Disponível em: http://schollar.com.br . Acesso em: 23 de janeiro de 2010.

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Autor, a origem dessas brincadeiras remonta ao fi nal do século XII e início do século XIII, onde os bois eram sacrifi cados na semana santa em substituição ao bode, como representação de Judas.

Neste sentido, Conceição (2003) afi rma que esta tradição, também de-nominada “brincadeira do boi”, “boi do campo”, “boi na vara”, consiste em se comprar um boi arisco, bravo e corredor, que antes de ser abatido é solto nos pastos e ruas, provocando correrias generalizadas. Ressalte-se que atualmente a “farra” também precede aniversários, casamentos, jogos de futebol e outras ocasiões. Segundo Dias3, a farra do boi antes ocorria nos pastos e a construção e ruas e loteamentos não impossibilitaram tal prática, envolvida em cada vez mais distúrbios e confusões.

Para Lacerda4 a farra do boi “[...] se trata de uma manifestação folclórica dentre outras no contexto das festas populares brasileiras que envolvem este animal, a exemplo das vaquejadas nordestinas e dos rodeios gaúchos”, com a fi nalidade de fustigar o animal, e depois matá-lo e por fi m repartir a carne entre os participantes.

Ainda de acordo com Lacerda (2003), a problematização relacionada com a farra do boi, só começa na década de 1980, quando fi cou classifi cado pelos folcloristas, como um folguedo popular, enquanto a mídia, entre 1987 e 1994, falava em selvageria, crueldade e tortura. Estes fatos ocasionaram pro-testos e campanhas internacionais e nacionais, questionando se a farra do boi é uma manifestação cultural ou simplesmente uma forma de crueldade contra os animais. Seria folclore ou violência; tradição popular ou degeneração cultural, poderia ser folclore uma tradição popular baseada na violência?

Neste sentido, Lacerda (2003) relaciona a farra do boi, como manifesta-ção cultural, e a segurança pública. As mediações ético-populares acabam por legitimar ou não as tradições populares. Entretanto, não é da mesma maneira que uma tradição folclórica passa a ser um caso de justiça.

Para Lacerda (2003), a farra do boi remete aos atos praticados quando al-gum boi se apartava do grupo e os vaqueiros respondiam com violência às essas tentativas. Esses atos possuem relação com o modo de domesticação de animais

3 DIAS, Rafael Damasceno. Lembrança e nostalgia nos desacordos da memória: a ci-dade de Florianópolis nas últimas décadas do século XX. Disponível em: http://schollar.com.br. Acesso em: 23 de janeiro de 2010.4 LACERDA, Eugênio Pascele. Os Usos do Folclore: A propósito da polemica sobre a Farra do Boi. Disponível em: http://www.nea.ufsc.br/artigo_engenio.php . Acesso em: 23 de janeiro de 2010.

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bravios no meio rural. Para tal brincadeira o boi tinha que ser do campo. Note-se que já no século passado os arquivos da polícia municipal e de posturas munici-pais de Florianópolis, a existência de tais brincadeiras já eram preocupações das autoridades públicas.

Conforme Lacerda (2003) o “boi-no-campo” é uma dança dramática, que mostra o combate com o boi, sendo uma taurimaquia, em dois tempos. O pri-meiro é a negociação da compra e venda do animal e a segunda a própria brinca-deira da farra do boi, sendo que esta é motivo de grande euforia. Centenas de pessoas aguardam a chegada do animal que é motivo de festa e paralisação de cidades e vilarejos, sendo que o centro desta brincadeira é desafi ar a fúria do boi.

Na semana santa, o boi fi ca solto até o sábado de aleluia e no domingo de Páscoa, o boi é sacrifi cado. A “matança” ou “carneação” do boi é o sinal do fi nal da festa. Lacerda menciona que:

Durante todo o tempo de festa não se notam regras de ex-clusão baseadas em sexo, idade, ou autoridade. O que se nota é uma contínua valorização da decisão individual em querer participar o que signifi ca adequar-se aos parâmetros tidos como legítimos da brincadeira. A farra do boi é cer-tamente uma brincadeira perigosa, ligada ao mundo do ex-cesso. De fato não estamos lidando com um acontecimento da norma, mas da suspensão dela. Quando é tempo da farra do boi a rotina normal do trabalho e da família é posta em parâmetros.

Tradicionalmente, na festa só se pode brincar com o boi. Neste contexto, atos de crueldade são punidos com uma “rixa na cabeça”, ou até mesmo uma “surra”. Quem brinca com o boi recebe o carinho dos camaradas e a chancela das mulheres. O farrista, geralmente é o pescador do litoral, pois são eles que re-colhem os barcos, durante a semana santa, e nesse período improdutivo as brinca-deiras da farra do boi são mais freqüentes. Lacerda menciona que a urbanização e alterações sazonais na pesca parecem estar modifi cando a regularidade da festa.

Afi rma Lacerda (2003) que até meados de 1970, a farra do boi não tinha uma interpretação de crueldade animal, mas sim, de manifestação cultural, no entanto, com o aumento do turismo no litoral catarinense, este conceito foi sendo paulatinamente modifi cado. A brincadeira acontecia era própria das populações nativas, mas com a intensifi cação do turismo nos balneários, as brincadeiras começam a depender da tolerância dos novos moradores.

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As farras nativas, visibilizadas, fogem desse padrão de con-sumo. Torna-se objeto de tribunização pelo cosmopolitis-mo ecológico em voga, por meio de censura cultural e de repressão ofi cial. Penso que todo esse processo se vincula a uma das peculiaridades da dinâmica cultural brasileira que consiste na apropriação de manifestações através de me-canismos manipuladores de seus signifi cados e, muitas das vezes, transformados em símbolos de identidade nacional. [...] Muitas vezes, estas formas de apropriação implicam numa assepsia generalizada daqueles aspectos que possam conferir perigo ou ameaça à cultura dominante e ao estado.. Quando não ocorre via repressão pura e simplesmente, ado-tam-se outros mecanismos mais sutis de domesticação que consistem em recuperar as práticas populares como ‘exóti-ca lembrança de um mundo extinto, que pode ser exposta ao turista e ser exibida como relíquia nos teatros’(Chauí, 1982:132). (Lacerda, 2010)

Neste sentido, portanto, ao se analisar a farra do boi, no contexto conjun-tural e polemico desta e na perspectiva dos protestos dos jornais, Lacerda (2003) verifi ca que houve uma desqualifi cação da farra do boi, como folclore, devido a tribunização a que foi submetido.

[...] não encontrando mais o reconhecimento e a tipicidade comuns dada ao termo, como um costume exótico e ao mesmo tempo palatável da cultura popular. Interessante é que este reconhecimento é dado a outras manifestações lo-cais como o Pau-de-fi ta, o Boi-mamão,o terno-de-Reis e as folias do Divino. Ocorre que o cantador do Terno, o dança-dor do auto e o folião do Divino, em muitas comunidades é o “farrista” do boi. Sem dúvida podemos incorporar o caso da farra do boi neste processo mais amplo de domesticação cultural. Mas, no seu caso, o processo ainda é o de tribuni-zação, estando a festa proibida em todo território nacional., fruto de um recente Acórdão (1997) do Supremo Tribunal Federal, sem que isso, no entanto, tenha impedido a sua ocorrência a cada ano.(Lacerda).

Lacerda (2003) questiona quais seriam os ingredientes que colocariam a cultura dominante em perigo e tira três conclusões. Em primeiro lugar, a farra é um rito de inversão, ou seja, é um “tempo louco”, que se suspende a rotina e seus consensos normais. É um tempo em que o individuo começa a brincar com

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outros sentidos e ter uma convivência muito similar a do carnaval, reinventan-do-se a festa a cada momento. Em segundo lugar, o fator violência. Para os “farristas” o fator é o boi e na festa o fator é o rito, qual seja, a morte ritual do animal e a sua transformação em comida extraordinária. Nesse sentido, a vio-lência é tratada como valor envolvente na polêmica da farra do boi. Em terceiro lugar, a farra do boi é uma festa de orgia, tratada como transgressões noturnas, sexualidade ou jogos de prazer.

Sussekind5 descreve que a polêmica da farra do boi está relaciona-se às formas de legitimação e restrição de violência. Especialmente em torno dos có-digos de ética da festividade popular, que é herdeira das touradas e o ideal de proteção dos animais numa sociedade brasileira dita “civilizada”. Dentro de um contexto socioeconômico do litoral de Santa Catarina, qual seja, transformação histórica das comunidades tradicionais de pescadores do litoral, em balneário turístico, da qual se insurgiu protesto das sociedades protetoras dos animais, sobre a crueldade contra os mesmos. Tendo como conseqüência a repressão policial, que revela diferentes esferas de violência: uma relacionada aos animais e outra relacionada aos moradores locais e o poder público, especialmente em reportagens de jornais, que as consideram como “sadismo” e “tortura”.

O “judiar”, na descrição de Sussekind (2003), é uma categoria anôma-la, uma forma que violência ilegítima, que por isso, desvirtua a ética ritual da brincadeira, considerando que são duas visões diferentes, com o mesmo funda-mento ético. Seja de um lado, seja de outro, a violência contra os animais são toleráveis, no plano político religioso, não se condena o sacrifício animal em si, mas a forma como é praticado; no plano das sociedades protetoras de animais, o ato de comer a carne é um problema de legitimação da violência, incentivando a prática da alimentação vegetariana, daí se questionar o modo de produção de carne na sociedade urbana moderna, isto é, enquanto algumas espécies são trata-das brutalmente e transformadas em carne, como produção de alimentos, como os bovinos, outras são tratadas como fi lhos, por exemplo, os animais de estima-ção como os cães. Neste sentido, Sussekind descreve que “O ato do sacrifício animal dos hábitos alimentares e do modo de vida urbana, mas a violência nele contida é desvinculada simbolicamente do alimento consumido.”

Portanto, o sacrifício do animal para o consumo é mantido distante do consumidor, enquanto, no ritual da farra do boi, a violência consentida é parte legítima do momento da “matança” e divisão de carne. Relevante é saber que o

5 SUSSEKIND, Felipe. Resenha de: Lacerda, Eugênio Pascele. Bom para brincar, bom para comer: a polêmica da farra do boi no Brasil. Florianópolis: UFSC. 127p. 2003. Disponível em: http://schollar.com.br. Acesso em: 23 de janeiro de 2010.

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animal, opera diferentes símbolos na sociedade e estas relações ora são mantidas ocultas, ora são mostradas, bem como, a representação do boi no meio urbano (relação de consumo) é diferente do meio rural (relação subjetiva), no que tange às comunidades litorâneas catarinenses, o boi é um alimento extraordinário, que não faz parte do cotidiano. Assim, a farra do boi é conectada a um universo mágico-religioso, o animal é sacralizado, e neste sentido, não banalizado como alimento para consumo somente, quando a relação é de comer e brincar e “O par brincar/judiar aponta uma forma de violência considerada legítima e outra ilegítima”. (Sussekind, 2003)

Ao se elencar o modo de sacrifício dos animais em abatedouros, “a polêmica não é tanto a condenação estrutural da violência, mas o rompimento com o código social estabelecido em que a violência pode se dar”. Os movi-mentos ecológicos buscam quebrar os preceitos, mecanização e impessoalidade; condenando a crueldade, no entanto, o tratamento nas formulações de restrições e métodos humanitários caracterizados no dispositivo de regulação da violência que depende da dominação humana e do controle do sacrifício dos animais ser consentida, o que se parece assim ambíguo e contraditório. Dentro desse con-texto, a farra do boi é uma uma dramatização que faz parte da cultura catarinense. A farra do boi é um jogo de vida e de morte, que não deve ser analisado do referencial distante das comunidades tradicionais litorâneas, mas compartilhado com elas, já que a experiência da farra do boi é uma experiência de risco vivida socialmente, num contexto de brincar e comer. (Sussekind, 2003)

Laraia (2009), descreve que a cultura tem uma lógica própria descreven-do:

Que todas as sociedades humanas dispõem de um sistema de classifi cação para o mundo natural parece não haver mais dúvida, mas é importante reafi rmar que esses siste-mas divergem entre si porque a natureza não tem meios de determinar ao homem um só tipo de taxonômico. Por isso o morcego é muitas das vezes colocado numa mesma categoria com as aves, da mesma forma que a baleia é vulgarmente considerada um peixe. No norte de Goiás, uma dona de pensão afi rmou que “o rato era um inseto impertinente”. Constatamos, então, que como inseto eram classifi cados todos os seres vivos que perturbem o mundo doméstico. Finalmente, entender a lógica de um sistema cultural depende da compreensão das categorias constituí-das pelo mesmo. (p. 93)[...], cada sistema cultural está sempre em mudança. En-tender essa dinâmica é importante para atenuar o choque

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entre as gerações e evitar comportamentos preconceituo-sos. Da mesma forma que é fundamental para a humani-dade a compreensão das diferenças entre povos de culturas diferentes, é necessário saber entender as diferenças dentro do mesmo sistema. Este é o único procedimento que pre-para o homem para enfrentar serenamente este constante e admirável mundo novo do porvir. (p.101)

Neste sentido, apreender cultura é um processo que o ponto de referência é o das comunidades litorâneas. Se estas assim entendem e continuam a praticar, mesmo depois da decisão judicial, é porque faz parte de sua própria identidade e não iram se desfazer do que lhes caracterizam. Isto ocorre pelo fato de terem a liberdade de se autodeterminarem como culturalmente autônomas.

2. DA DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Em 1997, foi julgado um Recurso Extraordinário (RE 153531/SC – Santa Catarina)6 contra o Estado de Santa Catarina pela APANDE – Associação Ami-gos de Petrópolis Patrimônio, Proteção aos animais e defesa da Ecologia , LDZ – Liga de Defesa dos animais, a SOZED – Sociedade Zoológica Educativa e a APA – Associação protetora dos animais, referente a farra do boi. Alegando vul-nerabilidade ao artigo 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Carta Magna, que trata do Direito à proteção da fauna e fl ora à extinção ou crueldade, iniciada por uma Ação Civil Pública que obteve a condenação o Estado de Santa Catarina, sobre a farra do boi e manifestações culturais assemelhadas, sob o manto de su-posta comprovação de crueldade e de repercussão negativa no exterior. Rezek Afi rma: “[...] não só que a ‘farra do boi’, manifestação cultural bastante entran-hada em signifi cativas parcelas da sociedade, seja uma prática intrinsecamente cruel ou violenta, como também estivesse confi gurada a omissão do Poder Pú-blico Estadual, que adotou várias iniciativas para coibir os excessos”.

No Tribunal de Justiça de Santa Catarina a Ação civil Pública, assim foi julgada:

Ação Civil Pública. Ajuizamento contra o estado de Santa Catarina. Pedido consistente na proibição da prática, nos municípios, distritos, subdistritos e outras localidades da faixa litorânea catarinense, da denominada farra do boi. Presença marcante do Estado através da Polícia Civil e Mil-itar, com a fi nalidade de disciplinar o folguedo popular, sem maus tratos aos animais. Solicitação, ademais, por parte da

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administração do concurso de cientistas sociais para estudo e solução que se localiza apenas em segmento da população de origem açoriana. Inconfi guração de omissão do Estado na área em que cumpre atuar. Indispensável, por outro lado, não confundir com tradição, de origem açoriana, conhecida sob a determinação de tourada à corda ou boi na vara, com a violência descriteriosa infl igida nos próprios bois. O erro aqui praticado, confi gurativo de contravenção, uma vez ex-pungido desse contexto, por meios preventivos ou repres-sivos, não justifi ca a proibição dessa manifestação popular, desde que se mantenha à feição tradicional do boi na vara, sem a menor violência de malefícios à alimária. Recurso desprovido para, alterado o dispositivo da sentença, julgar improcedente o pedido.

Neste julgado vários aspectos foram analisados, que por si só já eviden-ciam ponderações. Inicialmente a delimitação de territorialidade da prática da farra do boi, isto é, o litoral catarinense, que é segmento da tradição açoriana; a diligência estatal, em disciplinar o folguedo popular através das polícias civil e militar, sem maus tratos; acepção da farra do boi, consistente em não confundí-la com a tourada corda ou boi na vara, com a violência descriteriosa infl igida nos próprios bois; tipifi cação criminal: contravenção penal; Tradição cultural: que se deva manter a feição tradicional do Boi na vara , que possui a menor violência ou infl ição de malefícios nos animais. Neste sentido do TJ/SC, não proibiu a prática da farra do boi, mas a ponderou com a prática de violência descriteriosa.

Ao tratar do art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, o relator, considera que:

[...] concluindo, em sentido oposto ao que concluiu o E. Tribunal a quo, em primeiro lugar que a prática da ‘farra do boi’ é necessariamente cruel e violenta e, em segundo lugar, que o poder público estadual tem sido omisso a respeito. Semelhante pretensão infelizmente não pode ser acolhida.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Pro-cesso: 153531 UF: SC - SANTA CATARINA Relator Ministro FRANCISCO REZEK, 30/01/2007. Disponível em: www.justicafederal.jus.br. Acesso em 14/12/2009.

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O Ministro Francisco Rezek votou pela proibição da farra do boi. Começa a argumentar no sentido de que o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Carta magna, em que no caso da farra do boi, está na iniciativa do poder público objetivando coibir a prática da farra do boi, conforme a interpretação consti-tucional “na forma da lei”, para se coibir tal prática, isto é, seguindo a norma estadual, de forma coibir prática inconsistente com a norma fundamental.

Para o Ministro, não se deva ser submetido a duas tentações, intituladas como sombras metajurídicas, que devem ser repelidas pelo julgador. Estas são: 1. a consideração metajurídica das prioridades, consistente em saber quais são os motivos para num país, no qual possui tantos problemas, se tem a preocupa-ção com a integridade física ou sensibilidade com os animais.

Para o ministro, para que haja o exame de controversas, há que se con-siderar que:

Esse argumento é de uma inconsistência que rivaliza com sua impertinência. A ninguém é dado o direito de estatuir para outrem qual será a linha de ação, qual será, dentro da Constituição da República, o dispositivo que, parecendo-lhe ultrajado, deva merecer seu interesse e sua busca de justiça. De resto, com a negligencia no que se refere à sen-sibilidade de animais anda-se meio caminho até a indife-rença a quanto se faça a seres humanos.

Com isso, não se institucionaliza o sofrimento humanos mas se quer o fazer com o sofrimento dos animais. De outra monta, como assumir, o que é chamado de “manifestação cultural”, nesta percepção, o Ação Civil Pública não foi direcionada às comunidades tradicionais litorâneas, mas ao Poder Público, objetivando honrar a Constituição.

A segunda tentação, diz Rezek, está no fato, de que o Recurso Ex-traordinário ser interposto por instituições distantes geografi camente do meio catarinense, sediadas no Rio de Janeiro. O Ministro considerou que a Região, em questão, possui um índice virtualmente nulo de fraudes e de incidentes, um índice maior de apuração e dinamismo, visto que, na realidade do Rio de Janeiro, há problemas sociais de mais emergências, que seus próprios não almejam para resolvê-las, bem como não faltando instituições para reagir pelo cumprimento da Constituição. Sobre esta questão, conclui que é dever cívico de todo cidadão, querer ver honrada a Constituição em qualquer parte do território nacional, bem como procrastinou o caso, com a esperança de que o caso se resolveria sem a chancela do judiciário, no entanto, a prática se reiterou como cronicamente

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violenta.

Sobre a relação de fato e direito, discutido no STF sobre o caso e a no-toriedade do caso, postula que: “Além do mais, os fatos são de uma gritante notoriedade, que ultrapassa nossas fronteiras; poucas coisas são tão tristemente notórias quanto o ritual da chamada farra do boi e o que nela acontece no litoral catarinense a cada ano.”

O ministro defende que:

Não posso ver como juridicamente correta a idéia de que em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural com abusos avul-sos; há uma prática abertamente violenta e cruel com ani-mais, e a constituição não deseja isso.Bem disse o advogado da Tribuna: manifestações culturais são as práticas existentes em outras partes do país, que também envolvem bois submetidos à farra do público, mas de pano, de madeira, de ‘papier maché’; não seres vivos, dotados de sensibilidade e preservados pela Constituição da República contra esse gênero de comportamento.

Por fi m, ele decide em prover o Recurso extraordinário, julgando o feito procedente nos termos da Ação Civil Pública.

O Ministro Maurício Corrêa contextualiza no que o ministro Rezek o fez e faz alguns questionamentos. O Ministro contesta se haveria possibilidade de se proibir a prática da farra do boi, com fulcro no art. 215, par. 1o. da Consti-tuição Federal, que trata do pleno exercício dos direitos culturais, bem como, sua proteção no processo de civilização nacional e considerando o art. 216, da carta Magna, que trata do patrimônio cultural. Responde a tais indagações, com a resposta não.

Pontua sobre antinomias na Constituição Federal da seguinte maneira:

Não há antinomia na Constituição Federal. Se por um lado é proibida a conduta que provoque a extinção de espécies ou submetam os animais à crueldade, por outro ela garan-te e protege as manifestações das culturas populares, que constituem patrimônio imaterial do povo brasileiro.

Este ministro lembra que a farra do boi, é de origem açoriana e cita Lacerda:

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Na realidade, o povo do litoral catarinense é pescador e agricultor, descende dos portugueses açorianos, tem consi-go com uma visão do mundo peculiar; um universo cultural que deve ser pesquisado, não reprimido. No caso da farra, são pegas e correrias de boi pelo mato afora, em época san-ta; depois o boi é tornado objeto sacrifi cial, oferecido como hóstia repartida aos consortes. A farra do boi é uma prática cultural resistente; está ligada a raízes rituais, pilares da história da humanidade. Diz respeito aos sacrifícios rituais com função de celebração, condenação ou encantamento. Podemos buscar suas origens rituais nos cultos da Mithra da Pérsia ou nos cultos de Dionisíacos da Grécia Antiga. Isso reclama explicação em linguagem antropológica.

Defendendo que como manifestação cultural, deva-se ser tutelada pelo art. 215, par. 1o. da CF/88, o elencando como patrimônio cultural imaterial, bem como que a partir desta análise expressar, conforme o artigo 216, CF/88, como Memória cultural açoriana, que faz parte da formação cultural da Socie-dade Brasileira. Portanto, não se pode confundir uma manifestação cultural com exacerbações de violência.

Não conhecendo o recurso extraordinário o Ministro conclui:

Desta forma, como costume cultural, não há como coibir a denominada “farra do boi”, por ser uma legitima mani-festação popular, oriunda dos povos formadores daquela comunidade catarinense. Os excessos, esses sim, devem, ser reprimidos, para que não se submetem o animal a trata-mento cruel. Mas esta é outra história.

Resumidamente, os seguintes Ministros, com argumentos similares aos descritos anteriormente, acompanharam o voto do Ministro Francisco Rezek: Ministro Marco Aurélio; Ministro Néri da Silveira, complementando que art. 225 tem uma vinculação direta com o art. 1º, ambos da Constituição Federal, especialmente no que tange à dignidade da pessoa humana e cidadania, na construção de uma sociedade livre, justa e solidária; e que a preocupação não está em se ter a dignidade, mas sim no dever agir da dignidade, para promoção da cultura. Por fi m, a decisão foi por maioria, para se proibir a prática da farra do boi, nos seguintes termos da ementa:

COSTUME - MANIFESTAÇÃO CULTURAL - ESTÍMU-LO - RAZOABILIDADE - PRESERVAÇÃO DA FAUNA

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E DA FLORA - ANIMAIS - CRUELDADE. A obrigação de o Estado garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais, incentivando a valorização e a difusão das mani-festações, não prescinde da observância da norma do in-ciso VII do artigo 225 da Constituição Federal, no que veda prática que acabe por submeter os animais à crueldade. Pro-cedimento discrepante da norma constitucional denominado "farra do boi".BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Processo: 153531 UF: SC - SAN-TA CATARINA Relator Ministro FRANCISCO REZEK, 30/01/2007. Fonte: www.justicafederal.jus.br. Acesso em 14/12/2009.

Mesmo muito tempo depois da decisão o STF a prática da brincadeira da farra do boi é presente em Santa Catarina. Em 09 de janeiro de 20107, a Polícia Militar deste estado capturou um bovino, no bairro Pantanal de Florianópolis, que estava sendo utilizado na brincadeira da farra do boi.

3. A PONDERAÇÃO ENTRE A PROTEÇÃO DA FAUNA E DA FLORA CONTRA A EXTINÇÃO OU CRUELDADE E O A MANIFESTAÇÃO E EXPRESSÃO DE CULTURA

Na Constituição Brasileira de 1988, o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, trata da proteção da fauna e fl ora em prática de risco que podem provocar a extinção ou que as submetem animais à crueldade e os artigos 215, parágrafo 1º e 216, que tratam respectivamente de que o Estado protegerá os direitos culturais e acesso à fontes da cultura nacional; bem como a tutela de expressão dessas culturas. No caso da farra do boi, houve uma tentativa de balanceamento ou ponderação entre esses dois direitos, aparentemente contraditórios.

7 ANIMAL usado na Farra do boi em Florianópolis é capturado. O GLOBO, Caderno: Cidade, 10 de janeiro de 2010. Disponível em:< http://news.google.com.br>. Acesso em: 14 de fevereiro de 2010.

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Para Bobbio8, pode-se entender o evento conhecido como a farra do boi nos termos, do art. 215, parágrafo primeiro e 216, ambos da Constituição Federal, como elemento do meio ambiente cultural. Meio ambiente cultural, para Silva9, é o que é “integrado pelo patrimônio histórico, artístico [...], que embora artifi -cial, em regra é obre do homem [….] pelo sentido de valor especial que adquiriu ou de que se impregnou”, considerando-o como manifestação cultural por ser desenvolvido pelo homem. Assim sendo, a farra do boi, é uma manifestação cultural, mesmo considerando o art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Constituição Federal.

Para Bobbio (1999), antinomia é a situação de normas incompatíveis en-tre si, tendo–se de ter duas condições10 para que seja caracterizada: as duas nor-mas devem pertencer ao mesmo ordenamento e devem ter o mesmo âmbito de validade, existente no caso citado, sendo que o Direito não tolera antinomias e se as tivessem, dentro do direito romano, seriam eliminadas. Na classifi cação de Bobbio (1999) esta antinomia é classifi cada da seguinte maneira: por contrarie-dade, antinomia de princípio, na doutrina. Valendo-se disso, art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, da Constituição Federal, estabelece ser proibido as práticas de crueldade ou tortura contra animais, e no caso em tela, submeter os animais à crueldade, já o art. 215, parágrafo 1º e 216 são considerados como normas de obrigação, de ordenação a fazer algo, referente ao Estado se obrigar a garantir a todos os direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e protegerá as expressões e manifestações das culturas populares, confi gurada na farra do boi. Por sua extensão essas normas têm igual âmbito de validade, por isso, ser total-total, em que neste caso uma dessas normas pode ser aplicada sem entrar em confl ito com a outra.

Mesmo considerando uma manifestação cultural, o STF não deixou de proibi-la, utilizando-se do entendimento de ser uma crueldade. No entanto, no plano doutrinário, há antinomia entre as normas insculpidas no parágrafo pri-meiro, inciso VII do art. 225, e parágrafo 1º do art. 215, visto que esse tema foi tratado pelo voto do Ministro Maurício Correa, argumentando que não há antinomias na Constituição Federal.

8 BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 10ºed., 1999.9 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 7ºed., atualizada. São Pau-lo: Malheiros, 2009, p.21.10 Op. Cit. BOBBIO, p. 86-87

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No caso da farra do boi, se está diante de uma contrariedade11. O pará-grafo 1º do art. 215, é uma norma de obrigação, de ordenação a fazer algo, referente ao Estado se obrigar a garantir a todos os direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e protegerá as manifestações das culturas popu-lares, confi gurada na farra do boi; já a segunda norma, o inc. VII, do parágrafo primeiro do art. 225 da Constituição Federal, estabelece ser proibido as práticas de crueldade ou tortura contra animais Por sua extensão essas normas têm igual âmbito de validade, por isso, ser total-total, em que em nenhum caso uma dessas normas pode ser aplicada sem entrar em confl ito com a outra.

Confi gura-se ainda, se valendo dos ensinamentos de BOBBIO, em uma antinomia de princípio, considerando que há valores opostos, inseridos na norma, e que um vai sobrepor ao outro, no caso, a não crueldade de animais sobre as manifestações culturais; solúvel ou aparente, por ser um caso no qual se podem aplicar duas ou mais regras em confl ito entre si.

Por fi m, é de se salientar dois aspectos diferentes do caso em tela. Pri-meiro, pela decisão do STF, isto é, juridicamente, não houve antinomia, já que o mesmo considerou a manifestação cultural e mesmo assim a proibiu e; no plano doutrinário há a antinomia por contrariedade (norma que ordena versus norma que proíbe).

Na procura por uma resposta correta, os juízes devem fazer uma inter-pretação do caso concreto. Aliando os princípios à democracia, Dworkin (2007) propõe três problemas, três direções: a) Distinção geral entre direitos indi-viduais (homogêneos) e objetivos sociais: Grandes direitos (liberdade, igual-dade, direito ao respeito), “Estes grandes direitos não parecem relevantes para decisão de casos difíceis em direito, exceto, talvez, no direito constitucional” (Dworkin, 2007:139). Deve-se demonstrar a distinção entre argumentos de princípio e argumentos de política; b) Precedentes e história institucional dos casos difíceis. É o juiz que deva realmente decide, ninguém pensa que o direito é perfeitamente justo. Mesmo que o juiz se distancie dos precedentes, ele é im-pulsionado pela “doutrina da consistência articulada” que exige. A impressão é equivocada, há no processo um direito político genuíno e c) Decisão por julga-mento de moralidade política: é indefensável “por iludir a maioria com relação a seu direito a decidir, por si própria questões de moralidade política”.

Daí se analisar o princípio da proporcionalidade, de acordo com Bona-vides (2009) o conceito do princípio da proporcionalidade, possui acepções diferenciadas. Este autor se utiliza da classifi cação de Muller, no qual no sen-tido mais amplo “é uma regra fundamental a que devem obedecer tanto os que

11 Op. Cit. BOBBIO, p. 86.

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exercem quanto os que padecem do poder” (p.393); numa escala menos ampla, o princípio é caracterizado pelo fato de se presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fi ns destinados e os meios com que são levados a cabo, neste sentido, há a violação desse princípio com a ocorrência de arbítrio; quando os meios não são apropriados e quando há a desproporção dos meios utilizados e o fi m manifestado.

Assim, o princípio da proporcionalidade procura fazer uma relação com-patível entre os meios e os fi ns de maneira que haja um controle do excesso, no qual, para corrigir possíveis insufi ciências da dualidade anterior, estabelecendo uma relação triangular, entre o fi m, meio e situação (caso concreto). Daí poder haver o princípio da proporcionalidade aliado à interpretação do legislador e do julgador, especialmente quando se trata da interpretação conforme a Consti-tuição, o que, em conseqüência, não abala a divisão de poderes e resvala o “governo dos juízes”. Neste sentido, o princípio da proporcionalidade é um axioma para o Direito Constitucional Brasileiro, isto é, que tolhe a ação ilim-itada dos poderes do Estado no quadro da juridicidade, bem como, de limitar o legislador, ou até o juiz, quando julgar legislando.

Valendo-se de Barroso (2009), o princípio da proporcionalidade é em-pregado, na Constituição do Brasil, de modo fungível, isto é, não está expressa nesta, mas tem seu fundamento na idéia do devido processo legal substantivo e na de justiça. É um instrumento valioso de defesa dos direitos fundamentais e controle da discricionariedade do poder público, utilizado para que melhor se aplique os fi ns que acaba por tornar a norma embutida ou decorrente no sistema jurídico, mesmo sentido, quando não tiverem: adequação; necessidade/vedação do excesso ou proporcionalidade em sentido estrito.

Barroso (2009: 375) ainda ensina que o princípio pode operar também: “no sentido de permitir que o juiz gradue o peso da norma, em uma determinada incidência, de modo a não permitir que ela produza um resultado indesejado pelo sistema, assim fazendo a justiça do caso concreto”, corroborado a ele, Dimolius & Martins (2008) postulam que a proporcionalidade no momento da análise da necessidade e adequação serve para aferir desrespeitos às normas envolvidas e “não para substituir a decisão política do legislador pela decisão política do órgão jurisdicional constitucional” (p. 232), isto é, o STF. Canotilho (2008) ensina que é através da regra da razoabilidade ou da proporcionalidade que: “[...] o juiz tentava e (tenta) avaliar caso a caso as dimensões do comportamento razoável tendo em conta a situação de facto e a regra precedente” (p. 267).

Ademais Silva (2002) complementa que, se cobra a coerência nos julga-dos do STF e não a aplicação da regra da proporcionalidade. Isso ocorre, por causa da concepção de direitos humanos ou a forma de controlar as colisões en-

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tre os direitos fundamentais, para ele poder-se-ia criticar tal concepção, mas não a sua coerência, entretanto, a partir do momento em que o STF trata da regra da proporcionalidade como forma de deslindir a colisão dos direitos fundamentais, não somente com o intuito de ser expresso, mas também, com o intuito de ser um modelo pré-existente, e assim então, em se cobrar a coerência dos julgados do STF.

Domingos (2001) afi rma que os direitos em confl itos impõem-se a existên-cia de um equilíbrio ou mesmo que um princípio prevaleça sem que se importe na negação do outro, sendo necessário o efetivo balanceamento dos direitos em confl itos. Mas para isso é necessário se ter os três aspectos dos princípios da proporcionalidade: adequação, entre a medida a ser adotada e o fi m a ser bus-cado; exigibilidade, para que o fi m tenha uma menor desvantagem ao cidadão e estrito, no sentido silogístico, que se o meio utilizado é proporcional ao fi m buscado, pesando-se as vantagens e desvantagens do Poder Público.

Domingos (2001) pondera que o princípio da proporcionalidade:

Contudo, a grande discussão que se trata sobre a aplica-bilidade do princípio da proporcionalidade está no grau de subjetividade de uma decisão a ser proferida em um caso concreto, porque o julgador poderia pender mais para um princípio ou direito que para outro segundo sua livre con-vicção, e daí não mais se falaria em ponderação adequada. [...] Essa ponderação deve ser tomada sob um aspecto de relatividade, uma vez que não existem princípios ou direi-tos absolutos entre si mesmo, mas sempre dentro de uma racionalidade objetiva, o que afasta procedimentos abstra-tos ou gerais.

Diante das colisões os direitos fundamentais, conforme FARIAS12, não são intangíveis, mas encontram-se suscetíveis de restrições. A preocupação máxima que se tem que ter é em relação ao legislador e ao julgador, haja vista que pode haver abuso na determinação das restrições aos direitos fundamentais, o que o inviabiliza no exercício da vida social. Assim, a doutrina se preocupa em desenvolver critérios racionais para ponderar e controlar a discricionarie-dade da interpositio legislatoris, no que refere aos Direitos Fundamentais. Para isso, desenvolve-se o núcleo ou conteúdo essencial dos Direitos Fundamentais.

12 FARIAS, Edilsom. Liberdade de expressão e comunicação:Teoria e proteção constitu-cional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 25-51

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Entende Farias (2004) que o núcleo essencial é o limite às leis e decisões restritivas, com a fi nalidade de não deixar a mercê do legislador e julgador os Direitos Fundamentais. Possuindo dois problemas de defi nição: um no que tange ao objeto deste: seja no direito individual ou garantia objetiva e o outro, ao valor deste, se absoluto ou relativo.

Para a primeira problemática tem-se a teoria objetiva e a subjetiva. A pri-meira refere-se à proteção geral e abstrata prevista na norma, de forma a evitar que a redução seja de tal forma que perda a importância para a vida social; já a segunda teoria postula que se sacrifi car de tal modo o direito de um individuo que o Direito Fundamental perda o sentido de ser para este. Sobre ambas as restrições dos Direitos Fundamentais devam compatibilizar, harmonizar ambas.

Referente ao valor do núcleo essencial tem-se também duas teorias. A teoria absoluta consiste em que há um núcleo próprio de cada direito que é in-tangível e determinável em abstrato, de outro modo a teoria relativa postula que se reduz o núcleo essencial até o atendimento da máxima proporcionalidade, isto é, a restrição só seria legitima quando fosse obrigatória para se exercer outro direito ou bem constitucional, bem como na proporção de se imponha para um direito fundamental. Nestes termos, o núcleo essencial pode ser atacado.

No caso de haver a colisão de direitos fundamentais ou quando estes se contrapõem aos interesses da comunidade. Vale ressaltar que, os interesses cole-tivos são todos mas somente aqueles que estão assegurados pelas normas consti-tucionais, em colisão com os valores comunitários. É de se destacar , que a farra do boi continua, mesmo depois do julgamento do STF. Ainda para FARIAS13, quando isso ocorrer, poderá resolver esses casos, comprimindo os direitos sem jogo e respeitando os requisitos do núcleo essencial dos direitos envolvidos e a regra da proporcionalidade, e considerando os limites determinados pela Consti-tuição.

Ao se tratar da farra do boi e do balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e fl ora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura (art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88), se trata de um controle da norma constitucional. BIELEFELDT14 ensina que:

O controle normativo constitucional que, eventualmente, também deve preservar os valores dos direitos humanos perante o legislador democrático, acabam por caracterizar

13 Op. Cit. FARIAS, Edilsom, p. 4714 BIELEFELDT, Heiner. Filosofi a dos Direitos Humanos. Coleção Focus, vol. 4. São Leopoldo: Unisinos, 2000, p. 245-248.

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a própria democracia como teor libertário [...] a reivindi-cação por liberdade dos direitos humanos refere-se tanto contra as imposições estatais e comunitárias, como contra a involuntária exclusão da sociedade. Assim, os direitos hu-manos comprovam ser parte integrante de uma ética social política e jurídica [...] ultrapassar a perspectiva individu-alista pelas possibilidades de livre congregação e engaja-mento republicano.

A elaboração doutrinária de conteúdo ou núcleo essencial dos Direitos Fundamentais e de seus limites, é um forma de promoção da Democracia na República Brasileira, a partir da Constituição Federal. Por isso, ter-se a segu-rança jurídica ao se ter a possibilidade de releitura doutrinária no âmbito legal, de se fl exibilizar um Direito Fundamental, com o objetivo de promovê-lo, ga-rantindo-o no ordenamento jurídico, como efi ciente e democrático. A existência desses institutos jurídicos assegura os Direitos Fundamentais e seu exercício, mesmo que legalmente restringidos.

