GOW, Peter - Me Deixa Em Paz

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  • Me deixa em paz!Um relato etnogrfico preliminar

    sobre o isolamento voluntrio dos Mashco*

    Peter Gow

    University of St Andrews

    RESUMO: Este artigo procura oferecer uma discusso etnogrfica sobre osignificado do isolamento voluntrio para o povo Mashco da Amaznia pe-ruana. A natureza mesma do isolamento voluntrio escapa pesquisaetnogrfica, baseada na observao participante. Na ausncia de tal tipo depesquisa, explora-se o que se sabe sobre esse povo por meio de fontes escri-tas e, especialmente (etnograficamente), por meio do que sabem os Piro(Yine), seus vizinhos e parentes. Ser dada ateno especial aos possveissignificados do deixar em paz para os Mashco, bem como histria e aosprovveis sentidos do uso continuado que eles fazem de machados de pedrae do fato de terem abandonado a agricultura.

    PALAVRAS-CHAVE: Mashco, Piro (Yine), Amaznia peruana, isolamen-to voluntrio, poltica e histria.

    Os Mashco so a mais mtica das entidades, um povo indgena amaz-nico em isolamento voluntrio; so ainda mais perturbadores por seremperfeitamente reais. Enquanto falo, eles esto por a em algum lugar,mas ningum, que no eles, sabe exatamente onde. Vivem em nossomundo, mas no querem fazer parte dele. Parecem no querer nadaconosco. Aparentemente, no buscam ter contato com outros, alm

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    deles mesmos, e sempre fogem de contatos assim. Muitos tentam con-tat-los, muitos outros tentam evitar que essas pessoas entrem emcontato com eles, e assim os Mashco tm muitos inimigos e amigos.1

    Mas eles se mantm bem longe de ns.O conceito de isolamento voluntrio me interessa e, sendo um

    etngrafo, me interesso por ele como uma questo etnogrfica. Interes-sa-me dar um significado genuinamente etnogrfico a esse conceito,aquele dos Mashco um fundamento etnogrfico concreto para argu-mentos em defesa do isolamento voluntrio que normalmente se basei-am apenas em princpios dos direitos humanos. Est claro que, se for-mos respeitar o isolamento voluntrio dos Mashco, o que apoiointeiramente, esse significado etnogrfico no poder ser baseado emuma pesquisa etnogrfica de longo prazo, nem no que os Mashco noscontam. Mas no ser esse desafio fascinante para um antroplogo?Maurice Bloch, em uma frase famosa, disse que a pesquisa etnogrfica uma longa conversa (1977). Podemos ter uma conversa assim longa comum povo como os Mashco, que vivem em isolamento voluntrio? Acre-dito que sim, porque eles j esto em um longo dilogo com outros;ouvindo esse dilogo, entramos nessa conversa.

    Com que se parecem as conversas dos ndios amaznicos? Etngrafosdos povos indgenas amaznicos escreveram um bocado a esse respeitorecentemente, em exposies detalhadas, seja de pessoas falando baixi-nho ao entardecer, seja de conversas mantidas em ciclos de expediesde caa s cabeas. O outro est sempre presente nas aes dos povosindgenas amaznicos, e pode-se argumentar que onde essas aes seoriginam (Viveiros de Castro, 2002). O isolamento voluntrio dosMashco uma recusa a um certo tipo de relao social, uma ao inten-cional, e seu sentido dado na interlocuo. Eu no sei quase nada so-bre os Mashco, mas sei bastante sobre seus vizinhos e parentes, os Piro(Yine) do Bajo Urubamba. Os Piro so, a meu ver, quem melhor pode

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    nos contar sobre os Mashco, porque eles falam dialetos de uma mesmalngua. Por isso, comeo por uma histria piro sobre eles.

