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RAP Rio de Janeiro 40(3):479-99, Maio/Jun. 2006 D OCUMENTO Governança pública: novo modelo regulatório para as relações entre Estado, mercado e sociedade?* Leo Kissler** Francisco G. Heidemann*** 1. Introdução Após uma década de “modernização do setor público” na Alemanha, é hora de se faz- er um balanço sobre a experiência. E constata-se que as administrações públicas se tor- naram mais empresariais, menos onerosas e, em geral, mais eficientes; raramente, porém, mais simpáticas aos cidadãos. Em outras palavras, as fronteiras — entre os órgãos públicos e os cidadãos, entre os setores público e privado — de fato receberam novos contornos, com base na privatização e na terceirização; mas as novas bases não se revelaram favoráveis aos cidadãos. A modernização do Estado que ocorreu nos últimos 10 anos foi, principal- mente, uma reforma interna inspirada na administração pública gerencial (new pub- lic management). Pautando-se por este modelo ideológico, o Estado voltado para o mercado e para a gestão na prática provocou sobretudo uma redução dos postos de trabalho na administração pública. * Texto-base de uma palestra proferida em out. 2004, em Balneário Camboriú, para os alunos do Curso de Administração de Serviços Públicos da Esag, e, em Florianópolis, para pesquisadores do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFSC. Tradução do original alemão: Elizabeth Lemcke. Contribuições à tradução: Alessandro Pinzani (UFSC) e Mário L. Rollof (Esag). Revisão técnica (lingüística): Ulf G. Baranow, Decigi/UFPR. Apoio: Sociedade Alemã para a Pesquisa (DFG) e Esag/Udesc. ** Professor of sociology Philipps-University Marburg. Endereço: Ketzerbach, 11 — 35037, Marburg, Germany. E-mail: [email protected]. *** Professor do Curso de Graduação em Administração e Serviços Públicos e pesquisador e subcoorde- nador do Mestrado Profissional em Administração — Esag/Udesc. Endereço: Rua das Manjubas, 446 Jurerê — CEP 88053-422, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected].

Governança Pública Novo Modelo Regulatorio

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Governança Pública Novo Modelo Regulatorio

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  • RAP Rio de Janeiro 40(3):479-99, Maio/Jun. 2006

    D O C U M E N T O

    Governana pblica: novo modelo regulatrio para as relaes entre Estado, mercado e sociedade?*

    Leo Kissler**Francisco G. Heidemann***

    1. Introduo

    Aps uma dcada de modernizao do setor pblico na Alemanha, hora de se faz-er um balano sobre a experincia. E constata-se que as administraes pblicas se tor-naram mais empresariais, menos onerosas e, em geral, mais eficientes; raramente,porm, mais simpticas aos cidados. Em outras palavras, as fronteiras entre osrgos pblicos e os cidados, entre os setores pblico e privado de fato receberamnovos contornos, com base na privatizao e na terceirizao; mas as novas bases nose revelaram favorveis aos cidados.

    A modernizao do Estado que ocorreu nos ltimos 10 anos foi, principal-mente, uma reforma interna inspirada na administrao pblica gerencial (new pub-lic management). Pautando-se por este modelo ideolgico, o Estado voltado para omercado e para a gesto na prtica provocou sobretudo uma reduo dos postos detrabalho na administrao pblica.

    * Texto-base de uma palestra proferida em out. 2004, em Balnerio Cambori, para os alunos do Cursode Administrao de Servios Pblicos da Esag, e, em Florianpolis, para pesquisadores do Centro deFilosofia e Cincias Humanas da UFSC. Traduo do original alemo: Elizabeth Lemcke. Contribuies traduo: Alessandro Pinzani (UFSC) e Mrio L. Rollof (Esag). Reviso tcnica (lingstica): Ulf G.Baranow, Decigi/UFPR. Apoio: Sociedade Alem para a Pesquisa (DFG) e Esag/Udesc.** Professor of sociology Philipps-University Marburg. Endereo: Ketzerbach, 11 35037, Marburg,Germany. E-mail: [email protected].*** Professor do Curso de Graduao em Administrao e Servios Pblicos e pesquisador e subcoorde-nador do Mestrado Profissional em Administrao Esag/Udesc. Endereo: Rua das Manjubas, 446 Jurer CEP 88053-422, Florianpolis, SC, Brasil. E-mail: [email protected].

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    Deve-se s condies insatisfatrias da modernizao praticada at agora osurgimento e atratividade de um novo modelo: a governana pblica (public gover-nance). At que ponto trata-se de um novo conceito para regular as relaes de trocaentre os setores pblico e privado, entre Estado, mercado e sociedade? particularm-ente desafiador responder em termos cientficos a essa pergunta. O entendimento quese tem sobre governana pblica no muito claro; Max Weber diria tratar-se de umconceito sociologicamente amorfo. No existe um conceito nico de governanapblica, mas antes uma srie de diferentes pontos de partida para uma nova estrutur-ao das relaes entre o Estado e suas instituies nos nveis federal, estadual e mu-nicipal, por um lado, e as organizaes privadas, com e sem fins lucrativos, bem comoos atores da sociedade civil (coletivos e individuais), por outro. Pairam dvidas no so-mente sobre as bases de cooperao entre esses atores, mas tambm sobre seus resulta-dos. Diante disso, o campo incerto da governana pblica ser abordado a partir de trsperguntas, que serviro tambm para estruturar a exposio.

    t O que significa governana pblica, qual a imagem de Estado contida nesseconceito e quais so seus objetivos implcitos? Faz-se aqui um esclarecimentoterico-conceitual (primeira parte).

    t Como se traduz governana pblica, na prtica? Existem critrios testados na prti-ca que servem para verificar se a governana pblica obteve sucesso ou se fracas-sou? Essa pergunta ser respondida a partir de um exemplo prtico extrado dapoltica de emprego e mercado de trabalho no mbito municipal. Para isso, serousados os resultados de uma pesquisa de avaliao realizada nos anos 2000-02, emdois grandes centros urbanos da Alemanha.

    t E, finalmente, que conseqncias e efeitos colaterais apresenta a nova estrutur-ao de relaes entre Estado e sociedade em decorrncia da governana pbli-ca? Trata-se de um prognstico e de uma tomada de posio para a indagaofinal: at que ponto a governana pblica ser adequada para servir como novomodelo regulatrio de Estado e sociedade?