Para MELO15, seguindo o entendimento de BARQUER, ao se centralizar o balanceamento ou proporcionalidade de dois direitos fundamentais, há de se levar em conta, o conteúdo essencial de direito, que é o limite para a atividade legislativa, limitadora dos direitos, ou seja, “o limite dos limites”. O conteúdo essencial é uma fronteira que o legislador - o que no caso do julgado da farra do boi, também vale para o julgador - não tem autorização e não pode ultrapassar, pois se assim o fi zer, estará incorrendo em inconstitucionalidade, o conteúdo essencial, em suma, é o núcleo fundamental, e sendo-se ao contrário, se es-taria colocando em questão a própria existência do Direito Fundamental. Assim sendo, os Direitos Fundamentais não são absolutos, com a fi nalidade de dar a possibilidade de exercê-los, dentro da proporcionalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A farra do boi diante do balanceamento ou ponderação entre o Direito à proteção da fauna e fl ora à extinção ou crueldade (art. 225, parágrafo primeiro, inciso VII, CF/88) e o Direito à tutela de manifestação e expressão de cultura

15 MELO, Sandro Nahmias. A Garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, Ano 11, Abril – junho, nº 43, 2003, p. 82-97

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(art. 215, parágrafo primeiro e 216, CF/88) é um exemplo da complexidade social e jurídica que o Brasil possui. Há duas problemáticas: 1. a farra do boi é uma manifestação cultural e; 2. a crueldade infl igida a animais neste caso é um forma de violência legítima e/ou consentida?

Mas a pergunta dos antropólogos, que questionam o Direito é se a violên-cia da farra do boi (ritualística e de confraternização social) é ilegítima? O STF responde, mesmo se utilizando do princípio da ponderação, que são ilegítimas, ao mesmo tempo em que considera a farra do boi como cultura, no entanto, como a considerar cultura, sem que se permita os meios de efetivá-la? Não seria o caso de se ter a alteridade, de se perguntar às comunidades envolvidas se é o não cultura? Ao se valer do princípio da ponderação, a farra do boi está, ainda, em uma área nebulosa do Direito e é indubitável que é uma cultura, que deva ser valorizada.

A ponderação ou balanceamento, quando forem claramente antagônicos, tem-se de ter claro as soluções, no entanto, nos casos difíceis poderá haver a terceira via ou resposta, qual seja, a não exclusão dos dois Direitos supra, en-tretanto, os relativizando, de maneira que seus respectivos núcleos essenciais sejam tutelados e respeitados, pois assim se compatibiliza esses dois direitos em um caso concreto.

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Artigo recebido em: 27/04/2010

Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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CONSIDERAÇÕES ACERCA DA VIABILIDADE DA ARBITRAGEM: CONTRATOS DE REPAR-

TIÇÃO EQUITATIVA PELO ACESSO E USO DA BIODIVERSIDADE E JUSTIÇA DEMOCRÁTICA

DE PROXIMIDADE

Liana Amin Lima da Silva *José Augusto Fontoura Costa **

Sumário: Introdução. 1. Admissibilidade da Arbitragem; 2. Antinomia Jurídica; 3. Diálogo entre a Lei da Arbitragem e o Código de Defesa do Consumidor; 4. Viabilidade da Arbitragem Ambiental; 5. (In) Disponibilidade dos Direitos Difusos; 6. Cláusula ar-bitral nos contratos de utilização do patrimônio genético e de repartição de benefícios; Conclusão; Referências Bibliográfi cas.

Resumo: O presente trabalho trata da ad-missibilidade da via arbitral como solução de controvérsias no plano interno, suas vantagens e desvantagens. É traçado um estudo da relação da Lei da Arbitragem com o Código de Defesa do Consumidor, especifi camente no que tange as possíveis normas antinômicas (artigo 4˚, §2˚ e art. 51, VII, respectivamente). Neste sentido, é feito uma abordagem crítica da teoria clássica de Norberto Bobbio sobre solução de confl itos de leis, bem como o dever de coerência do ordenamento jurídico, para que possamos compreender acerca do diálogo das fontes, teoria de Erik Jayme, que considera o pluralismo contemporâ-neo, adotada no Brasil por Claudia Lima Marques e já corroborada pelo Ministro Joaquim Barbosa. Um raciocínio que

Abstract: This article deals with the do-mestic allowance of arbitration as a dis-pute resolution system, as well as its pros and cons. A study on the relations between the Arbitration Statute and the Consumers’ Protection Code is presented, specifi cally regarding possible antinomies (article 4˚, §2˚ and art. 51, VII, respectively). In this regard, an approach to the classical theory of Norberto Bobbio on solution of antino-mies is made, as well as the duty of co-herence of the legal system, in order make clear the need to proceed the Erik Jayme’s dialogue of sources, which considers the contemporary pluralism, since Claudia Lima Marques and the Minister Joaquim Barbosa also adopt such view. Since the balance of rules on consumption, environ-ment and arbitration might be reached by

* Mestranda em Direito Ambiental, Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas, PPGDA-UEA. Bolsista do CNPq. ** Doutor e Livre Docente em Direito Internacional pela USP. Professor da Universi-dade Católica de Santos e da Universidade do Estado do Amazonas.

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INTRODUÇÃO

Tendo em vista o pluralismo pós-moderno, verifi ca-se a necessidade de se retomar e insistir no estudo da viabilidade da Arbitragem como meio de solução extrajudicial de controvérsias. Há uma resistência por parte de muitos juristas em se admitir o instrumento arbitral como um meio efi caz, célere e justo. O instrumento da arbitragem ainda é visto pela maioria dos doutrinadores com preconceito e ainda há uma perversa insistência em uma ótica antinômica e ex-cludente. De acordo com Oppetit (2006), há desconfi ança da possível elisão da regulação estatal mediante uma privatização da justiça.

A discussão acerca da constitucionalidade da Lei da Arbitragem já se en-contra esgotada. Agora, possuímos o dever de caminhar pensando no futuro, abertos para novas possibilidades. Neste sentido, encontramos respaldo na termi-nologia criada por Erik Jaymes e adotada no Brasil por Claudia Lima Marques, qual seja, o diálogo das fontes. Caminharemos vislumbrando a harmonia e co-erência do ordenamento jurídico, inclusive no que tange às fontes plúrimas e ex-trajudiciais.

Mostrar-se-á neste trabalho inicial, sem qualquer pretensão de se esgo-tar a discussão, a viabilidade da Arbitragem Ambiental. Para tanto, abordare-

caminha para a plena compatibilidade da Arbitragem com o Direito Ambiental. Desta forma, fundamentaremos acerca da viabilidade da arbitragem ambiental e suas condições e restrições. Traremos à tona a discussão dos contratos de repartição equi-tativa pelo acesso e uso da biodiversidade na Amazônia, exemplifi cando a possibili-dade da inclusão de cláusulas arbitrais nos mesmos e sua contribuição para um acesso democrático da Justiça, considerando a peculiaridade desta temática e a hipossu-fi ciência das comunidades envolvidas.

Palavras-chave: Antinomia. Arbitragem ambiental. Contratos. Acesso à biodivers-idade.

such dialogue. Therefore, this article aims to discuss the underpinnings of environ-mental arbitration, as well as its conditions and limits. As instance, the contracts of equitable distribution and access to Ama-zon’s biodiversity will be discussed, focus-ing the inclusion of arbitration clauses as a possible contribution to a more democratic legal system, which takes into consider-ation the vulnerability of the communities involved.

Key-words: Antinomy. Environmental ar-bitration. Contracts. Access to biodiversity.

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mos a polêmica dos direitos difusos e sua disponibilidade e visualizaremos a possibilidade da aplicação da arbitragem ambiental aos contratos de repartição equitativa pelo acesso e uso da biodiversidade na Amazônia Brasileira, como instrumento de concretização da justiça democrática de proximidade e tendo em vista também o regime jurídico diferenciado requerido por esta matéria.

1. ADMISSIBILIDADE DA ARBITRAGEM

Conforme as disposições gerais da Lei da Arbitragem (LArb), Lei 9.307 , de1996, as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, sendo que a arbi-tragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes. As partes poderão escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbi-tragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública. As partes também poderão convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.

O artigo 3˚ dispõe que as partes interessadas podem submeter a solução de seus litígio ao juízo arbitral mediante convenção de arbitragem, assim en-tendida a cláusula compromissória e o compromisso arbitral. O artigo 4˚, que é do nosso interesse em estudo, defi ne a cláusula compromissória como sendo a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a subme-ter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.

Desde a edição da Lei 9.307, a arbitragem teve um grande progresso no Brasil, sobretudo no plano doméstico. O Judiciário tem favorecido os tribunais arbitrais, revelando maturidade na sua relação com o instituto. Neste sentido, o STJ tem afi rmado a prevalência da cláusula arbitral, com a extinção do processo sem julgamento do mérito (ARAUJO, 2008: 495).

No REsp 712.566 /RJ, de relatoria da Ministra Nancy Andrighi (3ªTurma, DJ de 5.9.2005), fi cou consignado que, "com a alteração do art. 267, VII, do CPC pela Lei de Arbitragem, a pactuação tanto do compromisso como da cláu-sula arbitral passou a ser considerada hipótese de extinção do processo sem julgamento do mérito".

Isso signifi ca uma maior aceitação do instituto da arbitragem como solução de controvérsias bem como, que se dê prioridade para a solução do confl ito pela forma convencionada, evitando-se, assim, o excesso de demandas no Judiciário.

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Importante destacarmos que defendemos o posicionamento de que a eleição de um árbitro para solucionar a lide não signifi ca renuncia ao direito de ação. Também salientamos que a discussão acerca da constitucionalidade da LArb foi esgotada pelo Supremo Tribunal Federal, STF, e não restam dúvidas que esta lei é devidamente compatível com a Constituição Federal, CF, e que respeita o princípio da simetria das normas.

Conforme Informativo 254 (SE-5206), o Tribunal, por maioria, declarou constitucional a Lei 9.037/96, por considerar que a manifestação de vontade da parte na cláusula compromissória no momento da celebração do contrato e a permissão dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em fi rmar compromisso não ofendem o art. 5˚, XXXV, da CF, que dispõe que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. (ARAUJO, 2008: 493)

Seguindo a orientação de Nelson Nery Júnior (2007), com a celebração do compromisso arbitral, as partes estão apenas transferindo, deslocando a juris-dição que, de ordinário, é exercida por órgão estatal, para um destinatário priva-do. Como o compromisso só pode versar sobre matéria de direito disponível, é lícito às partes assim proceder.

No que concerne aos recursos contra a sentença arbitral, o art. 30 da LArb, em seus incisos I e II, dispõe sobre a possibilidade de se corrigir qualquer erro material da sentença arbitral e se esclarecer alguma obscuridade, dúvida ou contradição da mesma, ou que o árbitro ou tribunal arbitral se pronuncie sobre ponto omitido a respeito do qual devia manifestar-se a decisão.

O parágrafo 2˚, do artigo 21, dispõe que serão sempre respeitados no procedimento arbitral os princípios do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. Esclarece-se que o pro-cedimento arbitral possui os meios de se corrigir possíveis erros ou omissões, havendo a previsão das hipóteses de nulidade (art. 32 da LArb), destacando-se, inclusive, as hipóteses de nulidade devidas a prevaricação, concussão ou cor-rupção passiva, bem como que se respeitem os princípios basilares processuais, garantindo, desta forma, uma justa solução para o litígio.

Ressalta-se também que o artigo 32 da LArb dispõe que “a sentença ar-bitral produz, entre as partes e seus sucessores, os mesmos efeitos da sentença proferida pelos órgãos do Poder Judiciário e, sendo condenatória, constitui título executivo”.

Nadia de Araujo (2008: 490) observa que a jurisprudência brasileira en-tende que, a exemplo do que se dá com o processo judicial, não se deve declarar a invalidade da arbitragem quando ela alcança o seu objetivo, não obstante a ocorrência de irregularidades formais (STJ, 4ª Turma, REsp 15.231 – RS). O

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que nos revela que até mesmo o procedimento arbitral deve seguir o princípio da celeridade e da efi ciência, não permitindo que irregularidades formais irrele-vantes possam prejudicar a decisão de mérito do litígio, quando não se compromete a justa solução.

2. ANTINOMIA JURÍDICA

Torna-se necessário expormos sobre a teoria clássica de Norberto Bobbio, no que se refere às antinomias e seus critérios de solução de confl itos de leis, para que possamos compreendê-las, em face do atual “pluralismo pós-moderno”, e do necessário diálogo das fontes, expressão criada por Erik Jayme, defendida no Brasil, por Claudia Lima Marques, e corroborada pelo Ministro Joaquim Barbosa, no Supremo Tribunal Federal.

Na Teoria do Ordenamento Jurídico, de Bobbio (1999), temos a defi nição de antinomia como àquela situação na qual são colocadas em existência duas normas, das quais uma obriga e a outra proíbe, ou uma obriga e a outra permite, ou uma proíbe e a outra permite o mesmo comportamento. Para que possa ocor-rer antinomia são necessárias duas condições, quais sejam: 1) as duas normas devem pertencer ao mesmo ordenamento jurídico; 2) as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade.

Deve-se observar também que, tratando das antinomias impróprias, res-salta-se o fato de que um ordenamento jurídico pode ser inspirado em valores contrapostos, em opostas ideologias. A Constituição de 1988, por exemplo, ao estabelecer os princípios gerais da atividade econômica (art.170), traz à tona princípios antinômicos, pois além de prever a livre iniciativa e a livre concor-rência, também prevê a função social da propriedade, a defesa do consumidor e a defesa do meio ambiente. As antinomias de princípios não são antinomias jurídicas propriamente ditas.

No âmbito das antinomias próprias, temos a distinção entre as antino-mias solúveis e insolúveis. Denominam-se “aparentes” as solúveis e “reais” as insolúveis. Os critérios clássicos para a solução das antinomias são três: crité-rio cronológico (lex porterior derogat priori), critério hierárquico (lex superior derogat inferiori) e critério da especialidade (lex specialis derogat generali). (BOBBIO: 1999).

No que concerne à insufi ciência dos critérios, no caso de confl ito entre duas normas para o qual não valha nenhum dos três critérios acima expostos, o intérprete, valendo-se das técnicas hermenêuticas, tem as possibilidades de

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eliminar uma norma (interpretação ab-rogante simples), eliminar as duas (du-pla ab-rogação) ou conservar ambas (eliminação da incompatibilidade). Nesta última hipótese, deve-se demonstrar que a incompatibilidade é puramente apa-rente. Bobbio já se referia à tendência de o intérprete não mais eliminar as nor-mas incompatíveis, mas sim eliminar a incompatibilidade, através da forma de interpretação corretiva.

Passamos agora ao estudo da relação existente entre o art.51, VII, da Lei 8.078/90 (CDC) e o art.4˚, §2˚ da Lei 9.307/96 (LArb).

Lei 8.078/90 – Código de Defesa do Consumidor: Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas con-tratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) VII - determinem a utilização compulsória da ar-bitragem.Lei 9.307/96 – Lei da Arbitragem: Art.4˚. A cláusula com-promissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os lití-gios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. (...)§2˚ Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá efi cácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua insti-tuição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula.

Sob a ótica dessa possível “antinomia”, alguns autores, como Carvalho e Silva (2008: 234), consideram a LArb incompatível com o CDC, pois induziria à aceitação da arbitragem em contratos de adesão, infringindo os princípios da vulnerabilidade, boa-fé e equidade que devem presidir as relações de consumo. O autor conclui que a norma do artigo 4˚, §2˚ da Lei da Arbitragem é válida para as relações civis e comerciais, conquanto não se aplique às relações de consumo.

Para Bessa (2009, p. 304), em que pese o cuidado da Lei 9.307/96 com a vontade real do aderente, a doutrina sustenta majoritariamente que, em face da vulnerabilidade do consumidor, principalmente quando pessoa natural, a insti-tuição da arbitragem em contratos de adesão é extremamente desvantajosa para o consumidor, e, portanto, nula de pleno direito.

Bessa (2009) também defende a indisponibilidade das normas do CDC, pois cuida-se de norma de ordem pública e interesse social, não podendo ser afastada por conjugação de vontade. Mostrando desta forma, a possível incom-patibilidade do CDC com o procedimento da arbitragem, que legalmente só

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pode ser instituído para “dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais dis-poníveis” (art.1˚).

É válido mostrarmos o posicionamento de Nelson Nery Júnior (2007), ao se referir ao juízo arbitral como importante fator de composição dos litígios de consumo, razão por que o Código não quis proibir sua constituição pelas partes do contrato de consumo. A interpretação a contrario sensu da norma sob comentário indica que, não sendo determinada compulsoriamente, é possível instituir-se a arbitragem. Neste sentido, considerando que apenas são vedadas as cláusulas que impliquem a utilização compulsória da arbitragem, Fontoura Costa (2009) reitera que está longe o CDC, portanto, de vedar, mesmo antes da vigência da Lei 9.307/96, a arbitragem em matéria de consumo.

Ressaltando-se a constitucionalidade da LArb, o que se exclui pelo com-promisso arbitral é o acesso à via judicial, mas não à jurisdição. Como nos mostra Nelson Nery Junior, não se poderá ir à justiça estatal, mas a lide será resolvida pela justiça arbitral, havendo em ambas a atividade jurisdicional.

Fontoura Costa (2009) ressalta que aquilo que não está isento do crivo dos órgãos jurisdicionais estatais são as questões de ordem pública, não todo e qualquer juízo arbitral. Constituindo-se injustiça negar ao consumidor, con-vencido de eventuais vantagens, in casu, das formas alternativas de solução de controvérsias, adotar, de comum acordo com o fornecedor, solução alternativa à jurisdição.

Importante torna-se observarmos que o próprio §2˚ do art. 4˚ da LArb, ao estabelecer que a cláusula compromissória, nos contratos de adesão, só terá efi cácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concor-dar, expressamente, demonstra estar em consonância com os princípios do CDC, visando um equilíbrio na relação contratual, de forma a se respeitar a bilaterali-dade, principalmente nos contratos de adesão, que dariam margem para possíveis cláusulas abusivas.

Em sua conclusão, Nelson Nery Júnior (2007), afi rma que o art. 4˚, §2˚ da LArb não é incompatível com o CDC, art.51, VII, razão pela qual ambos os dispositivos legais permanecem vigorando plenamente. Com isso queremos mostrar a possibilidade de nos contratos de consumo, haver a instituição de cláusula de arbitragem, desde que obedecida, efetivamente, a bilateralidade na contratação e a forma da manifestação da vontade.

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3. DIÁLOGO ENTRE A LEI DA ARBITRAGEM E O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

No que concerne à coerência do ordenamento jurídico, Bobbio (1999) nos revela que não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento. O autor, fazendo referência ao dever de coerência, no caso das normas de mesmo nível, contemporâneas, nos mostra que não há nenhuma obrigação juridicamente qualifi cada, por parte do legislador, de não contradizer-se, no sentido de que uma lei, que contenha disposições contraditórias, é sempre uma lei válida, e são válidas, também, ambas as disposições contraditórias.

Claudia Lima Marques (2009) introduziu na doutrina brasileira a teoria de Erik Jayme, que, em seu Curso Geral de Haia de 1995, ensinava que “em face do atual “pluralismo pós-moderno” de um direito com fontes legislativas plúrimas, ressurge a necessidade de coordenação entre as leis no mesmo orde-namento, como exigência para um sistema jurídico efi ciente e justo”.

Pode-se conciliar o pensamento de Erik Jayme com o dever de coerência defendido por Bobbio. Todavia, com a devida vênia, pensamos ser possível atu-alizar a Teoria do Ordenamento Jurídico, acrescentando o diálogo das fontes, de Erik Jayme, de forma que, não mais haja necessidade de se excluir ou desapli-car a norma antinômica, mas sim compatibilizar as normas através do possível diálogo. Marques (2009, p. 89) nos orienta que:

o uso da expressão do mestre, “diálogo das fontes”, é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplica-ção coerente das leis de direito privado, co-existentes no sistema. É a denominada “coerência derivada ou restaura-da” (coherénce dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodifi cação, à tópica e à microrrecodifi ca-ção, procura uma efi ciência não só hierárquica, mas funcio-nal do sistema plural e complexo do nosso direito contem-porâneo, a evitar a “antinomia”, a “incompatibilidade” ou a “não-coerência”.

Considera-se ultrapassada a acomodada visualização antinômica das nor-mas acima, pois devemos ir além dos ensinamentos de Bobbio. Consideramos relevante toda sua teoria para a construção da ciência jurídica, no entanto, ela por si só não se basta. Deve-se considerá-la como bagagem teórica, mas não se pode olvidar que, na contemporaneidade, torna-se plenamente possível uma aplicação simultânea, coerente e coordenada das plúrimas fontes legislativas.

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Claudia Lima Marques (2009: 90) nos orienta que as infl uências recípro-cas podem se dar

seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja per-mitindo a opção pela fonte prevalente ou mesmo permitin-do uma opção por uma das leis em confl ito abstrato – uma solução fl exível e aberta, de interpenetração, ou mesmo a solução mais favorável ao mais fraco da relação (tratamen-to diferente dos diferentes).

Há um grande avanço não só na doutrina, como também na jurisprudência brasileira, por exemplo, quando o Supremo Tribunal Federal, julgando a ADIn 2.591, concluiu pela constitucionalidade do CDC a todas atividades bancárias, reconhecendo a necessidade do atual diálogo das fontes. O Ministro Joaquim Barbosa (MARQUES, 2009, p. 100), referindo-se à esta técnica, observa:

Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre es-sas espécies normativas, mas, sim, em “infl uências recípro-cas”, em “aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente”.

A autora exemplifi ca, por meio do “confl ito” de uma lei anterior, como o Código de Defesa do Consumidor de 1990, e uma lei posterior, como o Código Civil, de 2002:

daí a necessária “solução” do “confl ito” através da pre-valência de uma lei sobre a outra e a consequente exclusão da outra do sistema (ab-rogação, derrogação, revogação). A doutrina atualizada, porém, está a procura, hoje, mais da harmonia e da coordenação entre as normas do ordenamen-to jurídico (concebido como sistema) do que da exclusão.

Busca-se “uma efi ciência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo do nosso direito contemporâneo, uma relação mais fl uida e fl exível, tratando diferentemente os diferentes”. Claudia Lima Marques (2009) também se refere a convivência de leis com campos de aplicação diferentes, campos por vezes convergentes e, em geral, diferentes (no que se refere aos sujeitos).

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Nesse sentido, havendo um diálogo entre as Leis 8.078/90 e 9.307/96, é possível vislumbrarmos uma aplicação de ambas ao mesmo caso concreto, sem que isso signifi que uma desconsideração dos princípios do CDC, sem que se prejudique a parte hipossufi ciente e vulnerável da relação contratual, de forma que não se trate de direitos indisponíveis, respeitando-se a base principiológica de ambas as normas e, sobretudo, do ordenamento jurídico brasileiro, visto de forma sistemática.

O CDC se originou graças a base principiológica de nossa Constituição Cidadã (artigo 5˚, XXXII), por haver estabelecido como direito fundamental a defesa dos consumidores, agentes econômicos mais vulneráveis no merca-do globalizado, devendo ser conferido um tratamento diferenciado, conforme princípio da isonomia.

A LArb prevê, no §2˚ do art. 21, que serão, sempre, respeitados no pro-cedimento arbitral os princípios do direito processual civil, notadamente o princípio do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento. Isso signifi ca que, ao se respeitar tais princípios, bem como os previstos no CDC e na CF, e observando as restrições cabíveis, torna-se plenamente possível estabelecer um diálogo sistemático de coerência, complementaridade e subsidiariedade.

Importante torna-se esclarecermos que o posicionamento da Professora Claudia Lima Marques é taxativo ao se mostrar contrário à utilização da via arbitral nas relações de consumo, considerando que “cria um falso equilíbrio (Scheingleicheit, na doutrina alemã), uma falsa bilateralidade de chances no contrato, a qual não ocorrerá na prática. A passividade e vulnerabilidade do con-sumidor são a regra” (MARQUES, 2004, p. 1032/1037).

A professora mostra que seria incompatível o parágrafo 2° do art. 4° da LArb com o CDC, tratando das cláusulas compromissórias, considerando in-aplicável a Lei 9.307/96 às relações de consumo reguladas em contratos de ad-esão. Registra-se, portanto, que utilizamos a teoria adotada pela autora (diálogo das fontes) para nossa fundamentação, mas isso não signifi ca que ela considere possível a utilização da LArb nos contratos de consumo, “relações per se tão desequilibradas e afeitas a abusos”.

Todavia, reiteramos o posicionamento de que a relação entre o CDC e a LArb não deve mais ser visualizada como “confl ito”, mas sim como comu-nicação, realizando uma coordenação fl exível e útil das normas, a fi m de res-tabelecer a sua coerência, que se dá com a convivência das mesmas. Portanto, entendemos ser possível a aplicação da teoria do diálogo das fontes nesse caso, estando, ainda, em consonância com os argumentos de Nery Júnior (2007) e Fontoura Costa (2009) já expostos no presente trabalho, sobre a utilização da

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arbitragem nas relações de consumo.E em oportunidade em que se pôde debater pessoalmente sobre a temática

com a respeitada autora, esta concordou que, em situações peculiares, onde o acesso à justiça é difi cultado (nos referimos aos exemplos de comunidades na Amazônia), a utilização da arbitragem seria viável e legítima, pois a solução do confl ito pela via judicial se mostra repleta de obstáculos, logo, seria uma situa-ção excepcional.

Ressalta-se ainda que a hipótese central mostrada no presente estudo (contratos de repartição equitativa de benefícios) sai da esfera das relações de consumo, mas se considerou relevante ilustrar com essa polêmica discussão da (in) compatibilidade entre a LArb e o CDC, por termos em comum matéria que envolve direitos difusos e vulnerabilidade das partes.

4. VIABILIDADE DA ARBITRAGEM AMBIENTAL

A proteção do meio ambiente é um direito fundamental, consagrado constitucionalmente (art. 225, caput; art. 170, VI, art.5˚, LXXIII). Com uma visão antropocêntrica, o direito ao meio ambiente se baseia na dignidade da pes-soa humana. A Carta Magna reconhece que se trata de um bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e a coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

Como afi rma Teles da Silva (2007: 230), é necessário considerar que não há possibilidade da concretização dos demais direitos fundamentais sem o di-reito ao meio ambiente, que se traduz em última análise como o próprio direito à vida.

Um grande avanço da CF/88 é prever a solidariedade transgeneracional, bem como a dimensão coletiva e difusa do direito e dever quanto à proteção do meio ambiente, de forma a garantir um desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente correto.

E é também na CF que podemos encontrar as respostas para as antino-mias modernas e a complexidade do pluralismo contemporâneo. Nesse sentido, destaca-se sobre a garantia fundamental do conteúdo essencial dos direitos fun-damentais.

Nahmias Melo (2003: 85) salienta que, partindo da premissa que os di-reitos, ainda que fundamentais, não são absolutos, é que temos que admitir a limitação dos mesmos, até para possibilitar o seu exercício e dada a necessidade de harmonização entre direitos fundamentais, torna-se imperiosa a relativização dos mesmos.

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Para o presente trabalho, importa compreender a necessidade de har-monização em prol da visão sistemática e coerente do ordenamento jurídico brasileiro, mesmo que signifi que alguma relativização de um direito fundamen-tal em face de outro, desde que não atinja seu núcleo essencial, desde que não o exclua.

E é com base numa ótica sistemática e harmoniosa do ordenamento ju-rídico brasileiro, que vislumbramos ser possível compatibilizar o instituto da arbitragem também quando se tratar de controvérsias que envolvam a proteção do meio ambiente, desde que respeitadas limitações e restrições para sua utiliza-ção, conforme o caso concreto.

É válido destacarmos que o instituto da arbitragem em matéria ambiental é muito utilizado no âmbito internacional. Um exemplo é o funcionamento da Corte Internacional de Arbitragem Ambiental (International Court of Environ-mental Arbitration and Conciliation, ICEAC), constituída em 1994, no México.

Para os fi ns do presente estudo, no que tange ao âmbito internacional, vamos nos limitar ao exemplo da Convenção da Diversidade Biológica (CDB), ocorrida em 1992, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambi-ente e Desenvolvimento, Rio-92.

Adam Samuel (2005), nos mostra que há dois tipos de razões para o uso da arbitragem internacional. A primeira é que a arbitragem é desejável. A se-gunda é que não há alternativa a ela. Neste sentido, Fontoura Costa (2009a), citando a aula, “International Arbitration is Not Arbitration”, em Montreal, de Jan Paulsson, um dos mais conhecidos e atuantes árbitros internacionais, nos faz refl etir sobre a arbitragem internacional não como arbitragem, mas como única possibilidade para os casos com elevada densidade de aspectos internacionais.

Apesar dessas considerações da arbitragem internacional como única al-ternativa, ela tem sido uma tendência para solucionar confl itos que envolvam discussão ambiental. Para Silvana Colombo (2009: 763), a aplicação do instituto da arbitragem para a solução de controvérsias em matéria ambiental é promisso-ra no Brasil, argumentando pela comprovada utilidade da arbitragem ambiental no âmbito internacional e também por se tratar de um instrumento mais célere, contendo capacitação técnica nas decisões tomadas pelos árbitros especializa-dos.

Entre as vantagens e características da arbitragem expostas pela autora supracitada, no que concerne ao âmbito interno, está a escolha do árbitro de acordo com as qualidades que consideram relevantes para o caso; a utilização dos princípios gerais do direito e da equidade para decidir o confl ito; a sub-missão do árbitro a certos parâmetros, entre eles, o dever de observar os co-mandos legais; o espírito de cooperação que circunda a relação entre as partes;

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a celeridade do juízo arbitral; e a possibilidade de obtenção de uma solução efi ciente, rápida e justa.

Na arbitragem, uma vantagem é cumular, na mesma pessoa, a qualidade de conhecedor dos aspectos relevantes para a decisão e a de juiz. Outra vanta-gem exclusiva da via arbitral, é a de permitir que as partes contratantes possam eleger o árbitro ou comissão arbitral que solucionará possíveis controvérsias, e isso permite que haja um consenso na escolha, de forma a garantir a imparciali-dade e também permitir que um expert, conhecedor e especialista da matéria objeto do contrato, possa decidir com base no direito ou equidade.

Logo, considerando a complexidade das questões ambientais, a via ar-bitral se apresenta como uma alternativa, como mais um instrumento legítimo que pode ser utilizado em prol da proteção ambiental e deve ser devidamente proporcional à dimensão do problema ambiental in casu.

Deve-se, portanto, em termos da utilização da arbitragem ambiental, ser considerado o princípio da precaução, que emerge do artigo 225 da Carta Mag-na, princípio este dotado de caráter de generalidade e que deve ser utilizado para nortear as ações, possibilitando a proteção e a gestão ambiental, em face das incertezas científi cas. Frangetto (2006) refere-se a inclusão do conteúdo ambiental da cláusula contratual compromissória também como forma de se aproveitar benefi camente desta via para a prática de ações ambientais positivas.

Diante do exposto, considera-se a arbitragem ambiental como uma pos-sibilidade não de substituição do Poder Judiciário, nem de exclusão de sua apre-ciação lesão ou ameaça de direito (art. 5˚, XXXV). Mas sim como mais uma op-ção de dirimir questões ambientais, respeitando-se certas restrições. Isso revela um caráter não só de solução de lides para a arbitragem, mas também de um meio de garantir, de forma efi caz, a proteção do meio ambiente, em consonância com o princípio da precaução.

5. (IN) DISPONIBILIDADE DOS DIREITOS DIFUSOS

Importante lembrar que a LArb prevê sua utilização para dirimir confl itos de natureza disponível. Nas disposições gerais da LArb, em seu artigo 1˚, caput, dispõe que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

Aqui se encontra nosso fundamento para a utilização do instrumento da Arbitragem Ambiental, bem como a ressalva que deve ser observada. Na pri-meira parte do caput, temos que “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem”. Considerando que o objeto dos contratos é direito que se

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pode dispor e considerando, que há diversas situações em que se é lícito dispor de bens ambientais (os considerados microbens), estando em jogo inclusive di-reito patrimonial e interesses econômico-fi nanceiros (com os devidos cuidados e limites que se deve observar, tendo em vista a supremacia da proteção ambi-ental sobre os interesses privados), vislumbraremos a existência de hipóteses de cabimento da Arbitragem Ambiental.

Os direitos que podem ser objeto da arbitragem, portanto, são apenas aqueles que podem ser avaliados em termos pecuniários (patrimoniais) e, ao mesmo tempo, podem ser alienados ou cedidos pela parte (disponíveis). Ocorre, porém, que o bem jurídico ambiental é aquele constitucionalmente considerado como bem de uso comum do povo. Todavia, devemos retomar ao exposto acima acerca da relativização de um direito fundamental, sem que se atinja sua essên-cia. Ou seja, havendo determinadas limitações, torna-se possível a fl exibilização do direito difuso em questão, adotando o critério da ponderação.

A previsão do artigo 1˚ da LArb, nos mostra a coerência do ordenamento jurídico e mais uma vez, a simetria desta lei com os mandamentos constitu-cionais, pois a própria LArb estabelece a limitação legal para a instituição da arbitragem, qual seja quando se tratar de direitos disponíveis, o que nos revela a nulidade da cláusula arbitral que não estiver em consonância com esta ordem principiológica. Destaca-se, neste sentido, que não há que se falar que a LArb fere interesses das partes hipossufi cientes envolvidas, pois só caberá a cláusula arbitral, quando elas são aptas a contratar, livremente e de comum acordo, en-volvendo bens que possam dispor.

Percebe-se que muitos dos problemas ambientais não são objeto de pro-cesso que os dirima, por se tratarem de questões aparentemente irrisórias e, por isso, raramente levados à apreciação de um terceiro. Quando muito, as próprias partes, em conjunto, chegam a um acordo, conforme nos alerta Fran-getto (2006). Ressalta-se que a via arbitral é cabível para questões relacionadas aos microbens ambientais, diferentemente de quando se afeta o macrobem, que constitui aquele complexo conjunto da universalidade do ambiente.

Microbens são aqueles de que as pessoas podem dispor, mesmo possu-indo o caráter de bem ambiental. Encontram-se, porém, delimitados pelo direito privado, pois são disponíveis, mas estão sempre amparados e sofrem infl uências diretas dos princípios constitucionais e de interesse público, como a função so-cial da propriedade, por exemplo. Trata-se da concretização de uma interpreta-ção e interpenetração de princípios “antinômicos”, é a materialização do dever de coerência e do diálogo das fontes.

Adotamos a ótica da transversalidade do Direito Ambiental, e com o escopo de corroborar este entendimento, importante ressaltar o que Cristiane

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Derani (2008) nos ensina, pois normas de diversos ramos compõem o direito ambiental. A autora reitera que a visão setorizada não deve prosperar, se se quer tornar efetivos os princípios da Constituição Federal, prescritos sobretudo nos seus arts. 170 e 225, pois a Constituição não pode ser interpretada aos pedaços.

Retomando a discussão da indisponibilidade dos direitos difusos, encon-tramos a conceituação de interesses ou direitos difusos, no artigo 81, I do CDC, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titu-lares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstância de fato.

Considerando que a transação é um ato jurídico bilateral que implica em renúncias e concessões recíprocas, em geral, só quem tem o poder de dispor dos direitos pode transacionar. Interessa, portanto, verifi car se os direitos difusos po-dem ser objeto de transação, especialmente, porque não pertencem a um sujeito determinado. (COLOMBO: 2006).

A admissibilidade da arbitragem ambiental se torna óbvia, ao refl etirmos sobre a afi rmativa de Silvana Colombo, de que “o fato do bem jurídico ambien-tal, qualifi cado como uso comum do povo, ter natureza difusa, não exclui a pos-sibilidade de a proteção ambiental ser submetida ao regime jurídico de direito privado”.

Destaca-se acerca da utilização do TAC – termo de ajustamento de con-duta, previsto na Lei da Ação Civil Pública, e também citamos o instrumento da transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo para a solução de confl itos ambientais. Neste sentido, é possível vislumbrarmos a utilização do instrumento da arbitragem, visando justamente uma proteção ambiental mais efi ciente, o que confere ao instrumento da arbitragem, um meio de tutela ambi-ental extrajudicial.

6. CLÁUSULA ARBITRAL NOS CONTRATOS DE UTILIZAÇÃO DO PAT-RIMÔNIO GENÉTICO E DE REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS

A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), objetiva a conservação da diversidade biológica, o aproveitamento sustentável dos recursos e a justa e equitativa repartição dos benefícios decorrentes da utilização de recursos gené-ticos. É necessária uma regulamentação do acesso aos recursos genéticos, para um maior desenvolvimento de medidas que assegurem uma justa e equitativa repartição de benefícios para os estados detentores do conhecimento tradicional. Neste sentido, o artigo 8 da CDB exige que as partes:

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Respeitem, preservem e mantenham o conhecimento, as inovações e práticas das comunidades locais e indígenas que incorporem estilo de vida tradicionais, relevantes para a conservação e o uso sustentável da diversidade biológica e promovam sua maior aplicação, com a aprovação e o en-volvimento dos portadores desse conhecimento, inovações e práticas e encorajem a equitativa repartição dos benefí-cios originários de sua utilização.

Para entendermos a problemática que envolve a utilização da biodiver-sidade, devemos atentar que, embora as patentes possam de fato proteger os interesses de todas as partes envolvidas, no que se refere à bioprospecção, isto muito raramente acontece, pois pouquíssimas vezes ou nunca comunidades in-dígenas são convidadas a ter conjuntamente uma patente ou que os curandeiros tradicionais sejam chamados de inventores (DUTFIELD: 2004).

Dutfi eld expõe como outra possível razão para a falha da justa repartição de benefícios é que as empresas que usam material genético e conhecimento tradicional associado preferem negociar com os governos e manter distância das comunidades indígenas. Outras questões que, para o autor, tornam o sistema de patentes inútil, na promoção da repartição justa e equitativa dos benefícios são a extensão de patentes a substâncias descobertas na natureza e o problema da concessão de patentes que não seriam concedidas se os critérios de inovação e passo inventivo fossem respeitados. Sendo outra questão a oportunidade que o sistema dá a empresas e pesquisadores para que adquiram direitos exclusivos de patente por invenções que não ocorreriam sem prévio acesso ao conhecimento tradicional.