    Os Piro e os Mashco

    A histria, contada por Kim MacQuarrie em um livro sobre o ParqueNacional Manu, refere-se a eventos que aconteceram em 1982.MacQuarrie escreveu:

    Um ndio Piro aculturado de Diamante, caando no meio de alguns ps

    de banana brava que cresceram logo ao norte do Rio Alto Madre de Dios,

    surpreendeu-se um dia ao ouvir vozes vindo do interior e que ele podia

    entender apenas parcialmente. Rastejando nessa direo e espreitando por

    entre a vegetao, o Piro viu distncia uma pequena clareira com cabanas

    rsticas e cerca de 25 ndios nus ao redor. Eles, pensou, deviam ser Piro

    Mashco no contatados. O Piro correu a Diamante e retornou ao entardecer

    com cerca de 10 companheiros. Quando escureceu e os sons da noite sur-

    giram, os ndios Piro comearam a avanar devagar, sem fazer rudo.

    Gradativamente, distncia, eles puderam distinguir o brilho dos fogos

    do acampamento e sons de vozes. Aos poucos, os Piro se aproximaram do

    acampamento at perceberem um grupo de ndios ao redor de vrias fo-

    gueiras, nas quais pareciam estar moqueando carne de anta. Quando caiu

    a noite e as estrelas surgiram, os Mashco Piro repentinamente se puseram a

    cantar, e assim continuaram por horas. Os Piro, por sua vez, esperaram.

    Finalmente, a 1 ou 2 da madrugada, o ltimo Mashco Piro foi dormir.

    Com um sinal pr-combinado, os ndios Piro irromperam e avanaram

    para o acampamento Mashco Piro, com a inteno de capturar ao menos

    um deles. A maioria dos ndios, atnitos, imediatamente fugiu; um homem

    e um menino, no entanto, foram alcanados e jogados no cho. De acordo

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    com os Piro, o homem lutou por mais de meia hora, to ferozmente, na

    verdade, que eles tiveram que lutar tambm. Por fim, o homem parou e

    surpreendeu seus captores ao repentinamente falar. Me deixem sozinho,

    ele murmurou, assim contou-me o Piro.

    Apesar desse pedido, o homem e o menino foram atados e levados de

    canoa a Diamante, onde todos os habitantes saram para ver o que eles

    consideravam ser seus parentes nus e selvagens. Os Piro de Diamante

    falaram a seus cativos, dando-lhes comida que eles recusaram , roupas,

    machados e outros bens. Os Piro falaram aos Mashco que eles deviam dei-

    xar de fugir, que os Mashco deviam vir morar com eles. De acordo com o

    Piro, o homem falou apenas uma vez, pedindo que ele e o menino fossem

    deixados a ss. Mais tarde, nesse mesmo dia, os Piro atravessaram o rio a

    remo com seus cativos e os deixaram no lugar de sua captura. Instruindo

    os Mashco a ir e trazer seus parentes, os Piro lhes falaram que iriam todos

    receber mais presentes. Libertaram ento seus cativos. Pouco tempo de-

    pois, os Piro ficaram curiosos e seguiram a trilha dos Mashco. A cerca de

    300 ps (100 m) dali, os Piro encontraram um lugar no qual os presentes

    haviam sido abandonados. As vestimentas haviam sido igualmente joga-

    das no cho. (MacQuarrie & Brtschi, 1998, pp. 298-9)

    MacQuarrie conta essa histria em um lustroso livro de mesa de cen-tro sobre uma grande atrao turstica, o Parque Nacional Manu. Ela contada em ingls e em formato impresso, contendo detalhes que noconsigo imaginar um Piro falando. Os Piro no se descrevem comoaculturados, e eles definitivamente no se pensam como ndios. Noentanto, essa histria contm aspectos que me convencem de que sejauma traduo quase literal de uma narrativa piro de experincia pessoal.A histria tem incio com um homem Piro de Diamante caando sozi-nho em um sapnasha, um bosque de bananeiras selvagens. A palavra piropara banana selvagem sapna, que, dizem, como seus ancestrais cha-

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    mavam a banana, sua dieta bsica. As aldeias piro so rodeadas porparantasha, bananais, que vem de paranta, banana, uma palavra quecertamente deriva do espanhol pltano, via o quchua amaznico palanta.No Bajo Urubamba, bosques silvestres de bananeiras so chamados, emquchua, supray chacra, roas dos demnios, e so o tipo de lugar emque coisas estranhas acontecem.