    As duas ltimas perguntas sero tratadas na segunda parte.

    2. Governana pblica: conceituao

    Antes de tudo, o conhecimento do problema decisivo para a fundamentao teri-ca da governana pblica, para a avaliao da prtica vigente e, sobretudo, para umaprojeo de sua capacidade de solucionar problemas. Por essa razo, a exposio

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    ser iniciada invocando-se um pouco de histria recente: nos ltimos 10 anos, amodernizao do setor pblico alemo no foi um fim em si mesma. Ela continha apromessa de oferecer respostas consistentes para trs perguntas centrais, que eram:

    t de que modo podem ser conduzidas politicamente as sociedades desenvolvidas,diante dos imperativos de uma economia internacionalizada (globalizao e eu-ropeizao)? Essa pergunta trata da governabilidade de sociedades complexas,funcionalmente diferenciadas;

    t de que forma pode-se superar a crise oramentria das organizaes pblicas, di-ante das crescentes presses dos custos sobre os sistemas de seguridade social e doselevados custos associados unificao alem? Essa pergunta refere-se ca-pacidade de financiamento do moderno Estado social;

    t e, finalmente, como possvel dar conta dos valores emergentes nas sociedadesmodernas e das novas expectativas dos cidados por um Estado eficiente, a partirdas novas possibilidades de participao e engajamento dos cidados? Essaquesto diz respeito legitimidade da ao estatal.

    A atratividade da governana pblica reside na expectativa de que ela venha aoferecer respostas conceituais cientificamente fundamentadas para essas perguntas.Ver-se- at que ponto essa expectativa se sustenta.

    O que governana pblica?

    No debate atual sobre a continuidade da modernizao do setor pblico alemo, a gov-ernana tornou-se um conceito-chave, que todos utilizam sem saber exatamente o que. Seu significado original continha um entendimento associado ao debate poltico-de-senvolvimentista, no qual o termo era usado para referir-se a polticas de desenvolvi-mento que se orientavam por determinados pressupostos sobre elementos estruturais como gesto, responsabilidades, transparncia e legalidade do setor pblico con-siderados necessrios ao desenvolvimento de todas as sociedades (pelo menos de acor-do com os modelos idealizados por organizaes internacionais como a Organizaodas Naes Unidas [ONU] ou a Organization for European Cooperation and Develop-ment [OECD]).

    No presente contexto temtico, prope-se entender governana como

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    uma nova gerao de reformas administrativas e de Estado, que tm como ob-jeto a ao conjunta, levada a efeito de forma eficaz, transparente e compartil-hada, pelo Estado, pelas empresas e pela sociedade civil, visando uma soluoinovadora dos problemas sociais e criando possibilidades e chances de um de-senvolvimento futuro sustentvel para todos os participantes.

    (Lffer, 2001:212)

    Contribuies significativas para a definio de governana tambm vieram depesquisas regionais: Governance, in a first instance, can be simply understood asthe structures and the ways in which city regions are managed, in an administra-tive, legal, public, private, local, national and European sense (Ache, 2000:444).Os atores locais e regionais desenvolvem ao conjunta movidos pela expectativa deque conseguem avaliar melhor os problemas de sua regio do que os atores naciona-is ou supra-estaduais. As expectativas polticas e sociais geradas pela cooperao en-tre os agentes regionais so significativamente elevadas, por exemplo, no campo domercado de trabalho e das polticas de emprego, desenvolvimento municipal, com-bate pobreza etc.

    Sob a tica da cincia poltica, a governana pblica est associada a umamudana na gesto poltica. Trata-se de uma tendncia para se recorrer cada vez mais autogesto nos campos social, econmico e poltico, e a uma nova composio de for-mas de gesto da decorrentes. Paralelamente hierarquia e ao mercado, com suas for-mas de gesto base de poder e dinheiro, ao novo modelo somam-se a negociao, acomunicao e a confiana. Aqui a governana entendida como uma alternativa paraa gesto baseada na hierarquia. Em relao esfera local, ela significa que as cidadesfortalecem cada vez mais a cooperao com os cidados, as empresas e as entidadessem fins lucrativos na conduo de suas aes. A cooperao engloba tanto o trabalhoconjunto de atores pblicos, comunitrios e privados, quanto tambm novas formas detransferncia de servios para grupos privados e comunitrios. A governana local,como configurao regional da governana pblica, , assim, uma forma autnoma(self-organizing) de coordenao e cooperao, por meio de redes interorganizaciona-is, que podem ser formadas por representantes de organizaes polticas e administrati-vas, associaes, empresas e sociedades civis, com ou sem a participao estatal(Jann, 2003:449).

    O teor normativo do conceito marcante na discusso sobre governanapblica na Alemanha. Alm da anlise das estruturas e dos processos de gover-nana, busca-se resposta para a questo dos seus objetivos maiores. Assim, por ex-emplo, define-se a governana local como uma ao conjunta via rede de todos os

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    stakeholders (grupos de cidados, administrao, prefeituras, associaes tradicio-nais, clubes, empresas), em prol do bem da coletividade (Damkowski e Rsener,2003:73, grifo nosso); a governana pblica faz, assim, da orientao para o bem co-mum o diferencial entre a simples governana e a boa governana.

    Os fundamentos normativos da governana pblica se estabelecem por umnovo entendimento do Estado como agente de governana. Em outras palavras, elesresultam da resposta pergunta: que significado tem o Estado nas estruturas de gov-ernana? Ou, dito de outra forma: o que distingue governana de governo?

    A resposta a essa pergunta permite identificar trs fases no debate sobre atransio do Estado convencional para um novo modelo de Estado. Assim, con-ceitualmente, o Estado tradicional vem se transformando:

    t de um Estado de servio, produtor do bem pblico, em um Estado que serve degarantia produo do bem pblico;

    t de um Estado ativo, provedor solitrio do bem pblico, em um Estado ativador,que aciona e coordena outros atores a produzir com ele;

    t de um Estado dirigente ou gestor em um Estado cooperativo, que produz o bempblico em conjunto com outros atores.