Há normas legais que consideram a biodiversidade como bem público, implicando a possibilidade de restringir direitos de propriedade, enquanto outras preferem classifi cá-la como bem de uso comum do povo ou interesse público. Para Varella, no contexto jurídico brasileiro não cabe classifi car a biodiversidade como bem público, pois a natureza jurídica dos contratos, a possibilidade de co-mercialização dos bens por particulares e o caráter das limitações impostas pelo Poder Público demonstram a melhor caracterização como um bem de interesse público.

Considerando que as comunidades locais ou grupos indígenas formam a parte hipossufi ciente no contrato de repartição de benefícios, não sendo uma relação contratual equilibrada, em geral, as comunidades não têm condição para efetivamente controlar o cumprimento do contrato. Desta forma, além da fi scaliza-ção do cumprimento do contrato e respectiva repartição equitativa de benefícios, ser feita pelos próprios atores diretamente envolvidos, deve também ser realizado

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pelo poder público, pela sociedade civil organizada, universidades, etc.Como Varella (2004) nos mostra, uma alternativa é que o governo assista

as comunidades na implementação e sanção das cláusulas contratuais, exempli-fi cando com o caso do contrato ICBG (Grupos Cooperativos Internacionais da Biodiversidade) da Nigéria, em que se contratou a Universidade Howard para garantir os pagamentos de royaltyies.

E, por que não se acrescentar o instrumento da arbitragem como forma de solução de possíveis confl itos, com árbitros especializados e imparciais nos casos de repartição de benefícios quando a União não for parte no contrato, ou seja, quando o regime jurídico for o de direito privado.

A Constituição de 1988, assim como a Lei n. 388/97 , do Estado do Amapá, propõe a efetiva participação dos povos indígenas e comunidades locais. No que tange ao contexto nacional, o Projeto de Lei do Senado, PLS 306/95, de autoria da Senadora Marina Silva (PT-AC), previa uma comissão mista para análise dos pedidos de acesso, composta de representantes do governo federal, estadual e DF, da comunidade científi ca, de povos locais ou tradicionais, povos indígenas, ONG’s e empresas privadas. Todavia, em 2001, o Executivo editou uma MP 2.186 e, através do Decreto 3.945, foi defi nida a composição do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, composto por órgãos e entidades da Adminis-tração Pública Federal.

A Lei Ordinária n.388/97 do Estado do Amapá prevê uma proteção mais ampla e participação plural ao dispor sobre os instrumentos de controle do acesso à biodiversidade do Estado do Amapá, pois prevê que a autorização para acesso aos recursos genéticos não implica em autorização para sua remessa ao exterior, a qual deverá ser previamente solicitada e justifi cada à autoridade competente, sendo ilegal o uso de recursos genéticos com fi ns de pesquisa, con-servação ou aplicação industrial ou comercial que não conte com o respectivo certifi cado de acesso.

Pontos interessantes previstos na referida lei são a responsabilidade solidária e a criação de comissão plural, composta por representantes do Governo Estadual, dos municípios, da comunidade científi ca e de organizações não-governamentais, valendo-se da colaboração das empresas privadas para desenvolver planos, estra-tégias e políticas com o escopo de conservar a diversidade biológica e assegurar que o uso dos seus elementos seja sustentável, estimular a criação e o fortaleci-mento de unidades de conservação e capacitar pessoal para proteger, estudar e usar a biodiversidade, entre outros.

Não é por acaso que as repartições de benefícios que vem ocorrendo no Estado do Amapá são uns dos poucos casos positivos, pois a Lei n.388/97 do Estado do Amapá também é um exemplo a ser seguido pelos demais Estados.

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Considerando também, que em diversos casos na Amazônia, não há nem sequer contratos, poucos destes casos nos quais há ausência de repartição de benefí-cios pela exploração econômica de acesso a recursos genéticos e conhecimen-tos tradicionais na Amazônia vem sendo denunciados, e, através de ações civis públicas, discutidos com morosidade, mas com expectativas de decisões justas pelo Judiciário.

A coincidência de no Estado do Amapá haver um histórico de contratos e mobilização das comunidades (através da COMARU, Cooperativa Mista dos Produtores e Extrativistas do rio Iratapuru, por exemplo), nos mostra que há in-fl uência da legislação estadual pertinente, pois, com os rigores, restrições e san-ções previstas para a exploração econômica de produtos oriundos da fl oresta, de forma preventiva, ações são direcionadas visando uma maior sustentabilidade com o manejo fl orestal adequado e uma maior justiça social.

É nesse sentido que vislumbramos o ideal de desenvolvimento sustentável, com as comunidades indígenas e tradicionais sendo convidadas a participar, sem que sejam exploradas. Conforme expõe OLIVEIRA (1999), “a recuperação da história dos dominados é muito recente”, devemos, portanto, buscar superar o “consenso imposto”, o que signifi ca o próprio questionamento da repartição de riqueza.

Portanto, espera-se que a realidade dos contratos de repartição possa estar cada vez mais expandida pela Região Amazônica, que as comunidades pos-sam estar se organizando, se conscientizando e se benefi ciando com a justiça democrática de proximidade, através da informação e acesso à justiça, podendo optar por soluções extrajudiciais para suas lides.

Devemos atentar ao cumprimento efetivo do contrato e se a repartição está sendo equitativa realmente. Nesse sentido, pode-se observar a situação pre-cária da comunidade descrita no resumo público de certifi cação da COMARU, feita com o propósito de avaliar a sustentabilidade ecológica, econômica e so-cial do manejo fl orestal da cooperativa.

Tendo em vista a grande lucratividade com a comercialização de produto oriundo do recurso genético e conhecimentos tradicionais dos povos da fl oresta, é nítida a situação de desigualdade, pois a porcentagem da renda aferida com a venda dos produtos convertida em benefícios para a comunidade local ainda é pequena, ao compararmos à relevância que possui o acesso e utilização do recurso.

O artigo 25 da MP 2.186-16/2001 estabelece que os benefícios decor-rentes da exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de amostra do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado, poderão constituir-se, dentre outros, de divisão de lucros, pagamento de roy-

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alties, acesso e transferência de tecnologias, licenciamento, livre de ônus, de produtos e processos, e capacitação de recursos humanos.

Todavia, devemos ressaltar que é tênue a linha que separa a repartição de benefícios equitativa e efetiva de uma política assistencialista e publicitária. Ainda estamos longe de alcançar um equilíbrio na relação contratual. Mas res-salta-se que as perspectivas são positivas e, quanto maior a mobilização social, a conscientização e participação da comunidade, mais justa será a repartição, dependendo, é claro, de um maior acesso, dos povos da Amazônia, à educação e informação, para lutarem por seus direitos.

Assim como se reconhece a vulnerabilidade do consumidor, a exigência de observância à boa-fé objetiva, o dever do fornecedor de agir com transparên-cia para se estabelecer o equilíbrio e a harmonia entre as partes contratantes e, sobretudo, o respeito aos interesses econômicos do consumidor, reconhecemos também que há uma maior vulnerabilidade e hipossufi ciência quando trata-se dos povos tradicionais e indígenas e seus acordos com empresas, geralmente multinacionais, concedendo o acesso e uso dos seus conhecimentos sobre a bio-diversidade.

No entanto, a utilização da arbitragem ambiental nos contratos de repar-tição equitativa, longe de ser um meio em que as partes economicamente mais fortes teriam para se benefi ciar, pode ser utilizada, conforme os preceitos con-stitucionais e de defesa do meio ambiente, como um instrumento para garantir o cumprimento das cláusulas contratuais que benefi ciam as comunidades tradi-cionais, já que são explícitas as difi culdades que os povos indígenas e as comu-nidades tradicionais têm para exigir o cumprimento dos deveres e obrigações expressos nos contratos, seja por má informação, índice não satisfatório de alfa-betização e conscientização política, difi culdades de transporte e locomoção até os centros mais urbanizados, onde se encontram os órgãos que poderão oferecer assistência judicial, entre outros fatores.

Um dos princípios elencados por Francisco Arcanjo (1997), ao tratar da Convenção sobre Diversidade Biológica e Projeto de Lei do Senado n. 306/95, está a “defi nição clara da atribuição jurídica das comunidades para fi rmar con-tratos ou outros instrumentos de acesso e defender seus direitos, administrativa e judicialmente”.

No sentido de fi rmar a referida atribuição das comunidades, entendemos que com a devida orientação e um acesso mais direto que estas comunidades terão em buscar auxílio com os árbitros que foram por elas eleitos para dirimir possíveis confl itos de interesses, teremos uma maior efi ciência e garantia de que os direitos destes povos estarão sendo protegidos na prática, uma vez que não há que se questionar sobre as facilidades de acesso à justiça, quando se trata de

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formas de conciliação e solução, através de vias extrajudiciais.Boaventura de Souza dos Santos (2008) mostra a viabilidade de se adotar

novas medidas que combatem à morosidade e a difi culdade do acesso à justiça, inclusive no que concerne a questão das custas judiciais. O autor menciona al-guns exemplos de inovações institucionais que caminham em consonância com o raciocínio aqui exposto. Para SANTOS (2008: 57), “o que precisamos é de uma justiça democrática de proximidade”, o que exemplifi ca com os juizados especiais que valorizam os critérios de autocomposição, da equidade, da orali-dade, da economia processual, da informalidade, da simplicidade e da celeri-dade.

A criação de um regime jurídico verdadeiramente específi co e apropriado para a proteção dos conhecimentos tradicionais associados deve se basear nas concepções do pluralismo jurídico e no reconhecimento da diversidade jurídica existente nas sociedades tradicionais (SANTILLI, 2005: 217).

Nesta mesma linha de pensamento e visando a concretização de um aces-so à justiça democrática de proximidade é que entendemos ser a arbitragem am-biental plenamente possível como um instrumento de solução de controvérsias nos contratos de acesso e uso da biodiversidade, visando uma isonomia na relação contratual, objetivando, sobretudo, uma tutela efi caz e extrajudicial socioambi-ental, com base nos princípios da precaução, da supremacia do bem ambiental sobre o interesse privado e do desenvolvimento sustentável.

Nesse sentido, entendemos que a arbitragem em matéria ambiental pode contribuir para o desafi o de se construir um regime jurídico diferenciado e apro-priado para a proteção dos conhecimentos tradicionais, tendo em vista o caráter facilitador do acesso à justiça democrática de proximidade que este instituto possui.

Salienta-se que, entre os princípios da LArb, há o da imparcialidade do árbitro. Respeitando-se esse princípio, temos uma grande vantagem na arbitra-gem ambiental, pois a tecnicidade, a maior especialização do árbitro ou tribunal arbitral, colabora para um maior discernimento acerca das questões socioambi-entais, o que poderá ensejar uma solução justa para os litígios.

É válido ressalvarmos que, das vantagens sempre atribuídas à arbitra-gem – celeridade, tecnicidade e sigilo – não se poderá insistir na última quando em face de controvérsias sobre repartição de benefícios, nas quais o interesse público na maior transparência possível sobrepuja, com larga folga, quaisquer interesses privados de sigilo que vão além de aspectos estritamente técnicos cuja divulgação venha a acarretar indevido prejuízo a qualquer das partes na relação.

Observando a convergência entre o CDC e a LArb, destaca-se que a maior resistência prática e doutrinária se opõe aos contratos padronizados e de

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adesão, o que não é o caso das complexas relações enfeixadas nos contratos de repartição de benefícios. Se os instrumentos de adesão contam com a possível desatenção ou fragilidade do consumidor, em instrumentos nos quais cada detalhe é revisado e a arquitetura das obrigações cuidadosamente traçada, há pouco es-paço para a desinformação ou o engano. Se as comunidades envolvidas, sujeitos capazes de transacionar sem a necessidade de assistência paternalista, desejam, por qualquer razão que seja, submeter todo ou parte do acordo à arbitragem, não é legítimo impor formas mais caras, lentas e imprecisas de solução de contro-vérsias.

No que concerne à tutela jurídica de apropriação do meio ambiente, ao comentar o §3˚ da Medida Provisória n. 2.186-16/01, que regulamenta a Con-venção sobre Diversidade Biológica, Cristiane Derani (2003), nos mostra que o dispositivo limita a interpretação do direito de acesso ao valor ambiental e propriamente ao exercício da propriedade da coletividade detentora do bem.

A autora nos mostra que o direito de propriedade intelectual é previsto no caso de uso econômico do conhecimento acessado, ou seja, para uso de mer-cado. O conhecimento como valor de uso prescinde da atribuição de direito de propriedade, basta ao direito resguardá-lo e assegurar o seu uso defi nindo, seus titulares e correlatos poderes (DERANI: 2003). E ainda:

Quando a apropriação da cultura passa a gerar direitos de propriedade individualizados, é importante cuidar para que a fonte desta riqueza apropriada não seja destruída. A cul-tura representa uma riqueza, que poderá ser traduzida por um preço ao ser privatizada e inserida no mercado. Porém, nem sempre preço equivale ao valor da riqueza, sobretudo se esta riqueza não é produzida no interior do mercado.

Neste sentido e aplicável ao presente estudo e propostas apresentadas, é a afi rmação da autora, tratando das dimensões da tutela da relação de apropriação do meio, em que “não se trata de idealizar um e satanizar outro. O importante é conhecer as possibilidades e os limites ofertados por cada uma destas categorias para a construção do verdadeiro desenvolvimento das potencialidades humanas e do poder criativo da cultura para construir o bem-estar das sociedades huma-nas” (DERANI: 2003).

Em suma, entende-se como viável a aplicabilidade do instrumento arbitral nos contratos de repartição equitativa de benefícios, quando o escopo da arbitra-gem ambiental se encontra em consonância com a proteção do meio ambiente, incluindo os aspectos sociais e culturais, além do aspecto natural; quando se respeita a isonomia na relação contratual, considerando o tratamento diferenciado

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dado aos hipossufi cientes; quando há o acesso pleno à informação, o consenso ao se estabelecer a cláusula arbitral, e escolha dos árbitros, com imparcialidade e princípios éticos e de honestidade; quando se tratar de direitos disponíveis, ou seja, passíveis de apropriação e exploração econômica, e em conformidade com os preceitos da Constituição, da Convenção sobre Diversidade Biológica, por conseguinte, da MP 2.186-16/2001 e, quando houver, da legislação estadual pertinente (exemplo do Estado do Amapá).

CONCLUSÃO

Considerando que, mesmo sendo o bem ambiental um bem de uso co-mum do povo, esta previsão constitucional de sua natureza difusa, não é em-pecilho para que haja hipóteses legais e legítimas onde ocorra apropriação do Meio Ambiente, considerando também a supremacia do bem ambiental sobre os interesses privados e o princípio da precaução, além de sua essência de solucio-nar controvérsias, a arbitragem em matéria ambiental poderá adquirir, quanto maior for sua credibilidade, um caráter de garantia da efi cácia na proteção do meio ambiente, através de ações ambientais positivas.

Com base na visão sistemática e da transversalidade do direito ambiental, conclui-se como possível a utilização da cláusula arbitral nos contratos de repar-tição equitativa de benefícios pelo acesso e uso da biodiversidade e conheci-mentos tradicionais associados. E o fundamento desta aplicação se baseia na necessária concretização da justiça democrática de proximidade, pois com a celeridade e as facilidades de acesso à justiça pela via extrajudicial e a maior informalidade que se tem na provocação do árbitro para dirimir os confl itos, considera-se a arbitragem como um meio justo e efi caz para que haja realmente o cumprimento das cláusulas estabelecidas no contrato de acesso a conheci-mentos tradicionais e uso da biodiversidade, garantindo uma concreta proteção socioambiental.

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A NECESSIDADE DE TUTELA PENAL CONTRA A BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA

Aline Ferreira de Alencar*Fernando Antônio de Carvalho Dantas **

Maria Auxiliadora Minahim***

Sumário: Introdução; 1. Biopirataria na Amazônia Brasileira; 1.1 A necessidade de Tu-tela do Direito Penal sobre o Crime de Biopirataria; 1.2 A importância da identifi cação do bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal no crime de Biopirataria; 1.3 Refl exões sobre formas de evitar e combater a biopirataria na Amazônia Brasileira; Considerações Finais; Referências.

Resumo: Embora não possua defi nição jurídica ou legal, a Biopirataria pode ser considerada apropriação não autorizada do patrimônio genético de uma região, inclu-indo espécies da fauna, fl ora e dos conhe-cimentos tradicionais associados à biodi-versidade. Essa atividade ocorre nos países biodiversos, incluindo o Brasil, mais espe-cifi camente a Amazônia Brasileira, que possui uma riquíssima biodiversidade, e at-

Abstract: Even so does not have no legal defi nition, the biopiracy can be considered a non authorized appropriation of certain region genetic patrimony, including fauna, fl ora and traditional knowledge associated to biodiversity. This kind of activity hap-pens in developing countries, including Brasil, especially in the Brazilian Amazon, region rich in biodiversity, that attracts the lust for natural sources, by countries with

* Advogada e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade do Estado do Amazonas-UEA.** Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universi-dade do Estado do Amazonas. Professor convidado do Programa de Doutorado Direitos Humanos e Desenvolvimento da Universidad Pablo de Olavide em Sevilha, Espanha. Professor convidado do Programa de Doutorado em Pensamento Latinoamericano da Universidade Nacional da Costa Rica. Professor colaborador do Centro de Estudos So-ciais CES, da Universidade de Coimbra Portugal. Ex-procurador Geral da Fundação Nacional do Índio.*** Doutora e Mestre em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Professora Associada da Uni-versidade Federal da Bahia, presidente nacional da Associação Brasileira de Professores de Ciências Criminais e membro do Conselho de Direitos Humanos da Bahia.

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rai a cobiça dos países ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que desejam fabricar novos produtos, com o objetivo exclusivo de gerar lucro. Portanto a nature-za passa a ser vista como matéria prima, fonte de capital. É neste contexto que a ap-ropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, pertencentes aos povos indígenas e populações tradicio-nais, representam um poderoso atalho para a criação de novos produtos, pois através da bioprospecção é possível alcançar os resultados desejados com racionalidade econômica. A biopirataria atenta contra os interesses nacionais e contra os direitos humanos, por essa razão sugere-se a que a atividade seja criminalizada pelo Direito Penal, em virtude da relevância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente. Além disso, para se coibir a biopirataria na Amazônia, é necessário o aumento de fi scalização na região, investimento em ciência e tecnologia, bem como a aplica-ção dos princípios da informação, educa-ção e participação ambiental como forma de aliar os esforços do Poder Público e da coletividade para que ocorra a prevenção dessa atividade nociva ao Brasil e aos de-tentores do conhecimento tradicional.

Palavras-chave: Biopirataria; Conheci-mento Tradicional Associado; Biodivers-idade; Amazônia Brasileira; Patrimônio Genético; Tutela Penal.

technology, however poor in biodiversity, who intends to manufacturate new prod-ucts, obtaining great fi nancial returns. Therefore the nature is seen like raw mate-rial, source of capital gains. In this context, the appropriation of the traditional knowl-edge associated to biodiversity, from the Indians people and traditional populations, depicts a powerful short cut to create new products, because using the bioprospec-tion is possible to reach the good results with economic rationality. The biopiracy attempts against the national interest and human rights, for that reason there is a suggestion to punish this activity by the criminal law, considering the relevance of the object, the environment. Also, to curb on biopiracy, there is also a necessity to improve the surveillance in the Brazilian Amazon, investment in research, and the application of the information, education and environmental participation princi-ples, as a way of combining the State and collectivity, to prevent this harmful activ-ity to Brazil and the traditional knowledge keepers.

Key-words: Biopiracy; Traditional Knowl-edge; Biodivesirty; Brazilian Amazon; Ge-netic Patrimony

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INTRODUÇÃO

A presente investigação científi ca tem por escopo analisar a necessidade de tutela penal contra a biopirataria na Amazônia. A relevância desta temática ocorre em razão do reducionismo responsável por considerar a biodiversidade e os conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético como mer-cadorias, bem como pela ausência de tipifi cação legal e penal para a atividade da biopirataria, a qual traz inúmeros prejuízos para o Brasil, bem como para os povos indígenas e populações tradicionais.

Vandana Shiva entende que a biopirataria pressupõe uma nova forma de colonialismo, “é a ‘descoberta’ de Colombo 500 anos depois de Colombo. As patentes ainda são o meio de proteger essa pirataria da riqueza dos povos não ocidentais como um direito das potências ocidentais”. Para a autora, “resistir à biopirataria é resistir à colonização fi nal da própria vida. [...] É a luta pela con-servação da diversidade, tanto cultural quanto biológica”.

A biopirataria é um problema que assola os países biodiversos, inclusive o Brasil, que possui a maior parte do ecossistema da Amazônia em seu território nacional. A região, segundo Ozório Fonseca, é também denominada Amazônia Continental, Grande Amazônia ou Panamazônia e contém as seguintes característi-cas importantes:

1/5 da água doce do Planeta (sic); 1/3 das fl orestas latifo-liadas; 1/3 das árvores do mundo; 80.000 espécies vegetais; Mais de 200 espécies de árvores por hectare; 30 milhões de espécies animais; Aproximadamente 1.500 espécies de peixes conhecidas; Cerca de 1.300 espécies de pássaros; Mais de 300 espécies de mamíferos; 10% da biota univer-sal; 1/20 da superfície da Terra; 750 milhões de hectares (500 milhões no Brasil); 4/10 da América do Sul; Mais de 30% da biodiversidade do Planeta; 350 milhões de hectares de fl orestas; 17 milhões de hectares de Reservas e Parques Nacionais; Maior rio do mundo em extensão (Amazonas, com 6.577 km); Maior rio do mundo em volume de água (vazão média de 200.000 m3/s); Aproximadamente 80.000 km de rios; Cerca de 25.000 km de vias navegáveis;. A maior província mineral do globo; Mais ou menos 30% do estoque genético da Terra.

O Brasil também é rico em seu contexto humano, assim, estima-se que, na época da chegada dos europeus, existiam cerca de 1.000 povos indígenas

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no país, somando entre 2 e 4 milhões de pessoas. Atualmente, há no território brasileiro 227 povos, que falam, aproximadamente, 180 línguas diferentes. A maior parte dessa população distribui-se por milhares de aldeias, situadas no interior de 593 terras indígenas, de norte a sul do território nacional.

O território nacional também abarca as populações tradicionais, repre-sentadas por sujeitos sociais com existência coletiva, que incorporam pelo cri-tério político-organizativo uma diversidade de situações correspondentes aos denominados seringueiros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, ribei-rinhos, castanheiros e pescadores, os quais se têm estruturado igualmente em movimentos sociais.

As populações tradicionais assim como os povos indígenas são deten-tores dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e representam os saberes pertencentes a esses povos, que possuem formas diversas de se rela-cionarem com a natureza.

Os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade atraem o in-teresse das nações desenvolvidas, principalmente representadas pelos países do Norte, pobres em biodiversidade, mas ricos em tecnologia e, por essa razão, buscam apropriar-se desses saberes para fabricar produtos, com o objetivo de gerar lucro.

Por fi m, buscou-se com esse estudo analisar a necessidade de tutela penal contra a biopirataria na Amazônia, bem como refl etir sobre formas de coibir essa atividade na região, sem pretensões de esgotar tão vasto assunto, mas con-tribuir de maneira refl exiva com a essa discussão.

1. BIOPIRATARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Embora a apropriação do patrimônio genético e o acesso aos conheci-mentos tradicionais associados à biodiversidade de forma não autorizada, por meio da biopirataria ocorra em vários países biodiversos, bem como em diversas regiões do Brasil, este trabalho analisa a biopirataria na Amazônia Brasileira, a qual representa uma região emblemática por possuir a maior sociobiodiversi-dade do Planeta e atrai a atenção fi nanceira dos biopiratas.

Nesse contexto, Bertha Becker enumera algumas características únicas da Amazônia:

É fácil perceber a importância da riqueza in situ da Amazô-nia. Correspondendo a 1/20 da superfície da Terra e a 2/5 da América do Sul, a Amazônia Sul-Americana contém 1/5

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da disponibilidade mundial de água doce, 1/3 das reservas mundiais de fl orestas latifoliadas e somente 3,5 milésimos da população mundial. E 63,4% da Amazônia Sul-Ameri-cana estão sob a soberania brasileira, correspondendo a mais da metade do território nacional.

A valorização ecológica da Amazônia, de acordo com Bertha Becker, apresenta duas faces: “a da sobrevivência humana e a do capital natural, so-bretudo, neste caso, a megadiversidade e a água” . A autora considera, ainda, a existência de três grandes eldorados: os fundos oceânicos, que ainda não estão regulamentados; a Antártida, que foi partilhada entre as potências; e a Amazô-nia, a única que pertence a majoritariamente um só Estado Nacional, qual seja o Brasil.

Ao observar as riquezas existentes na Amazônia, percebe-se o motivo de a região ser tão atrativa para os países desenvolvidos, os quais almejam se utili-zar da biodiversidade para criar ou aprimorar novas tecnologias e depois vendê-las, amparados pelo sistema mundial de patentes, o qual acaba por legitimar a apropriação privada da biodiversidade.

Danilo Lovisaro do Nascimento possui também o mesmo entendimento, ao afi rmar que a exploração dos conhecimentos tradicionais e da biodiversidade realizada pelos países desenvolvidos, sem a autorização dos Estados ou dos po-vos indígenas e populações tradicionais dos países menos desenvolvidos, possui como maior estimulador o acordo de TRIPs:

O principal mecanismo jurídico para garantir aos países desenvolvidos a exploração desse patrimônio alheio e colhido sem autorização tem sido o monopólio decor-rente de patentes, que vêm sendo conferidas a esses países por meio do Acordo Geral sobre Propriedade Intelectual (TRIPS) no âmbito da Organização Mundial do Comércio.

Por outro lado, em razão das dimensões continentais, bem como das com-plexidades geopolíticas da Amazônia, especifi camente a Brasileira, a biopira-taria na região ocorre das mais diversas formas: pesquisadores disfarçados de turistas ou estudantes, os quais adentram na Amazônia para coletar elementos da biodiversidade, organizações não governamentais (ONGs) de fachada, falsos missionários de várias seitas e religiões, contrabandistas, dentre outros, cujo único propósito é espoliar os recursos naturais, principalmente pela utilização dos conhecimentos tradicionais.

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Quando esses “pesquisadores” se utilizam dos conhecimentos tradicio-nais associados à biodiversidade para a fabricação de novos produtos, reduzem consideravelmente o tempo de pesquisa e dinheiro no patamar de até 400% de economia, motivo pelo qual esse conhecimento representa grande “valor” aos biopiratas.

Além disso, observa-se que as dimensões continentais da Amazônia Brasileira representam um fator incentivador para a prática da biopirataria e, por essa razão, a imensidão da região confi gura um obstáculo a ser enfrentado para se evitar a biopirataria, em virtude da necessidade de fi scalização e con-trole, uma vez que essa atividade ilícita pode ser realizada em qualquer ponto dos cinco milhões de quilômetros quadrados da região.

Da mesma forma, Ozório José de Menezes Fonseca explica que a espolia-ção da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais da Amazônia Brasileira, por meio da biopirataria, é facilitada por inúmeros artifícios utilizados pelos biopiratas que possuem conhecimento, dentre outras limitações, sobre a pre-cariedade de fi scalização na região:

[...] Na realidade, a experiência mostra que, para retirar material biológico da Amazônia, não há necessidade de es-truturas formais. Na era da biotecnologia e da engenharia genética, tudo de que se precisa, para reproduzir uma espé-cie, são algumas células facilmente levadas e difi cilmente detectadas, por mecanismos de vigilância e segurança.O bolso, a caneta, o frasco de perfume, os estojos de ma-quiagem, os cigarros, os adornos artesanais, as dobras e costuras das roupas, enfi m, há milhares de maneiras de es-conder fragmentos de tecidos, culturas de micro-organis-mos, minúsculas gêmulas ou diminutas sementes, sem que seja necessário o uso de muita criatividade .

Sobre a questão em análise, Patrícia Arruda Del Nero menciona alguns dos elementos presentes na maioria dos casos de biopirataria. 1) A existência de uma organização não governamental, cuja preocupação normalmente é a suposta “defesa do meio ambiente”; 2) os passeios “ecológicos” dos turistas ambientais, os quais, com olhar de rapina e tentáculos vorazes, saqueiam a biodiversidade nacional para garantir interesses transnacionais; 3) a formalização de “acordos” com comunidades indígenas, mediante os quais os corsários tentam aproxima-ção com os povos indígenas e ganham sua confi ança, com um discurso amigo, enquanto prestam atenção em seus conhecimentos tradicionais para transformá-los em conhecimento científi co a serviço do capitalismo transnacional. Por fi m,

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trancam a tecnologia obtida nos cofres dos escritórios que concedem patentes.Embora a discussão acerca da biopirataria tenha tido notoriedade ape-

nas a partir de 1990, o problema confi gura uma prática antiga, visto que “fatos históricos revelam a sua ocorrência ao longo dos séculos, desde o descobrimen-to, como na extração do pau-brasil, no contrabando da semente da seringueira, do quinina e do curare” , não obstante essa prática não fosse denominada biopi-rataria, pois o conceito é atual.

Nesse sentido, Clarissa Wandscheer ensina que expressão biopirataria surgiu em 1993 e foi lançada pela ONG RAFI , com o escopo de alertar sobre o fato de recursos biológicos e conhecimentos tradicionais indígenas estarem sen-do apanhados e patenteados por empresas multinacionais e instituições científi -cas, sem a autorização do governo brasileiro. Para a autora, pretendia-se ainda denunciar os abusos sofridos pelas comunidades tradicionais, visto que elas não estavam recebendo a devida repartição de benefícios, além de isso impedir a possibilidade do desenvolvimento sustentável das comunidades, impulsionar a degradação do meio ambiente e vulgarizar o conhecimento tradicional.

Contudo, é necessário esclarecer que um dos casos mais notórios de espo-liação da biodiversidade amazônica foi o da Borracha, extraída a partir do látex da seringueira, Hevea brasiliensis, cujas sementes foram levadas pelo “natu-ralista” inglês Henry Wickman e plantadas no Kew Botanical Gardens, na Ingla-terra, onde se multiplicaram e, posteriormente, foram transplantadas na Malásia. Apesar de desbancarem a produção brasileira e trazerem inúmeros prejuízos para o Brasil, não confi gura um caso de biopirataria, pois, conforme explica o economista Roberto Araújo de Oliveira Santos , o inglês obteve autorização legal do governo brasileiro para exportar as sementes. Além disso, as empresas britânicas e americanas desejavam transferir a produção da borracha para outro lugar em razão de o sistema brasileiro ser inefi ciente e haver provocado a ira de entidades antiescravagistas.

Embora legalmente não tenha confi gurado biopirataria, o plantio de seringueira fora do Brasil trouxe grandes prejuízos e serviu para alertar que não se pode dispor dos recursos naturais da Amazônia Brasileira, uma vez que, não tendo mais exclusividade, a região perde poder em detrimento de outras nações.

Em contrapartida, não se pode negar a ocorrência da biopirataria confi gu-rada pela apropriação da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais em diversos casos, apontados pelo Instituto de Tecnologia do Paraná, por meio da Agência Paranaense de Propriedade Industrial – APPI:

1) a andiroba, usada pelos índios como repelente para insetos, contra fe-bre e como cicatrizante, foi patenteada pela empresa Rocher Yves Vegetable, que possui direitos sobre a produção de cosméticos ou remédios que possuem

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seu extrato; 2) o cupuaçu, fruto amazônico que foi patenteado pela empresa Asahi Foods, para a produção do cupulate, uma espécie de chocolate. Essa patente, contudo, foi revertida por não possuir o requisito de patentiabilidade, novidade; 3) o sapo tricolor, produtor de uma toxina analgésica duzentas vezes mais po-tente que a morfi na, a qual foi patenteada pelo laboratório americano Abbott; 4) o pau-rosa, utilizado como fi xador de aroma em diversos países, atualmente é a matéria-prima do perfume Chanel 5, dentre muitos outros casos.

Por seu turno, Argemiro Procópio também destaca inúmeros casos de apropriação dos conhecimentos tradicionais dos povos amazônicos por meio da biopirataria, a qual denomina “bionegócio” e, segundo ele, representa o novo campo para exportações bilionárias:

Remédios vendidos nas prateleiras das farmácias do mun-do inteiro trazem riquezas para transnacionais, graças ao conhecimento tradicional e causam impiedosa descrição em seu processo de cata ou colheita. Vale citar, a título de exemplo, o jaborandi, Pilocarpus jaborandi,, usado no trata-mento de glaucoma; a espinheira santa, Maytenus ilicifol,a contra distúrbios estomacais; o látex antiviral da corticei-ra, Erythrina crista-galli; o veneno da Bothops jararaca, transformado em anti-hipertensivos; poderoso analgésico presente na pele do sapo Epipadobates tricolor. Esses e centenas de outros frutos da biopirataria enriquecem mais ainda multinacionais e grandes laboratórios como o Abbot, Bristol-Meyers Squibb, Eli Lilly, Nippon Mektron, Shap-man Pharmaceuticals, Monsanto, Merco etc .

Juliana Santilli considera que os casos de biopirataria possuem como fa-tor de identifi cação, a ocorrência das espécies vegetais ou animais serem co-letadas com ou sem o uso de conhecimento tradicional associado e sem con-sentimento prévio e informado do país de origem e levadas ao exterior com o objetivo de serem identifi cados os princípios ativos úteis, com base nos quais os produtos e processos foram patenteados, tanto sem a repartição de benefícios com o país de origem, quanto sem a população fonte do conhecimento obter qualquer benefício.

Não obstante, neste estudo, considera-se que a biopirataria não está dis-sociada da apropriação dos conhecimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais. Nesse sentido, além da não dissociação que fazem os povos indígenas entre o objeto conhecido e o sujeito do conhecimento, com a ajuda da bioprospecção, é possível alcançar resultados mais rápidos e

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evitar, assim, o desperdício na racionalidade econômica.Por outro lado, é importante ressaltar que, para os povos indígenas, a bi-

opirataria só ocorre quando existe a utilização do conhecimento tradicional, haja vista que esses povos não consideram os elementos da biodiversidade de forma isolada, conforme foi demonstrado no III Foro Indígena Internacional sobre a Biodiversidade, realizado na Eslováquia, em maio de 1998, quando esses povos afi rmaram:

Que nossas culturas se fundamentam nos princípios de har-monia, paz, desenvolvimento sustentável e equilíbrio com a natureza, por esta razão a conservação e utilização dos re-cursos formam parte da cosmovisão e vida diária dos Povos Indígenas e comunidades locais .

Nota-se que a biopirataria está diretamente relacionada com a apropria-ção dos conhecimentos tradicionais, portanto entende-se necessária a tutela do direito penal para coibir essa atividade nociva, em razão da importância do fato, o que demanda suporte desse ramo do direito voltado para a proteção de bens essenciais, com o objetivo de defi nir essa atividade como crime, a fi m de tutelar a sociobiodiversidade brasileira.

1.1 A NECESSIDADE DE TUTELA DO DIREITO PENAL SOBRE O CRIME DE BIOPIRATARIA

Em face dos diversos aspectos discutidos neste estudo, entende-se que a biopirataria confi gura um crime, embora, no ordenamento jurídico brasileiro, essa atividade não seja tipifi cada ou incriminada, haja vista que nem o Código Penal Brasileiro, nem a legislação penal que trata sobre os crimes contra o meio ambiente abordam essa questão.

No ordenamento jurídico brasileiro, a legislação responsável pela crimi-nalização das ofensas ambientais é a Lei n. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 , conhecida por Leis dos Crimes Ambientais, que não tipifi ca a biopirataria como um crime. Contudo, é interessante ressaltar que, no projeto inicial dessa lei, devi-damente aprovado pelo Congresso Nacional, havia a inclusão da biopirataria como crime, no artigo 47, que foi vetado pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

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A título meramente informativo, o vetado art. 47 possuía a seguinte re-dação:

Art. 47. Exportar espécie vegetal, germoplasma ou qual-quer produto ou subproduto de origem vegetal, sem licença da autoridade competente: “Pena - detenção, de um a cinco anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente”.

As razões explanadas pelo ex- Presidente da República, para justifi car o veto do artigo supracitado, foram:

O artigo, na forma como está redigido, permite a inter-pretação de que entidades administrativas indeterminadas terão que fornecer licença para a exportação de quaisquer produtos ou subprodutos de origem vegetal, mesmo os de espécies não incluídas dentre aquelas protegidas por leis ambientais. A biodiversidade e as normas de proteção às es-pécies vegetais nativas, pela sua amplitude e importância, devem ser objeto de normas específi cas uniformes. Ade-mais, existem projetos de lei nesse sentido em tramitação no Congresso Nacional .

Em razão de não existir punição específi ca para o crime de biopirataria, alguns casos concretos se tornam difíceis de serem solucionados. Nesse contex-to, um dos casos de notoriedade internacional – e que deu causa a uma decisão considerada a primeira condenação por biopirataria no Brasil –, foi o ocorrido em junho de 2007, cujo autor foi o holandês naturalizado brasileiro, Marc Van Roosmalem, renomado e premiado pesquisador internacional.

O pesquisador acima mencionado foi condenado pela Justiça Federal da Seção Judiciária do Amazonas pelo cometimento de diversas práticas crimi-nosas, como manter animais em cativeiro sem autorização do órgão ambiental competente, transportar ilegalmente macacos e orquídeas, estas últimas, sob a acusação de vender pela Internet, por preços que variavam de US$ 500 mil a US$ 1 milhão, o direito de escolha do nome das espécies de macaco por ele descobertas, dentre outras imputações penais.

Pelos crimes supracitados, o pesquisador foi condenado a uma pena de quinze anos e nove meses de prisão, sendo que quatorze anos e três meses são referentes apenas à acusação de peculato. Não obstante, Van Roosmalem fi cou preso por menos de um mês, em razão de ter sido liberado por ordem de habeas corpus concedida pelo Tribunal Regional Federal-TRF, da 1.ª Região, para

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responder a seu processo em liberdade.A condenação do cientista foi amplamente criticada por organismos inter-

nacionais, os quais alegaram entraves às pesquisas científi cas, no entanto, para este trabalho, é importante observar a fragilidade das normas incriminadoras que tutelam a biodiversidade, haja vista que são incapazes de evitar a espoliação do patrimônio genético dos conhecimentos tradicionais pela biopirataria.