    O caador Piro estava sozinho. Os termos Piro para sozinho soidnticos queles que denotam um e intrinsecamente elidem um ou-tro, um segundo, um par, algo para fazer companhia pessoa solitria.Usualmente, para um caador, este a caa que ele abate e traz de voltapara sua mulher. Na histria de MacQuarrie, porm, o homem Pirosolitrio encontra algo muito diferente de um animal de caa, j que eleouve pessoas que falam sua lngua, Yineru Tokanu, palavras humanas,lngua Piro.

    MacQuarrie relata esse momento na histria do caador Piro quan-do escreve que ele surpreendeu-se um dia ao ouvir vozes vindo do inte-rior e que ele podia entender apenas parcialmente (ibidem). Isso meparece, portanto, uma interpretao de MacQuarrie. Quem se surpre-enderia ao ouvir uma lngua que pode entender apenas parcialmente?A surpresa do homem Piro no est no fato de que ele a podia compre-ender, mas na natureza parcial de sua compreenso. No incio dos anos1980, o modelo privilegiado pelos Piro para indios bravos, ndios bra-vos, eram os Nahua, falantes de Yaminahua que comeavam a fazercontato nas cabeceiras do Mishahua/Manu. Embora alguns Piro enten-dessem o Yaminahua, dada a corresidncia prolongada com falantes des-sa lngua, os de Diamante provavelmente no a entendiam.

    Me Deixem sozinho!, disse o homem Mashco para os Piro de Dia-mante em uma lngua que eles podiam entender. H, penso, dois signi-ficados que podem ser atribudos por um Piro a essa formulao. O pri-meiro o de estar sozinho, gapalushatachri ou satupje. Esse um estado

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    importante para os Piro e central para as dinmicas do xamanismo.Mas pouco provvel que fosse o que disse o homem Mashco quelesPiro, embora a histria tenha tido incio precisamente com um Piro es-tando sozinho. Em nenhum ponto dessa histria o homem Mashco eraum gapalushatachri, aquele que est habitualmente sozinho, j que eleestava sempre com o menino. De fato, da segunda vez em que o ho-mem pede para ser deixado s, esse pedido feito tambm em benefciodo menino.

    O segundo sentido viria com o acrscimo do verbo kojwaka, per-turbar, amolar. Gi pkojwakanno!, me deixe em paz, uma frase Piromuito comum e expressa a insatisfao do enunciador com a forma cor-rente que toma a relao social, no com as relaes sociais em geral.Por exemplo, pais Piro esto constantemente falando para seus filhosdeixarem em paz seus irmos mais novos, um passatempo favorito. Dei-xe-o em paz poderia ser dirigido a uma criana de cinco anos que esti-vesse perturbando sem misericrdia, at o ponto do berreiro, seu irmode dois anos. Irms mais velhas deveriam amar e cuidar de seus irmosmenores, mesmo que crianas de cinco anos apreciem muito mais fazero oposto.

    Nos termos Piro, a frase Deixe-me sozinho, na traduo para oportugus, ambgua. Desejar ficar sozinho uma afirmao ou de queno se quer ter nenhuma relao social com outros ou de que no sequer esse tipo especfico de relao com o outro. Se o homem Maschotivesse dito Eu no quero uma relao social de nenhum tipo comvoc, ento o isolamento voluntrio dos Mashco significaria exatamenteisso: nenhuma relao social. Mas se o homem Mashco tiver dito a seuscaptores Me deixem em paz!, Parem de me forar a ter essa forma derelao social com vocs!, isso sugeriria que ele pensou que eles j ti-nham uma relao social de algum tipo. De fato, ao falar isso, ele pediaa seus captores para trat-lo com respeito, nshinkanchi. Nshinikanchi,

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    pensamento, amor, memria, cuidado, respeito, um valor chave paraos Piro, a definio de sua humanidade.