    Cada uma dessas trs dimenses refere-se a diferentes etapas na histria dasreformas alems e a uma superao gradual da idia tradicional, segundo a qual oEstado seria o guardio e protetor do bem comum. No entanto, o modelo de merca-do radical segundo o qual a mo invisvel do mercado asseguraria o bem comum,independentemente da ao regulatria do Estado est igualmente obsoleto. Naverdade, os dois modelos esto historicamente ultrapassados. Eles esto impregna-dos de uma contraposio entre Estado e sociedade, pela qual se reconhece o Estadoapenas como uma forte instncia de planejamento e gesto, por um lado, ou comoum Estado guardio, por outro. Em qualquer das hipteses, o Estado entendidoapenas como um ente que dirige ou atrapalha o desenvolvimento social.

    Sobre a transio do Estado provedor para o Estado garantidor da produodos servios pblicos, h um debate poltico que trata da amplitude das atividadesestatais. Na Alemanha, a discusso internacional sobre a gesto pblica lanou asbases para essa poltica de amplitude da atuao estatal. Ela funciona de acordo comos seguintes parmetros (ver figura): o dilema entre produzir ou comprar respon-dido a partir da relevncia estratgica de um servio e da especificidade dos recursos.

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    Com base nesses dois parmetros, os servios de alta relevncia estratgica e alta es-pecificidade de recursos so de atribuio exclusiva do Estado. Em contrapartida, osservios de baixa relevncia estratgica e baixa especificidade de recursos soproduzidos por organizaes privadas. A discusso sobre modernizao abrange emessncia os servios de pouca relevncia estratgica, mas que exigem elevada espec-ificidade de recursos.

    Relao entre especificidade, importncia estratgica e amplitude da atuao estatal

    Fonte: Naschold et al., 1996:76.

    Assim, pela reduo da especificidade dos recursos (ver figura), torna-se possv-el a terceirizao ou a prestao conjunta dos servios por organizaes pblicas e pri-vadas. Nesse caso tambm so questionados os servios que so estrategicamenterelevantes, mas que, sob a tica da especificidade dos recursos, poderiam igualmenteser prestados pelo setor privado (por exemplo, cincia e educao). Conseqentemente,o conceito de governana pblica justifica uma poltica de amplitude de atribuies,onde as instituies pblicas no tm mais a obrigao de oferecer em termos exclusi-vos todos os servios pblicos. O Estado pode transferir aes para o setor privado, ouagir em parceria com agentes sociais. Transforma-se, assim, o antigo Estado de servioem um moderno Estado co-produtor do bem pblico, mas ainda na condio de respon-svel ltimo por sua produo.

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    O Estado produtor de servios pblicos um Estado ativo. Ele se caracterizapor um setor pblico altamente diferenciado e superdimensionado. A ele se con-trapem um setor privado e um assim chamado terceiro setor. Esse modelo alemo detrs setores obedece a diferentes lgicas de gesto, respectivamente: controle hi-errquico no setor pblico, concorrncia no setor privado e solidariedade/negociaono terceiro setor (grupos de auto-ajuda, iniciativas comunitrias, associaes, coopera-tivas, grupos de interesse organizados).

    Numa estrutura de governana pblica, o Estado ativo, nos termos do modelodos trs setores, se transforma num Estado ativador, que age, principalmente, sobre osetor privado e o terceiro setor, com o propsito de mobilizar seus recursos e ativaras foras da sociedade civil (por exemplo, por meio do engajamento comunitrio ver quadro). Isso significa que o setor privado e o terceiro setor acabam sendo valo-rizados perante o setor pblico.

    O Estado deixa de ser uma instituio que se diferencia de forma clara e distin-ta do mercado e da sociedade, como acontecia no caso do governo tradicional. Estado,mercado, redes sociais e comunidades constituem mecanismos institucionais de regu-lamentao, que se articulam em diferentes composies ou arranjos. Por isso, a gov-

    Modelo dos trs setores

    Setor pblico Setor privado Terceiro setor

    Administrao direta federal, estadual e municipal

    Mercado de concorrnciapura

    Organizaes prprias(grupos de auto-ajuda e iniciativas comunitrias)

    Administrao prpria(por exemplo, cmaras, universidades, seguridade social, IHK)*

    Mercado de concorrncia regulada (por exemplo, o setor de energia)

    Associaes (sociedades, clubes, associaes de bem-estar social, cooperativas)

    Entidades administrativas de direito privado (por exemplo, DFG,** GTZ,*** Instituto Goethe)

    Interesses organizados (associaes, aes conjuntas)

    * Industrie- und Handelskammer (Cmara de Indstria e Comrcio).** Deutsche Forschungsgemeinschaft (Sociedade Alem para a Pesquisa).*** Gesellschaft fr Technische Zusammenarbeit (Sociedade de Cooperao Tcnica).

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    ernana prescreve uma lgica de gesto tanto para uma organizao quanto para umsetor e usada como conceito-chave para vrios tipos de atividades coordenadas. Naverdade, determinadas formas de governana ainda so tpicas para certos campos deatuao, como, por exemplo, a hierarquia para o Estado e o mercado para a iniciativaprivada. Mas estudos empricos demonstram que, no nterim, surgiram arranjos institu-cionais nos quais transparece um mix de governana. Esse mix caracteriza-se por estru-turas mistas, ou hbridas, em que atuam diferentes mecanismos de gesto (controlehierrquico, concorrncia, confiana e solidariedade). Seguindo essa tese, as formascoletivas de atuao na sociedade podem ser melhor compreendidas dessa forma doque pelo conceito tradicional de Estado ou pelo conceito de sistema de governo. Paraessa perspectiva, decisiva a transio do Estado gestor (hierrquico), com ingernciana sociedade, para o Estado cooperativo, que atua em conjunto com a sociedade e asorganizaes empresariais, por meio de parcerias estratgicas.

    Em termos de um denominador comum, em suma, a governana pblica agru-pa, em novos arranjos de atores (redes, alianas etc.), trs diferentes lgicas: a do Es-tado (hierarquia), a do mercado (concorrncia) e a da sociedade civil (comunicao econfiana).