Vislumbra-se a necessidade da tutela penal sobre o crime de biopirataria, em virtude da existência de uma preocupação legítima com relação à proteção à biodiversidade brasileira e aos conhecimentos tradicionais associados. Em razão dessa situação, é necessário saber a real intenção dos pesquisadores que adentram na região, para constatar se a pesquisa é bem intencionada ou visa ape-nas à espoliação da biodiversidade. Sobre a questão, Nascimento considera que:

[...] O problema está em saber como reconhecer a ajuda es-trangeira bem intencionada, que possa cooperar com o de-senvolvimento regional e aquela que busca apenas o lucro e somente servirá para alimentar o processo de dominação dos países desenvolvidos sobre os países em desenvolvi-mento .

Observa-se, portanto, a necessidade de tutela jurídica sobre o crime de biopirataria, e por essa razão, sugere-se a criação de norma jurídica com esse objetivo. Nesse panorama, Juan Ramón Capella ensina que, para serem criadas novas normas jurídicas, não basta haver vontade do poder jurídico político, mas deve haver uma etapa de negociação da norma futura:

Nas experiências que respondem a este tipo de jogo, as normas jurídicas não nascem, em nosso tempo, somente da vontade do poder jurídico-político, ainda que esta vontade seja uma condição necessária de sua existência. Para for-mar a vontade normativa do poder jurídico-político, dá-se previamente uma etapa de negociação da norma futura .

Capella prossegue e afi rma que os distintos agentes sociais interessados em obter uma norma jurídico-política que determine direitos ou legitime interesses deve negociar com as autoridades para estabelecer o conteúdo das normas em questão. Desse modo, para, o autor:

Esta negociação tem um caráter essencialmente político. Sua essência pode ser macroscópica [...] ou microscópica

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[...], esse caráter político não se vê afetado, sem embargo, pelas dimensões do objeto da negociação. O que se nego-cia, ao fi nal de contas, é uma decisão que há de tomar um poder instituído e explícito da sociedade, legitimado para ditar normas jurídicas .

Em razão de tudo que foi estudado, sugere-se que ocorra a tutela penal sobre o crime de biopirataria, quando for comprovada a intenção do sujeito ativo para cometer essa atividade ilícita e, desse modo, será vislumbrada a possibili-dade de proteção do direito penal ao crime de biopirataria, bem como será iden-tifi cado o bem jurídico a ser tutelado por esse ramo do Direito.

1.2 A IMPORTÂNCIA DA IDENTIFICAÇÃO DO BEM JURÍDICO A SER TUTE-LADO PELO DIREITO PENAL NO CRIME DE BIOPIRATARIA

Para que algo seja tutelado pelo Direito e pelo Direito Penal em especial, inicialmente é necessária a identifi cação do bem jurídico a ser protegido, o qual deve possuir alguma importância ou valor para o direito. Nesse panorama, Ales-sandra Rapassi Mascarenhas Prado ensina que a importância da identifi cação do bem jurídico para o Direito Penal ocorre em razão da obrigatoriedade de o legislador partir do princípio de que todo crime é uma ofensa a um bem jurídi-co individual, coletivo ou difuso preexistente à norma, deduzido de uma fonte metajurídica (segundo teorias sociológicas), ou de uma fonte jurídica superior, que é a Constituição Federal (consoante concepção dos constitucionalistas).

Segundo a mesma autora , “bem, em sentido amplo, é tudo aquilo que é valioso, que é necessário para o homem”. Desse modo, apenas alguns bens são considerados bens jurídicos, haja vista que o Direito determina os que são dota-dos de valor e, por esse motivo, receberão proteção jurídica.

Por seu turno, Luiz Régis Prado considera que o “pensamento jurídi-co moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção dos bens jurídicos”. Portanto, para o autor, em um Estado democrático e social de Direito, é imprescindível a noção de bem jurídico para que ocorra tutela penal:

Em um Estado democrático e social de Direito, a tutela penal não pode vir dissociada do pressuposto do bem ju-rídico, sendo considerada legítima, sob a ótica constitucio-

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nal, quando socialmente necessária. Isso vale dizer: quando imprescindível para assegurar as condições de vida, o de-senvolvimento e a paz social [...] A noção de bem jurídico implica a realização de um juízo positivo de valor acerca de determinado objeto ou situação social e de sua relevância para o desenvolvimento do ser humano .

Contudo, Álvaro Sanchez Bravo esclarece que o Direito Penal deve ser a última fronteira a ser recorrida para reparar danos experimentados pelos estados democráticos:

De todos é conhecido como nos estados democráticos o Di-reito Penal se considera a última fronteira, la ultima ratio, a cujo auxílio se recorre ante sucessos (ações e/ou omissões) de especial gravidade que requerem a máxima censura por causar dano aos valores e direitos fundamentais, individuais e coletivos, que nos defi nem como pessoas e cidadãos .

Ainda em se tratando de bem jurídico, Maria Auxiliadora Minahim con-sidera que, embora exista controvérsia sobre a defi nição desses bens, eles são imprescindíveis para a existência comum e devem ser tutelados pelo Direito Penal:

Considere-se que, apesar de reinar grande controvérsia so-bre o conceito de bem jurídico, não se nega que se trata de bens ou valores considerados imprescindíveis para a existência comum e, por isso, merecedores da mais intensa tutela jurídica, ou seja, da proteção penal .

Desse modo, Minahim, ao tratar sobre a aprovação do Direito Penal para tutelar as questões referentes à biotecnologia, considera que esse ramo do Di-reito é naturalmente convocado para emprestar sua adesão e coercitividade na tutela de bens e interesses que se deseja preservar de lesões e ameaças produzi-das pela biotecnologia, em razão não somente de sua importância, mas também pela gravidade dos ataques.

A autora prossegue e afi rma que o ineditismo das situações referentes à biotecnologia, assim como a velocidade em que elas ocorrem têm surpreendido o Direito Penal e provocado, assim, não só uma desestabilização nesse ramo do Direito, mas também ocasionado a necessidade de alinhamento daquele com a realidade. Nesse contexto, segundo Minahim, o Direito Penal não é confrontado

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somente por questões postas pela Bioética, mas também “com o problema rela-tivo ao oferecimento ou não de tutela a outros questionamentos trazidos pela sociedade pós-moderna”.

Portanto, Minahim considera que os bens jurídicos, para os quais se busca proteção do Direito Penal, possuem natureza diferenciada daqueles que eram protegidos desde o Iluminismo, motivo pelo qual existe a polêmica sobre a in-tervenção desse Direito na denominada sociedade de risco. Nesse sentido, a autora reputa que a natureza pode ser objeto de tutela pelo Direito Penal:

Pode-se mesmo afi rmar que é a própria natureza (bem difu-so, supraindividual) e a forma de proporcionar-lhe proteção efi caz que constituem o cerne de toda a polêmica em torno do papel da intervenção do direito penal na chamada socie-dade de risco .

É importante ressaltar que a sociedade de risco é representada pela co-munidade contemporânea, caracterizada pela intensa divisão social do trabalho, pelo consequente crescimento da complexidade e, ainda, pela adoção de tecno-logias, cujas consequências são impossíveis de se medir, os denominados riscos. Por conseguinte, a sociedade de risco é o local onde ocorrem os riscos e os fenô-menos como o da irresponsabilidade organizada ou irresponsabilidade geral, que segundo Ulrich Beck pressupõe:

[...] À divisão do trabalho muito diferenciada corresponde a uma cumplicidade geral e, a esta, uma irresponsabilidade geral. Cada qual é causa e efeito e, portanto, não é causa. As causas se diluem em uma mutabilidade geral de atores e condições, reações e contrarreações.

Na sociedade de risco, um dos problemas a serem enfrentados diz respeito à proteção do meio ambiente e, nesse contexto, em se tratando da discussão acerca da viabilidade da proteção do Direito Penal ao meio ambiente, Luiz Regis Prado entende que o meio ambiente é digno e capacitado de receber a tutela penal. Além disso, considera que a lei penal não deve punir somente as agressões ao meio ambiente, mas ainda os comportamentos nocivos que impeçam sua utiliza-ção de forma livre e solidária. Portanto, o autor observa que:

Em remate, quadra aqui a reafi rmação do ambiente, como bem jurídico de natureza difusa, – digno e capacitado e merecedor de tutela penal – adequado ao livre desenvolvi-

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mento da pessoa humana, com vistas à proteção e melhora de sua qualidade de vida (exercício, gozo de todas as suas potencialidades), de conformidade com a diretriz (formal e material) perfi lhada no texto maior. É de se reter ainda que, no Estado democrático e social de direito, a lei penal não deve se contentar em punir as agressões ao meio ambiente, mas também alcançar comportamentos que difi cultem ou impeçam seu desfrute de forma livre e solidária .

A importância de se punir a biopirataria na esfera penal dá-se em razão do bem jurídico a ser tutelado, qual seja o meio ambiente. Com efeito, Álvaro Sanchez Bravo considera que esse ramo do Direito só deve socorrer os atenta-dos mais graves aos bens e interesses individuais e coletivos, suscetíveis de se submeterem à censura mais contundente à restrição de direitos mais palpáveis na liberdade e no patrimônio dos cidadãos culpados por determinados atos lesi-vos . Assim Sanchez Bravo entende que:

A apelação ao Direito Penal para a proteção do meio ambiente supõe considerá-lo como um desses valores e interesses, como uma realidade, sem a qual não se entende a sociedade, nem os Estados, nem o próprio ser humano. Se o Direito Pe-nal deve recorrer em defesa do medo ambiente é porque é tão importante, tão imprescindível, que um ataque contra o mesmo rachará os cimentos de nossa própria existência .

Logo, ao se criminalizar a biopirataria, o bem jurídico a ser tutelado pelo Direito Penal seria a biodiversidade, representada pelos seus elementos naturais e pelos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. Portan-to, a conduta que se pretende coibir é a apropriação não autorizada das riquezas naturais que pertencem ao Brasil e a seus povos, bem como os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, os quais pertencem a seus detentores.

Sobre a tutela do Direito Penal à biodiversidade, Nascimento pensa criti-camente que, na atualidade, não criminalizar a biopirataria confi guraria um erro, haja vista que os demais mecanismos para coibir essa atividade tão prejudicial ao País são inefi cientes. Assim, nas palavras do autor:

[...] No momento presente, não criminalizar a biopirataria seria um erro, pois os demais mecanismos estabelecidos para realizar o referido controle se mostram inefi cientes e pouco importa se a inefi ciência é por inoperância do próprio aparelho estatal. O que é relevante, neste caso, é que o Di-

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reito Penal, mais do que os outros meios de controle, exerce também uma função intimidadora ou de prevenção geral que necessariamente contribui para a preservação de um bem juridicamente protegido .

Ainda em se tratando da necessidade de criminalização para essa condu-ta, Nascimento afi rma que “a biopirataria atenta contra os interesses nacionais e também se constitui em uma prática violadora de direitos humanos, nunca sendo demais lembrar que tutelar o meio ambiente é proteger a própria vida”.

Nesse contexto, após verifi car-se que o bem jurídico a ser tutelado pelo direito penal seria o meio ambiente, sugere-se que o direito estabeleça uma tipi-fi cação penal para enquadrar esse crime em razão dos tipos penais existentes não serem efi cazes para punir essa atividade ilícita. Para tanto, é necessária a aplicação de alguns princípios desse ramo do direito como o da subsidiariedade, necessidade e fragmentariedade, os quais são importantes quando se trata da intervenção do Direito Penal no que concerne aos recursos naturais. Da mesma forma, entendem Prado e Minahim:

É importante frisar que não se defende, aqui, a expansão arbitrária da tutela penal, mas apenas aquela que se paute nos princípios da fragmentariedade, da necessidade e da subsidiariedade do direito penal. Dessa forma, a interven-ção penal no tocante à proteção dos recursos naturais deve ser parcimoniosa, e deve incidir apenas quando a lesão for grave a ponto de justifi car a privação de outros bens tão relevantes para o ser humano, como a liberdade .

Para se ter uma breve noção acerca dos princípios supracitados, o princípio da fragmentariedade dispõe que “nem todo tipo de ofensa deve ser considerado pelo direito penal, mas aquelas socialmente intoleráveis em relação ao bem ju-rídico”. Nesse contexto, Gustavo O. Diniz Junqueira explica que:

Nem toda lesão a bem jurídico com dignidade penal carece de intervenção penal, pois determinadas condutas lesam de forma tão pequena, tão ínfi ma, que a intervenção penal, extremamente grave seria desproporcional, desnecessária. Apenas a grave lesão a bem jurídico com dignidade penal merece tutela penal .

Do mesmo modo, Damásio de Jesus entende que o princípio da frag-

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mentariedade é consequência dos princípios da reserva legal e da intervenção mínima. Para o autor, o Direito Penal não protege todos os bens jurídicos, somente os mais importantes e, dentre estes últimos, não os tutela de todas as lesões, mas somente das de maior gravidade. Por esse motivo, é fragmentário.

Gustavo Junqueira entende, ainda, que o princípio da fragmentariedade decorre do princípio da subsidiariedade , o qual determina que o Direito Penal é um remédio subsidiário e, desse modo, deve ser reservado apenas para as situações em que outras medidas estatais ou sociais não foram sufi cientes para provocar a diminuição da violência gerada por determinado fato. Segundo o autor, se for possível evitar a violência da conduta com ações menos gravosas que a sanção penal, a criminalização da conduta se torna ilegítima ou despro-porcional.

Por último, o princípio da necessidade, segundo Alessandra Prado, deve ser utilizado quando determinados bens jurídicos são expostos à ofensa e não é sufi ciente para sua tutela a intervenção civil ou administrativa, de modo que passa a ser exigida a interferência do Direito Penal para sua proteção.

Entende-se, portanto, que é urgente a necessidade de se criar um tipo penal novo para enquadrar o crime de biopirataria, não obstante essa questão deva ser estudada e aprofundada pelos operadores do Direito, alicerçados no Direito Penal e em outros ramos do Direito e até mesmo em disciplinas de outras áreas do conhecimento, visto que, por se tratar de uma questão complexa, deve ser avaliada com cautela, a fi m de se evitar prejuízos às pesquisas científi cas, à sociedade, aos detentores do conhecimento tradicional e à soberania do Brasil.

Embora se defenda a criminalização para a conduta da biopirataria, essa não confi gura a única sugestão para tratar do problema. Conforme se verifi cou, a tutela pelo Direito Penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a ser tutelado, embora seja importante ressaltar que somente a tipifi cação penal não será capaz de elucidar o problema, uma vez que ainda há muito a ser feito com relação a essa questão e, portanto, são necessárias outras refl exões sobre o tema.

1.3 REFLEXÕES SOBRE FORMAS DE EVITAR E COMBATER A BIOPIRA-TARIA NA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Evitar a biopirataria na Amazônia não é uma questão simples, em razão de muito precisar ser feito para coibir essa atividade nociva para a região. Por esse motivo, serão analisadas algumas hipóteses possíveis de ajudar no combate à biopirataria, a fi m de buscar formas de proteção à biodiversidade e aos conhe-

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cimentos tradicionais pertencentes aos povos indígenas e populações tradicio-nais.

Conforme já demonstrado nesta pesquisa, entende-se necessária a tute-la do Direito Penal a fi m de criminalizar a conduta da biopirataria e imputar punição aos agentes que cometerem a espoliação da biodiversidade e dos conhe-cimentos tradicionais. Essa tutela penal dá-se em razão da importância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente, essencial para a manutenção da vida no Planeta.

Por outro lado, levando-se em consideração os estudos realizados por Ál-varo Sanchez Bravo, somente a aplicação do Direito Penal não é sufi ciente para proteger o meio ambiente, uma vez que esse ramo do Direito tem por escopo reprimir e castigar a conduta ilícita, apesar de ser importante a prevenção do dano. Assim, Bravo ensina que:

[...] Convêm assinalar que somente a apelação ao Direito Penal não bastará por si só para erradicar os atentados ao meio ambiente. Em primeiro lugar, porque o Direito Penal tenderá fundamentalmente a reprimir, a castigar uma vez o dano se haja inferido. A margem dos clássicos fi ns atribuí-dos ao Direito Penal (prevenção geral e especial), a função preventiva requer outros mecanismos e outras implicações .

Bravo prossegue e afi rma que, além da aplicação do Direito Penal, é im-prescindível que haja a educação e o compromisso para prevenir os danos ao meio ambiente:

É evidente que o Direito Penal pode jogar um papel muito importante para articular um sistema sancionador frente a condutas que anteriormente acabavam na impunidade, ou em uma leve sanção (geralmente econômica). Porém, junto a ele, para assegurar que se previnam os atentados, devem aparecer outras variações a considerar: educação e compro-misso .

Além disso, Bravo considera que, junto à educação e informação sobre o meio ambiente, outra variação vem determinada pelo compromisso, apesar de esse compromisso não ser somente dos cidadãos, mas também dos Estados. Nesse sentido, os Estados também devem sentir o problema como global, não circunscrito aos direitos existentes dentro dos limites de suas fronteiras territo-riais.

Nessa perspectiva, é importante ressaltar que, no ordenamento jurídico

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brasileiro, o princípio da participação, dentre outras conceituações, diz respeito à coletividade e ao Estado agirem em conjunto na preservação do meio ambi-ente. Desse modo, Fiorillo considera que:

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 225, caput, consagrou na defesa do meio ambiente a atuação presente do Estado e da sociedade civil na proteção e preservação do meio ambiente, ao impor à coletividade e ao Poder Público tais deveres. Disso se retira uma atuação conjunta entre or-ganizações ambientalistas [...] e tantos outros organismos sociais na defesa e preservação .

Com efeito, Fiorillo considera que, para ocorrer essa atuação em conjun-to, é imprescindível a união dos princípios da informação e educação ambiental, numa relação de complementaridade. Nesse contexto, o princípio da informação ambiental está disposto no art.225 §1.°, IV, da Constituição Federal:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologica-mente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: [...]VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;

Por seu turno, o princípio da educação ambiental, segundo Fiorillo, decorre do princípio da participação da tutela do meio ambiente e está disposto na Constituição Federal no art.225 §1.°, VI, acima mencionado. Logo, para o autor, “buscou-se trazer a consciência ecológica ao povo, titular do meio ambi-ente, permitindo a efetivação do princípio da participação na salvaguarda desse direito”.

Logo, além da tutela penal contra a atividade nociva da biopirataria, é necessário que haja a aplicação dos princípios retromencionados, quais sejam: educação, informação e participação, para que ocorra a conscientização da cole-tividade sobre a gravidade da biopirataria e, junto com o Poder Público, buscar formas de prevenção contra esse crime.

Além do já que foi exposto, para se prevenir a biopirataria, segundo Fon-

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seca, é necessário que exista uma política de investimentos em ciência e tecnolo-gia na região, uma vez que a Amazônia Brasileira é pouco conhecida e estudada, em razão da carência de pesquisadores, investimentos políticos, incentivos às pesquisas, dentre outros, os quais acabam por prejudicar o conhecimento sobre a região, bem como seu desenvolvimento.

Nesse contexto, ressalta-se a importância de serem fi rmados convênios nacionais ou internacionais, alicerçados na transparência, clareza e legalidade para possibilitar a realização de pesquisas na região, a qual possui pouca base física e humana para promover estudos, por meio da busca de cooperação com outros centros de pesquisa.

Sobre a situação, Ozório José de Menezes Fonseca entende que proibir acordos que viabilizem convênios com outros centros de pesquisa signifi ca per-petuar a miséria na região:

Evitar ou proibir esses acordos signifi ca perpetuar a miséria nessa região que tem urgência em se desvendar, através da aquisição de novos conhecimentos que levem à descoberta de novas tecnologias ou benefícios. É também impedir avanços científi cos importantes, sem conseguir evitar que outros países recebam e estudem nossa biota, pois os me-canismos para retirada de organismos, extratos químicos ou substâncias, seja através da exportação ou da denominada biopirataria, são quase impossíveis de serem combatidos .

Em se tratando do investimento em convênios internacionais, é impor-tante mencionar o exemplo da Costa Rica, que estabelece, por meio do INBio, diversos contratos que possibilitam desde investigação básica até a busca e iden-tifi cação de recursos da biodiversidade para aplicação comercial e podem ser utilizados por indústrias de diversos segmentos: farmacêuticas, biotecnológicas e agroquímicas, além de instituições de pesquisa e acadêmicas.

Segundo Rodrigo Zeledón, o INBio é uma organização da sociedade civil, de caráter não governamental sem fi ns lucrativos, criada em 1989 e trabalha em regime de colaboração com diversos órgãos do governo, universidades, setor em-presarial e outras entidades públicas e privadas, dentro e fora do país. A orga-nização tem personalidade jurídica e trabalha com vistas ao conhecimento da diversidade biológica do país e promove sua conservação e uso sustentável. A sua relação com o governo é regulamentada por um contrato denominado “con-vênio cooperativo”.

Os três objetivos principais do INBio, defi nidos por Zeledón, são a execução de um inventário nacional, a consolidação de uma base de dados e a divulgação das

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informações geradas à sociedade. De acordo com essa ordem, somente depois, viria a bioprospecção, que começou a ser concretizada pelo Instituto em 1991, quando foi criada uma unidade de prospecção.

Nesse contexto, Muñoz considera as ações realizadas na Costa Rica uma “boa política de acordos com grandes empresas para identifi cação e exploração de recursos biológicos com potencialidade” . Da mesma forma, entendem Dou-rojeanni e Pádua: “[...] Países como a Costa Rica alcançaram progressos no-táveis na maior parte dos aspectos que compõem o complexo tema da pesquisa, do aproveitamento e da comercialização de recursos da biodiversidade”.

Com efeito, Vandana Shiva é contrária a esse tipo de acordo internacio-nal, uma vez que a autora considera que o acordo realizado entre a Merck Phar-maceuticals e o INBio da Costa Rica não respeita os direitos das comunidades locais, nem o governo daquele país. Shiva prossegue e critica que:

[...] Os que venderam a bioprospecção nunca tiveram di-reito à biodiversidade, e aqueles cujos direitos não estão sendo vendidos ou alienados por meio da transação, nunca foram consultados nem tiveram a chance de participar.Além do mais, embora as taxas de bioprospecção pudes-sem ser usadas para aumentar a capacidade científi ca no Terceiro Mundo, o que realmente se cria é uma instalação para a empresa .

É necessário ainda, o aumento de fi scalização na Amazônia, visto que, em razão de suas dimensões continentais, os ataques de biopiratas tornam-se muitas vezes impossíveis de serem percebidos e isso acaba por incentivar o aumento da espolia-ção da biodiversidade na região. Desse modo, a fi scalização na Floresta Amazônica é inefi caz, em razão da ausência de policiamento ambiental e organismos que atuem na proteção à sociobiodiversidade brasileira.

Por outro lado, para proteger a biodiversidade, também se deveria, nos aeroportos, monitorar a entrada e saída de estrangeiros, como pesquisadores, missionários, estudantes, dentre outros. Além disso, deve-se fi scalizar a regu-larização de ONGs que trabalham com populações tradicionais e povos indí-genas para verifi car sua real intenção nesses trabalhos, bem como alguns mis-sionários que atuam diretamente com esses povos e possuem total acesso a seus costumes e conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

É importante ressaltar que, quando se sugere maior fi scalização, não se busca ocasionar entraves às pesquisas científi cas, nem desabilitar instituições sérias que trabalham com povos indígenas e populações tradicionais, no entanto é necessário que elas estejam em conformidade com a legislação nacional, a

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fi m de se evitar prejuízos futuros ao Brasil e aos povos, cujo conhecimento é utilizado de forma não autorizada.

É essencial, ainda, a preservação dos territórios utilizados pelos povos in-dígenas e populações tradicionais para a produção de seus saberes, em razão da relação que esses povos possuem com suas terras não representar uma simples ocupação, mas, sim, confi gurar o local onde são desenvolvidas suas experiên-cias com a natureza e que, segundo Fernando Dantas, são indispensáveis à ma-nutenção da própria vida.

Ainda sobre a questão da biopirataria, Eliana Calmon considera que as instituições internacionais e empresas privadas possuem três visões acerca dos planos para a utilização do conhecimento tradicional associado à biodi-versidade: 1- partilhar os lucros sobre as novas patentes baseadas no conheci-mento dos povos indígenas e populações tradicionais; 2- outras instituições não aceitam a partilha e defendem a cobrança de royalties; 3- algumas instituições e empresas consideram que o domínio genético está fora do mercado e não pode ser vendido a qualquer preço.

A mesma autora explica que alguns setores consideram a proteção dos conhecimentos tradicionais por meio de patentes uma forma de reprimir a livre troca de informações, fundamental para o aprimoramento da condição humana. Para Calmon, os países desenvolvidos ainda não chegaram a uma conclusão defi nitiva sobre a questão e, assim, critica que “parece até que os países ricos não têm interesse na solução para o impasse, que seguramente não lhes trará nenhum benefício”.

Também como sugestão para coibir a biopirataria, alguns autores con-sideram a necessidade da existência da cooperação internacional para o desen-volvimento. Segundo Bruno Pino, cooperação internacional para o desenvolvi-mento pressupõe:

Cooperação Internacional para o Desenvolvimento, enten-dida como o conjunto de ações que realizam os governos e seus organismos administrativos, assim como entidades da sociedade civil de um determinado país ou conjunto de países, orientadas a melhorar as condições de vida e impul-sionar o processo de desenvolvimento em países em situa-ção de vulnerabilidade social, econômica ou política e que, além disso, não tem capacidade sufi ciente para melhorar sua situação por si sós .

Logo, a cooperação internacional diz respeito a aspectos de negociações em que as partes envolvidas buscam o estabelecimento de um acordo benéfi co

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para ambas. Um dos fatores mais importantes da cooperação dá-se em razão de sua utilização como mecanismo alternativo de integração e promoção do desenvolvimento.

A cooperação internacional foi incluída em 1945 na Carta da ONU, em seus artigos 1, 55 e 56. Além disso, essa negociação está disposta no preâmbulo da Convenção sobre a Diversidade Biológica:

Enfatizando a importância e a necessidade de promover a cooperação internacional, regional e mundial entre os Es-tados e as organizações intergovernamentais e o setor não governamental para a conservação da diversidade biológica e a utilização sustentável de seus componentes .

Desse modo, um dos objetivos da cooperação internacional é a utiliza-ção da biodiversidade de forma sustentável, com vistas ao desenvolvimento econômico da região amazônica. Da mesma forma entende Ozório Fonseca, ao sugerir a criação de um “Tratado proibindo o patenteamento de qualquer produ-to de origem biológica que não tenha procedência absolutamente transparente”.

Nesse contexto de cooperação internacional, pode-se citar a possibilidade de implantar o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), para buscar o de-senvolvimento da região, com o objetivo de impedir a espoliação dos conheci-mentos tradicionais, no entanto, não será aprofundada essa questão, por não ser objeto desta pesquisa,

A título informativo, o Tratado de Cooperação Amazônia (TCA) foi cele-brado em 3 de julho de 1978 e teve como partes contratantes a Bolívia, o Brasil, a Colômbia, o Equador, a Guiana, o Peru, o Suriname e a Venezuela. Esse docu-mento foi aprovado pelo Congresso Nacional e ratifi cado pelo Estado brasileiro, mediante a promulgação do Decreto n. 85.050, de 18 de agosto de 1980.

Por fi m, além da cooperação internacional com vistas a buscar o desen-volvimento da região, e das demais sugestões analisadas neste artigo, é impor-tante ressaltar que evitar a biopirataria envolve não apenas a criação de leis, como também a proteção pelo Direito Penal, de forma que é imprescindível maior participação do povo brasileiro com seu sentimento de nacionalidade, for-talecimento dos órgãos públicos na região, incentivo à informação, participação e educação ambiental da população, como forma de tutelar a sociobiodiversi-dade brasileira.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a fi nalização deste estudo, verifi cou-se que a biopirataria confi gura um grave problema na atualidade e está diretamente relacionada à apropriação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esses conhecimen-tos pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais são utilizados para a fabricação ou aperfeiçoamento de produtos, motivo pelo qual, por meio da bioprospecção, ocorre a racionalidade econômica, aumento da aferição de lucro.

A natureza passa a ser vista unicamente como fonte de capital e utilizada com o objetivo de impulsionar grandes retornos fi nanceiros. Por essa razão, ocasiona a cobiça de países desenvolvidos, ricos em tecnologia e pobres em biodiversidade, que buscam acessar a biodiversidade por meio da apropriação dos conhecimentos tradicionais, de forma a trazer prejuízos para o Brasil e para os povos detentores do conhecimento tradicional, cujos saberes são comparados a mercadorias.

A mercantilização da natureza subjuga os detentores do conhecimento tradicional, os quais possuem o entendimento contrário à lógica capitalista. Nessa ótica, verifi cou-se que, para os povos indígenas, a biopirataria ocorre sempre que existe a utilização da natureza, uma vez que esses povos enxergam a biodiversidade como um todo e não separam o conhecimento tradicional dos elementos da biodiversidade.

Nesse contexto, as tradições e os costumes dos povos indígenas e popula-ções tradicionais passam a ser considerados inferiores em comparação ao pensa-mento dominante, razão pela qual se percebe a supremacia do conhecimento científi co em comparação ao conhecimento tradicional associado à biodiver-sidade.

Portanto, nota-se que se está diante de um novo processo exploratório de colonização, exercido pelos países desenvolvidos, que será extremamente prejudicial ao Brasil e aos detentores dos conhecimentos tradicionais, se não for repensada toda essa situação e vislumbradas novas formas de proteger a socio-biodiversidade brasileira.

Nessa perspectiva, a Amazônia Brasileira encontra-se no centro dessas discussões, em razão de possuir uma riquíssima biodiversidade e também abar-car diversos povos indígenas e populações tradicionais, detentores do conheci-mento tradicional, cuja utilização é muito importante para a fabricação de novos produtos e acaba por impulsionar a atividade nociva da biopirataria.

Além disso, em se tratando da biopirataria realizada por meio da apro-priação dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade da Amazô-

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nia Brasileira, verifi ca-se a fragilidade da atuação estatal, incapaz de coibir essa atividade nociva, em razão da carência de fi scalização na região, da falta de conhecimento sobre a biodiversidade da região, da pouca quantidade de pes-quisadores, da ausência de investimentos em ciência e tecnologia, dentre outros.

Em contrapartida, observa-se que os países desenvolvidos não possuem interesse em resolver a situação, posto que necessitam da biodiversidade dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento para impulsionar o aumento de capital, motivo pelo qual a solução do problema não lhes trará nenhum bene-fício.

Apontou-se, nesta pesquisa, a necessidade de criminalizar a conduta da biopirataria, a fi m de coibir essa atividade atentatória aos interesses nacionais, sendo relevante a tutela pelo Direito Penal, por força do bem jurídico protegido, qual seja, o meio ambiente, indispensável à manutenção da própria vida.

Verifi cou-se que, além da criminalização da conduta, deve haver aplica-ção dos princípios da educação, participação e informação ambiental, para que a coletividade, os detentores do conhecimento tradicional, juntamente com o Poder Público possam buscar a conscientização e a prevenção dessa atividade no Brasil.

Finalmente, observou-se a necessidade de maiores investimentos em pes-quisa, ciência e tecnologia, aumento de fi scalização na Amazônia Brasileira, preservação dos territórios indígenas, bem como a verifi cação da possibilidade de utilizar a cooperação internacional para o desenvolvimento da região, no que diz respeito à utilização do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA). No entanto, essa questão precisa ser aprofundada e repensada para que seja assegu-rada a soberania do Brasil e a proteção aos detentores do conhecimento tradicio-nal, associado à biodiversidade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, A. W. B. Terras de Quilombo, terras indígenas, “babaçuais livres”, “castanhais do povo” faxinais e fundos de pasto: terras tradicionalmente ocupa-das. Manaus: PGSCA/UFAM/Fundação Ford, 2006.

ALVES, E. C. Direitos de quarta geração: biodiversidade e biopirataria. In: Re-vista da Academia Paulista dos Magistrados, São Paulo, p. 53, nov./2002.

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A PESSOA JURÍDICA E O CONCURSO DE AGEN-TES NO CONTEXTO DA REPONSABILIZAÇÃO

PENAL AMBIENTAL

Antônio Ferreira do Norte Filho *Serguei Aily Franco de Camargo **

Sumário: Introdução; 1. Pessoa jurídica: defi nição e classifi cação; 2. Previsão legal da responsabilidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambiente; 3. Penas comina-das à pessoa jurídica por lesão ao bem ambiental; 4. Da discussão acerca do cabimento ou não da responsabilização penal da pessoa jurídica; 5. Concurso de agentes perpetra-dores do injusto ambiental; Conclusão; Referências.

Resumo: A responsabilidade penal da pessoa jurídica no contexto dos crimes ambientais pode ser concebida como sig-nifi cativo instituto na evolução do sistema jurídico brasileiro, representando impor-tante mecanismo jurídico penal voltado à proteção do meio ambiente. O objeto do presente trabalho constitui-se em impor-tante tema social posto pertencer à socie-dade o direito constitucional a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, propiciador de melhoria na qualidade de vida e, conseqüentemente, condições di-gnas de sua existência, bem como por destinar-se ao estudo de um mecanismo preponderante no campo do Direito Pe-nal Ambiental. Espera-se com a presente pesquisa a contribuição para o aprofunda-mento do tema da responsabilidade penal

Abstract: The criminal responsability of corporation in the context of environ-mental crimes can be seen as signifi cant development institute in the Brazilian le-gal system, representing major criminal legal mechanism aimed at protecting the environment. The object of this study rep-resents an important social issue belong to the company put a constitutional right to an ecologically balanced environment, which can provide the better quality of life and therefore unworthy of its existence, as well as for the purpose of study of a mech-anism leading in the fi eld of environmental criminal law. It is hoped that this research contributing to the deepening of criminal liability of legal entities in environmen-tal crimes, aiming at the improvement of knowledge about this institute criminal

* Mestrando do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas – UEA. ** Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas e do Departamento de Direito da Uninilton Lins.

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INTRODUÇÃO

No âmbito da legislação brasileira, o meio ambiente goza de tutela espe-cífi ca, estando previstos no ordenamento jurídico pátrio, diversos mecanismos processuais e institutos penais protetivos, preventivos e repressivos, concernen-tes à defesa dos interesses sociais ambientais.

Nesse sentido, José Afonso da Silva entende:

A qualidade do meio ambiente é um valor fundamental, é um bem jurídico de alta relevância, na medida mesma em que a constituição o considera bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, que o Poder Público e a coletividade devem defender e preservar. A ofensa a um tal bem, revela-se grave e deve ser defi nida como crime.

O dano ao meio ambiente, enquanto bem de uso comum, atinge a coletivi-dade, ofendendo os direitos transindividuais, ou seja, aqueles que transcendem cada indivíduo, nos acordes do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, comprometendo não só as gerações presentes, mas as futuras, fulminando o princípio do desenvolvimento sustentável.

da pessoa jurídica nos crimes ambientais, visando-se ao aprimoramento do saber acerca desse instituto penal, a sua divul-gação perante a sociedade, os organismos públicos e privados, às autoridades gover-namentais e os operadores do direito. Bus-ca-se, portanto, o estudo da responsabili-dade penal da pessoa jurídica pelos danos cometidos ao meio ambiente, bem como as conseqüências legais decorrentes de tais ações, de modo a se garantir a efetividade dos direitos constitucionais a um meio am-biente equilibrado.

Palavras-chave: Responsabilidade Penal. Pessoa Jurídica. Crimes Ambientais.

disclosure to society, the public and pri-vate, to government authorities and opera-tors of the law. Search, therefore, the study of criminal responsability of corporations for the damage committed to the environ-ment and the legal consequences arising from such actions in order to ensure the effectiveness of constitutional rights to a balanced environment.

Keywords: Criminal Responsability. Cor-poration. Environmental Crimes.

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A responsabilidade penal da pessoa jurídica por atividade lesiva ao meio ambiente, objeto desta pesquisa, constitui um desses meios revestidos de rele-vância no resguardo e na reparação do bem ambiental.

O objetivo do presente trabalho é realizar um estudo acerca da respon-sabilidade penal da pessoa jurídica por danos ambientais, ressaltando-se a efi cácia desse instituto no que tange à proteção do meio ambiente, visando à prevenção de riscos e a reparação de danos ambientais.

Inicialmente será explanado acerca da defi nição e da classifi cação das pessoas jurídicas, sendo na seqüência analisada a previsão legal da responsabi-lidade penal da pessoa jurídica por lesão ao meio ambiente e nessa esteira reali-zar-se-á a exposição sobre as penas cominadas à pessoa jurídica no contexto da lei ambiental infraconstitucional. Em seguida, abordar-se-á a discussão acerca do cabimento ou não da responsabilização da pessoa jurídica, fi nalizando-se com as refl exões conclusivas atinentes ao tema em questão.

Tratar-se-á ainda acerca do concurso de agentes na perpetração de ilícitos penais ofensivos ao meio ambiente, ressaltando-se a atuação do Ministério Pú-blico que inaugura, por via da denúncia, a ação penal cabível a cada caso, con-forme estejam envolvidas as pessoas jurídica e física, esta última na condição de deliberante no que concerne aos interesses da primeira.

O trabalho será baseado em pesquisa teórica e ao longo de todo o estudo serão apresentados os entendimentos de doutrinadores especializados na matéria e da jurisprudência, seguindo-se a necessária refl exão acerca do tema.

1. PESSOA JURÍDICA: DEFINIÇÃO E CLASSIFICAÇÃO

O conceito de pessoa jurídica se traduz na corporação juridicamente re-conhecida, dotada de personalidade legal, com objetivo de cumprimento de de-terminadas fi nalidades, capacitada, assim, como elemento de direitos e obriga-ções.

As pessoas jurídicas, também conhecidas como pessoas coletivas no Direito português, segundo Washington de Barros Monteiro, podem ser defi ni-das como associações ou instituições formadas para a realização de um fi m e reconhecidas pela ordem jurídica como sujeitos de direitos.