    O homem Mashco pede ao Piro duas vezes que o deixem em paz.Uma vez ao fim da briga, e outra novamente quando os Piro lhe dizemque seu povo deve parar de fugir e que eles devem ir morar com os Piro.Toda a fora da histria piro reside em que os Mashco j tm uma rela-o social com eles, mas que se recusam a ativ-la da maneira correta.Eles so wumolene, nossa gente, uns para os outros, e fugir, lutar e serecusar a comer a comida reconhecidamente piro no como parentesdevem agir. Em um sentido que no deve ser menosprezado, o homemMashco concorda com os Piro, j que lhes pede que lhe deixem em paz.Ele lhes fala em yineru tokanu, palavras humanas, lngua Piro. Ele falaesperando ser ouvido e compreendido, e, portanto, tratado com respei-to. E ele o , j que os Piro o deixam em paz. Eles do presentes a ele eao menino, e os levam de volta at onde os haviam encontrado.

    Quem so os Mashco?

    Os Mascho inquestionavelmente existem, como disse, mas quem soeles? So trs os grupos de Mashco por ns conhecidos: trs mulheresque fizeram contato com guardas florestais do Parque Nacional Manu;o grupo de origem dessas mulheres, localizado em algum lugar na re-gio do Rio Pinqun; e pelo menos um grupo que est em algum lugarentre os rios Piedras e Purus no Peru e/ou Brasil. Lev Michael resume oque se sabe do terceiro grupo Mashco assim, em termos que tanto sotradicionalmente antropolgicos quanto denotam urgncia poltica:

    [...] razovel concluir que os Mashco so ou substancialmente nmades

    ou um grupo inteiramente nmade que provavelmente no pratica a agri-

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    cultura. Os Mashco parecem passar apenas uma parte do ano na regio do

    Purus, o que sugere que se movimentam por uma ampla rea. Os Mashco

    parecem pouco inclinados a ser beligerantes ou violentos, mas demons-

    tram um forte desejo de evitar interaes com outros. De fato, evidncias

    sugerem que os Mashco no possuem ferramentas de metal, o que aponta

    para a ausncia de qualquer contato substantivo com estrangeiros por um

    longo perodo. provvel que os Mashco no sejam um grupo de lngua

    Pano, o que torna o Arawak a famlia lingustica mais provvel, por razes

    geogrficas se no outras. (Comunicao pessoal)

    As concluses de Lev Michael baseiam-se em uma cuidadosa revisodas evidncias disponveis e recentes, em trs confiveis relatos de con-tatos com Mashco Piro e no exame de dois acampamentos abandona-dos. Beier e Michael (em Leite Pitman, Pitman & lvarez, 2003) rela-tam a descoberta do linguista Alejandro Smith de que as trs mulheresfalam um dialeto do Piro, o que foi confirmado por informantes meusque se encontraram com elas.