    Mas esta convergncia tem um preo, a saber: a economicizao ou mer-cadizao do setor pblico, ou seja, a transformao do setor pblico em um em-preendimento econmico. Na Alemanha, isso se manifesta pelas seguintestendncias empricas:

    t gerencializao da administrao pblica (public management), em processo deimplantao pela introduo de um novo modelo de gesto (NMG);

    t privatizao/terceirizao/parcerias pblico-privadas (PPPs);

    t concorrncia entre organizaes pblicas e privadas, mas tambm dentro do set-or pblico.

    A seguir so apresentados alguns fatos que ilustram essa megatendncia deeconomicizao do setor pblico na Alemanha (Bogumil, 2004).

    Implantao de um novo modelo de gesto (NMG), sobretudo nas adminis-traes municipais: no final dos anos 1990, aproximadamente a metade das adminis-traes municipais havia passado da gesto por recursos para a gesto por resultados.Na prtica, procurou-se implantar um oramento domstico voltado para resultados,com base na cincia das finanas pblicas (cameralstica). Essa tendncia, evidente-

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    mente, vem regredindo. Entre 1998 e 2000, a nfase das administraes municipais so-bre a abordagem de resultados caiu de 61% para 32%.

    Em contraposio, tornou-se particularmente popular o uso do oramento, oua oramentao. Em 1998, a adoo dessa frmula j chegava a 88%. Em 2/3 dessescasos, as comunidades voltaram a empregar os procedimentos oramentrios tradi-cionais, em ampla sintonia com o princpio das finanas pblicas.

    Entre as concepes administrativas do novo modelo de gesto, o clculo doscustos dos servios foi o que mais avanou como componente de controle operacio-nal. No final da dcada de 1990, 75% das cidades do leste alemo e mais de 80% dasdo oeste estavam ocupadas com a estruturao de alguma forma de controle. No en-tanto, sua implementao ainda est longe de completar-se. Em 2000, somente 18dos 206 municpios pesquisados haviam efetivamente adotado a apurao dos cus-tos dos servios.

    Em contrapartida, a mudana para o novo modelo de gesto pela implan-tao da gesto por contrato e conseqente reorganizao das relaes entre polticae administrao revela grandes falhas. Esto igualmente pouco desenvolvidos osmtodos de controle poltico e estratgico. Em particular, a modernizao da admin-istrao pblica, seguindo os preceitos do novo modelo de gesto (NMG), at agorano modificou a estrutura das relaes de trabalho dos empregados.

    Em resumo, as administraes pblicas se tornaram mais eficientes. Por en-quanto, porm, no houve dividendos da reforma para os servidores. Alm disso, oNMG pouco melhorou a capacidade poltica de administrar as comunidades munici-pais. O enfraquecido poder poltico de negociao dos representantes eleitos (isto , daCmara Municipal) em relao ao Executivo acentuou-se ainda mais. A governabil-idade da cidade continua sendo questionada.

    A privatizao e a terceirizao dos servios pblicos avanaram muito nascomunidades municipais alems. Ocorreram grandes mudanas, especialmente nossetores de abastecimento de gua e energia, coleta de lixo, bem como no transportecoletivo de passageiros dentro das cidades todos servios que j eram respons-abilidade do poder pblico desde o sculo XIX, na Alemanha. Presses pormudanas provm, em grande parte, tambm, das diretrizes da Unio Europia, quepreceituam a liberalizao dos mercados. Mas as mudanas tm origem, igual-mente, na crise do oramento pblico e na esperana de que, por intermdio daprivatizao, se consiga superar as deficincias domsticas.

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    A liberalizao do mercado de energia a que mais avanou. Mas esse mer-cado tambm um bom exemplo de como a poltica de liberalizao no leva, nec-essariamente, a uma maior concorrncia. Atualmente, o mercado alemo de energia,em virtude de uma concentrao empresarial, monopolizado por apenas doisgrandes conglomerados de empresas (duoplio).

    Em geral, verifica-se uma tendncia para favorecer as foras de mercado,mas um quadro bastante diferente emerge na prxis da liberalizao e da privatiza-o. A ampla abertura de mercado para as redes de prestao de servios e a con-stituio de empresas privadas em substituio aos prestadores pblicos nosignifica, automaticamente, que o Estado est abrindo mo de sua responsabil-idade. Deve-se pensar, tambm, em novas formas regulatrias, num novo arranjoinstitucional entre Estado, mercado e participaes societrias, que d fundamen-to governana pblica. Na prtica, porm, tem-se demonstrado que, em muitoscasos, as administraes pblicas ainda no so capazes de substituir sua ao deprodutores do bem pblico por uma ao de agentes responsveis pela produo,em cooperao com outros atores. Em muitos casos, faltam para isso instrumentosde uma gesto estratgica. Isso transparece, sobretudo, nas grandes cidades, que,por enquanto, organizam suas administraes e servios na forma de empresasmunicipais. Uma anlise da privatizao nesses arranjos empresariais, em 36grandes cidades, no ano de 2001, mostrou que existem ao todo mais de 3 mil par-ticipaes municipais. Entre elas figuram 334 parceiros pblicos oriundos dosnveis no-municipais (isto , estaduais e federais) e 178 estrangeiros. As partici-paes j consomem mais de 90,5% do oramento municipal. Em mdia, cada ci-dade conta com um nmero de 89,2 parceiros para a prestao dos serviosmunicipais. Com base apenas nesses nmeros, fica evidente onde reside o proble-ma: os representantes eleitos dos municpios tm poucas chances de exercer al-gum controle. O nmero excessivo de parcerias municipais no maisadministrvel. Diante disso, tambm j no se consegue mais orientar os serviosmunicipais pelo foco do bem pblico. As participaes esto com as rdeas sol-tas. E isso deixa a democracia municipal com as mos atadas. Como conseqn-cia, as privatizaes e as terceirizaes da prestao dos servios municipaisprejudicam, em termos de gesto, os que foram eleitos para participar na tomadade decises. Isso ocorre por dois motivos. Em primeiro lugar, porque em apenas 1/5 das participaes existem possibilidades reais de gesto (92% delas esto consti-tudas juridicamente sob a forma de empresas de responsabilidade limitada e so-ciedades annimas). Em segundo lugar, a situao agravada pela complexidadeque decorre da falta de transparncia nas relaes entre as sociedades de capital eos rgos de governo. Os municpios ainda no dispem de meios suficientes parauma gesto participativa.