No que tange à classifi cação quanto à função, o perímetro de atuação das pessoas jurídicas é determinado a partir de sua natureza, constituição e fi nali-dades, divididas em pessoas jurídicas de Direito Público interno, traduzidas nos entes públicos federativos, União, Estados, Distrito Federal e Municípios, bem

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como as autarquias, incluídas as associações públicas e as demais entidades de caráter público. O Código Civil faz previsão de que os Estados estrangeiros e as pessoas regidas pelo direito internacional público – por exemplo: ONU, OEA, etc., são pessoas de direito público externo. As pessoas jurídicas de Direito Privado, por sua vez, são representadas pelas associações, sociedades civis e comerciais, fundações, organizações religiosas e partidos políticos.

Assim, para a compreensão da pessoa jurídica, torna-se necessário o en-tendimento do fato de que a sua existência encontra-se baseada na realização de uma fi nalidade lícita, não sendo admitido pela ordem jurídica que um ente origi-nado sob sua anuência, atente contra a sua segurança, pois em caso contrário, estará a pessoa jurídica passível de sofrer as conseqüências legais advindas de mecanismos cerceadores e até mesmo extintivos de sua personalidade.

2. PREVISÃO LEGAL DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA JURÍDI-CA POR LESÃO AO MEIO AMBIENTE

A partir do entendimento acerca do conceito de pessoa jurídica, bem como sua classifi cação, é possível, então, se verifi car o caráter legal do processo de previsão de sua responsabilidade penal perante as ações lesivas ao bem am-biental, as quais poderão gerar punição no âmbito penal ao autor, seja pessoa física ou jurídica, devendo a conduta encontrar-se estabelecida previamente em lei como delito.

A Constituição Federal de 1998 estabeleceu uma inovação no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro, ao prever a responsabilidade da pessoa jurídica por danos ao meio ambiente, estando os seus infratores, pessoas físicas ou ju-rídicas, sujeitos às penas da lei, às normas administrativas e civis.

Nessa concepção, Michel Prieur aduz que o dano ambiental consiste no prejuízo sofrido pelo meio natural nos seus elementos não apropriados e inapro-priáveis e que afeta o equilíbrio ecológico enquanto patrimônio coletivo.

A previsão constitucional de responsabilização penal da pessoa jurídica por atos lesivos contra o meio ambiente se deu a partir da constatação gradual de que as graves lesões ao bem ambiental originavam-se não apenas das condu-tas oriundas das pessoas físicas, mas em grande escala, das atitudes lesivas das corporações empresariais.

Assim, Fiorillo afi rma que:

Na verdade temos que com o art. 225, § 3º, da Constitu-ição, o legislador constituinte abriu a possibilidade dessa

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espécie de sanção à pessoa jurídica. Trata-se de política criminal, que, atenta aos acontecimentos sociais, ou melhor, à própria dinâmica que rege atualmente as ativi-dades econômicas, entendeu por bem tornar mais severa a tutela do meio ambiente.

Logo, com o advento da modernidade e o conseqüente surgimento de normas reguladoras das atividades econômicas e sociais, Machado verifi ca:

A responsabilidade penal da pessoa jurídica é introduzida no Brasil pela Constituição Federal de 1998, que mostra mais um dos seus traços inovadores. Lançou-se assim, o alicerce necessário para termos uma dupla responsabili-dade no âmbito penal: a responsabilidade da pessoa física e a responsabilidade da pessoa jurídica. Foi importante que essa modifi cação se fi zesse por uma Constituição, que foi amplamente discutida não só pelos próprios Constituintes, como em todo o país, não só pelos juristas, como por vários especialistas e associações de outros domínios do saber.

A partir disso, perante o ajuste da norma infraconstitucional no contexto do Estado moderno é possível a verifi cação de que a responsabilidade penal da pessoa jurídica encontrou guarida no âmbito da Lei nº 9.605/98, em virtude da constatação do fato dos danos ao meio ambiente, na atualidade, terem ultrapas-sado os limites insignifi cância, forçando-se, assim, à adequação das atividades empresárias, visto ser o aspecto corporativo uma das maiores características do delito perpetrado em face do meio ambiente.

A Lei 9.605/98, apesar de não defi nir expressamente dano ambiental, em seu artigo 3º, seguindo os comandos do texto constitucional, consagrou a respon-sabilidade penal da pessoa coletiva por condutas lesivas ao meio ambiente, con-forme se constata no texto legal: “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade”.

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3. PENAS COMINADAS À PESSOA JURÍDICA POR LESÃO AO BEM AMBI-ENTAL

A pessoa jurídica ou ente coletivo, enquanto agente perpetrador do injus-to penal ao bem ambiental, logicamente, estaria inviabilizada de receber a pena de privação de liberdade, tida como a mais gravosa dentre as sanções penais, aliás, inerente às pessoas físicas, sendo este fundamento precípuo do Direito Penal clássico brasileiro.

No entanto, a modernidade, encarregada de efetivar a evolução do Direito em face das necessidades sociais, acabou por ocasionar o fenômeno da despe-nalização, proporcionando ao legislador brasileiro a adoção das penas alterna-tivas.

O artigo 21 da Lei nº 9.605/98 estabelece à pessoa jurídica a aplicação das penas de multa, restritivas de direitos e de prestação de serviços à comunidade.

No que concerne à aplicação da pena de multa, conforme prevê o Art. 6º, inciso III da Lei 9.605/98, o juiz deve atentar para a situação econômica do infrator. Prescrevendo ainda o Art. 18 do citado diploma legal que a multa será calculada segundo os critérios do Código Penal. Se ainda assim é inefi caz, mesmo que aplicada no valor máximo, poderá ser aumentada em até três vezes, tendo em vista o valor da vantagem econômica auferida.

O referido dispositivo legal, dentre as penas restritivas de direitos, no ar-tigo 23, preconiza que a prestação de serviços à comunidade pela pessoa jurídica consistirá em: (I) custeio de programas e de projetos ambientais; (II) execução de obras de recuperação de áreas degradadas; (III) manutenção de espaços pú-blicos e (IV) contribuições a entidades ambientais ou culturais públicas.

Quanto aos programas e projetos ambientais é possível se verifi car que inexiste no âmbito legal, a indicação explicita de quais os programas e proje-tos que devem ser custeados pelo infrator condenado, fi cando assim a critério do magistrado, que deverá avaliar de acordo com a casuística, determinando o cumprimento da prestação mais conveniente à reparação do ilícito penal co-metido.

O § 2º do artigo 22 da citada lei prevê que a interdição será aplicada quando o estabelecimento, obra ou atividade estiver funcionando sem a devida autorização, ou em desacordo com a concedida, ou com violação de disposição legal ou regulamentar. Na seqüência, o § 3º do referido artigo, diz que a proi-bição de contratar com o Poder Público e dele obter subsídios, subvenções ou doações não poderá exceder o prazo de dez anos.

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A pena de suspensão de atividade, prevista no artigo 22, § 1º, determina que esta seja aplicada quando a pessoa jurídica não estiver obedecendo às dis-posições legais ou regulamentares relativas ao meio ambiente.

O artigo 12 que se aplica tanto à pessoa física quanto à jurídica, es-tabelece que a prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima ou à entidade pública ou privada com fi m social, de importância, fi xada pelo juiz, não inferior a um salário mínimo nem superior a trezentos e sessenta salários mínimo. Determina ainda que o valor pago será deduzido do montante de eventual reparação civil a que for condenado o infrator.

O artigo 24 prevê o que pode se considerar a mais gravosa conseqüência do descumprimento da Lei nº 9.605/98, ou seja, a decretação da liquidação for-çada da pessoa jurídica que fora constituída ou utilizada, com o fi m, preponde-rantemente, para permitir, facilitar ou ocultar a prática de crime defi nido na lei ambiental. Como conseqüência, seu patrimônio será considerado instrumento de crime, sendo determinado o perdimento em favor do Fundo Penitenciário Nacional.

Comparativamente, tal conseqüência equivaleria à pena capital no caso da pessoa singular – abstraindo-se o fato de que a pena de morte só é cabível em situações de excepcionalidade constitucional.

O artigo 4º estabelece que a pessoa jurídica poderá ser desconsiderada sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.

Assim, explanadas as sanções previstas legalmente à pessoa jurídica por atividade lesiva ao bem ambiental, verifi ca-se que apesar de constituir inovação no aspecto jurídico ambiental brasileiro, tal instituto, acima de qualquer outro objetivo, visa o resguardo do meio ambiente ecologicamente equilibrado através do caráter protetivo, preventivo, repressivo e pedagógico ao qual se propõe en-quanto norma social.

4. DA DISCUSSÃO ACERCA DO CABIMENTO OU NÃO DA RESPONSABILI-ZAÇÃO PENAL DA PESSOA JURÍDICA

A responsabilização penal da pessoa jurídica por atividades danosas ao meio ambiente, apesar de consistir num avanço sob o aspecto legal, enseja con-trovérsia, sobretudo no âmbito da doutrina clássica, a qual resiste em aceitar a o caráter delitivo penal sem a presença humana direta.

Em razão desses avanços no campo constitucional ambiental, Fiorillo as-sinala:

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Muita controvérsia foi trazida também. Ademais deve ser ressaltado que a responsabilidade penal da pessoa jurídica não é aceita de forma pacífi ca. Pondera-se que não há como conceber o crime sem um substractum humano. Na ver-dade, o grande inconformismo da doutrina penal clássica reside na inexistência da conduta humana, porquanto esta é da essência do crime. Dessa forma, par aqueles que não admitem crime sem conduta humana, torna-se inconcebível que a pessoa jurídica possa cometê-lo.

No entendimento de Antunes (2002), a responsabilidade penal das pes-soas jurídicas constitui uma questão que não está escapando ao crivo da doutrina clássica, uma vez que, estabelecida a responsabilidade penal e a cominação das penas afetas, restou vaga a sua instituição, o que ocasionou a inefi ciência de sua aplicação concreta em virtude da falta de instrumentos hábeis e imprescindíveis ao referido objetivo a que se propõe.

A corrente teórica que inadmite a existência de previsão da responsabili-dade penal da pessoa jurídica no âmbito da Constituição Federal de 1988, afi rma a ausência do sujeito ideal, dotado de capacidade de ação. Logo, inexistindo os referidos requisitos, bem como sendo a atividade fi nalista degrau da ação delitiva, inconcebível estaria o instituto da responsabilidade penal da pessoa ju-rídica no ordenamento jurídico pátrio. Arrimam o seu argumento na infelicidade da construção textual legal, entendendo que a Constituição Federal de 1988, n o seu artigo 225, § 3º, dispõe sobre as pessoas físicas quando se refere à conduta e sobre as pessoas jurídicas quando se refere a atividades.

A esse respeito, cabe ressaltar a argumentação de René Ariel Dotti:

A difi culdade em investigar e individualizar as condutas nos crimes de autoria coletiva situa-se na esfera processu-al, não na material; O princípio da isonomia seria violado porque a partir da identifi cação da pessoa jurídica como au-tora responsável, os partícipes, ou seja, os instigadores ou cúmplices, poderiam ser benefi ciados com o relaxamento dos trabalhos de investigação; O princípio da humanização das sanções seria violado, pois a Constituição Federal trata da aplicação da pena, refere-se sempre às pessoas, e tam-bém veda penas cruéis; O princípio da personalização da pena seria violado porque referir-se-ia à pessoa, à conduta humana de cada pessoa; Direito de regresso. In verbis: “A se aceitar a esdrúxula proposta da imputabilidade penal da pessoa jurídica, não poderia ela promover a ação de res-

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sarcimento contra o preposto causador do dano, posto ser o co-responsável pelo crime gerador do dever de indenizar”. (...); O tempo do crime – quando o legislador defi niu o mo-mento do crime com base em uma ação humana, ou seja, uma atividade fi nal peculiar às pessoas naturais; Nas for-mas concursais, quadrilha, os participantes se reúnem com este fi m ilícito. Questiona se seria diferente na sociedade; o lugar do crime – não é possível estabelecer o local da atividade em relação às pessoas jurídicas que tem diretoria e administração em várias partes do território pátrio. Ainda que se pretendesse adotar a teoria da ubiqüidade, lugar do crime é o do dano haverá ainda intransponível difi culdade em defi nir onde foram praticados os atos de execução e a ofensa a princípios relativos à teoria do crime.

A partir disso, é possível se verifi car que somente as pessoas físicas po-dem ser responsabilizadas na seara penal, fi cando as pessoas jurídicas sob a égide das sanções administrativas, somente são aplicados a estas, os efeitos pe-nais da sentença condenatória proferida contra as pessoas físicas.

Ressalte-se que anteriormente ao advento da teoria da realidade o prin-cipio societas delinquere non potest, inadmitindo o cometimento de crime pela pessoa jurídica e a sua conseqüente responsabilização, interpretando ser a mesmo mero ente abstrato decorrente da disposição legal, que não possui von-tade própria, mas depende da vontade do administrador pessoa física, logo, de acordo com essa corrente, não pode a pessoa jurídica intentar injusto penal. Tal princípio consolidou a Teoria da Ficção de Friedrich von Savigny, a qual entende a pessoa jurídica como sujeito fi ctício, abstrato diante do direito penal, isto é, um ser irreal impossível de fi gurar no pólo passivo de uma ação penal

Para os doutrinadores baseados na Teoria da Ficção, as pessoas jurídi-cas são incapazes de agir em conduta culposa, sendo inimputáveis, o que lhes impede a consciência do ilícito, não se podendo exigir delas conduta diversa. A doutrina entende, portanto, que a responsabilidade penal da pessoa jurídica fere princípios essenciais do Direito Penal.

Conforme Capez:

Para essa corrente, a pessoa jurídica tem existência fi ctícia, irreal ou de pura abstração, carecendo de vontade própria. Falta-lhe consciência, vontade e fi nalidade, requisitos im-prescindíveis para a confi guração do fato típico, bem como imputabilidade e possibilidade de conhecimento do injusto, necessários para a culpabilidade, de maneira que não há

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como admitir que seja capaz de delinqüir e de responder por seus atos.

Em defesa da responsabilidade penal da pessoa jurídica, a corrente teórica penalista ambientalista adotou a Teoria da Realidade ou da Personalidade Real de Otto Gierke, e em razão disso, entende que a Constituição prevê e admite a responsabilização da pessoa jurídica. Para esta corrente doutrinária, vige a máxima – societas delinquere potest – pela qual a pessoa jurídica constitui ente real com capacidade própria, portanto, diferente da pessoa física que a integra, podendo praticar ilícitos penais.

Em reforço a essa concepção, prepondera ainda o pensamento de que:

O Art. 225, § 3º, da CF não se choca com o art. 5º, XLV, que diz: nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendida aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. A Constituição proíbe que a família de um condenado – pessoa física – possa ser condenada somente porque um de seus membros sofreu uma sanção ou que alguém se apresente para cumprir pena em lugar de outrem. Contudo, o mandamento constitucional não exclui da condenação penal uma pessoa que seja arrimo de famí-lia. A sanção penal poderá ter refl exos extra-individuais legítimos, pois não se exige que o condenado seja uma ilha, isolado de todo relacionamento.

Incorporada a idéia de possibilidade delitiva pela pessoa jurídica e sua conseqüente responsabilização num contexto de adaptação, é possível se notar que:

O Direito Criminal em geral e o conceito de ‘vontade crimi-nosa’ em particular foram construídos em função exclusiva da pessoa física. A própria necessidade de referência a as-pectos ‘subjetivos’ (dogma da culpabilidade) traz ínsita uma implicação antropomórfi ca. Então, mister se faz ‘adaptar’ essas noções à realidade dos entes coletivos, para se poder trabalhar a ‘imputabilidade’ da pessoa jurídica com o in-

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strumental teórico sugerido pela Dogmática tradicional. A partir daí – de reformulações e construções -, pode-se chegar à sujeição criminal ativa da pessoa jurídica, sem ter de prescindir da culpa nos moldes de uma responsabilidade objetiva.

Como se pode verifi car, apesar do entendimento pacifi cado no que tange a responsabilidade civil e administrativa, muitas são as divergências acerca da responsabilização da pessoa jurídica na esfera penal.

A responsabilidade penal, por sua vez, ao contrário do que ocorre nos campos civil e administrativo, não vislumbra presunção de culpa ou inversão do ônus da prova, vigendo nesse contexto, o princípio da presunção de não culpabilidade, cabendo o ônus da prova a quem acusa, ou seja, será necessário provar a ocorrência do evento danoso, sua autoria, bem como o dolo ou a culpa, conforme previsões estabelecidas excepcionalmente pela lei.

No que diz respeito à abrangência da responsabilidade penal da pessoa jurídica quanto à sua classifi cação em pessoa jurídica de Direito Público e de Direito Privado, inexiste qualquer previsão excludente da pessoa jurídica de Direito Público – União, Estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias, em-presas públicas, sociedades de economia mista, agências e fundações. Assim, doutrinariamente, há divergências acerca do fato da pessoa jurídica de Direito Público, a exemplo da pessoa jurídica de Direito Privado, ser penalmente respon-sabilizada.

A partir disso, verifi ca-se o entendimento de Silva e Figueiredo:

Não é possível responsabilizar penalmente as pessoas ju-rídicas de Direito Público sem risco de desmoronamento de todos os princípios basilares do Direito Administrativo e dos próprios valores do Estado Democrático de Direito, considerando que o cometimento de um crime jamais poderia benefi ciar as pessoas jurídicas de Direito Público ou seriam inócuas, ou então, se executadas, prejudicariam diretamente a própria comunidade benefi ciária do serviço público.

No ensinamento dos referidos autores, entender o Estado, na condição de pessoa jurídica de direito público, como agente perpetrador de delitos, con-sistiria na negativa do próprio Estado Democrático de Direito.

Por outro lado, alguns doutrinadores argumentam que se o Estado é uma pessoa jurídica, concluir ser ele uma fi cção, também o seria o direito que dele

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emana. A pessoa jurídica, deve ser compreendida a partir do seu sentido amplo, ou seja, todas as pessoas jurídicas, de Direito Público ou de Direito Privado, as quais poderão ser atingidas pela responsabilização imposta legalmente.

Entende-se, portanto, pela existência efetiva das pessoas coletivas visto que não há como negar sua efetiva atuação na vida jurídica da sociedade, sendo numerosos negócios jurídicos aperfeiçoados através de sua vontade, tendo, tais entes, realidade objetiva para o Direito brasileiro.

5. CONCURSO DE AGENTES PERPETRADORES DO INJUSTO AMBIENTAL

Sob uma concepção de ordem prática, no que diz respeito ao concurso de agentes que praticam crimes contra o meio ambiente, o Ministério Público, por ocasião do oferecimento da denúncia por delitos praticados pela pessoa jurídica, tem encontrado o óbice da existência de concurso necessário, no qual a descrição do tipo contém dentre os seus elementos a pluralidade de agentes, o que leva o parquet a obrigatoriamente incluir as pessoas físicas co-autoras da pessoa jurídica no fato delituoso, caso contrário, sendo a denúncia rejeitada.

A Lei 9605/98 descreve tipos penais que são delitos de autoria singular, sendo admitido o eventual concurso de agentes, a exemplo dos demais crimes, ou seja, aquele que embora podendo ser executados por uma pessoa, eventual-mente, poderão ser realizados por mais de um agente, seja como co-autor ou partícipe.

O artigo 3º da referida lei, estabelece a responsabilidade concomitante entre a pessoa jurídica e a pessoa física na condição de autoras, co-autora e partícipes.

Num contexto prático, como regra, haverá no mínimo uma pessoa natural à frente da pessoa jurídica, assim, haverá também, entre ambas, o concurso de agentes em caso de conduta ambiental lesiva.

Assim, restará caracterizado o concurso de agentes, uma vez que a pessoa natural exerceu deliberação no interesse da pessoa jurídica, Assim, constituindo requisito para a imputação de responsabilidade penal, a denúncia deverá conter a narrativa circunstancial do ocorrido.

A esse respeito, acrescenta Eladio Lecey:

Outros concorrentes, eventualmente, poderão surgir, como a(s) pessoa(s) física(s) que, não sendo quem deliberou pela pessoa jurídica, contribuiu de qualquer sorte para o crime

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contra o ambiente, como, exemplifi cativamente, os em-pregados que executaram as tarefas degradadoras de polu-ição em níveis tais a confi gurar o tipo poluição previsto no artigo 54 da Lei 9605/98, desde logicamente, que presentes outros requisitos à sua imputação, dentre eles, a exigibi-lidade de conduta diversa. Trata-se, aqui, do concurso de agentes previsto no parágrafo único do mencionado artigo 3°.

Ainda sobre o tema, o TRF da 4ª Região assim se posicionou:

CRIMINAL. AMBIENTAL. CRIME COMISSIVO (ART. 54, LEI 9.605/98). DENÚNCIA. CO-AUTORIA DE PES-SOA FÍSICA E JURÍDICA. TIPICIDADE. RELAÇÃO DE CAUSALIDADE. AMBIGÜIDADE DA IMPUTAÇÃO. INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS NO CRIME SOCIETÁRIO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. TRANCA-MENTO DA AÇÃO PENAL. 1. A Lei 9.605/98 estabele-ceu no seu art. 2º que o administrador da pessoa jurídica po-tencialmente poluidora tem "por lei obrigação de cuidado", proteção e vigilância, de molde que a sua omissão, em ca-sos em que podia ou devia evitar o resultado, é penalmente relevante, nos termos do art. 13, § 2º, alínea "a" do Código Penal. 2. O presidente da pessoa jurídica, com atribuições de fi xar sua estratégia, de gerir o desempenho empresarial e as questões relativas ao meio ambiente, é, em princípio, responsável por dano ambiental causado pelas atividades de risco da empresa. 3. Descrevendo a denúncia o fato típico de "causar poluição" (art. 54 da Lei 9.605/98) e afi rmando, com base no inquérito, que ele decorre de condutas omissi-vas e comissivas do paciente, não é viável a exclusão da re-lação de causalidade entre a ação e o resultado (art. 13, Có-digo Penal). 4. Sendo difícil de fi xar os limites entre o dolo eventual e a culpa consciente, não ofende aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa e, pois, não é de ser acolhida a alegação de prejuízo, em face do enquadramento da conduta em crime doloso, porque o réu se defende é dos fatos e a capitulação na denúncia é sempre provisória, mormente se existe a modalidade culposa para o delito de causar poluição. 5. Não é inepta a denúncia que descreve a participação dos agentes no evento delituoso, principalmente no crime societário, onde é de admitir-se descrição mais genérica. 6. A inépcia da denúncia, a par de

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não ser motivo de trancamento da ação penal,mas de nuli-dade da inicial, não deve ser reconhecida se ela descreve fato criminoso, com minúcias técnicas apuradas no inquérito, aponta indícios da autoria, classifi ca a infração e preenche os requisitos do art. 41 do CPP. Os elementos da subjetividade dos agentes devem ser analisados na sentença. 7. Há justa causa para a ação penal se existe prova da materialidade do fato e indícios da autoria (art. 43, CPP). (TRF 4ª Região - Sétima Turma - H200104010710119/PR - Rel. José Luiz B. Germano da Silva - publicado no DJU de 31.10.2001, p. 1336).

No entanto, algumas vezes, apesar de evidenciada a concorrência das pes-soas físicas, ainda que em deliberação pela pessoa jurídica, não é possível a identifi cação daquelas, o que importa no fato de quem nem sempre a denúncia do Órgão Ministerial deva acusar as pessoas físicas, uma vez que o Ministério Público não pode quedar-se inerte diante da não identifi cação das pessoas físi-cas.

A esse respeito, Tupinambá Pinto de Azevedo descreve:

Dita conclusão tanto se aplica aos concorrentes previstos no parágrafo único do artigo 3° da Lei 9605/98, como eventuais empregados que executaram as tarefas que contribuíram ao crime, quanto aos previstos no “caput” do mesmo disposi-tivo legal, ou seja, aquele(s) que deliberaram pela pessoa ju-rídica. Tal poderá ocorrer quando não identifi cados aqueles que deliberaram, por exemplo, dentre os sócios membros de órgão colegiado em reunião com votação secreta em decisão não unânime.

Desse modo, a denúncia deverá necessariamente comportar a descrição acerca da identifi cação da pessoa física que exerceu deliberação pela pessoa ju-rídica. Não restando a possibilidade de identifi cação da pessoa natural deliberante, a peça acusatória denunciar denunciando a pessoa jurídica, descrevendo o fato da impossibilidade de identifi cação da pessoa física, satisfazendo assim, os ditames da lei ambiental criminal.

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CONCLUSÃO

Diante do que foi analisado no presente trabalho, levando-se em con-sideração os aspectos legais, no que tange à responsabilidade penal da pessoa jurídica, é de se verifi car que se trata de um instituto penal protetivo do meio ambiente, previsto no artigo 225, § 3º da Constituição de 1988 e artigo 3º da lei nº 9.605/98, o que proporcionou signifi cativas transformações no ordenamento jurídico ambiental brasileiro.

A responsabilidade penal da pessoa jurídica, enquanto ente coletivo, no contexto dos ilícitos ambientais, constitui interesse universal, uma vez que o bem ambiental não pode ser considerado bem público ou privado, haja vista que a titularidade do seu direito se destina a todos indistintamente, não podendo ser concebido individualmente, mas sob o aspecto da coletividade de pessoas in-defi nidas, indeterminadas no exercício desse direito transindividual. Consistin-do assim, no meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo compreendido pelo patrimônio, conjunto de objetos materiais e imateriais, indispensáveis à construção orgânica do ambiente juridicamente protegido.

Assim, a responsabilidade penal da pessoa jurídica deve ser entendida à luz de uma responsabilidade social, não podendo ser traduzida sob o enfoque da responsabilidade penal tradicional baseada na culpa, na responsabilidade indi-vidual e subjetiva.

As atitudes da pessoa jurídica se verifi cam através dos seus órgãos cu-jas ações e omissões se fundem nas atitudes do próprio ente coletivo. Assim, torna-se desnecessário refutar os argumentos desenvolvidos por aqueles que são contrários a responsabilização penal da pessoa jurídica, dada a distinção das abordagens primárias.

Muito embora haja divergência doutrinária quanto à responsabilização da pessoa jurídica nos delitos ambientais, os tribunais pátrios têm aplicado ple-namente o disposto na Lei nº 9.605/98, ressalvando-se que a responsabilização penal da pessoa jurídica de Direito Público seja situação pontual.

Portanto, no que pese os diversos posicionamentos e entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, como forma de suprimento da inefi cácia nas searas da reparação civil e da apuração administrativa, é possível concluir-se pela possibilidade da responsabilização penal da pessoa jurídica por condutas lesivas ao meio ambiente, visto ser este vislumbrado com uma amplitude que ultrapassa os seus próprios elementos formadores, tais como ar, água e terra, sendo entendido como o conjunto das condições de existência humana de modo a integrar e infl uenciar os homens, sua saúde e seu desenvolvimento. Assim,

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os seres humanos integram o ambiente, bem como o conceito e a proteção do meio ambiente, somente podendo ser viabilizados a partir do desenvolvimento da relação ser humano-natureza.

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Artigo recebido em: 05/04/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS E PADRÕES JURÍDICOS

NO PROCESSO DE REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA

Joaquim Shiraishi Neto *

Sumário:1. Disputa pela redefi nição da Região Amazônica; 2. “Novo” Direito e “No-vos Movimentos Sociais”; 3. “Práticas Jurídicas” localizadas: “Novos” padrões jurídi-cos; Considerações Finais; Bibliografi a; Documentos e Periódico.

Resumo: Na última década, muito se discu-tiu sobre a necessidade de adotar medidas para reduzir o aumento do desmatamento na chamada região Amazônica brasileira. Os esforços utilizados para diminuir esse processo, que continua em ritmo acelera-do, tendem a se tornar inócuo, diante de uma medida em curso no Congresso Na-cional, que pretende alterar por meio de Projeto de Lei a área de abrangência da Amazônia legal, retirando da região os Estados do Mato Grosso, Tocantins e Ma-ranhão. A discussão sobre a redefi nição da região Amazônica está inserida no bojo de um intenso processo de confl ito na região, onde os povos e comunidades tradicionais se organizam politicamente para enfrentar os problemas decorrentes da ameaça da perda dos seus territórios tradicionalmente ocupados. No interior do processo de mo-bilização vivenciado por esses grupos so-ciais, é possível identifi car diferentes es-tratégias e ações, que se colocam em face

Abstract: In the last ten years, a lot has been discussed about the needs of adopt-ing measures to reduce the deforestation increase in the region called Brazilian Am-azon. The efforts used to reduce this pro-cess, which remains accelerated, intent to become innocuous, due to the measure on course at the National Congress that intent to change, through a Project of Law, the area that holds the Legal Amazon, remov-ing the states of Mato Grosso, Tocantins and Maranhão. The discussion about the redefi nition of the Amazon Region is due to the intense confl ict in this area, where the people and the traditional communities organize themselves politically in order to face the problems that come with the threaten of loosing their territories tradi-tionally occupied. Inside this mobilization process lived by these social groups it is possible to identify different strategies and actions, placing the “traditional” against of the “new” antagonists. A distinctive

* Advogado. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental da Univer-sidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Líder do Grupo de Pesquisa: Direito, Comunidades Tradicionais e Movimentos Sociais. Pesquisador do Projeto Nova Carto-grafi a Social da Amazônia (PNCSA-UFAm-F.Ford).

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1. DISPUTA PELA REDEFINIÇÃO DA REGIÃO AMAZÔNICA

Em meio às discussões relacionadas ao aumento do desmatamento na região e às medidas e estratégias para reduzi-los, a chamada Amazônia legal poderá ter sua área de abrangência reduzida em função de dois Projetos de Lei que se encontram em trâmite no Congresso Nacional. Os referidos Projetos de Lei objetivam dar nova redação ao inciso VI do §2° do art.1° da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, para alterar a defi nição de Amazônia legal, retirando dessa região os Estados do Tocantins, Mato Grosso e Maranhão. Os argumentos apresentados consistem em afi rmar que os critérios utilizados para a defi nição da região à sua época não levaram em consideração as características dos dife-rentes “ecossistemas” ou “biomas” existentes em cada um dos Estados . A de-limitação levou em consideração critérios eminentemente políticos, sem que houvesse preocupação com os científi cos, notadamente os de base geográfi ca, que poderiam contribuir para nortear a sua defi nição. A necessidade de desen-volver os Estados de acordo com as políticas públicas traçadas em consonância

dos “tradicionais” e “novos” antagonistas, sendo que um traço distintivo, considerado comum é a “luta jurídica localizada”, que não se restringe ao âmbito dos espaços municipais. O reconhecimento jurídico de que a sociedade brasileira é uma “socie-dade plural”, tem servido como argumen-to, acionado para a garantia e a reivindica-ção de direitos. As discussões em torno da noção de “pluralismo jurídico” são retoma-das, ganhando novo signifi cado e impondo “novos” padrões jurídicos. Nesse proces-so, o direito tem sido um poderoso instru-mento, utilizado para nortear o processo de mobilização política e de construções das novas identidades.

Palavras-chave: novos movimentos so-ciais, redefi nição da região Amazônica, novos padrões jurídicos.

trace, considered ordinary is the so called “localized juridical fi ght”, which is not restricted to the counties areas. The juridi-cal recognition that the Brazilian Society is a “plural society”, has served as an argu-ment, within the claim for individual rights and guarantees. The discussions around the notion of the “juridical pluralism” is taken back, getting a new signifi cance and demanding “ new” juridical pattern. Within this process, the law has been a powerful instrument, used to direct the political mobilization process and the built of new identities.

Key–words: new social movements, Ama-zon region redefi nition, new juridical pat-tern.

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com um meticuloso planejamento , orientou os atuais limites da Amazônia legal.O fato de a Amazônia ser compreendida como “região problema”, fez

com que os esforços governamentais se concentrassem e se dirigissem na adoção de um conjunto de políticas públicas voltadas à exploração “racional” dos potenciais da região, sobretudo pelo malogro das atividades até então desen-volvidas de exploração dos recursos de origem fl orestal e mineral. A exploração dos recursos naturais, que trouxeram certa “prosperidade” à região, foi objetivo de análise econômica. Os esquemas interpretativos acionados que procuravam compreender esse processo o fi zeram a partir da noção de “ciclos econômicos” , segundo um discurso teórico que procura articular os temas referidos aos mi-tos da região, como: o “nomadismo”, o “extrativismo”, o “contato das raças” e a “entrada da civilização”, transformando-os em “verdades científi cas” , que foram produzidas e difundidas enquanto tais.

Nesse sentido, o desenvolvimento da região Amazônica implicava na adoção de políticas que tinham como pressuposto a necessidade de incorporá-la ao País. O processo de “integração” ocorreu atraindo capital privado por meio de incentivos fi scais e monetários. O desenvolvimento e a ocupação da região se tornaram objetivos e em nenhum momento os Estados se opuseram ou mesmo rivalizaram a esse modelo de desenvolvimento marcadamente de caráter autori-tário , na medida em que “desconhece” a existência de diversos grupos sociais portadores de distintas “temporalidades” e “axiologias” , levando à destruição das identidades coletivas. O viés autoritário do modelo serviu para atender aos interesses dos Estados e de determinados grupos locais, que de forma ampla pôde se benefi ciar dessas políticas.

Nas últimas décadas duas tendências entrelaçadas vêm redefi nindo a região Amazônica. A primeira está relacionada ao papel do Estado na região, que tem se ocupado em promover o desenvolvimento a partir dos interesses dos interessados em explorar economicamente a região. Observa-se que o dis-curso ambientalista , que serviu como norte das discussões nas últimas déca-das, aos poucos, perde força, diante da intensifi cação do processo de explora-ção econômica na região. Em outras palavras, o modelo em expansão retoma e “atualiza” o pensamento geopolítico brasileiro de vertente militar desenhado em tempos passados, cujo objetivo era a inserção da região na expansão capitalista contemporânea. A aquisição e ocupação de terras por grandes proprietários e empresas para o cultivo das monoculturas (de soja, cana de açúcar, dendê, eu-calipto, dentre tantas...), bem como a exploração e intensifi cação dos recursos minerais e energéticos evidenciam o caráter predatório desse processo, que se coloca de forma antagônica ao vivenciado pelos diversos povos e comunidades tradicionais.

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A segunda tendência refere-se à emergência dos movimentos sociais na região Amazônica , que se defi nem e são autodefi nidos por critérios de identi-dade étnica, e reivindicam a manutenção e garantia de direitos, frente às situa-ções que lhes apresentam adversas. O avanço da exploração econômica sobre as terras e os recursos naturais coloca em risco as formas de reprodução física e cultural dos mais variados grupos.

Em meio a esse intenso processo de disputas, os povos e as comunidades tradicionais vão desenhando seus territórios, que segundo Almeida encontram-se em “processo de territorialização” . Desta forma, rivalizam com os territórios pretendidos, sendo que isso implica na redefi nição da própria noção de região a partir dos critérios de mobilização política. Observa-se que é a noção de região Amazônica se encontra em jogo mais uma vez. No entanto, os critérios acionados para sua defi nição se encontram delineados num campo de disputa, onde distintos interesses entram em confl ito, diferentemente da sua primeira defi nição, quando os critérios dominantes foram àqueles identifi cados pela “ob-jetividade científi ca”.

2. “NOVO” DIREITO E “NOVOS MOVIMENTOS SOCIAIS”

As refl exões em torno do ordenamento ou sistema jurídico tendem a “apagar” a possibilidade de considerar a existência de direitos, que possam estar para além ou aquém dos limites de seu tempo e espaço . Os juristas se esforçam em fazer coincidir o espaço jurídico com a sociedade, modernamente com o Es-tado . Trata-se do dogma da completude do ordenamento jurídico, que consiste na propriedade do direito regulamentar toda e qualquer situação que exista de fato . Esta leitura formal do direito, que privilegia a interpretação das normas e a coerência do ordenamento tem se constituído em objeto de discussão em face dos fenômenos sociais e econômicos recentes, que tem se apresentado de forma múltipla e complexa, obrigando a uma refl exão permanente acerca dos signifi cados do direito.

Percebe-se que o formalismo excessivo utilizado para compreender os fenômenos sociais e econômicos tem impedido a interpretação dos processos de extrema complexidade, que se colocam distantes da forma como o direito se produz, reproduz e difunde. Os intérpretes do direito têm encontrado enormes difi culdades em atender de forma satisfatória as demandas, embora tenham se demonstrado bastante criativos em relação a elas . A recusa em se admitir a insu-fi ciência do ordenamento ou sistema jurídico, enseja a necessidade de revisitar o próprio direito e, nesse sentido, as refl exões dogmáticas mais procuram se atual-

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izar e o fazem se apropriando da noção de “pluralismo jurídico”, que sempre foi tomado como algo residual do direito positivado . O “pluralismo jurídico” era formulado segundo o campo jurídico por historiadores e sociólogos do direito. Eles se utilizavam dessa noção operacional para demonstrar a insufi ciência do ordenamento jurídico, bem como para descrever as situações da realidade, que não se encontravam catalogadas no direito. Contudo, as refl exões jurídicas mais recentes reconhecem o fato de que somos uma “sociedade plural”. Para essa análise: “o pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma plu-ralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos” . Optar pelo reconhecimento de que somos uma sociedade plural, tende a impor uma ruptura com os esquemas de pensamento jurídico tradicio-nais e a necessidade de repensá-lo à luz das discussões do “pluralismo jurídico”.

A diversidade importa no acatamento de “práticas jurídicas” diferencia-das, nem sempre catalogadas e que necessitam ser incorporadas às refl exões jurídicas para garantir direitos efetivos à diversidade de sujeitos e grupos soci-ais, que sempre fi caram distantes dos tratamentos jurídicos . As difi culdades de interpretar os fenômenos sociais à luz dos padrões jurídicos tradicionais, sempre fi caram evidenciadas diante dos fatos , embora os intérpretes preferissem igno-ra-los, já que a todo custo procuravam enquadrar as situações aos dispositivos legais, apesar de reconhecerem as difi culdades. Para cada situação, um disposi-tivo, o que implicava numa simplifi cação das situações, quando reduzidas ao mundo jurídico.

Nesse sentido, o processo em curso que valida o pluralismo na ordem jurídica, importa, também, no reconhecimento de que a norma se origina de uma situação particular e que se universaliza no ambiente jurídico. O discurso jurídico e o “senso teórico comum dos juristas” têm garantido a produção, reprodução e difusão da universalidade da norma jurídica, “livre” de qualquer tipo de interesses que possam maculá-la. Isso se constituiu num dos “obstáculos epistemológicos” , que tem impedido a compreensão do próprio direito, inclu-sive a sua possibilidade de atualização.