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    Nos municpios, a onda de parcerias pblico-privadas (PPPs) uma tendn-cia cada vez mais forte. Em 2002, mais da metade das cidades alems conduzia pro-jetos de PPPs, especialmente nos setores de desenvolvimento urbano, melhoria dainfra-estrutura tcnica, abastecimento de gua e energia e tratamento de efluentes.

    O aumento quantitativo de PPPs ainda no permite fazer afirmaes sobre adimenso e a qualidade dos trabalhos realizados de modo cooperativo. Em particu-lar, a capacidade de prestar servio e as limitaes desse tipo de arranjo entre par-ceiros pblicos e privados ainda foram pouco estudadas. A esse respeito, seria muitoimportante avaliar em que medida as PPPs esto lanando as bases para a con-tinuidade das parcerias estratgicas, sob a gide da governana pblica.

    A concorrncia serve para intensificar de forma decisiva a implantao do novomodelo de gesto (NMG). Na prtica, pode-se distinguir duas modalidades bsicas deconcorrncia: as virtuais (formas de concorrncia no-comerciais, por meio da com-parao do desempenho, benchmarking e concorrncia qualitativa) e as reais (concor-rncias pblicas, criao de semimercados [Quasimarkt], assim como a subcontrataoexterna, ou o retorno subcontratao interna). Na Alemanha, predominam as formasde concorrncia no-comerciais e a a comparao entre os desempenhos alcanadospelos municpios. Em 2002, 748 municpios participaram em todo o pas de 73 rank-ings comparativos financiados, principalmente, pela Central de Municpios (Kom-munale Gemeninschaftsstelle KGst) e pela Fundao Bertelsmann, e em partesubsidiados pelos governos estaduais (por exemplo, da Saxnia, Baixa-Saxnia,Baden-Wrttemberg e Rennia-Vesflia).

    Na verdade, porm, as cidades j no esto muito interessadas em manter porum perodo longo a comparao intermunicipal de desempenho, sobretudo porqueat agora ela no tem se mostrado uma soluo eficaz para se alcanar uma maiorconcorrncia, o que se deve particularmente falta de transparncia dos resultados.Na maioria dos casos, os resultados repousam no mbito no-pblico da gesto.At hoje no existe, no setor pblico, uma entidade semelhante Warentest, umafundao que compara produtos e servios de organizaes privadas e torna pbli-cos seus resultados. A falta de transparncia dos resultados enfraquece, assim, a mo-tivao pelo benchmarking. Cerca de 2% apenas das cidades alems ainda cotejamem algum momento os desempenhos obtidos na prestao dos servios.

    Comparativamente aos EUA, Gr-Bretanha e Nova Zelndia, as estratgiasalems de concorrncia municipal esto pouco definidas. Na Alemanha, a concor-rncia entre prestadores pblicos e privados de servios pblicos em grande parteproibida por lei. Assim, por exemplo, um rgo de servio pblico est impedido departicipar de concorrncias pblicas. Em regra, de acordo com os ordenamentos mu-

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    nicipais, somente permitida uma atividade empresarial aos municpios, em trssituaes, a saber: quando se trata de um interesse pblico urgente; quando esta ativ-idade no excede a capacidade municipal de prestar servio; e quando o servio emquesto no puder ser igualmente provido por terceiros. A atuao empresarial dopoder municipal fica tambm restrita sua rea jurisdicional.

    Cabe, com efeito, destacar que h uma crescente orientao em favor da con-corrncia entre os atores independentes sem fins lucrativos. Mas tambm a surgemos riscos da concorrncia. A disputa entre eles no se transforma, automaticamente,numa concorrncia entre servios e no beneficia a todos os clientes de forma ig-ual. Os prestadores escolhem o fil mignon (por exemplo, o atendimento ambulatori-al a idosos), e limitam sua atuao a casos leves, enquanto aos municpios restaatender os casos graves.

    As experincias internacionais um tanto negativas de concorrncia (por exemp-lo, o compulsory competitive tendering, de 1980-97, na Gr-Bretanha) reforam atendncia de se evitar a concorrncia na Alemanha. Critica-se, sobretudo, que a mer-cantilizao aumentaria a intensidade do trabalho nos rgos municipais e que, demodo geral, as condies de trabalho do setor pblico, por ora ainda superiores, nive-lar-se-iam s do setor privado, que so piores.

    Em suma, a economicizao do setor pblico alemo uma megatendn-cia. Ela baseia-se na implantao de um novo modelo de gesto (NMG), na privati-zao e terceirizao, nos projetos de PPPs e, ainda que de forma restrita, nasemiconcorrncia (especialmente benchmarking). Por essa razo, so apresentadosos fundamentos para uma nova composio das formas polticas de gesto que fa-voream um novo mix de governana. No entanto, at agora essa composio noest suficientemente caracterizada por novas formas sociais, polticas ou econmi-cas de autogesto, e tampouco est aprimorando a gesto poltica. O avano daracionalidade de custos no otimizou os processos polticos de deciso, mas criou asbases para novas formas de cooperao entre atores pblicos e privados.

    A economicizao do setor pblico, em nosso entendimento, fortalece aperspectiva da governana pblica e estimula novos arranjos institucionais entreatores estatais e sociais. Sobretudo, ela demarca espaos para se testar a cooperaoe parcerias estratgicas em diferentes campos polticos. Considerando-se o desem-prego em massa, isso envolve principalmente as polticas municipais de trabalho eemprego. por isso que esta questo foi escolhida para o estudo de caso.

    3. Governana pblica: prtica e perspectivas

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    Como se realiza na prtica a governana pblica?(Pactos municipais de trabalho como campos de governana)

    A partir do exemplo dos pactos municipais pelo trabalho, pode-se demonstrar oquanto promissor, mas tambm repleto de obstculos, o caminho para uma gover-nana pblica digna desse nome. Por essa razo, a poltica municipal de trabalho eemprego adequada para se avaliar as estruturas de governana pblica, porque elaoferece um novo campo poltico para as cidades alems. A poltica de trabalho e em-prego atribuio tradicional da Unio, e no das cidades. Mas as cidades h muitotempo tm sido as principais empregadoras, implementando os programas nacionaisde emprego. Acima de tudo, elas precisam superar as conseqncias do desempregoem massa (elas financiam a ajuda social para evitar o empobrecimento dos que fi-cam sem emprego por perodos longos).