A necessidade de o direito ser pensado e organizado para atender determi-nados problemas torna-se “obstáculo” à própria capacidade do direito se modi-fi car diante das situações que se complexifi cam, na medida em que a sociedade se globaliza. As situações complexas têm implicado na necessidade de envolver uma maior participação dos interessados e dos que detém conhecimentos espe-cífi cos a respeito, na medida em que esses procedimentos permitam contribuir na tomada das decisões judiciais, que possam ser consideradas mais justas.

Os resultados do reconhecimento de que somos uma “sociedade plural” implica numa ampliação dos problemas, em decorrência do grau de disputas

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acirradas, que se colocam por vezes de forma contraditória no interior da socie-dade . Os esforços teóricos devem se concentrar na possibilidade de intensifi car as refl exões do papel do direito na sociedade contemporânea e de sua aplicação frente à dinâmica da realidade, que é reconhecidamente plural. Nesse sentido, as tentativas de simplifi cação dos procedimentos, a fi m de proporcionar maior celeridade à resolução dos confl itos devem ser vistas com ressalva , sobretudo pelo fato de existir no momento atual refl exões no âmbito do direito, que pro-curam encontrar na idéia do “consenso”, senão a única, mas a melhor forma para a resolução dos confl itos sociais existentes. As refl exões que se encontram ancoradas nas discussões de Democracia e Estado de Direito vêm sendo objeto de crítica , já que trazem no seu bojo a idéia de que o direito representa os interesses da sociedade, diluindo a política sob o conceito de direito.

Observa-se que o critério de identidade vem contribuindo numa maior capacidade dos grupos sociais exerceram mobilização política para reivindica-rem direitos. A organização e mobilização dos povos e comunidades tradicionais se constituem em um importante instrumento para enfrentar as situações concre-tas, que se evidenciam nos processos de disputas pelos territórios. Nesse intenso processo vivenciado pelos grupos sociais, o enfrentamento jurídico tem sido uma arena de luta privilegiada. As manifestações políticas dos movimentos nas mais diversas situações revelam diferentes estratégias e ações, que se colocam em face dos seus antagonistas. Um traço distintivo que pode ser considerado co-mum a todos esses grupos sociais é o que pode ser denominado de “luta jurídica localizada” , que não se restringe aos limites do espaço municipal. É localizada no sentido de que os grupos têm acesso aos meios e ao Poder Público respon-sável para atender e executar as medidas eventualmente propostas. Os esforços dos grupos sociais em manter a “luta jurídica localizada” decorre da utilização de diversas práticas, que não se encontram referidas ao aspecto discursivo, aca-bando por impor formas próprias: junto às Câmaras Municipais e Assembléias Legislativas dos Estados, os povos e comunidades tradicionais além de partici-parem das audiências públicas para discutir projetos que lhes afetam direta ou indiretamente, apresentam proposições por meio de representantes, as quais têm se transformado em leis ; em discussões com Poder Executivo vem discutindo e fi rmando determinadas medidas , que tem se traduzido em políticas específi cas ; e em discussão com o Ministério Público Estadual e Federal apresentam e dis-cutem a particularidade de seus problemas para a defesa de seus direitos.

Percebe-se que há uma apropriação das “práticas” e do discurso jurídico, na medida em que esse campo tem se demonstrado extremamente favorável às disputas políticas. O fato do direito representar os interesses de determinados grupos - “o reino de um direito”, como afi rmou Jacques Rancière - não tem se

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apresentado neste momento, pelo menos, como um obstáculo aos movimentos sociais que, ao se apropriarem das “práticas jurídicas”, procuram propor dis-positivos legais que estejam mais alinhados com a sua maneira de viver. Em determinados momentos, procuram interpretar os dispositivos consoante os seus interesses e vontades, apesar de que a interpretação nem sempre encontra “eco” nos esquemas de pensamento jurídicos dominantes, estruturados em consonân-cia com os padrões jurídicos tradicionais. Neste contexto em que os grupos sociais se organizam e se mobilizam, é importante destacar o papel do Poder Judiciário, que tem procurado reconhecer a relevância da ampla participação da sociedade nos julgamentos, diante da complexidade e da pluralidade de situa-ções, que impõem novas formas, onde os pré-intérpretes são determinantes no processo decisório.

No caso, há uma necessidade de ocupar o campo jurídico, sobretudo em função do momento vivenciado, em que os próprios intérpretes autorizados re-conhecem a necessidade de uma maior participação da sociedade. Os esforços do Poder Judiciário em ampliar a participação da sociedade nos processos de-cisórios se encontram coadunados com os interesses dos povos e comunidades tradicionais. Extensivamente a esse processo, os grupos sociais intensifi cam sua luta em explicitar a sua existência social, bem como demonstrar a necessidade de protegê-la, mesmo que para isso seja necessário repensar os próprios padrões jurídicos instituídos.

No processo que envolve o reconhecimento da diversidade, a primeira ação consiste em reafi rmar e afi rmar a idéia da diferença, que motiva as reivin-dicações dos diversos povos e comunidades tradicionais. A partir do intenso processo de organização e mobilização política, os grupos sociais adotam a se-guinte estratégia: a elaboração e proposição de dispositivos legais que, inicial-mente, permitam reconhecer a sua existência social, bem como seus modos de “fazer”, “criar” e “viver”. As discussões em torno da elaboração e proposição dos dispositivos legais tem sido um elo importante no processo de construção das identidades coletivas , na medida em que as discussões políticas em torno das proposições permitem ao mesmo tempo, afastar as divergências e aproximar os grupos, frente os antagonistas. A força e a intensidade dos processos fazem com que os grupos apaguem as diferenças e reforcem os laços de solidariedade. As idéias da existência de coesão social - que serviam para distinguir a região das demais - são recuperadas, mas sem perder a possibilidade de realçar as dife-renças existentes entre os diversos grupos sociais que compõem a Amazônia.

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3. “PRÁTICAS JURÍDICAS” LOCALIZADAS: “novos” padrões jurídicos

O deslocamento dos enfrentamentos políticos para a “luta jurídica lo-calizada”, sobretudo a produção de dispositivos legais no âmbito municipal e, também, estadual revela um dado “novo”, que merece ser incorporado às análises. Nesse processo, os movimentos sociais passaram a ser os protago-nistas e intérpretes de suas próprias ações e estratégias, diferentemente de outros períodos, onde o discurso era mediado. Até a década de 1980, observa-se que os confl itos se referiam às disputas pela terra na região Amazônica, envol-vendo uma intensa discussão em torno dos direitos de posse e propriedade. Na maioria das situações, as discussões eram encaminhadas ao Poder Judiciário . O procedimento de encaminhar prevalentemente os confl itos ao Poder Judiciário representava uma das estratégias mais utilizadas em face de seus antagonistas. O seu objetivo consistia em garantir ou mesmo evitar qualquer tipo de medida que pudesse implicar na ameaça ou perda da terra em disputa, embora não se esperasse que as ações fossem êxitosas, isto é, julgadas favoravelmente. Os ar-gumentos acionados eram os perfi lados pelos advogados, que promoviam a dis-puta no campo jurídico. As ações eram organizadas com intuito de demonstrar a existência da posse mansa e pacífi ca sobre a terra ou mesmo a insufi ciência dos documentos acostados aos processos judiciais. As disputas jurídicas cingiam-se aos processos e às medidas administrativas junto aos órgãos fundiários, que eram acionados para promover o processo de desapropriação ou mesmo regu-larização fundiária do imóvel, objeto do litígio.

Na década de 1990, a esse discurso do direito agrário, foram incorpora-das as discussões de meio ambiente. A força do discurso ambiental, que bus-cou identifi car formas de preservação e conservação da região Amazônica, fez com que os grupos sociais passassem a ter uma participação mais ativa, aproxi-mando-os das formulações e dos debates jurídicos ambientais, que procuravam identifi car formas para melhor disciplinar as ocupações e usos dos territórios. A experiência dos seringueiros com os Projetos de Assentamento Extrativistas (PAEXs), incorporado pela Política Nacional do Meio Ambiente por meio das Reservas Extrativistas (RESEXs), é um exemplo recorrente. Ele se espraiou por toda região Amazônica, vindo a se incorporar na Política Nacional de Unidades de Conservação.

No entanto, somente a partir do aumento do grau de organização e mobili-zação dos grupos sociais é que as demandas jurídicas passaram a se tornar mais complexa, impondo questionamentos aos procedimentos comumente utilizados, que vinham se demonstrando inefi cazes diante dos problemas, que se coloca-vam e que ameaçavam a reprodução física e cultural dos grupos. As discussões

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não mais se referiam ao direito à terra, mas a um conjunto de proposições, que implicam no reconhecimento da existência social dos povos e comunidades tradicionais. Os discursos jurídicos, agrário e ambiental, até então hegemôni-cos foram perdendo gradativamente força junto aos movimentos sociais, que passaram a articular as lutas a partir de “novas” formas. Tal processo refl ete as “novas” ações e estratégias dos grupos sociais, que procuram como medida na manutenção de seus direitos, ações mais localizadas em que pudessem deter o controle político do processo.

A maioria dos projetos de lei apresentados pelos representantes dos movi-mentos sociais foram e estão sendo aprovados nas diversas Câmaras Municipais de toda região Amazônica . Os projetos de lei, que implicam numa maior liber-dade ou restrição de determinadas “práticas sociais”, apesar de sofrerem forte resistência, acabam sendo aprovados. Os conteúdos dos projetos representam o grau de enfrentamento envolvendo interesses diversos, que se realiza no interior dos espaços políticos. Verifi ca-se que o maior grau de organização e mobiliza-ção dos grupos refl ete os ganhos e as perdas dos projetos de lei apresentados . As estratégias utilizadas para a discussão e apresentação da proposição - que vai desde a escolha do vereador ou parlamentar - bem como as articulações que ocorrem no decorrer de toda tramitação do projeto, incluindo o dia da votação, são dados relevantes que necessitam ser analisados, uma vez que contribuem com o maior ou menor êxito da maioria das propostas apresentadas. Nessa are-na, onde os interesses divergentes se explicitam, a ação política exercida pode signifi car um grande passo em direção a aprovação dos projetos.

O conteúdo dos projetos aprovados além de expressarem a correlação de forças localizadas, evidencia as situações existenciais de fato, vivenciadas dife-rentemente por cada grupo social, por isso mesmo não há restrições legais em relação ao que foi aprovado. Uma vez aprovadas, as leis fi cam “sacramentadas” e herméticas aos questionamentos. As leis aprovadas são acatadas, sendo que os diversos grupos e o Poder Municipal procuram cumprir o que foi previamente pactuado. O “pacto” envolve uma “consciência geral” do profundo conheci-mento da questão e a necessidade de regulamentá-la, sob pena de “novos” con-fl itos. Observa-se que os envolvidos possuem plena consciência dos direitos em jogo, bem como da necessidade de protegê-los.

Os deslocamentos das ações e estratégias para o plano jurídico local, es-pecifi camente para o da elaboração e proposição de leis vêm servindo para re-conhecer a existência social dos grupos sociais e, sobretudo legitimar as suas ações. Trata-se de promover a passagem de uma situação de “invisibilidade” para a de “visibilidade” jurídica, pois o direito somente protege os visíveis. Contudo, esse processo é pouco refl etido, em função dos resultados positivos

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até aqui alcançados. Os grupos sociais vêm apostando suas lutas nesse processo que, sem dúvida, contribui com a construção de suas identidades. A elaboração e proposição dos dispositivos legais auxiliam no reforço e atualização dos laços sociais. Os indivíduos passam a se identifi car enquanto membro do grupo.

Os novos dispositivos legais criados a partir do controle exercido pelos movimentos sociais determinaram de certa forma, a ampliação e abertura do or-denamento ou sistema jurídico até então indiferente aos direitos desses grupos. Os novos dispositivos necessitam ir se acomodando ao universo jurídico, sendo que esse processo pode implicar em um menor controle dos grupos sociais, em função da “autonomia” do campo jurídico. A “autonomia” é construída em face das necessidades de produção, reprodução e difusão de um discurso jurídico, que sempre se ocupou em negar direitos a esses grupos. Isso deverá implicar em um novo conjunto de ações e estratégias, sobretudo na capacidade dos gru-pos explicitarem a legitimidade dos seus direitos que, em muitos momentos, se encontram em confl ito com o próprio direito. Os esforços dos grupos deverão se dirigir e concentrar no direito em dizer o direito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No bojo da dinâmica da região Amazônica, os novos movimentos sociais ganharam força e vitalidade, em face dos projetos de intervenção na região, que procuram incluí-la na expansão capitalista. Em decorrência, as “práticas sociais” dos diferentes grupos sociais vêm se impondo na ordem, acarretando uma intensa disputa sobre os territórios e no processo de redefi nição da região.

É por esse motivo que os debates sobre a redefi nição da região Amazôni-ca não podem prescindir da participação e do conteúdo desses grupos sociais. A força e vitalidade dos movimentos sociais residem, em primeiro lugar, no fato de terem garantido a sua existência enquanto grupo socialmente distinto. A sua permanência e perenidade rivalizaram com todos os esquemas científi cos de pensamento, que deduziam o seu “fi m” ou “assimilação” diante da sociedade nacional. Segundo essas leituras, esses grupos estariam fadados ao desapare-cimento. Em segundo, porque a partir dessa primeira, lograram questionar o direito na sua concepção universalista, obrigando -o a se debruçar sobre as di-versidades e as singularidades. Em outras palavras, a “luta jurídica localizada”, enquanto instrumento, vem aproximando o direito das situações mais particu-larizadas, implicando num repensar do próprio conteúdo jurídico.

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Tal processo vem fazendo com que os grupos sociais transitem de uma situação de invisibilidade para visibilidade; enquanto sujeitos coletivos de di-reitos têm suas “práticas jurídicas” igualmente reconhecidas dentre tantas. A região Amazônica expressa e contém essa diversidade sócio-cultural, que deve ser preservada, sendo que é por esse motivo, tomando emprestado o título do livro de Ronald Dworkin, “levar a sério” as proposições dos povos e comu-nidades tradicionais, incorporando-as como legitimas no interior da ordem ju-rídica, sob pena de negar direitos, comprometendo a reprodução física e cultural desses grupos sociais.

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134 CANDIDATOS se declaram gays ou ‘aliados´, diz ABGLT. Folha de São Paulo, 16 de agosto de 2008. p.A6.

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SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 005, de 2005, “Altera o inciso VI do §2° do art.1° da lei 4.771, de 15 de setembro de 1965, na redação alterada pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 24 de agosto de 2001, que dispõe sobre a abrangência da Amazônia Legal, e dá outras providências.”

STF amplia participação no debate público. Folha de São Paulo, 10 de agosto de 2008. A12.

Artigo recebido em: 01/06/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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ÍNDICE - PARTE III

PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDICO FUNDAMEN-TAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº 145/2002 DO MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A CO-OFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEENGATU, TUKANU E BANIWAMoysés Alencar de Carvalho........................................................................271

Introdução1. Pombal ecoando na política indigenista nacional pré- 19882. O direito à diferença na Constituição Federal de 19883. Pluralismo jurídico: A comunicação entre direito e realidade na Terra das Línguas 4. (In)Constitucionalidade e (in)competência: questões formais sobre a Lei Municipal nº 145/2002Considerações FinaisReferências

SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO DA REGULAÇÃO JU-RÍDICA DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIO-DIVERSIDADESheilla Borges Dourado................................................................................287

1. Apresentação do campo2. Inovação tecnológica e valoração econômica dos conhecimentos tradicionais asso-ciados3. Novos bens, novos sujeitos de direitos4. Campo científi co e “defi nições legítimas”Em resumo, para fi nalizar

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PLURALISMO JURÍDICO COMO VALOR JURÍDI-CO FUNDAMENTAL DO ESTADO BRASILEIRO: ESTUDO DE CASO SOBRE A LEI Nº 145/2002 DO

MUNICÍPIO DE SÃO GRABRIEL DA CACHOEIRA E A CO-OFICIALIZAÇÃO DAS LÍNGUAS NHEEN-

GATU, TUKANU E BANIWA

Moysés Alencar de Carvalho*

Sumário: Introdução, 1. Pombal ecoando na política indigenista nacional pré- 1988; 2. O direito à diferença na Constituição Federal de 1988; 3. Pluralismo jurídico: A co-municação entre direito e realidade na Terra das Línguas; 4. (In)Constitucionalidade e (in)competência: questões formais sobre a Lei Municipal nº 145/2002; Considerações fi nais; Referências.

Resumo: Com o advento da Constitu-ição Federal de 1988, o sistema jurídico brasileiro abriu seus olhos para a riqueza da diversidade cultural existente no país, reconhecendo a pluralidade de modos diferenciados de criar, fazer e viver e ga-rantindo proteção jurídica às distintas coletividades formadoras da sociedade nacional e suas práticas. A partir de tal inovação no modo de atuação do Estado foi possível surgir no município de São Gabriel da Cachoeira uma lei municipal que co-oficializou três línguas indíge-nas – Nheengatu, Tukano e Baniwa. Este trabalho pretende discutir brevemente as mudanças paradigmáticas do tratamento jurídico adotado no Brasil ao lidar com a pluralidade cultural aqui existente, o status atual do tema e, fi nalmente, a relevância e

Abstract: With 1988’s Federal Constitu-tion, Brazilian’s legal system has opened its eyes for the richness of the cultural di-versity existing in the country, recognizing the plurality of differentiated ways of cre-ating, making and living and guaranteeing juridical protection to the distinct collec-tives which helped forming national soci-ety and their practices. Through this new way of State action, it was possible to see the emerging of a local law which made three indigenous languages – Nheengatu, Tukano e Baniwa – co-offi cial to Portu-guese. This article aims briefl y discuss-ing the paradigmatic changes of Brazil’s juridical treatment towards the existing cultural plurality, current status of the is-sues and fi nally, the relevance and consti-tutionality the Law 145/2002, of São Ga-

* Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito Ambiental da Universidade do Estado do Amazonas (PPGDA-UEA). Bolsista FAPEAM.

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INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo proceder a uma breve análise da questão do pluralismo jurídico no estado contemporâneo brasileiro a partir de um caso concreto: a promulgação da Lei n.º 145/2002 no município de São Ga-briel da Cachoeira, Amazonas, que co-ofi cializou as línguas indígenas Nheen-gatu, Tukano e Baniwa.

O trabalho propõe-se a apontar a relevante mudança de paradigma que esta lei municipal representa em nosso ordenamento jurídico e, com ainda maior impacto, na realidade social dos grupos indígenas atingidos pelo espectro de sua regulação, imediatamente, e para as demais comunidades indígenas e grupos étnicos, por via oblíqua.

Contudo, antes, e parar melhor fazê-lo, mostra-se pertinente traçar uma breve retrospectiva histórica da atuação estatal para com os indígenas, através das políticas públicas implementadas e dos instrumentos normativos utilizados pelo Estado brasileiro ao lidar com estes sujeitos diferenciados até a promulga-ção da Constituição Federal de 1988.

Na seqüência, far-se-á uma leitura dos preceitos trazidos pela Consti-tuição Federal de 1988 que apontam os novos rumos da política indigenista brasileira, sua postura mais sensível à inegável diversidade cultural e plurali-dade étnica existentes na realidade social brasileira.

Desta feita, intenta-se demonstrar como esses princípios e preceitos emancipatórios constitucionais albergam a possibilidade explorada pela lei objeto deste artigo de reconhecer formalmente as línguas indígenas, utilizadas como ferramentas essenciais de comunicação e reprodução de modos especí-fi cos de criar, fazer, viver, conhecer o mundo e (re)conhecer-se, essenciais à

constitucionalidade da Lei n.º 145/2002, do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, enquanto espaço de proteção cultural e ampliação da dignidade indí-gena.

Palavras-chave: Línguas indígenas; plu-ralismo jurídico; Lei n.º 145/2002 do mu-nicípio de São Gabriel da Cachoeira, Ama-zonas.

briel da Cachoeira, Amazonas, as a space of cultural protection and improvement of indigenous peoples’ dignity.

Key-words: Indigenous languages; juridi-cal pluralism; Law 145/2002 of São Ga-briel da Cachoeira, Amazonas.

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sobrevivência de suas culturas.Uma das questões levantadas com relação à Lei n.º 145/2002 do mu-

nicípio de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, diz respeito à competência, ou a falta desta, do município para legislar sobre o assunto. Afora isso, o art. 13 de nossa Carta Maior relega à língua portuguesa o status de idioma ofi cial da República Federativa do Brasil e, neste aspecto, levanta-se, inclusive, a hipó-tese de inconstitucionalidade da lei, que será também analisada no transcorrer do texto, sem que se pretenda, contudo, alargar seus objetivos a uma discussão mais profunda de Direito Constitucional.

1. POMBAL ECOANDO NA POLÍTICA INDIGENISTA NACIONAL PRÉ- 1988

Desde a chegada dos colonizadores europeus ao Brasil, os povos indíge-nas foram sistematicamente subjugados, utilizados como mão-de-obra escra-va, braços, no sistema de produção baseado na monocultura, e aqueles que se opunham à dominação portuguesa eram programaticamente exterminados.

Muitos dos povos que conseguiram escapar do extermínio físico, não pu-deram resistir ao perecimento de suas culturas. Uma das formas encontradas pelo colonizador para facilitar o processo de “domesticação” dos indígenas, e assim ampliar sua utilização como mão-de-obra e a produtividade de suas plan-tações monocultoras era restringir suas práticas culturais, dentre elas a utiliza-ção de suas línguas (ALMEIDA, 2007, p. 18).

Para facilitar o controle e a comunicação com as populações indígenas, ao mesmo tempo em que paulatinamente invisibilizavam as línguas e demais práticas próprias dos nativos, os missionários incumbidos da tarefa de sua cate-quização e cooptação para a Coroa portuguesa, inseriram entre as diversas pop-ulações o uso do Nheegatu, ou língua geral.

Em meados do séc. XVIII, por determinação do diretório pombalino, mesmo o Nheegatu foi proibido, impondo-se a utilização do Português por to-dos os indígenas, como tentativa de eliminar defi nitivamente as demais línguas faladas no Brasil e aumentar as chances de sucesso do processo civilizatório dos “gentios” e de sua submissão ao Estado constituído e ao Príncipe.

Tal iniciativa não logrou êxito graças a um detalhe com o qual as auto-ridades não contaram: em resistência silenciosa “as línguas indígenas outrora proibidas mantiveram-se resistentes e vívidas, na vida cotidiana das aldeias, nos afazeres e nos segredos da vida doméstica” (ALMEIDA, 2007, p. 22), sobre-vivendo ao tempo e a pressões de toda sorte , alcançando o presente. Não sem

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que muitas delas se perdessem para sempre nos corredores da história nacional.História recheada de massacres, exclusões e omissões. Omissões como a

perpetrada pelo estado brasileiro, que mesmo após a transição para a forma de governo republicano, nunca corrigiu essa injusta proibição às línguas indígenas. Nas palavras de Alfredo Wagner B. de Almeida:

As constituições republicanas jamais desdisseram Pombal. A noção operacional de ‘povo’, de inspiração positivista, pressupunha uma unidade geográfi ca e lingüística, sob uma administração a mesma, cujo artefato de comunicação era a língua dominante, a mesma da sociedade colonial. (AL-MEIDA, 2007, p. 22)

Essa busca por uma homogeneização ideal, distinta e conformadora da reali-dade concreta que se apresentava diversifi cada e plúrima, dirigida à construção de uma identidade nacional fazia parte do ideário do governo republicano brasileiro, uma vez que “a identidade nacional tem como objetivo o direito ‘monopolista de traçar a fronteira entre o nós e o eles’” (SÁ, 2006, p. 15), e já não fazia parte das políticas do Estado Republicano o extermínio, ao menos explícito, dos in-dígenas que continuavam a ser “eles”. Dessarte, não podendo mais livrar-se ofi cialmente dos índios fi sicamente, aniquilando seus corpos, seu novo obje-tivo seria civilizá-los, integrá-los à sociedade nacional um a um, destruindo suas culturas e suas almas. Esta fora a estratégia encontrada pelo governo brasileiro para alcançar a almejada homogeneidade do povo, um dos tripés do Estado moderno.

O Código Civil de 1916 listava em seu art. 6º, II, o silvícola, termo car-regado de carga simbólica ideológica pejorativa, como relativamente incapaz para realizar atos da vida civil, sendo que no parágrafo único do mesmo artigo releva-se o propósito do Estado de cooptar os indígenas à sociedade estabelecida nos moldes do pensamento cartesiano ocidental . No mesmo sentido vem o art. 1º do Estatuto do Índio (Lei n.º 6.001/73), exibindo a meta de progressivamente integrar os índios à comunhão nacional , ou seja, inseri-los em nosso modelo de vida, apropriação e conhecimento do mundo.

Este modelo de pensamento e de relação com os grupos diferenciados que compõem o tecido social de nosso país guiou as práticas estatais até o fi m da década de 1980 quando se registrou formalmente, e justamente no ápice da pirâmide que ilumina nosso ordenamento jurídico, um novo rumo, acolhedor das diversidades múltiplas. Sobre o modelo de pensamento adotado pelo Estado até então, o Prof.º Fernando Dantas assim escreveu:

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Durante muito tempo, ou melhor, durante séculos, a racio-nalidade cartesiana, norteadora dos ideários político-esta-tais no Brasil, guiou-se pelo olhar míope da mirada etno-centrista e colonizadora ocidental, não encontrando nas ações, nas narrativas, nos modos de vida, enfi m, no pensar de indivíduos e povos nativos, algo importante, com quali-dades epistêmicas ou humanas para assim desqualifi car, por irracional ou folclórico, a complexidade das formas de vida e organização social de povos étnica e culturalmente diferenciados. (DANTAS, 2003, pp. 473-474)

2. O DIREITO À DIFERENÇA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

Trataremos de dois momentos da Constituição Federal de 1988 que representam uma mudança de paradigma no que tange ao pluralismo exis-tente na concretude de nossa sociedade, por muito tempo espoliado do re-conhecimento formal do Estado nacional.

Primeiramente, no capítulo dedicado à cultura, reconheceu-se a im-portância e abrigou-se de garantia protetiva estatal o patrimônio cultural nacio-nal, formado pelos bens de natureza material e imaterial, tomados individual-mente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira . Entre estes grupos encontram-se os indígenas que, por sua vez, e no segundo momento da mudança paradigmática citada, foram escolhidos como protagonistas de um capítulo es-pecial e exclusivamente dedicado a eles, dentro do qual lhes são reconhecidos sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além dos direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Os bens culturais peculiares aos grupos identitários litigantes, os “diferen-tes grupos formadores da sociedade brasileira”, somente alcançaram o status de pertencentes ao patrimônio cultural nacional na Constituição Federal de 1988, assim como passaram também a ser alvo da proteção constitucional que lhes fi cou ausente durante boa parte da história do país, apontando “para um novo momento da historicidade do direito no que diz respeito ao não ocultamento das múltiplas e plurais representações culturais dos povos formadores do tecido social e, conseqüentemente, da memória brasileira.” (DANTAS, 2006, p. 02)

Ainda no art. 216 da CF/88, em seu inciso II, foram incluídos entre os bens culturais os modos de criar, viver e fazer, que podem ser tomados como

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a base da diferenciação e auto-identifi cação de um povo. Ademais, garantem-lhes a dinâmica dos processos culturais, essenciais à sua sobrevivência fática, sendo complementarmente responsáveis pela criação, reprodução e renovação dos demais bens culturais. A proteção constitucional atribuída a esses bens é salutar quando interpretada como garantia de realização contínua no plano fáti-co, nunca no sentido de engessamento, petrifi cação, assegurando sua prática e a continuação do processo dinâmico de criação e recriação da cultura.

A diversidade cultural é uma característica dos agrupamentos humanos, seja analisando-se as diferenças entre indivíduos de uma mesma sociedade, ou essa em comparação as que lhe são exteriores. O processo de assimilação do di-verso, do diferente, do novo, e sua assimilação, reinterpretação e resignifi cação simbólica, mostra-se como um sinal de liberdade na determinação dialética dos rumos de sua história.

A diversidade e seu reconhecimento confi guram-se como concreções ontológicas de tamanha relevância na atualidade que no dia 20 de outubro de 2005, na Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educa-ção, a Ciência e a Cultura (Unesco) Unesco, foi celebrada a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais que, entre seus objetivos, destacou a proteção e promoção da diversidade cultural , o incentivo ao diálogo entre culturas, o reconhecimento da cultura para o desenvolvimento de todos os países e a reafi rmação do direito soberano de os Estados conser-varem, adotarem e implementarem as políticas e as medidas que considerem necessárias para a promoção e proteção da diversidade.

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, ao dispor sobre povos indígenas e tribais encarrega os Estados signatários, entre os quais se encontra o Brasil, de promover, entre outras coisas, a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais desses povos, respeitando a sua iden-tidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições. Reconhece assim a diversidade cultural dos povos indígenas e propugna a efeti-vação de seus direitos em consonância com suas referências simbólicas.

Pode-se perceber a sinergia entre a Constituição brasileira e o pensamen-to de organismos internacionais, e seus respectivos países membros, positivado nas convenções citadas, na busca de uma forma de diálogo entre a cultura oci-dental, por muito tempo, e ainda hoje, hegemônica, e os demais grupos étnicos, no caso os indígenas. Nas palavras de Fernando Dantas:

Neste sentido, o reconhecimento constitucional dos ín-dios, e de suas organizações sociais de modo relacionado, confi gura, no âmbito do direito, um novo sujeito indígena, diferenciado, contextualizado, concreto, coletivo, ou seja,

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sujeito em relação com suas múltiplas realidades socio-culturais, o que permite expressar a igualdade a partir da diferença e concretizá-la a partir do ‘diálogo intercultural.’ (DANTAS, 2003, p. 513)

Este diálogo multi e intercultural incorporado ao sistema jurídico pátrio permite novos campos de discussão e um novo campo de batalha por direitos, além de permitir a construção de categorias jurídicas diferenciadas, que fujam à tríade família, tradição e propriedade conformado ao espírito cartesiano posi-tivista norteador da sociedade ocidental como parâmetro de validade da ver-dade.

3. PLURALISMO JURÍDICO: A COMUNICAÇÃO ENTRE DIREITO E REALI-DADE NA TERRA DAS LÍNGUAS

O reconhecimento e a garantia constitucional reservados aos modos de criar, fazer e viver dos diversos grupos formadores da sociedade nacional per-mitem aos indivíduos e grupos diferenciados buscar alcançar a realização efe-tiva da dignidade e dos direitos humanos por seus próprios meios. Direitos estes que para Joaquín Herrera Flores, “non son outra cosa que la materialización concreta de las luchas por ‘el poder hacer’ y el ‘poder crear’” (FLORES, 2005, p. 12), e diz ainda mais o autor sobre o cultural:

(…) o lo que es lo mismo, lo humano - consiste en un con-tinuo proceso de ‘reacción’ frente a las realidades en que se vive. Es decir, frente a los conjuntos de relaciones que man-tenemos con los otros (…), con nosotros mismos (nuestro luchador sabe decir a los demás y, sobre todo, a sí mismo, la verdad, por más dura que sea), y con la naturaleza (…) (FLORES, 2005, p. 17)

Quando tratamos de grupos étnicos específi cos como os indígenas, trata-mos de povos que, diferentemente do que fora durante muito tempo propagado, de fato possuem história e conhecimentos vários sobre o mundo, diferentes daqueles das sociedades ocidentais, mas, nem por isso, menos ricos e dignos de reconhecimento. Esses conhecimentos acumulados diferem em vários aspectos, embora em um deles com maior nitidez: são transmitidos oralmente.

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Por isso mesmo, no art. 216, I, da CF/88, o legislador constituinte incluiu entre os bens de natureza imaterial formadores do patrimônio cultural brasileiro as formas de expressão, entre as quais podemos citar a língua, utilizada pelo homem como ferramenta de expressão, comunicação, (re)conhecimento e (re)produção dos seus modos de criar, fazer e viver. Ademais, reconheceu expressa-mente aos índios o direito às suas línguas , como que entendendo a necessidade de assegurá-las como forma de garantir-lhes a possibilidade de reproduzir sua existência física e espiritual.

Após séculos de imposição dos modos de vida ocidental aos indígenas, e de negação de suas características culturais enquanto representações simbóli-cas de formas diferenciadas de apreensão e relação com o mundo, o reconhe-cimento estatal do direito de utilizarem suas línguas em todas as instâncias de suas vidas inclusive nos espaços públicos e institucionalizados , alcançado pelos indígenas residentes no município de São Gabriel da Cachoeira com a lei nº. 145/2002 pode ser o marco inicial de uma bem-aventurada guinada fática da relação destes povos com o Estado e a sociedade brasileira. Como destacou o Prof. Alfredo Wagner de Almeida, “em suma, pode-se asseverar que os movi-mentos indígenas começam a desdizer o regimento pombalino, unindo o que ele procurou separar e levando em conta a diversidade cultural como um elemento estruturante da sociedade brasileira.” (ALMEIDA, 2007, p. 25)

O direito como espaço onde se diz a verdade tem um papel proeminente nos padrões comportamentais da sociedade, uma vez que a cultura vive um processo cíclico, “num vaivém contínuo” de retro-alimentação “ ad infi nitum.” (REISEWITZ, 2004, p. 85), do qual o direito faz parte, recebendo inputs da re-alidade ontológica e conformando-se a ela, ao mesmo tempo em que infl uencia a concretude fática e altera a cultura.

Ao promulgar esta lei, o município de São Gabriel da Cachoeira não ape-nas garantiu a todos os indígenas da região acesso digno aos serviços públicos através da comunicação em línguas dominadas por eles, mas também garantiu-lhes visibilidade e legitimidade perante o restante da comunidade. Essa assertiva pode ser confi rmada no relato de Edílson Martins Baniwa, indígena Baniwa graduado em Letras pela UFAM. Segundo ele, a Lei nº. 145/2002 trouxe para os não-indígenas “uma certa contribuição para que os mesmos pudessem com-preender, valorizar e respeitar a nossa cultura.” (BANIWA, 2007, p. 52)

Finalmente, podemos dizer que o esforço coordenado dos diversos gru-pos indígenas em São Gabriel da Cachoeira, objetivado na forma de movimento social, possibilitou a promulgação de uma lei inédita no ordenamento jurídi-co pátrio, capaz de reconhecer a pluralidade cultural e lingüística existente na região, possibilitando assim sua reprodução física e espiritual, enquanto socie-

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dades diferenciadas e dotadas de complexos e valiosos conhecimentos e formas de vida.

Essa conquista (u)tópica sucedida em um lugar específi co da Amazô-nia, tornada real graças à luta obstinada da população indígena local, reforça a importância dos espaços compartilhados enquanto instâncias de comunhão, vivência da socialidade, do ser/estar-junto-com (MAFFESOLI, 2004). Cabe citar também o pertinente comentário do geógrafo José Aldemir de Oliveira a respeito do lugar:

O lugar tem um tempo e um espaço que são pouco globais e estão prenhes de signifi cados. No lugar emerge a diferença e brota a luta que aparece como possibilidade de produzir uma nova história, de onde podem brotar reações que nos levam para outra percepção da história e encorajam a su-peração da práxis tradicional, abrindo lugar para a utopia e a esperança. Então a ‘história e os lugares seriam da nossa humanidade comum e não mais apenas dos dominantes’. (OLIVEIRA J. A., 2004, pp. 110-111)

A inegável pluralidade cultural existente na realidade cotidiana contami-na benefi camente o direito e o sistema jurídico que se abre a formas de práticas sociais diversas, acolhendo-as e transformando em leis sua práxis. É o caso de modelos de apropriação comunal de determinado bem natural no caso das Quebradeiras de Coco Babaçu, do compartilhamento da terra nos faxinais, com o padrão de vida errante e a relação com a terra dos ciganos, e com as diversas práticas culturais dos indígenas, entre outros.

O preâmbulo da Constituição Federal defi ne o Brasil como um Estado Democrático, pluralista e sem preconceitos, e defi ne ainda a dignidade da pes-soa humana como um de seus fundamentos, no art. 1º, III. Para se alcançar a plenitude deste princípio fundante é necessário que seu conteúdo seja com-preendido em consonância com as situações vivenciadas, levando em con-sideração as diferenças sociais, econômicas e culturais de grupos portadores de identidades que os diferenciem dos demais grupos e indivíduos no interior do Estado brasileiro. (SHIRAISHI NETO, 2006, pp. 27-28)

O conceito de pluralismo jurídico, outrora relacionado a práticas externas ao direito positivado estatal atravessa uma reformulação e passa a discutir a as-similação de práticas diferenciadas pelo sistema jurídico nacional. Nas palavras do Prof. Joaquim Shiraishi Neto:

Acesa a discussão em torno do pluralismo como valor

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fundamental de uma Constituição democrática, tem-se observado uma preocupação dos intérpretes do direito acerca da necessidade de se atentar para quem são e como se constituem os diversos sujeitos e grupos sociais no País. Os resultados desse procedimento apontam para uma construção de uma política de reconhecimento dos diversos grupos existentes, o que implica no reconhecimento formal de suas ‘práticas sociais’. (SHIRAISHI NETO, 2007, p. 72)

É certo afi rmar que a Lei n.º 145/2002 do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, que co-ofi cializou as línguas indígenas Nheengatu, Tu-kano e Baniwa, abriu um novo mundo de possibilidades na reivindicação e re-conhecimento de direitos diferenciados pelo Estado nacional. Ou, como obser-vou Ivani Ferreira de Faria:

Sem dúvida, esta iniciativa representa uma vitória dos po-vos indígenas do Rio Negro e de todo o Brasil na recon-quista de seus direitos, de suas culturas e sua autonomia de poder decidir sobre o próprio futuro conforme seus códigos e linguagens e visão de mundo específi cos. (FARIA, 2007, p. 57)

4. (IN)CONSTITUCIONALIDADE E (IN)COMPETÊNCIA: QUESTÕES FORMAIS SOBRE A LEI MUNICIPAL Nº 145/2002

Uma das questões levantadas com relação à lei objeto deste estudo diz res-peito à competência do município, ou sua falta, para legislar sobre o assunto. A Constituição Federal relega à língua portuguesa, em seu art. 13, o status de idi-oma ofi cial da República Federativa do Brasil, contudo, em nenhum momento refere-se à língua portuguesa como única língua do país.

A opção lógica pela língua portuguesa como idioma ofi cial de nosso Es-tado repousa no fato de que, por motivos históricos e políticos, a maioria da população nacional tem como primeira língua o idioma herdado de Portugal. As demais línguas faladas no território nacional, num total de quase 170, es-tão relacionadas a grupos diferenciados, habitantes de regiões específi cas, como o caso de São Gabriel da Cachoeira, o que demanda uma atuação legislativa própria dos municípios, pois não parece ser de interesse da União, ou mesmo dos estados, legislar sobre o reconhecimento e mecanismos de difusão e uti-lização de línguas utilizadas em espaços tão pontuais, cuja complexidade das

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relações intersubjetivas pode ser melhor captada por normas produzidas a partir da vivência dos grupos que ali habitam.

É possível visualizarmos uma lacuna quanto à competência constitucio-nal para legislar sobre questões lingüísticas. Não há expressão neste sentido no Texto Maior, e a partir daí uma interpretação sistemática deve ser feita, utili-zando-se de um exercício hermenêutico para preencher esta lacuna e chegar à competência municipal que permitiu ao legislativo de São Gabriel da Cachoeira promulgar a Lei nº 145/2002.

Uma grande inovação visualizada no programa normativo constitucional foi a inclusão de um capítulo dedicado à cultura e, dentro dele, no art. 216, o re-conhecimento dos bens imateriais portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira como constituintes do patrimônio cultural nacional, indo o constituinte originário ainda além, ao incumbir o Poder Público, com a colaboração da coletivi-dade, do dever de promovê-los e protegê-los.

Sob esse prisma, a língua como ferramenta essencial de comunicação e reprodução de modos específi cos de criar, fazer, viver, conhecer o mundo e (re)conhecer(se), demanda proteção imediata e de mesma sorte que os próprios po-vos indígenas que as utilizam recebem, sob pena de, perecendo aquela, estes venham a perder o ponto básico de (auto) identifi cação como grupo diferenciado dos demais, o que tornaria letra morta tudo o quanto lhes fora reconhecido pela CF/88 em seu art. 231.

Como forma de assegurar a continuidade da existência física e espiritual dos povos indígenas habitantes do município de São Gabriel, além de permitir-lhes buscar a plenitude de suas potencialidades na realização de sua dignidade humana, o projeto de co-ofi cializar as línguas indígenas Nheêgatu, Baniwa e Tukano está de acordo com o art. 30, I, que prevê ser de competência dos Mu-nicípios legislar sobre assuntos de interesse local. Esse interesse fi ca ainda mais claro quando se toma conhecimento do fato que, de acordo com estimativas, entre 77% (BRUNO, 2007, p. 33) a 95% (OLIVEIRA G. M., 2007, p. 45) dos habitantes da “Terra das Línguas”, de um total de 40 mil, é composta por indí-genas pertencentes a 23 diferentes etnias, e que grande parte destes indígenas é multilíngüe, dominando ao menos uma das três línguas co-ofi cializadas.

Vale ressaltar que a língua portuguesa não sofreu alteração em seu status de ofi cialidade no Município. O que se fez, em verdade, foi ampliar o espaço de atuação política nas diversas instâncias – institucional, ofi cial e intersubjetiva – da vida de seus habitantes, ao reconhecer a existência de falantes de outras lín-guas e assegurar-lhes o direito de compreender e se fazer compreender a partir de seus modos peculiares de ser, criar, fazer e viver, expressados através de suas

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línguas próprias.Nas palavras do presidente do STF, Gilmar Mendes, “aos Municípios é

dado legislar para suplementar a legislação estadual e federal, desde que isso seja necessário ao interesse local” (MENDES, COELHO, & BRANCO, 2008, p. 824). No caso, a legislação suplementar foi feita em face da Constituição Federal que somente delimitou uma situação geral, ao especifi car a língua por-tuguesa como o idioma ofi cial do país, sem descer à regulamentação dos casos concretos e plurais das diversas realidades locais ao redor do Brasil.

Além disso, o art. 23, III, CF/88 , aponta como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios proteger, entre outras coisas, bens de valor cultural. Ora, como bem cultural de valor inestimável, diga-se de passagem, a língua de um povo pode e deve ser alvo de proteção mu-nicipal, especialmente quando silentes o Estado e a União a respeito do assunto.

Ao reconhecer aos índios suas línguas , e não defi nir os parâmetros e limites dentro dos quais esse reconhecimento seria implementado, o legislador constituinte originário deixou uma permissão tácita para que a resolução fosse aplicada de acordo com o caso concreto, levando-se em consideração as carac-terísticas próprias da situação, e legislada por quem tivesse o interesse, no caso em estudo, o município de São Gabriel da Cachoeira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A promulgação da Lei n.º 145/2002 no município de São Gabriel da Ca-choeira, Amazonas, que co-ofi cializou as línguas indígenas Nheengatu, Tukano e Baniwa certamente representa uma mudança de paradigma na política estatal nacional e os precedentes inéditos abertos a partir deste ato registram-se como um marco na legislação infra-constitucional nacional ao colocar em prática a valorização da diversidade étnica e pluralística cultural.

A partir de preceitos trazidos pela Constituição Federal de 1988, o re-conhecimento estatal das práticas e modos de vida dos grupos diferenciados arma-os com uma série de ferramentas para a construção efetiva de sua digni-dade humana, calcada na liberdade dos indivíduos e das coletividades em ser, criar, fazer e viver, a partir de suas próprias referências, nas quais se identifi cam e se reconhecem.

Como visto ao longo do estudo, somente a partir de 1988, com a promul-gação da nova Carta Magna, tornou-se possível pensar num pluralismo jurídico apto a abraçar as diferenças e, num movimento expansivo, habilitar o sistema

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jurídico pátrio a se abrir a novas formas de regulação do coletivo, tendo como ponto de referência essencial a realidade social, a partir de e em razão de quê existe.

Essa transformação declara um fi m, ao menos formalmente, a uma in-visibilidade de toda a pluralidade cultural que não se alinhava aos padrões oci-dentais, e aos povos indígenas em especial, que durante séculos serviu como moldura à atuação estatal em nosso país, como pudemos perceber através de uma breve leitura de passagens do Estatuto do Índio e do Código Civil de 1916.

Em consonância com o reconhecimento e as garantias às culturas e mo-dos de viver indígenas inscritos na CF/88, a Lei n.º 145/2002 do município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, não poderia mostrar-se mais oportuna, demonstrando a preocupação do Município não só em legislar sobre um tema de extremo interesse e, portanto, competência local, como em fazer da letra de nossa Carta Maior uma construção viva e efetiva, e não mero grafi smo vazio em um pedaço de papel.

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Artigo recebido em: 01/06/2010Artigo aprovado para publicação em junho /2010.

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SUJEITOS INDÍGENAS E ESTADO NO CAMPO DA REGULAÇÃO JURÍDICA DOS CONHECIMEN-TOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVER-

SIDADE

Sheilla Borges Dourado *

Sumário: 1. Apresentação do campo. 2. Inovação tecnológica e valoração econômica dos conhecimentos tradicionais associados. 3. Novos bens, novos sujeitos de direitos. 4. Campo científi co e “defi nições legítimas”; Em resumo, para fi nalizar.

Resumo. A Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), de 1992, inaugurou um campo de debates acerca da proteção ju-rídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Os países signatários assumiram a responsabi-lidade realizar a a regulação jurídica dos conhecimentos de comunidades e povos tradicionais, inclusive os povos indíge-nas, que passaram a ser sujeitos de direi-tos econômicos, relativos à propriedade intelectual de seu patrimônio imaterial. Aqui, esse campo de debates é analisado a partir da teoria de Pierre Bourdieu, consid-erado um lugar de disputas em que agentes e agências interagem em relações de força e de dominação. O objetivo desse artigo é demonstrar a complexidade desse tema que reúne questões ambientais e econômi-cas, de direitos humanos e de propriedade intelectual, em torno dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.

Palavras-chave: conhecimentos tradicio-nais; povos indígenas; propriedade intelec-tual; patrimônio imaterial.

Abstract. The Convention on Biological Diversity (CBD), in 1992, opened a fi eld of discussion on legal protection of tradition-al knowledge associated with biodiversity. The signatory countries have taken the re-sponsibility to promote in their territories the legal regulation of knowledge held by traditional communities and peoples, in-cluding indigenous peoples, who became subjects of economic rights related to in-tellectual property of their intangible heri-tage. Here, this fi eld of debates is analyzed based on the theory of Pierre Bourdieu, considered a place of disputes in which agents and agencies interact in relations of power and domination. The aim of this paper is to demonstrate the complexity of this issue that brings together environmen-tal and economic issues, human rights and intellectual property around the traditional knowledge associated to biodiversity.

Key-words: traditional knowledge; indige-nous peoples; intellectual property; intangible heritage.

* Advogada. Pesquisadora do Núcleo Sociedades e Culturas Amazônicas (NCSA/CES-TU/UEA), do Projeto Nova Cartografi a Social da Amazônia (PNCSA) em Manaus, AM. Mestre em Direito Ambiental (PPGDA/UEA).

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1 APRESENTAÇÃO DO CAMPO

A regulação jurídica do acesso e do uso de patrimônio genético e de conhe-cimentos tradicionais associados à biodiversidade é terreno de variadas dispu-tas protagonizadas por uma multiplicidade de instituições e indivíduos, enti-dades governamentais, organizações não-governamentais, movimentos sociais, setores industriais e pesquisadores. Estar ciente dessa multiplicidade de agentes sociais, defensores de interesses da mesma forma diversos, consiste num dos pressupostos para a compreensão do processo de regulação jurídica em curso.

Adoto a “teoria do campo” de Pierre Bourdieu como instrumento de análise desse processo e através dela pretendo esboçar a constituição desse es-paço de lutas travadas no ambiente político em que se dá a discussão em torno da criação de normas jurídicas reguladoras do acesso e do uso de conhecimen-tos tradicionais associados à biodiversidade. Trata-se, portanto, de um campo político, que não exclui a interferência de outros campos, conforme a teoria de Bourdieu. A construção do campo se justifi ca, pois permite enxergar as diferen-tes posições e os limites de validade das diferentes tomadas de decisão (BOUR-DIEU, 2004, p. 45).

O campo é um mundo social composto por agentes – indivíduos e insti-tuições – os quais ocupam posições que dependem do seu capital simbólico. Os agentes desenvolvem estratégias que dependem elas próprias, em grande parte, dessas posições ocupadas (BOURDIEU, ibid., p. 29). Para o sociólogo, as relações estabelecidas no campo, caracterizam-se pela força e pela dominação. Tais relações são objetivas e dinâmicas e encontram-se desequilibradas, detidas conforme a medida do capital simbólico de que dispõe cada um dos agentes (ou agências). O campo é o lugar em que os agentes nele envolvidos encontram-se em posição de concorrência.

A estrutura do campo num dado momento é determinada pela distribuição de capital simbólico (BOURDIEU, ibid, p. 22-24). Em sendo dinâmicas as re-lações que se estabelecem entre os agentes, as posições dos mesmos podem variar constantemente. Tudo é relacional. Aliás, para Bourdieu, no conjunto que constitui o sistema de desvios e desníveis que caracteriza o campo, as agências e os agentes nada produzem senão relacionalmente, por meio do jogo de oposições e distinções (BOURDIEU, 2007, p. 179)

Bourdieu identifi ca variados tipos de campos, como universos particu-lares em que os agentes produzem, reproduzem e difundem princípios e re-gras específi cas. Os campos científi co, artístico, literário, jurídico, político, econômico, intelectual, dentre outros, são assim, espaços regidos por regras próprias. O campo deste modo entendido constitui um microcosmo inserido no

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macrocosmo (o conjunto da sociedade), com o qual mantém relativa autonomia (BOURDIEU, 2004, p. 20).

No campo político, são gerados produtos políticos, problemas, pro-gramas, análises, comentários, conceitos e acontecimentos, cuja compreensão exige do político uma preparação especial. De acordo com Bourdieu, em pri-meiro lugar, ele precisa adquirir um corpus de saberes específi cos, composto por teorias, problemáticas, conceitos, tradições históricas e dados econômicos, que são produzidos e acumulados pelo trabalho político dos profi ssionais do presente e do passado. O domínio de certa linguagem e de certa retórica política, para as ocasiões de tribuna e de debate, também faz parte desse conjunto de saberes necessários para a atuação no campo. Essas competências técnicas tam-bém compõem o capital simbólico do agente (BOURDIEU, 2007, p. 169).

O campo político é o lugar de concorrência pelo poder que se faz por intermédio de uma concorrência pelo monopólio do direito de falar e de agir em nome de uma parte ou da totalidade de representados. É o espaço em que apare-cem os representantes, os delegados e os mandatários, destinatários de poderes outorgados pelo grupo representado e que fazem esse grupo existir no campo político, uma vez que o personifi ca (BOURDIEU, 2005, p. 77). Para Bourdieu, nos espaços mediados, os cidadãos comuns (que ele denomina “profanos”) es-tão reduzidos à condição de “consumidores” dos produtos políticos gerados pe-los profi ssionais, afastados que estão do lugar de produção política. Para ele, o porta-voz - que também chama de mediador ou delegado -, apropria-se não só da palavra desse grupo mas, na maioria dos casos, do seu silêncio (BOURDIEU, 2007, p. 185). A questão da mediação e da representação é essencial no estudo sobre o que se pode entender hoje em dia por participação de povos e comuni-dades tradicionais nesse campo político.

Assim, na tentativa de esboçar uma descrição do campo em que se discute a regulação jurídica do conhecimento tradicional associado, destaco primeira-mente, as agências do Estado. Inúmeras agências governamentais estão nele presentes, a exemplo dos órgãos diretamente vinculados ao poder executivo federal, os ministérios e a Casa Civil da Presidência da República, as entidades vinculadas ao governo federal com fi nalidades específi cas, como o Instituto Na-cional de Pesquisas da Amazônia (INPA/MCT) e a Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ/MS), dedicados à pesquisa científi ca. Ainda vinculado à Adminis-tração federal, destaca-se o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), voltado para a política de propriedade intelectual e a SUFRAMA, superin-tendência fomentadora da Zona Franca de Manaus que administra o Centro de Biotecnologia da Amazônia (CBA), em Manaus. Dentre as agências governa-mentais estaduais no Amazonas, não se pode deixar de destacar a recém-extinta

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Fundação Estadual dos Povos Indígenas do Amazonas (FEPI), voltada para a elaboração e execução de políticas indigenistas no estado e hoje substituída por uma secretaria estadual. Tem ainda relevo a atuação da Secretaria Estadual de Ciência e Tecnologia (SECT) e da Fundação de Amparo à Pesquisa no Amazo-nas (FAPEAM), no que diz respeito ao fomento à ciência e à tecnologia. Essa fundação também é responsável pelo programa de bolsas de estudos a alunos in-dígenas. Juntamente com a Universidade do Estado do Amazonas, a FAPEAM está envolvida na formação de estudantes indígenas, com o objetivo de proteção da cultura e dos saberes dos diversos povos que compõem a população do Ama-zonas.

Todos os órgãos e entidades mencionados têm adotado políticas de valo-rização da inovação tecnológica, especialmente na área da biotecnologia.

Fora do âmbito governamental, os agentes e agências são ainda mais nu-merosos e diversos. O setor da indústria biotecnológica dedicada à produção de alimentos, de cosméticos e de fármacos é controlado por grandes empresas. Elas dominam os mercados de produtos e processos com destinação específi ca, obtidos através de aplicação tecnológica com a utilização de sistemas biológi-cos, organismos vivos ou derivados (Convenção sobre Diversidade Biológica - CDB, art. 2). Nesse contexto, as implicações da regulação jurídica sobre o exercício da propriedade intelectual, especialmente as patentes, despertam grande interesse do setor industrial.

O setor acadêmico também faz parte desse campo político, composto por agentes vinculados às instituições de ensino e pesquisa. No Estado do Amazo-nas, destacam-se as universidades públicas federal e estadual, UFAM e UEA, respectivamente, sendo que esta possui programa de formação e de educação indígena, e as faculdades privadas, como a FUCAPI, que oferecem cursos em biotecnologia. O INPA, já mencionado, tem sede em Manaus e na condição de instituto nacional de pesquisa, vinculado ao Ministério de Ciência e Tecnologia, tem sua missão voltada para os interesses do Estado brasileiro na Amazônia.

As organizações da sociedade civil distinguem-se enormemente entre si. Assumem posição de relevância as grandes ONGs socioambientais, como a ACT-Brasil, ramifi cação da Amazon Conservation Team (ACT), dos Estados Unidos, e o Instituto Socioambiental (ISA), experiente em trabalhos e pesquisas junto a povos e organizações indígenas . Destaca-se nesse campo uma organiza-ção não-governamental indígena especializada em assessoria técnica sobre pro-priedade intelectual a povos indígenas, qual seja, o Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual (INBRAPI).

As mobilizações e as formas organizativas de que se utilizam os povos in-dígenas e as comunidades tradicionais para a defesa de seus interesses também

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são diversifi cadas. Esses agentes sociais têm reafi rmado a sua diferença cultural e étnica perante os outros grupos sociais e lutado em favor da garantia do seu modo de vida através da mobilização social. Na Amazônia, além dos indígenas, os piaçabeiros, as quebradeiras de coco babaçu, os pescadores e os quilombolas, entre tantos outros, constituem grupos humanos diferenciados que se autode-nominam tradicionais . O Amazonas possui a maior população indígena do país e nesse estado estão sediadas importantes organizações de representação políti-ca, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), de âmbito regional e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), de âmbito estadual, com sede em São Gabriel da Cachoeira (AM).

Todas essas agências brevemente apresentadas estão posicionadas no campo político em que se discute a regulação jurídica do conhecimento tradi-cional associado à biodiversidade.

Os povos indígenas brasileiros estão muito longe de constituir uma popu-lação homogênea. O direito à diversidade cultural e à pluralidade étnica tem sido encarado como uma das faces do direito à dignidade humana (SHIRAISHI NETO, 2008) e vem sendo afi rmado reiteradamente no discurso do movimento indígena, amparado por documentos internacionais de direitos humanos. A des-peito da diversidade de agentes sociais indígenas e da diversidade das formas organizativas que eles adotam para mobilizar-se na luta por direitos, há um con-senso aparente no discurso do movimento indígena acerca dos posicionamen-tos em torno da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Esse discurso é dinâmico e, uma vez caracterizado por relativa fl exibilidade, cria as condições de força para o embate com os outros agentes que se encontram no campo.

Para Miaille, os discursos são produzidos pelos homens com o fi m de realizar uma comunicação social e compreender os fenômenos que os envolvem e os assaltam. O autor entende por discurso “um corpo coerente de proposições abstratas implicando uma lógica, uma ordem e a possibilidade não só de existir mas, sobretudo, de se reproduzir, de se desenvolver, segundo leis internas à sua lógica. Este discurso diz-se abstrato no sentido em que é formulado com noções ou conceitos e graças a métodos de raciocínio, todos eles marcados pela abstra-ção” (MIAILLE, 1994, p. 33).

Segundo o autor, múltiplos são os discursos que coexistem. Sobrepõem-se e competem entre si no seio da sociedade. Assim, estamos cotidianamente sujei-tos à infl uência de diversos discursos: religioso, fi losófi co, científi co, econômi-co e ambiental. Esses discursos se articulam uns com os outros, de modo que não é possível traçar nenhuma fronteira entre eles. A par dessa multiplicidade,

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no entanto, cada discurso teria, para Miaille, uma vocação hegemônica, ou seja, uma “vocação para falar de tudo, para dar uma interpretação global da vida so-cial” (MIAILLE, ibid. p. 33). É de se observar que os discursos não se separam rigorosamente entre si. Há sobreposições e interseções entre os mesmos. O que o autor pretende dizer é que não há discurso exclusivamente político, religioso ou econômico, mas que os discursos se interpenetram, mantendo, no entanto, uma certa “vocação hegemônica”, que serve como fator de aglutinação de opiniões em torno de uma causa. A separação apenas é válida aqui para esclarecer o que Miaille compreende por discurso: um conjunto de proposições abstratas, vinculadas por uma determinada coerência e lógica interna. Aqui o discurso é entendido como uma expressão de um grupo ou setor da sociedade.

No entanto, adoto aqui um conceito mais abrangente, concebido por Mi-chel Foucault, para quem o discurso consiste num jogo estratégico. O discurso não é apenas aquilo que se traduz nas falas e nas expressões, as lutas ou os sistemas de dominação, mas confunde-se com o próprio poder. Cada agente ou agência almeja a hegemonia do seu discurso no campo político (FOUCAULT, 1996, p. 10).

Bourdieu alega que a força de um discurso depende menos das suas pro-priedades intrínsecas do que da força mobilizadora que ele exerce. Quer dizer com isso que a força de um discurso depende mais da medida que ele é reconhe-cido por um grupo numeroso e poderoso do que propriamente de seu conteúdo. A força do discurso é atribuída conforme o seu poder de mobilização, legitimada de acordo com o maior número de pessoas que nele se reconhecem (BOUR-DIEU, 2007, p. 183).

Estamos tratando de um campo político em que se discute a regulação ju-rídica de uma categoria recente de bens jurídicos, os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Aqui, a CDB é considerada um rito de passagem dos saberes tradicionais para o mundo jurídico: uma passagem da condição de folclore , de “patrimônio da humanidade” ou de um conhecimento de domínio público, para a condição de informação , bem imaterial com potencial econômi-co. Ocorre que as tentativas de enquadrar esse novo bem ao sistema de proprie-dade intelectual, como se imaginou em princípio, parece ensejar muito mais problemas que soluções.

O Estado representado pelas suas agências ocupa lugar privilegiado nesse campo político. Ele é possuidor de um “metacapital” e assume a posição de maior concentração e exercício do poder e da violência simbólicos (BOUR-DIEU, 1997, p. 107). O Estado é o produtor do direito e conta com este instru-mento para exercer a dominação. Nas palavras de Bourdieu:

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O Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico, concentração que, enquanto tal, consti-tui o Estado como detentor de uma espécie de metacapital, com poder sobre os outros tipos de capital (que vai junto com a construção dos diversos campos correspondentes) leva, de fato, à emergência de um capital específi co, pro-priamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos es-pecífi cos de capital, especialmente sobre as taxas de câm-bio entre eles (e, concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores). Segue-se que a construção do Estado está em pé de igualdade com a construção do campo do poder, entendido como o espaço de jogo no interior do qual os detentores de capital (de diferentes tipos) lutam par-ticularmente pelo poder sobre o Estado, isto é, sobre o capi-tal estatal que assegura o poder sobre os diferentes tipos de capital e sobre sua reprodução (notadamente por meio da instituição escolar) (BOURDIEU, 1997, p. 99).

Esse mesmo Estado, além da função de regulador, de produtor de normas jurídicas vinculantes, é também interventor na economia, tomando medidas de estímulo, de correção e de controle da economia de mercado. Aliás, desde o surgimento da chamada sociedade de mercado no século XVIII, a manutenção da mesma depende da intervenção estatal (POLANYI, 1980).

A seguir, apresento uma breve descrição do contexto econômico em que se dá o processo atual de regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais as-sociados à biodiversidade, no qual o Estado aparece como um “acelerador” da economia.

2 INOVAÇÃO TECNOLÓGICA E VALORAÇÃO ECONÔMICA DOS CONHECI-MENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS

Na década de 80, as imagens de desmatamento acelerado da Amazônia alarmaram o mundo todo . As queimadas representavam a perda da riqueza bi-ológica da fl oresta tropical antes mesmo que ela fosse estudada e conhecida. Segundo Laymert Garcia Santos, os especialistas - biólogos, botânicos e zoólo-

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gos – passaram então a advertir que, além dos valores científi co, estético e ético da biodiversidade, sua perda afetava imediatamente o bem-estar material das pessoas em toda parte. Dessa forma, foi construída a idéia da utilidade da bio-diversidade. Segundo o autor, uma dessas “utilidades” dizia respeito às pos-sibilidades de tornar a fl oresta uma fonte de riqueza farmacológica, tendo em vista que um quarto dos produtos vendidos nas farmácias é fabricado a partir de materiais extraídos de plantas tropicais. Assim, nas palavras do sociólogo, “a ênfase no valor medicinal da biodiversidade tornou-se uma constante nas advertências dos experts” (SANTOS, 2006, p. 18).

A discussão atual sobre conhecimentos tradicionais associados à biodi-versidade no Brasil e no mundo tem priorizado como objeto aqueles conheci-mentos que interessam principalmente às indústrias farmacêutica, cosmética e alimentícia, conhecimentos que são passíveis de geração de patentes para essas indústrias. Nesse contexto, os saberes dos pajés e dos xamãs sobre plantas de cura e de efeito terapêutico passam a ser “informações que se tornam merca-dorias num circuito de trocas. De fato, o exemplo mais difundido de utiliza-ção dos conhecimentos tradicionais associados é o farmacológico, que se tornou senso comum nos diversos discursos que tratam desse tema.

Um resultado da CDB foi a mudança sensível no tratamento jurídico dos conhecimentos tradicionais, na medida em que atribui aos “conhecimentos, inovações e práticas” o status de bem jurídico. A partir da CDB, os conhecimen-tos tradicionais associados passaram a ser vistos e reconhecidos como parte do patrimônio cultural imaterial de povos e comunidades tradicionais.

Assim, os conhecimentos tradicionais, de um modo geral, antes encarados como expressão folclórica e de domínio público, foram transformados em bem jurídico, com todas as implicações dessa “passagem”, principalmente econômi-cas. A esse respeito, observa Rezende que, até poucas décadas atrás, a polêmica sobre os conhecimentos tradicionais eram travadas em entidades como a ONU e a OMC “sob a eurocentrista denominação de folklore” (REZENDE, 2006, p. 9). Nesse sentido, é de se observar ainda que o Comitê Intergovernamental espe-cializado para tratar de patrimônio genético e conhecimentos tradicionais asso-ciados na OMPI é denominado “Comitê Intergovernamental sobre Propriedade Intelectual e Recursos Genéticos, Conhecimentos Tradicionais e Folclore”.

Com a CDB, tanto o patrimônio genético quantos os saberes a ele re-lacionado são tratados como recursos, integrados à dinâmica do mercado. A lógica da repartição de benefícios é a da permuta: se esses grupos tradicionais contribuem com seus saberes para alcançar os objetivos traçados na Convenção, quais sejam, a “conservação da biodiversidade” e a “utilização sustentável de seus componentes”, nestes incluídos os recursos genéticos, são-lhes atribuídos

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direitos de receber benefícios decorrentes dessa contribuição. Um dos pontos mais polêmicos acerca da repartição de benefícios diz respeito às condições de sua realização. Como já foi sublinhado, preconiza a CDB que ela deve ser “justa e equitativa”.

Não se pode perder de vista que tanto a repartição de benefícios quanto o consentimento prévio fundamentado, elementos condicionantes da legalidade do acesso e do uso de conhecimentos tradicionais associados, vêm sendo pensa-dos segundo a lógica do contrato no sistema de propriedade intelectual. O con-trato está pautado por um conjunto de normas jurídicas criadoras de artifi ciali-dades que atende aos anseios das sociedades de mercado do capitalismo global.

Seguindo o pensamento de Polanyi, Sádaba lembra que a terra, o trabalho e o dinheiro, após serem transformados em mercadorias fi ctícias, foram coisi-fi cados sob relações técnicas e impessoais de forma que todo o seu rastro social foi ocultado, no fenômeno denominado por Marx de fetichização da mercadoria (SÁDABA, p. 79, 2008).

Os saberes tradicionais estão sendo enquadrados no sistema jurídico de propriedade intelectual, implicitamente como resultado do trabalho intelectual coletivo de povos indígenas e comunidades tradicionais, capazes de traduzir-se em inovação tecnológica.

O Brasil, assim como outros países capitalistas, seguiu o padrão norte-americano no qual o Estado assume a responsabilidade de fomentar a pesquisa básica, considerada aquela sem fi ns econômicos . O constituinte de 1988 dedi-cou capítulo exclusivo à ciência e tecnologia, destacando o papel prioritário do Estado na produção de ciência básica (art. 218, caput e parágrafos). Ainda de acordo com essa divisão do trabalho cientifi co, às corporações, ou empresas, caberia realizar o desenvolvimento tecnológico. No momento atual, o fomento estatal da inovação tecnológica tem ensejado a formação de inúmeras parcerias entre agências estatais brasileiras e organizações produtivas para a geração de inovações tecnológicas.

Inovação é uma categoria defi nida pela Lei n. 10.973/04, conhecida como Lei da Inovação. Pela defi nição legal, consiste na “introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo ou social que resulte em novos produ-tos, processos ou serviços” (art. 2º, inc. IV). Essa idéia de inovação, portanto, corresponde à novidade aplicada ao ambiente produtivo, cujo resultado se apre-senta no mercado sob a forma de produtos ou processos.

A Lei de Inovação é uma iniciativa estatal que tem a fi nalidade de aproxi-mar a academia do setor produtivo. O instrumento legal pretende coordenar os esforços das Instituições Científi cas e Tecnológicas (ICTs) e das empre-sas, através do estabelecimento de regras para o desenvolvimento tecnológico

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conjunto, o que envolve a disciplina da distribuição de benefícios e das por-centagens relativas ao uso de inovações tecnológicas resultantes dessa parceria. Segundo o discurso estatal, a lei visa estimular as pesquisas tecnológicas con-juntas, aproveitando a grande quantidade de recursos humanos especializados encontrados nas universidades brasileiras, que constituem um capital intelectual não convertido em desenvolvimento tecnológico. Dessa forma, mais do que nunca, o produto da ciência parece estar cada vez mais inserido no circuito das trocas de mercado, na forma de tecnologia.

Além das ICTs, são relevantes nesse processo as entidades de fomento a elas vinculadas, quais sejam, as fundações públicas responsáveis pelo fi nan-ciamento de projetos e apoio de iniciativas de pesquisa científi ca e tecnológica, como FINEP, CAPES e CNPq.

Em todo o Brasil, realizam-se encontros e fóruns de discussão sobre pro-priedade intelectual e inovação, com o apoio de entidades e órgãos estatais, federais e estaduais, a exemplo do FORTEC, dos eventos da REPICT e dos seminários da Rede Norte de Propriedade Intelectual, Biodiversidade e Conhe-cimento Tradicional (Rede Norte PIBCT) . Tem-se, nesses encontros, a con-strução do que é designado por “ideologia da inovação” (SÁDABA, ibid., p. 85).

Consciente do potencial econômico das suas reservas biológicas, vistas como provedoras de matéria-prima da promissora indústria biotecnológica, o governo federal brasileiro declarou a biotecnologia como área de especial in-teresse nacional, colocando-a em posição de destaque no Plano de Aceleração do Crescimento do Brasil (PAC), lançado em janeiro de 2007 . A regulação ju-rídica do acesso e uso de recursos genéticos e de conhecimentos tradicionais as-sociados à biodiversidade aparece como medida legislativa prioritária no Plano de Ciência, Tecnologia e Inovação para o Desenvolvimento Nacional (PCT&I).

O interesse crescente pelo desenvolvimento da biotecnologia no contexto do PAC se faz sentir principalmente na Amazônia. O Brasil possui o território mais extenso coberto pela fl oresta amazônica, considerada o reservatório natu-ral mais importante do mundo . O Decreto federal n. 6.041/2007 dá suporte jurídico ao PCT&I instituindo a Política de Desenvolvimento da Biotecnologia . Essa visão é refl etida também na política pública estadual do Amazonas. O estado tem a peculiaridade de apresentar a maior extensão territorial de fl oresta amazônica no país, possuindo mais de 90% de cobertura vegetal. Além da rique-za natural representada pela diversidade biológica, o Amazonas também abriga enorme diversidade social e, portanto, cultural. Aqui vivem diversos povos indí-genas e comunidades tradicionais, com modos de vida próprios, culturalmente diferenciados. O estado possui a maior população indígena do Brasil: são

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aproximadamente 130.000 indivíduos de 62 povos de etnias distintas, falando 11 línguas nativas.

O Amazonas também foi o primeiro estado brasileiro a editar uma lei estadual de inovação tecnológica. Os esforços do governo federal e estadual em parceria para o desenvolvimento da biotecnologia têm se concentrado recente-mente na implantação de política industrial voltada à produção de biocosméti-cos com matéria-prima amazônica no Pólo de Manaus . Essas iniciativas têm movimentado não apenas as indústrias de cosméticos locais e regionais, inclu-sive com a realização de feiras de exposições, mas também provocado a criação de cursos técnicos e universitários em áreas que envolvem biotecnologia, como a cosmetologia.

Observa-se que os recursos genéticos e os conhecimentos tradicionais associados estão no centro das discussões sobre o desenvolvimento tecnológico do país. A Convenção sobre Diversidade Biológica reconhece os “conhecimen-tos, inovações e práticas” dos povos indígenas e comunidades tradicionais e lhes atribui direitos coletivos sobre esse patrimônio cultural imaterial. A referência às inovações realizadas por povos e comunidades tradicionais pode indicar uma relativização do preconceito histórico contra os povos indígenas e comunidades tradicionais acerca da sua capacidade inventiva. Além disso, essa classifi cação dos saberes tradicionais indica que a “tradicionalidade” de que se fala não é estática, mas refere-se a uma situação dinâmica que coaduna com a idéia de inovação.

Porém, considerando o caráter econômico da convenção internacional, vale lembrar que esse reconhecimento tem o objetivo de aproximar as inovações dos grupos tradicionais da inovação tecnológica almejada pelo capitalismo, ob-jeto de proteção jurídica através do sistema de propriedade intelectual.

Nesse sentido, novos sujeitos de direitos surgem a partir da CDB como proprietários em potencial, em decorrência do surgimento de novos bens jurídi-cos no sistema capitalista global. Com a discussão sobre a regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados, esses novos sujeitos coletivos de di-reitos, como os povos indígenas, passam a lutar por um lugar no campo político através de suas representações.

3 NOVOS BENS, NOVOS SUJEITOS DE DIREITOS

As imagens dos sujeitos e dos povos indígenas feitas pela sociedade não-indígena, ainda hoje, são permeadas de diversos preconceitos e ainda remetem ao “índio” selvagem, primitivo, e além de tudo, genérico . A legislação indigenis-

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ta ao longo do século XX contribuiu para a construção dessa imagem, evidenciando a situação de tutela ofi cial dos sujeitos indígenas até a Constituição de 1988.

Comunidades e povos tradicionais, nos seus modos particulares de viver, concebem idéias inovadoras e produzem invenções, resultados do intelecto, fru-tos da observação e da experimentação, ainda que não voltadas para a aplicação industrial ou para o mercado. No entanto, a capacidade inventiva dos grupos tradicionais e dos povos “primitivos” foi reiteradamente negada pela história e pelo próprio direito. Suas inovações foram, por muito tempo, negligenciadas e vistas como meras descobertas provocadas pelo acaso.

Para o jurista Tinoco Soares, apenas o homem “civilizado” poderia ser um gênio. Em seu livro intitulado Tratado de Propriedade Industrial, de 1998, o autor apresenta sua visão acerca da inventividade humana desde a pré-história:

A princípio, portanto, o homem nada mais fez do que “descobrir”, ou melhor, apenas e tão-somente encontrar para consumir, utilizar ou mesmo adaptar. Ao depois, com-binando uns e outros elementos foram resultando outros tantos que nada mais eram do que, ainda, “descobertas”, posto que concernentes ao simples fruto do acaso, uma vez que não havia nada em profundidade ou mesmo sob crite-riosa investigação (SOARES, 1998, p. 46).

Soares afi rma que o século XVII marca o começo da “ciência moderna”, “que só então entra no caminho verdadeiro, servida por uma série de homens eminentes, de autênticos gênios” (SOARES, ibid., p. 32). Assim, sob o seu pon-to de vista, apenas a “ciência moderna” era capaz de produzir invenções:

Quando, no entanto, a pesquisa, o ensaio, o teste, chegava a um resultado prático, pela junção de elementos conhe-cidos ou não, estava realizada a sua “invenção”. Esta, de-pois de feita em pequenas, médias ou grandes quantidades, possibilitava a introdução de melhoramentos, inovações ou aperfeiçoamentos (SOARES, 1998, p. 47).

Lévi-Strauss discorda veementemente da idéia do jurista, para quem “ao homem moderno estariam reservadas as fadigas do trabalho e as iluminações do gênio” (SOARES, ibid, p. 47). Para ele, a explicação do nascimento das in-venções já feitas pelo acaso é, no mínimo, preguiçosa. Lembra que comumente é encontrada nos tratados de etnologia a noção de que o homem teria vivido primeiramente numa espécie de “idade de ouro tecnológica”, em que as inven-

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ções eram colhidas com a mesma facilidade que os frutos e as fl ores. Segundo Lévi-Strauss, esses tratados atribuem, por exemplo, o conhecimento do fogo ao acaso do raio ou ao incêndio na mata; e a origem da cerâmica ao esquecimento da bola de argila perto do forno (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 352).

Para o antropólogo, tal forma de excluir o ato inventivo desses grupos, oculta a complexidade dos procedimentos indispensáveis à fabricação de uten-sílios desde a pré-história, que envolve a necessidade de conhecimento vasto de um conjunto de noções variadas sobre o ambiente, bem como sobre os materiais e os processos mais adequados . Lévi-Strauss argumenta que nenhum período ou cultura é absolutamente estacionário em termos de invenções técnicas. “To-dos os povos possuem e transformam, melhoram e esquecem técnicas sufi ci-entemente complexas para permitir-lhes dominar seu meio; sem o que já teriam desaparecido há muito tempo” (LÉVI-STRAUSS, ibid., p. 357).

As “comunidades locais” e as “populações indígenas” com “estilo de vida tradicional” aparecem como sujeitos de direitos relacionados ao seu patrimônio imaterial coletivo na Convenção sobre Diversidade Biológica em 1992. No en-tanto, até então, desde a assinatura da Convenção de Paris para a Proteção da Propriedade Industrial em 1883, os povos indígenas e as comunidades tradicio-nais jamais fi guraram como sujeitos de direitos de caráter econômico nos trata-dos, acordos e convenções internacionais sobre propriedade intelectual. Seus conhecimentos foram sempre considerados de domínio público e por essa razão não ensejavam direitos de propriedade intelectual sobre produtos ou processos industriais obtidos a partir deles.