    Em conjunto com outros atores da poltica, sociedade civil e sindicatos, osmunicpios vm testando, nos ltimos anos, novas formas de criar redes polticas,como os pactos municipais de trabalho, por exemplo. Essas formas situam-se em umadas pontas de um amplo espectro de redes sociais (networks), alianas e parcerias,nas esferas local e regional, servindo como matria-prima para o surgimento da gov-ernana pblica. Sua conjuntura atual na Alemanha uma resposta s estruturas eorganizaes sociais ultrapassadas, que j no tm mais condies de enfrentar ascrises econmicas e sociopolticas e, em especial, o desemprego em massa. Asalianas municipais de trabalho tm como meta criar novos postos de trabalho e as-segurar as vagas nas reformulaes da administrao pblica e dos servios munici-pais. Elas unem contratualmente os tradicionais parceiros sociais (associaes deempregadores, sindicatos e Estado) em parcerias estratgicas.

    Esse tipo de aliana na esfera municipal tem uma longa tradio na Aleman-ha. Ela remonta aos anos 1960, quando, no mbito federal, o governo, os sindicatos eas associaes trabalhistas decidiram, em conjunto, formular uma poltica estatal detributao e distribuio de recursos, inspirada no modelo keynesiano. No nvel dosEstados, inmeros pacotes de emergncia e alianas para a modernizao foramtentados, desde ento, para empreender uma mudana radical da sociedade industri-al para uma sociedade de servio. Em toda a Europa, com exceo da Gr-Bretanhae da Frana, existem inmeras formas de dilogo social e de cooperao entre par-ceiros sociais. Trata-se, a exemplo dos pactos municipais de trabalho, de arranjostripartites, ou seja, o nmero dos atores restrito s organizaes do setor pblico,aos sindicatos e aos empregadores.

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    Na outra ponta do espectro, visualizamos redes sociais que ampliam seu raio deao, incluindo, por exemplo, empresas privadas, mas tambm organizaes sem finslucrativos do terceiro setor e, no mbito municipal, associaes comunitrias e ci-dados individuais. assim que a concepo de governana pblica e o novo modelode modernizao da comunidade de cidados caminham lado a lado.

    As experincias prticas e os resultados cientficos, obtidos at o presente, so-bre o funcionamento das redes locais e parcerias, coincidem em vrios aspectos comos resultados de nossa avaliao sobre os pactos municipais de trabalho. Os re-sultados empricos mostram que:

    t as concepes de governana pblica so pautadas por um enfoque pluralista.Embora, na prtica, a maioria das parcerias entre agentes corporativos seja co-mandada pelo arranjo tripartite, constituindo, por assim dizer, um negcio maisou menos fechado, esse arranjo em princpio encontra-se aberto para outros par-ticipantes;

    t as alianas e redes sociais podem ser entendidas como um novo modelo poltico,que se situa entre os extremos da regulao poltico-administrativa autnoma eda auto-regulao pura de mercado. Todavia, nessas novas relaes polticas, osinteresses da sociedade civil ainda esto claramente sub-representados;

    t nessas estruturas de governana pblica, as relaes de trabalho repousam sobreconsenso e cooperao. O processo de criao de consenso penoso e frgil,porque, ao contrrio da negociao, no repousa sobre um equilbrio de foras,mas sobre armas de luta iguais (mesmo para atores politicamente desiguais);

    t as alianas locais e as redes sociais podem ser entendidas como um negcio detroca. Vale o princpio da reciprocidade, subentendendo-se que cada parceiro, nocurso de uma compensao de interesses, pode almejar um ganho pela cooper-ao;

    t o acordo um dos principais pressupostos para uma cooperao entre aliados. Agovernana pblica deve ser aprovada e aceita tanto pelos novos atores partici-pantes quanto pelas respectivas organizaes (por exemplo, a administrao, ossindicatos de empregados e os sindicatos patronais). Somente dessa forma se con-segue alcanar o poder necessrio (empowerment) para realizar as atividades e osobjetivos das alianas. As alianas sobrevivem principalmente mediante a confi-ana mtua entre os parceiros. Ningum deve sentir-se explorado ou enganado.Uma cultura de confiana no se cria por si s; ela resulta de longos anos de de-senvolvimento de confiana e de um processo de aprendizagem entre os partici-pantes;

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    t as alianas precisam de conduo, ou coordenao. Deve-se trabalhar de formapermanente o processo de discusso, comunicao e troca entre os atores. Paraisso no existe receita certa. indispensvel que os participantes tenham dis-posio para um autocomprometimento, no sentido de se manterem fiis s de-cises tomadas em bloco;

    t as relaes de cooperao esto sujeitas a um controle do bom desempenho, isto ,a uma avaliao. Essa uma condio para que as falhas sejam detectadas e corri-gidas em tempo hbil. Mas , principalmente, pela avaliao que se pode conhecer,no somente os resultados planejados por meio das polticas de aliana e cooper-ao, como tambm seus efeitos colaterais no planejados. Entre eles se incluem,sobretudo, os efeitos produzidos pelas alianas municipais e pelas redes sociais so-bre a democracia e, assim, sobre o questionamento inicial: at que ponto a gover-nana pblica contribui para a governabilidade das entidades municipais, para aviabilidade financeira dos servios prestados comunidade e para a legitimidadedas decises tomadas em parceria?

    A esse respeito, seguem algumas consideraes finais.

    Quais problemas so resolvidos pela governana pblica? E quais no so?

    Avaliaes cientficas slidas sobre os resultados da governana pblica ainda soraras. A partir dos levantamentos sobre os pactos municipais para o trabalho e out-ras modalidades de cooperao estratgica entre diferentes atores, torna-se possvelarriscar um primeiro prognstico a respeito dos resultados, mas tambm apontar osproblemas de governana no resolvidos no mbito municipal. Considerando-se queo ambiente da pesquisa foi pouco transparente e continha inmeras lacunas, apre-sentamos, a seguir, apenas impresses isoladas, que precisam ser sistematizadas ecorroboradas posteriormente para representar um quadro completo. Vamos nos atera resultados empricos para responder s trs perguntas a seguir, cujas respostas doindicaes sobre as condies de sucesso, mas tambm sobre os obstculos que in-tervm na trajetria de uma governana pblica possvel.

    1. O que faz com que atores, movidos por diferentes interesses e racionalidades deao, se envolvam em arranjos de governana pblica?

    2. Como se pode criar alianas, redes sociais e outras formas estveis e duradourasde cooperao? Em outras palavras, de que modo trabalhos pontuais de cooper-ao podem ser transformados em arranjos permanentes de governana pblica?

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    3. E que outros efeitos no previstos podem surgir ou onde termina a capacidade dagovernana pblica de solucionar problemas? Isto , que problemas so criadosou agravados por seu intermdio?

    As respostas indicam que as condies para a cooperao entre os diferentesatores nas estruturas de governana pblica se baseiam em pressupostos e conse-qncias incertos.

    Resposta da 1a pergunta. Entre os pressupostos da cooperao est o fato de que,na esfera municipal, no se lida com atores homogneos. O ator poltico est sujeito auma diviso interna entre uma maioria que exerce poder poltico e uma minoria oposi-cionista. A gesto caracterizada, verticalmente, por grupos que se diferenciam pornveis hierrquicos e, horizontalmente, por grupos com interesses homogneos. Para es-ses dois atores importa que seu estatuto interno seja aplicvel, pois isso decisivo paraque as relaes de cooperao com outros entes municipais e regionais tenham chancede sucesso. O xito da governana pblica depende da habilidade estratgica dos ator-es participantes e da resposta pergunta: at que ponto pode-se garantir, em relao auma perspectiva de longo prazo, um estado de cooperao entre atores racionais (co-mo, por exemplo, a administrao municipal, a administrao do trabalho, os sindica-tos, as empresas, associaes de assistncia social, igrejas, iniciativas comunitrias etc.),que tm interesses prprios e racionalidades de ao especficas? A habilidade es-tratgica depende do quanto se pode dar conta do problema da racionalidade, o que en-volve uma dimenso material (objetiva), uma social e uma temporal. Quanto dimenso social, pergunta-se que estmulos de cooperao animam atores com difer-entes interesses. Que condies os levam a renunciar voluntariamente autonomia de-cisria? A resposta, apesar dos distintos interesses e racionalidades de ao, poderiaresidir em valores compartilhados. Mas mais provvel que os diferentes atores coope-rem em funo das expectativas de ganho, bem como da presso por cooperao queadvm da complexidade dos problemas. Em vista disso, cresce o entendimento de quecada um dos atores, isoladamente, sentir-se-ia impotente diante do problema, e so-mente o trabalho em conjunto dar-lhe-ia a chance de resolv-lo com sucesso.

    No sistema alemo de relaes de trabalho, observa-se um estilo poltico fa-vorvel cooperao, que, por sua vez, favorecida pelo fato de que os atores par-ticipantes, em geral, se confrontam em diferentes arenas, como ocorre, por exemplo,na reforma administrativa municipal, na poltica de tarifas etc. Verifica-se que acooperao, por um lado, produz ao e, por outro, desenvolve a confiananecessria, na medida em que reduz a incerteza, gerada pelas diferenas de interess-es, sobre o comportamento dos outros atores. Por isso, os pactos municipais em proldo trabalho e as estratgias polticas conjuntas sobre mercado de trabalho e emprego

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    fortalecem arranjos institucionais entre os atores, o que permite trazer estabilidade srelaes entre eles e, com isso, romper a estrutura circular do desenvolvimento deconfiana. O desenvolvimento da confiana circular porque a confiana no ape-nas o resultado desejado da cooperao, mas tambm seu pressuposto.

    A capacidade estratgica decorrente do desenvolvimento de confiana pode,tambm, ser ilustrada com uma analogia. As redes de atores so feitas de fios e ns.Assim, os fios representam as expectativas, objetivos e demandas em relao atu-ao dos atores, e os ns representam os prprios atores e suas aes conjuntas. Jun-tos, eles constituem a estrutura de uma rede. A rede tem a funo de reunir atores cominteresses parcialmente diferenciados e parcialmente conflitantes, viabilizando seu tra-balho conjunto. Os atores esto presos rede, ou seja, no podem agir de acordo comseus interesses particulares tanto quanto talvez gostariam. Devem sujeitar-se aos pro-cessos de negociao, aceitar os resultados negociados e ajustar-se uns aos outros. Aocompreendermos por que isso ocorre, saberemos por que e de que forma surgem as re-des sociais e as alianas e o que assegura sua sobrevivncia.

    Diante do exposto, vislumbro a seguinte perspectiva de resposta: as redes pro-tegem os atores. Isso quer dizer que elas possibilitam aos atores a resoluo de prob-lemas que representariam uma carga excessiva para um ator isolado, nico. Emoutras palavras: quem trabalha sozinho sucumbe. As redes evitam a queda; possibili-tam a soluo dos problemas, acima de tudo, pela ao conjunta. Sua estabilidade re-sulta, assim, da presso por cooperao e do bom xito da cooperao.

    Resposta da 2a pergunta. Se a capacidade estratgica dos atores depende dacooperao ensejada pelas relaes que eles desenvolvem e mantm como membrosde uma rede, surge a pergunta: o que assegura a continuidade dessa rede e, com is-so, a estabilidade da governana pblica? Parece que o equilbrio est entre reunir eintegrar os atores e evitar seu insucesso, entre, portanto, a delimitao e a viabiliza-o das aes possibilitadas pela elasticidade da rede poltica.

    A elasticidade torna as redes polticas distintas das alianas municipais. Asalianas, muitas vezes, so pactos de objetivos, com elevado grau de compromisso einstitucionalizao. Os atores participantes limitam-se a poucos membros e, comfreqncia, atuam em arranjos tripartites. Detm mais poder, mas tambm tmmenos elasticidade. Em contrapartida, as redes ampliam os grupos de atores e criamespaos polticos intermunicipais, como bases abrangentes e multiopcionais para no-vas formas de ao cooperativa. Elas abrem caminho para coalizes regionais de de-senvolvimento e para uma governana regional em diferentes campos polticos.Com isso, amplia-se a estratgia dos atores, do mbito municipal para o regional.