Caldas entende que são esses “novos bens”, ou seja, o patrimônio gené-tico e os conhecimentos tradicionais associados, que condicionam a abertura do sistema jurídico para “novos sujeitos”. A autora ressalta que o fato de as comunidades tradicionais passarem à posição de sujeitos de direito implica na possibilidade de que elas passem a manter relações jurídicas como titulares de direitos, ou seja, como proprietárias, podendo dispor de bens como lhes aprou-ver (CALDAS, 2001, p. 5).

Assim, para Caldas, ao contrário do que se poderia supor, a construção de novos bens jurídicos antecede, lógica e cronologicamente, a constituição de um novo sujeito de direito (CALDAS, ibid., p. 81). Nas palavras da jurista,

A ‘descoberta’ tardia da contribuição das comunidades tradicionais na preservação, conservação e utilização sus-tentável da biodiversidade e, principalmente, a comprova-ção do potencial do conhecimento tradicional destas co-munidades para utilizações terapêuticas e medicinais, vão

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ser olhadas pelo mercado como mais uma possibilidade de exploração comercial e obtenção de lucros. De um mo-mento para o outro, portanto, os saberes de comunidades e povos ancestrais tornaram-se mercadoria. Mediante um es-forço teórico e legislativo de adaptação, redimensiona-se o sistema jurídico para que essas mercadorias tornem-se bens jurídicos passíveis de regulação segundo o sistema propri-etário (CALDAS, Ibid., p. 4)

Seguindo esse pensamento, Shiraishi Neto e Dantas asseveram que, para o direito moderno , o “sujeito de direito” é o centro das relações privadas, vincu-lado à idéia de contrato e de propriedade privada. Ser sujeito de direito signifi ca poder adquirir e vender, inclusive a sua força de trabalho a outro sujeito de direito. Os autores ratifi cam o pensamento de Edelman, para quem a ideologia jurídica nasce postulando que o homem é um sujeito de direito, ou seja, um proprietário em potencial, visto que é de sua essência apropriar-se da natureza (EDELMAN, 1976, p. 25). Para esses professores, mesmo sendo atribuída às “populações indígenas” e “comunidades locais” a condição de “novos” sujei-tos de direito, isso não implica num novo tratamento jurídico desses grupos enquanto sujeitos coletivos, em face das suas peculiaridades culturais e sociais (SHIRAISHI NETO & DANTAS, 2008, p. 63).

Para Edelman, o contrato surge como o instrumento privilegiado da dominação capitalista, porque designa a mercantilização do homem enquanto objeto de direito (EDELMAN, 1976, p. 70). Com a transformação da atividade criadora do artista ou do inventor em trabalho intelectual, submetido à lógica da propriedade intelectual, a personalidade do homem passaria a sujeitar-se a um contrato.

É pertinente a afirmação dos professores Shiraishi Neto e Dantas, referenciando Oliveira, quando lembram que, na atualidade, estamos viven-do uma “nova” forma de conquista do capital, ou melhor, uma “reconquista”, cuja palavra chave é a biodiversidade e o conhecimento tradicional a ela vincu-lado. Para eles, é um dado “novo” para o direito que os povos e comunidades tradicionais apareçam como protagonistas do processo de uso sustentável da diversidade biológica. As conseqüências desse fato vão sendo percebidas no de-senrolar do processo de apropriação dos conhecimentos tradicionais associados pelo capital (SHIRAISHI NETO & DANTAS, 2008, p. 58-60).

No que diz respeito aos conhecimentos tradicionais associados à biodi-versidade, a Convenção sobre Diversidade Biológica refere-se aos povos e co-munidades tradicionais como detentores dos seus saberes. No caput do artigo 9º da Medida Provisória n. 2186-16/2001, os povos e comunidades tradicionais

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também aparecem como detentores do conhecimento tradicional associado. Um pouco adiante, no inc. III do mesmo artigo da MP, afi rma-se que os grupos tradicionais são titulares do conhecimento tradicional associado. No entanto, o artigo 8º parágrafo 2º da Medida Provisória estabelece que “o conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético (...) integra o patrimônio cultural brasileiro e poderá ser objeto de cadastro”.

Para Caldas a postura da Medida Provisória é oscilante e seus dispositivos contraditórios, já que, de um lado, proclama o direito das comunidades e povos tradicionais sobre seus saberes e, de outro, estabelece que tais conhecimentos integram o patrimônio cultural brasileiro, podendo inclusive ser objeto de ca-dastro. Nesse último dispositivo, a mensagem implícita é a de que o Estado tem o poder cadastrar os conhecimentos tradicionais associados independentemente do consentimento dos “detentores” (CALDAS, 2001, p. 164). Posicionando-se contrariamente a tal entendimento, o Instituto Indígena Brasileiro para a Pro-priedade Intelectual (INBRAPI) elaborou parecer técnico no sentido de que os povos indígenas devem ser consultados sobre a conveniência de se criarem e manterem bancos de dados sobre os seus conhecimentos tradicionais.

De acordo com o Código Civil brasileiro, detentor é “aquele que, achan-do-se em relação de dependência para com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções suas” (art. 1.198). Esse, porém, não é o sentido que os indígenas esperam da norma jurídica que disciplina o acesso e o uso de seus conhecimentos. Os povos indígenas, por meio de seus representantes, vêm reafi rmando-se proprietários de seus saberes e exigindo que esse reconhecimento seja expresso na legislação que ora se discute. Nesse sentido manifesta a Declaração do Rio Negro , item 2:

Discordamos da utilização das expressões detentores e pos-suidores de conhecimentos tradicionais em referência aos povos indígenas. O projeto de lei deve reconhecer que so-mos titulares dos conhecimentos tradicionais que integram nossas culturas. Nesse sentido, queremos a alteração do ar-tigo 5º do projeto para incluir uma disposição reconhecendo nosso domínio sobre nossos saberes, inovações e práticas, nos termos do caput do artigo 42, cujo inciso I deverá in-cluir o direito dos povos indígenas de dispor dos nossos conhecimentos, inovações e práticas, inerente aos direitos que um titular pode exercer sobre o bem que lhe pertence (Declaração do Rio Negro. 03/12/2007).

O pleito do movimento indígena, nesse caso, é pelo reconhecimento de direitos reais sobre o conhecimento, agora transformado em bem jurídico. Na

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Declaração do Rio Negro, acima citada, os signatários indígenas exigem o re-conhecimento da faculdade de usar, gozar e dispor de seus conhecimentos, e o direito de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua ou detenha, como preceitua o artigo 1228 do Código Civil Brasileiro.

A propriedade, juntamente com a posse, compõem as titularidades, um dos institutos fundamentais do Direito Civil. Elas são disciplinadas pelos Direi-tos das Coisas que, segundo Gomes, “regula o poder dos homens sobre os bens e os modos de sua utilização econômica (GOMES, 2004, p. 7-8).

O direito de propriedade é o mais amplo dos direitos reais. Ser propri-etário, pelo Código Civil, é exercer poderes sobre determinadas coisas, dentro dos limites legais, dos quais se destacam os relativos à função social da pro-priedade. Gomes defi ne o direito de propriedade como “um direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fi ca submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei” (GOMES, ibid., p. 109).

Ensina o mesmo autor civilista que o objeto do direito de propriedade deve ser um valor econômico materializado e individualmente determinado (GOMES, ibid., p. 113). O conhecimento tradicional associado à biodiversidade, nesse contexto, assume um potencial econômico de acordo com a lógica da propriedade. A partir da noção de trabalho como mercadoria fi ctícia, pode ser re-munerado na condição de informação resultante de uma atividade intelectual. O discurso do movimento indígena se apropria dessa noção de propriedade ao rei-vindicar o cumprimento dos seus direitos e a participação de seus representantes nas decisões pertinentes à proteção dos conhecimentos tradicionais associados.

4 CAMPO CIENTÍFICO E “DEFINIÇÕES LEGÍTIMAS”

Um campo científi co se impõe ao campo político nas discussões em torno da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados. É possível no-tar a existência de uma divisão do trabalho científi co nesse processo, caracteriza-da por tensões entre formações acadêmicas que disputam as “defi nições legíti-mas”, especialmente no âmbito do CGEN . Segundo o pensamento de Bourdieu, o objeto da ciência é a concorrência pelo monopólio da divisão legítima, e as relações de concorrência que se estabelecem, no campo intelectual ou científi co, também pertencem ao domínio da ciência (BOURDIEU, 1968, p.111).

Um aspecto dessa complexidade que caracteriza os atos de participar de uma discussão sobre esse tema, diz respeito às implicações da língua e da lin-

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guagem da norma, especialmente quando os sujeitos de direitos e obrigações consagrados por essa norma são sujeitos indígenas. Na pesquisa junto ao CGEN, fi cou fl agrante a ostensiva preocupação por parte dos conselheiros de deliberar com o máximo de segurança jurídica (DOURADO, 2009). A segurança jurídica aparece condicionada à total clareza dos “conceitos” da legislação e, muitas vezes, enseja a normatização de mais noções operacionais. Esta necessidade dos conselheiros movimenta diversos pareceres jurídicos, principalmente da Advocacia Geral da União (AGU) que, provocada pelos órgãos do poder execu-tivo, “dá a última palavra” sobre as dúvidas e dissensos em torno da legislação vigente relativa ao acesso e ao uso de patrimônio genético e de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, constituída atualmente de atos norma-tivos do Poder Executivo.

As defi nições de termos inscritas na legislação são, supostamente, base-adas em estudos científi cos disponíveis à época da elaboração da norma. Dife-rentes textos legais defi nem termos com base nos princípios da antropologia, da biologia, da geografi a e de outras áreas do conhecimento. Essas defi nições têm o objetivo de operacionalizar a norma, além de defi nirem seu escopo. Em sua dissertação de mestrado, Andressa Caldas observa que os conceitos e as classi-fi cações jurídicas são instrumentos construídos - portanto artifi ciais, arbitrários, particulares e historicamente determinados (CALDAS, 2001, p. 70)

Defi nições de expressões como “comunidade tradicional”, “patrimônio genético” e “conhecimento tradicional associado à biodiversidade” estabelecem o que está dentro e o que está fora da abrangência da norma. Daí a relevância do papel das “noções operacionais” consagradas pela legislação. Estas, no entanto, não se confundem com os conceitos. As noções operacionais são delineadas para se atingir a um fi m prático, qual seja, viabilizar o cumprimento da norma. Já os conceitos problematizam relações e se detêm no tratamento rigoroso das especifi cidades. Segundo Almeida, a noção operacional serve basicamente para fi ns operacionais imediatos ou de aplicação genérica e direta, sob uma lógica do ponto de vista prático. Já o conceito tem signifi cado, é dinâmico e por isso im-plica numa relação e na possibilidade de mudança de signifi cado (ALMEIDA, 2008, p. 18).

Vale lembrar que a maior parte das legislações ambientais recentes, in-clusive as que regulam o acesso à biodiversidade e ao conhecimento tradicional associado inicia seus textos com defi nições terminológicas (CALDAS, 2001, p. 11) . Caldas ressalta que os conceitos jurídicos têm uma racionalidade interna e que postulam a neutralidade científi ca. A fi m de que se estabeleça e se faça funcionar perfeitamente o sistema jurídico formal, pressupõe-se que tais concei-tos jurídicos são intemporais, universais, neutros, gerais e abstratos (CALDAS,

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ibid, p. 12).No lugar do que Caldas chama de “conceitos jurídicos”, prefi ro utilizar

a expressão “defi nições jurídicas”, por entender que se tratam de noções opera-cionais e não propriamente de conceitos, seguindo o pensamento de Almeida (2008). As defi nições jurídicas nada mais são do que noções operacionais inseri-das – e congeladas - no texto normativo. Elas são consideradas indispensáveis à delimitação da abrangência da norma e, em sendo supostamente científi cas, ofe-recem um certo grau de segurança aos seus operadores. Não é por acaso que um “grupo técnico de peritos”, especializado em “conceitos, termos e defi nições”, foi formado na última Conferência das Partes em Bonn, na Alemanha para con-tribuir para a elaboração de um regime internacional de acesso e uso de conheci-mentos tradicionais associados à biodiversidade. Nesse aspecto, vale notar que se observa uma tendência à “homogeneização jurídica” (BOURDIEU, 2001, p. 107), no plano global, na regulação de variados temas através de convenções e tratados internacionais (DOURADO, 2009).

EM RESUMO, PARA FINALIZAR

Proponho neste artigo apresentar o campo político em que se debate a criação de normas jurídicas reguladoras do acesso e do uso de conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. O intuito declarado da norma jurídica, seja ela internacional ou nacional, é proteger os conhecimentos tradicionais as-sociados à biodiversidade de povos e comunidades tradicionais.

O tema “conhecimentos tradicionais”, no entanto, não é um tema estrita-mente ambiental. Ele enfeixa questões relacionadas à conservação ambiental e ao “uso sustentável” da biodiversidade, ao exercício de direitos humanos culturais, sociais e econômicos de povos e comunidades tradicionais e aquelas concernentes à propriedade intelectual e ao fomento da inovação tecnológica. Nesse sentido, a multiplicidade de agentes e agências, com interesses e discur-sos próprios e em situações de disputa no campo político, tornam a questão dos conhecimentos tradicionais, um emaranhado de posições de difícil discerni-mento.

Aqui destacam-se as posições dos povos indígenas e do Estado brasileiro nesse processo regulatório. Ao mesmo tempo em que a biotecnologia se apre-senta como uma área promissora para o desenvolvimento econômico do país e, portanto, tem sido fomentada pelas agências governamentais e produtivas, os povos indígenas reivindicam não apenas seus direitos econômicos relativos aos conhecimentos tradicionais potencialmente geradores de tecnologias, mas

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também os direitos culturais e étnicos relativos aos conhecimentos tradicionais associados, considerados elementos de sua identidade e de seu patrimônio cul-tural.

Através da teoria do campo, de Bourdieu, é possível visualizar os agentes e agências que participam da regulação jurídica dos conhecimentos tradicionais associados, bem como seus respectivos discursos e estratégias políticas. Eles in-teragem em relações de força e de dominação, variando o seu capital simbólico. Vale notar que até mesmo os diversos signifi cados dos conhecimentos tradicio-nais também são objetos de disputa nesse campo, o que demonstra o dinamismo e a complexidade do processo atual de regulação jurídica.

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ÍNDICE - PARTE IV

ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NO MUNICÍPIO DE MANAUS:análise sobre direito à saúde e ao meio ambienteArlete Batista de Lima..................................................................................313

O DIREITO À SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHADOR NO MEIO AMBI-ENTE DO TRABALHOKely Silva de Araújo.....................................................................................315

O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA: ÁREAS PROTEGIDAS E REGIMES AMBIENTAISCarla Cristina Alves Torquato.....................................................................316

POLÍTICAS PÚBLICAS, QUALIDADE DE VIDA E PARTICIPAÇÃODEMOCRÁTICA: O DIREITO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS EM RORAIMATeresa Cristina Evangelista dos Anjos........................................................317

O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL NA LEGISLA-ÇÃO DOS PAÍSES AMAZÔNICOS LATINO-AMERICANOSCristiniana Cavalcanti Freire......................................................................318

ÉTICA, DIREITOS HUMANOS E PESQUISA BIOTECNOLÓGICA: Uma abordagem complexa nos espaços amazônicosLincoln Alencar de Queiroz..........................................................................320

A CIDADE REAL NA CIDADE FORMAL: UM ESTUDO SOBRE A CON-STRUÇÃO DA TERRITORIALIDADE DO QUILOMBO DO MAICÁ EM SANTARÉM-PARÁ.Judith Costa Vieira........................................................................................321

A BIOPIRATARIA E A APROPRIAÇÃO DOS CONHECIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODIVERSIDADE DA AMAZÔNIA BRASILEIRAAline Ferreira de Alencar.............................................................................322

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ESTRATÉGIA SAÚDE DA FAMÍLIA NO MUNICÍPIO DE MANAUS:

análise sobre direito à saúde e ao meio ambiente

Mestranda: Arlete Batista de Lima

Banca Examinadora: Prof. Dr. Serguei Aily Franco de Camargo (Orientador-UEA)Prof. Dr. Sandro Nahmias de Melo (UEA)Profa. Dra. Rosirene Martins Lima (Universidade Estadual do Maranhão)

Resumo: O estudo faz uma análise do direito à saúde e ao meio ambiente eco-logicamente equilibrando no município de Manaus tendo como referencial a política pública de saúde denominada Estratégia Saúde da Família (ESF). Essa política tem como principal desafi o reorganizar o modelo de atenção básica para garantir o acesso da população aos serviços públicos de saúde na perspectiva da promoção da saúde, deslocando a questão saúde centrada na doença e no hos-pital para privilegiar aspectos preventivos e curativos. Desse modo, são iden-tifi cados os fundamentos jurídicos que corroboram para a proteção do direito à saúde e a defesa do meio ambiente, assinalando a história da saúde pública brasileira consolidada como direito na década de 80 com a institucionalização do Sistema Único de Saúde (SUS). O direito à saúde na vigente Constituição assume a posição de direito fundamental recebendo especial atenção pelo legis-lador brasileiro no que se refere à garantia do seu conteúdo essencial, devendo o Estado assegurar um mínimo existencial por meio de políticas sociais. A Consti-tuição brasileira de 1988 preconiza que saúde é direito de todos e dever do Es-tado, e que todos têm direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. A sadia qualidade de vida depende fundamentalmente de condições ambientais adequadas. Portanto, saúde e meio ambiente estão intrinsecamente relacionados, devendo o Estado garantir mecanismos de articulação desses direitos de forma a construir uma sociedade sustentável. Foi realizada pesquisa no Distrito de Saúde Sul de Manaus, pelo expressivo número de Unidades de Saúde da Família, que utilizou como método de investigação a observação direta, com participação no cotidiano dos profi ssionais envolvidos no nível da atenção básica à saúde, questionando suas práticas, repensando as ações de saúde de modo coletivo. A ESF tem, entre outros objetivos, aproximar a equipe de saúde da população assistida, fomentando um espaço de construção de cidadania. Por essa razão, a sociedade deve participar desse processo de mudança das condições de saúde,

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sendo o controle social um mecanismo importante na efetivação de políticas sociais que atendam às suas reivindicações. No entanto, como política pública de saúde a ESF apresenta os seus próprios desafi os como a limitação de recur-sos fi nanceiros e a inadequada capacitação profi ssional. Do ponto de vista do desenvolvimento, essa política ainda não conseguiu responder satisfatoriamente às demandas da população assistida cuja participação no processo de construção da saúde é quase nula por relegarem esse papel aos gestores públicos. É pos-sível mudar esse cenário a partir de um controle social efetivo que se aproprie de espaços coletivos, como os conselhos e conferências de saúde, e de instru-mentos como a política nacional de promoção da saúde, a política de atenção básica e da atenção primária ambiental que representam diretrizes na garantia do direito à saúde. Essas diretrizes têm em comum a participação da comunidade ao estimular práticas democráticas voltadas para soluções às suas necessidades básicas. A atenção primária ambiental (APA) é uma estratégia que valoriza os esforços de cidadania e os orienta para o desenvolvimento de uma nova cultura que reconhece os direitos ambientais e as reivindicações sociais como necessários para a sadia qualidade de vida da coletividade.

Palavras-chave: Direito à saúde; Direito ao meio ambiente; Políticas Públicas; Estratégia; Saúde da Família; Sadia Qualidade de Vida.

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O DIREITO À SAÚDE PSÍQUICA DO TRABALHA-DOR NO MEIO AMBIENTE DO TRABALHO

Mestranda: Kely Silva de Araújo

Banca Examinadora: Prof. Dr. Sandro Nahmias Melo (UEA – ORIENTADOR)Prof. Dr. Edson Ricardo Saleme (UEA)Prof. Dr. Aldemiro Rezende Dantas Júnior (CIESA)

Resumo: Há muito se discute sobre a infl uência do trabalho na qualidade de vida do trabalhador. Contudo, somente a partir da Revolução Industrial é que a saúde mental vem sendo considerada importante para que se possa alcançar um meio ambiente de trabalho hígido. A preocupação maior sempre foi com a saúde física, ou seja, o acidente do trabalho típico e as doenças ocupacionais. Pouco se falava em agressões psíquicas como o assédio moral, o estresse e a depressão, contudo elas sempre existiram. O estudo do tema se mostra de grande valia uma vez que o meio ambiente do trabalho saudável é um direito fundamental, pois, ligado, por seu conteúdo, ao direito à vida. E, como direito fundamental que é, deve ser assegurado por meio das garantias constitucionais dentre as quais se destaca a ação civil pública. O assédio moral no meio ambiente do trabalho confi gura-se como sendo toda e qualquer conduta abusiva que atente contra a dignidade ou a integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho. O assédio pode ser de forma verti-cal (chefe-empregado) ou de forma horizontal (entre trabalhadores). O assédio moral no trabalho é uma das causas do estresse, e o estresse crônico gera a de-pressão. Com objetivo geral de analisar os meios de proteção jurídica à saúde psíquica do trabalhador, realizou-se uma pesquisa exploratória, descritiva e ex-plicativa. Quanto aos meios a pesquisa foi bibliográfi ca e documental. A ação civil pública, como garantia fundamental que é, confi gura-se como o meio capaz de garantir o equilíbrio no meio ambiente do trabalho. Ou seja, tal ação é o meio adequado para assegurar condições mínimas de trabalho de forma que ele seja realizado sem gerar danos à saúde física e psíquica do trabalhador.

Palavras-chave: Meio ambiente; Meio ambiente do trabalho; Saúde psíquica do trabalhador; Assédio moral; Estresse; Depressão; Ação civil pública.

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O TRATADO DE COOPERAÇÃO AMAZÔNICA: ÁREAS PROTEGIDAS E REGIMES AMBIENTAIS

Mestranda: Carla Cristina Alves Torquato

Banca Examinadora: Prof. Dr. José Augusto Fontoura Costa (Orientador- UEA)Prof. Dr. Fernando Fernandes da Silva (UniSantos/SP)Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA)

Resumo: Este trabalho trata da análise das áreas protegidas Amazônicas, isto é, as áreas territorialmente protegidas dos países pertencentes à Bacia Amazônica, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, que através do Tratado de Cooperação Amazônica fi rmaram o compromisso de promover o desen-volvimento harmônico da região por meio da cooperação e reciprocidade de esforços em prol do crescimento econômico da região atrelado a proteção do meio ambiente. A partir desta premissa as partes contratantes do Tratado pro-curam realizar esforços e ações conjuntas e uma destas ações são os sistemas de áreas territorialmente protegidas existentes nestes países, que tiveram como base de construção a Convenção de Diversidade Biológica – CDB e o Sistema de diretrizes de áreas protegidas da União internacional de conservação da natureza – UICN e na construção das mesmas e qual o papel destes dois instru-mentos dentro do Direito Internacional. Com isso são analisadas semelhanças, possibilidades de harmonização ou unifi cação entre os sistemas, o fenômeno da Juridifi cação, a função da CDB e do Sistema de diretrizes de áreas protegidas da UICN enquanto instrumentos da soft law, a formação e a mudança de um regime ambiental e a tentativa do Estado constitucional cooperativo como gér-men do uma cooperação mais ampla

Palavras-Chave: áreas protegidas; Direito Internacional; Tratado de Cooperação Amazônica; juridifi cação; soft law; Regimes Internacionais.

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POLÍTICAS PÚBLICAS, QUALIDADE DE VIDA E PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA: O DIREITO À SAÚDE DOS POVOS INDÍGENAS EM RORAIMA

Mestranda: Teresa Cristina Evangelista dos Anjos

Banca Examinadora: Profa. Dra. Clarice Seixas Duarte (Orientadora – UEA)Prof. Dr. Fernando Mussa Abujamra (FGV – SP)Profa.dra. Deise lucy Oliveira Montardo (UFAM)

Resumo: A presente dissertação trata da regulação jurídica estatal instituída no Brasil com a fi nalidade de proteger, promover e recuperar a saúde dos povos indígenas por meio de políticas públicas. Objetiva-se analisar se a atual regu-lamentação jurídica de proteção, promoção e recuperação da saúde indígena é compatível com as peculiaridades pertinentes a esses povos. O reconhecimento de seus modos de ser, fazer e viver lhes foi garantindo constitucionalmente, pela primeira vez em nossa história, através da Constituição Federal de 1988, em seu art. 231. Verifi camos que a participação desses povos, sozinhos ou de forma coletiva, através de suas comunidades, como novos atores nos movimentos so-ciais, tem gerado novas e peculiares formas de elaboração de políticas públicas. Especialmente no que diz respeito à proteção, promoção e recuperação da saúde específi ca e diferenciada desses povos e suas comunidades, merece destaque a organização de Distritos Sanitários Especiais Indígenas – DSEI’s, espaços de concretização e democratização do direito à saúde desses grupos. Ao fi nal do trabalho, procedeu-se a uma análise do Distrito Sanitário Especial Indígena Leste de Roraima-RR, a fi m de se verifi car o seu potencial como instrumento de participação popular na elaboração e no controle social de políticas públi-cas, levando-se em conta o modelo teórico de conceituação jurídica de políticas públicas utilizado na presente dissertação.

Palavras-Chave: Povos indígenas; políticas públicas; saúde; Distritos Sanitários Especiais Indígenas; Constituição Federal de 1988.

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O REGIME DA RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL NA LEGISLAÇÃO DOS PAÍSES

AMAZÔNICOS LATINO-AMERICANOS

Mestranda: Cristiniana Cavalcanti Freire

Banca examinadora: Prof. Dr.José Augusto Fontoura Costa (Orientador – UEA)Prof. Dr. Fernando Fernandes da Silva (Universidade Católica de Santos)Prof. Dr. Ozorio Jose Menezes Fonseca (UEA)

Resumo: Esta pesquisa trata da análise do regime da responsabilidade civil ambiental na legislação dos países amazônicos latino-americanos, membros do Tratado de Cooperação Amazônica. A responsabilidade civil por dano ambiental constitui um importante instrumento de proteção ambiental e de implementação dos princípios ambientais fundamentais. A região amazônica, ao congregar em sua dimensão territorial diferentes países, com características sociais, econômi-cas e políticas diferenciadas, e de grande biodiversidade, imprescinde de me-canismos de proteção ao seu acervo ambiental em sua integralidade, sendo im-portante o desenvolvimento de instrumento que possibilite a proteção do bioma amazônico como um todo, em face da sinergia e ausência de fronteira dos danos ambientais, de forma a garantir-se, para a região, o adequado acesso aos recur-sos naturais, a responsabilidade intergeracional e o desenvolvimento em bases sustentáveis. O presente trabalho tem como objetivo analisar as normativas ambientais a respeito da responsabilidade civil por dano ambiental nos países latino-amazônicos, Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela, com fi ns a perspectivar uma harmonização normativa sobre a matéria, visando uma proteção efetiva e duradoura do ecossistema amazônico em sua integralidade. A pesquisa parte da análise das legislações dos respectivos países e da doutrina disponível sobre a matéria, além da verifi cação de possibilidade de harmoniza-ção de seus regimes, a partir da disposição dessa intenção em suas normativas.A harmonização dos regimes de responsabilidade civil por dano ambiental pode contribuir para efetivar e implementar a proteção integral do bioma amazônico e, além dos benefícios ecológicos, poderia garantir o equilíbrio na balança co-mercial desses países, na medida em que a harmonização impediria a evasão de empreendimentos poluidores para países onde a normativa ambiental se apre-sente mais frágil ou menos efi caz, além da incorporação dos custos com medi-

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das de prevenção e precaução, de forma a erradicar a privatização dos lucros e socialização dos prejuízos, garantindo os estudos para o desenvolvimento de tecnologias mais limpas. A análise da normativa ambiental dos países latino-amazônicos permite observar que os princípios ambientais foram incorporados, desde os textos constitucionais respectivos, até as legislações infraconstitucio-nais. Porém, divergências normativas podem impedir uma proteção integral do meio ambiente amazônico, além de outras relativas à ordem política, econômica e cultural, que acabam por interferir na aplicação dos princípios ambientais. A possibilidade de harmonização normativa quanto à responsabilidade civil pelo dano ambiental pode ter como ponto de partida o Tratado de Cooperação Amazônica, através da Organização respectiva, apta a articular e orientar os esforços para uma atuação com enfoque regional convergente na matéria, como já vem ocorrendo com a proteção da propriedade intelectual entre os países da bacia amazônica.

Palavras-chave: Amazônia; Direito ambiental; Responsabilidade civil.

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ÉTICA, DIREITOS HUMANOS E PESQUISA BIOTECNOLÓGICA:

UMA ABORDAGEM COMPLEXA NOS ESPAÇOS AMAZÔNICOS

Mestrando: Lincoln Alencar de Queiroz

Banca Examinadora: Prof.Dr. Fernando Antônio de Carvalho Dantas (Orientador – UEA)Profa. Dra. Assunción Cambrón Infante(Co-Orientadora – Universidade de La Coruña – Espanha)Profa. Dra. Sandra Patrícia Zanotto (UEA)

Resumo: A genética se inicia no jardim de Mendel, mas esse conhecimento sofre modifi cação, é apropriado pelo biopoder e, hoje, está plantado no jardim do consumo. A ciência não é axiologicamente neutra e, atualmente, é incorpo-rada aos processos produtivos. Apropriada pelo mercado, a ciência segue suas leis que, em todo lugar, são as mesmas. Aplicada aos seres humanos, a ciência se apropria de seu objeto de pesquisa, através das patentes, visando assegurar lucros e o retorno dos investimentos. No direito, vê-se o paradoxo entre a in-disponibilidade do corpo e o patenteamento da vida. Os novos conhecimentos afetam a todos, por isso, a defesa da dignidade se inicia pelo resguardo do es-paço democrático. O uso da genética humana visando o lucro é incompatível com a dignidade da pessoa e, por essa razão, é indigno porque se apropria da pessoa despindo-a de sua história e de sua cultura. Dessa indignidade, foram vítimas índios da região amazônica ao serem forçados a participar de experiên-cias científi cas que benefi ciaram apenas ao poder e ao prestígio dos próprios pesquisadores. A ciência tem poder e infl ui na vida de todos, por isso, tem a responsabilidade de proceder segundo o que é bom para o ser humano. O que é bom para o homem é decidido no âmbito de sua cultura e da sua comunidade. Os direitos humanos são fundamentos ético-jurídicos para formular o conceito da dignidade humana e, também, base para a crítica ao direito tradicional que enxerga a pessoa sob a ótica da propriedade e, por isso, não a protege contra o risco da sua mercantilização.

Palavras-chave: Ciência; Genética; Mercado; Patentes; Dignidade humana; Di-reitos humanos; Mercantilização.

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A CIDADE REAL NA CIDADE FORMAL: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO DA TERRI-

TORIALIDADE DO QUILOMBO DO MAICÁ EM SANTARÉM-PARÁ.

Mestranda: Judith Costa Vieira

Banca Examinadora: José Joaquim Shiraishi Neto (Orientador – UEA) Heloísa Helena Corrêa da Silva (UFAM) Prof. Dr. Fernando Antônio da Carvalho (UEA)

Resumo: Desde a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988 vem se dando muita ênfase na problemática urbana a qual passou a ser abordada sob a perspectiva da necessidade da realizado de uma reforma urbana por meio de um processo de participação democrática. Porém, esse novo projeto de ci-dade idealizado pelo Direito, escamoteia as disputas políticas engendradas no espaço das cidades, as quais têm ganhado cada vez notoriedade frente ao sur-gimento dos grupos éticos como categorias urbanas que demandam perante o Estado o reconhecimento de suas formas particulares de ocupação do espaço urbano. Diante disso, o objetivo do presente estudo consiste em entender a rela-ção estabelecida entre duas formas distintas de ordenar o uso do território. Uma desencadeada pelo Estado mediante seus instrumentos de Planejamento Urbano e outra vivida pelos grupos éticos a qual, por vez, entra em confronto com um projeto único de cidade. Visando pensar as questões aqui levantadas diante de uma realidade concreta parte-se da tentativa de compreensão do surgimento do Quilombola Urbano de Maicá, na Cidade de Santarém, Estado do Pará, que se organizaram pela Associação de Remanescentes de Quilombos do Arapemã, residentes no Maicá. A constituição desse grupo social na cidade permite repen-sar a construção do espaço a partir da constituição peculiar do seu território. A maneira com o grupo se expressa ultrapassa as classifi cações arbitrárias de fra-cionamento do espaço realizadas pelo Direito, como a dicotomia rural e urbana, posto que suas relações e atividades se encontram esparramadas por vários con-textos espaciais do município. Portanto, a defesa de um modo de vida peculiar perpassa pela compreensão dos aspectos essenciais a sua manutenção entre elas a formação e a constituição dos territórios etnicamente confi gurados como é o caso deste que está sendo tratado no presente estudo.

Palavras- Chave: Direito; Cidade; Planejamento Urbano; quilombolas; Maicá.

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A BIOPIRATARIA E A APROPRIAÇÃO DOS CONHE-CIMENTOS TRADICIONAIS ASSOCIADOS À BIODI-

VERSIDADE DA AMAZÔNIA BRASILEIRA

Mestranda: Aline Ferreira de Alencar

Banca Examinadora: Prof. Dr. Fernando Antônio de Carvalho Dantas (Orientador – UEA) Prof.ª Dr.ª Maria Auxiliadora Minahim (UFBa) Prof. Dr. Ozorio Jose de Menezes Fonseca (UEA)

Resumo: A biopirataria é apropriação não autorizada do patrimônio genético de uma região, incluindo espécies da fauna, fl ora, micro-organismos e con-hecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Essa atividade ocorre nos países biodiversos, inclusive o Brasil, mais especifi camente a Amazônia Brasileira, cuja riquíssima biodiversidade atrai a cobiça dos países ricos em tec-nologia e pobres em biodiversidade, que desejam fabricar novos produtos, com o objetivo exclusivo de gerar lucro. Portanto, a natureza passa a ser vista como matéria-prima, fonte de capital. Nesse contexto, a apropriação dos conhecimen-tos tradicionais associados à biodiversidade, pertencentes aos povos indígenas e populações tradicionais, representa um poderoso atalho para a criação de novos produtos, visto que, por meio da bioprospecção, é possível alcançar os resul-tados desejados com racionalidade econômica. A biopirataria atenta contra os interesses nacionais e contra os direitos humanos, por essa razão sugere-se a que a atividade seja criminalizada pelo Direito Penal, em virtude da relevância do bem jurídico a ser tutelado, o meio ambiente. Além disso, para coibir a biopira-taria na Amazônia, é necessário aumento de fi scalização na região, investimento em ciência e tecnologia, bem como aplicação dos princípios da informação, educação e participação ambiental como forma de aliar os esforços do Poder Público e da coletividade para que ocorra a prevenção dessa atividade nociva ao Brasil e aos detentores do conhecimento tradicional.

Palavras-chave: Biopirataria; Conhecimento tradicional associado; Biodiver-sidade; Amazônia Brasileira; Patrimônio genético.

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NORMAS EDITORIAIS

As normas editoriais da Hiléia - Revista de Direito Ambiental da Amazô-nia são as seguintes:

1) A revista é de periodicidade semestral, observando-se o caráter de in-terdisciplinaridade no que tange ao papel crítico do periódico e constitui-se em um veículo para publicação de artigos, ensaios e resenhas críticas, bem como à livre circulação de idéias e opiniões sobre temas relacionados ao Direito e, especialmente, ao Direito Ambiental, sendo de inteira responsabilidade de seus autores as opiniões expressas nos artigos publicados.

2) Os artigos serão submetidos à aprovação do Conselho Editorial.3) O recebimento do artigo, ensaio ou resenha não implica a obrigatorie-

dade de sua publicação.4) Não será efetuado qualquer pagamento ou contraprestação pela publi-

cação dos artigos selecionados. Serão enviados 5 (cinco) exemplares do número correspondente para cada autor de artigo, ensaio ou resenha publicado.

5) Os trabalhos deverão ser inéditos e conter os dados de identifi cação (título, nome do autor, vinculação institucional) e, obrigatoriamente conter sumário, resumo em português e em inglês, devendo ser acompanhados de cur-rículo resumido do autor.

6) Além dos trabalhos que integrarão as sessões, a revista terá um espaço reservado para publicação das atividades desenvolvidas pelos Núcleos e Proje-tos de Pesquisa e pelo Programa de Pós-graduação em Direito Ambiental.

7) A formatação, citações e referências deverão obedecer às normas da ABNT e, no que couber, as Normas Técnicas internas do Programa.

8) Os trabalhos deverão ser entregues em disquete ou como anexo de e-mail, digitados com fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaçamento entre linhas de 1,5, margens superior e esquerda de 3 cm e margens inferior e direita de 2 cm, em editor compatível com o Word, comportando entre 15 a 20 laudas para artigos e ensaios e entre 5 a 10 laudas para resenha, incluídas as referências.

9) Para deliberação quanto à aprovação dos artigos com indicação para publicação, o Conselho Editorial adotará os seguintes critérios:

• Interesse acadêmico – serão priorizados os trabalhos cuja refl exão man-tenham pertinência com as linhas de pesquisa do Programa, quais sejam: Conservação dos recursos naturais e desenvolvimento sustentável, que

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engloba: tutela jurídica do meio ambiente; unidades de Conservação; Ecoturismo; educação ambiental; espaço urbano; recursos naturais; me-canismos de resolução de confl itos; desenvolvimento sustentável; direito ao desenvolvimento; políticas públicas e Direitos da sócio e biodiver-sidade, que engloba: biodiversidade; biossegurança; bioética; direito dos povos, povos indígenas e populações tradicionais; agricultura sus-tentável; direito ambiental econômico e empresarial; meio ambiente do trabalho.• Relevância e atualidade jurídica – os textos deverão trazer para o debate questões cuja abordagem jurídica ensejem o diálogo interdisciplinar entre o direito, o direito ambiental e as demais áreas do conhecimento.• Rigor acadêmico – os textos deverão seguir, rigorosamente, a metodo-logia científi ca, oportunizando o debate acerca do conhecimento jurídico.

10) Artigos, ensaios ou resenhas recebidos e não publicados no número correspondente à chamada editalícia do envio, integrarão banco de trabalhos e poderão ser publicados posteriormente, em número subseqüente, mediante co-municação e consentimento prévio do autor.

Esta obra foi composta em Manaus PelaUEA Edições.

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