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    Entretanto, tambm existe na Alemanha uma srie de exemplos de gover-nana regional. Alimenta-se a a expectativa de que a cooperao nas estruturas re-gionais de governana eleve a capacidade estratgica e poltica dos atores econtribua para que as regies que transcendem as fronteiras de Estados possam vir aser governadas com mais sucesso. Por enquanto fica em aberto se essas expectati-vas so realistas ou no, pois ainda no se conhecem as limitaes de capacidade dagovernana pblica para resolver problemas e tambm se ignoram seus efeitos nega-tivos imprevistos. Essas questes fazem parte da resposta prxima pergunta.

    Resposta da 3a pergunta. Assim, por exemplo, a capacidade da governanapblica para resolver problemas limitada por cinco fatores.

    t Fuso das estruturas de governana e dos ciclos poltico-parlamentares. O atorpoltico eleito para um determinado perodo e sua legitimidade para atuar nagovernana pblica circunscreve-se a esse prazo. Os problemas a serem solucio-nados, no entanto, vo alm do perodo do mandato. Por isso, torna-se necessrioum amplo consenso entre a maioria parlamentar e a oposio, para assegurar acontinuidade dos trabalhos da rede social e da aliana e para manter unidos osatores participantes ao longo dos diversos perodos legislativos.

    t Dessa forma, fica claro que a capacidade dos atores para construir alianas lim-itada. As redes sociais e as alianas, em vista de sua dinmica e funcionamentoprprios, pressupem que todos os parceiros se envolvam em processos deaprendizagem. Nos arranjos de governana pblica existe um cdigo de condutaentre os parceiros, que diferente do preconizado pelos modelos hierrquicos.Os parceiros das redes sociais e alianas, por serem recrutados entre os atorescorporativos (como nos arranjos tripartites), sero parceiros em decorrncia desua funo na organizao a que pertencem. Eles no apenas representam sua or-ganizao (por exemplo, o sindicato), mas tambm precisam mobilizar e con-vencer os membros dela para o trabalho a ser realizado em cooperao comterceiros. A governana pblica no pode ser imposta. Ela se origina de um pro-cesso de troca que oscila entre o topo e a base em toda a organizao. Por isso,supomos que a nova cultura, propiciada por um reformulado cdigo de condutados atores da governana, no se aplica to-somente estrutura da governanacomo tal, mas deve impregnar as prprias organizaes participantes. Desse mo-do, os parceiros, liderando uma coalizo em rede ou uma aliana, iro construirefetivamente as bases para o desenvolvimento de uma confiana mtua.

    t A governana pblica pressupe regras de jogo e institucionalizao. As duascoisas ainda esto pouco caracterizadas no contexto alemo. Isso transparece noexemplo das alianas municipais de trabalho. Elas se situam entre os extremos daregulamentao e desregulamentao. Uma forte regulamentao (por exemp-

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    lo, por meio de contratos) restringe a capacidade de inovao. Em contrapartida,uma aliana fracamente regulamentada (talvez com objetivos estratgicos pre-crios) pode levar a uma incomunicabilidade entre os parceiros, ou estar sendofortemente conduzida por simples pessoas, e no por atores investidos em pa-pis. Quando as pessoas saem, a aliana naufraga. Por isso, sem regras de jogo, osucesso da governana pblica se torna antes obra do acaso de pessoas engaja-das, mas sem papis vinculantes. As regras do jogo devem ser negociadas entreos atores; e, quando modeladas em conjunto, elas tambm podem fortalecer o au-tocomprometimento.

    t Quanto organizao do processo e do controle sobre os resultados, a prtica dagovernana pblica at agora tem apresentado srias deficincias. A organizaodo processo deveria ser to descentralizada quanto possvel e brindar os atoresparticipantes com autonomia. Alm disso, uma coordenao central deveria ga-rantir a troca de informaes e a comunicao no processo de governana e, aomesmo tempo, assegurar ampla transparncia sobre as providncias e atividadeslocais desenvolvidas. Essa seria atribuio de uma gesto estratgica. Mas jus-tamente isso o que ainda falta aos municpios e s regies. Os controles sobre re-sultados e as avaliaes certamente tm soado, nas ltimas dcadas, ao lado damodernizao administrativa, como a cantilena da modernizao nas prefeitu-ras alems, mas de maneira alguma retratam a prxis da reforma. A reavaliaoconstante das metas, dos recursos empregados e dos procedimentos im-prescindvel. Dependem disso a gesto dos processos de governana pblica eseu desenvolvimento subseqente e, sobretudo, a legitimao de atuao dosatores em relao a sua prpria organizao.

    t

    t A pergunta que trata dos reflexos sobre a democracia local uma das que ainda es-to em aberto e no foi respondida at agora pela prxis da governana pblica. Daunio dos parceiros locais poderia resultar uma impulso positiva para o fortaleci-mento da democracia. As chances de democratizao das redes e alianas comu-nitrias residem na incluso dos grupos-alvo como tambm dos parceiros doterceiro setor e das foras da sociedade civil; em outras palavras, dependem de umasociedade reativada, mobilizada. Por isso, a governana pblica, o Estado ativadore a sociedade civil so, freqentemente, mencionados juntos nos debates acadmi-cos. A governana pblica poderia, assim, representar o terceiro pilar da democra-cia comunitria, ao lado da democracia representativa (praticada na Alemanha pelaeleio dos membros das cmaras de vereadores) e da democracia direta (pela von-tade e deciso dos cidados). Seu fundamento a cooperao por meio de alianase redes polticas.

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    Mas, em vista dos problemas descritos e do limitado alcance da capacidade degesto e de financiamento, deve-se questionar se a fora legitimadora dos procedimen-tos da governana pblica seria suficiente para fundamentar essa nova forma de exer-ccio do poder: o poder do povo pela cooperao. Essa seria a perspectiva de umapolis, na qual os cidados, em conjunto, se preocupariam com a res publica e velariampelo bom nome das organizaes pblicas, no sentido de entidades que cuidam do que pblico e do que o pblico significa.

    Quanto aos problemas levantados no incio e capacidade limitada da gover-nana pblica para resolver problemas, permanece, porm, um certo ceticismo.Aqueles que optarem pela governana pblica tero pela frente um caminho longo erduo. Resta saber se o objetivo maior a democracia cooperativa poder seratingido ou no.

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