    Muito do que se escreveu recentemente sobre os Mashco tem umaaura de mistrio, como se esse povo no s vivesse em isolamento volun-trio, mas fosse completamente desconhecido por estrangeiros. No en-tanto, como notou o padre dominicano Ricardo Alvarez, de Sepahua,no Bajo Urubamba, possvel reconstituir sua histria desde o fim dosculo XVII at o presente com certa preciso (Alvarez, s.d.). Meu rela-to aqui refina e amplia sua afirmao. Um dos maiores problemas paraentender esse povo est em seu nome, Mashco, e na relao recente en-tre as onomsticas dos antroplogos e dos ndios. O nome Mashco veioa ser tomado por um nome pejorativo e, portanto, errado, para outropovo indgena; como tal, foi expurgado da literatura. Infelizmente, nes-se processo, os Mashco acabaram por ser tambm eliminados. No que-ro dizer que Mashco a autodenominao autntica para esse povo,

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    e obviamente tenho pouco desejo de aprender seu nome submetendo-os a toda a amolao que seria necessria para isso e tir-los de sua paz.Este artigo simplesmente minha tentativa de restaurar esse povo lite-ratura etnogrfica do modo menos problemtico possvel.

    A histria dos Mashco desde 1686

    Alvarez (s.d.) registra que o missionrio franciscano Biedma mencionaos Mashco ainda em 1686. Sua primeira apario ocorreu em um mo-mento muito dramtico da histria da Amaznia peruana. Nesse ano,um grupo de soldados espanhis e um exrcito de Conibo subiu o RioUcayali para vingar a morte do padre jesuta Richter, morto pelos Piro.Enquanto subiam o rio, o chefe Conibo Don Felipe Cay-bay contou aBiedma que, a trs dias rio acima, em um tributrio oriental do Ucayali,morava a muito numerosa nao dos Mashcos (Biedma, 1981). A pa-lavra mashco existe na lngua Conibo e significa pequeno, baixo em es-tatura (na cabea + dim.), como em quando eu era pequeno...(Loriot, Lauriault & Day, 1993). O nome do rio, Manipabro, em con-traste, uma palavra piro, manipawlo, uma espcie de gavio.

    Mais de um sculo e meio depois, os padres franciscanos Busquets eRocamora, em princpios do sculo XIX, registrou a existncia dosGuirineris, que so membros da nao Mashco (apud Gray, 1999,p. 11). Guirinieris claramente uma hispanizao de Kiruneru, pes-soa palma pupunha, o nome piro para os Machiguenga. O relato deBusquets e Rocamora localiza os Mashco, portanto, muito mais ao suldo que o de Biedma.

    Patricia Lyon, em sua cuidadosa discusso do uso do termo mashcoem fontes do sculo XIX e do incio do sculo XX (1975), escreve: (...)deve-se lembrar que esse nome foi originalmente aplicado a um grupo

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    localizado nas cabeceiras do Camisea e Mishahua, e talvez tambm noRio Manu. Aparentemente, eles eram um bando de Piro, e foram diver-samente chamados Masco, Piro-Mashco, Mashco e Mashco-Piro (...).Esses eram, muito claramente, os ancestrais dos Mashco de hoje.

    A palavra mashco existe no Piro contemporneo como o nome pr-prio de um grupo de pessoas. Matteson define esta palavra comomembro da assim chamada tribo Mashco, e anota tambm a palavramarakayri, Amarecaeri (1965). O Diccionario Piro, que lhe poste-rior, traduz mashco como Amarecaeri (nome de um grupo nativo),membro do grupo Mashco (Nies, 1986). Alvarez (s.d.) menciona otermo mashkoneri (mashkoneru), grupo endogmico mashco. Isso fa-ria de Mashco um de uma srie limitada de grupos endogmicos no-meados, os Nerune, que os Piro do Bajo Urubamba descrevem comoseus ancestrais.

    As cabeceiras dos rios Camisea, Mishahua e Manu no foram visita-das por no-ndios at a ltima dcada do sculo XIX, quando essa reafoi muito violenta e dramaticamente incorporada ao sistema capitalistamundial por Carlos Fermn Fitzcarrald. A fonte bsica sobre Fitzcarrald o livro de Reyna (1942), que uma biografia peruana tpica sobre umheri local feita por um intelectual local. Reyna nunca se encontrou comFitzcarrald e parece nunca ter viajado pela Amaznia, baseando, por-tanto, seu relato em registros de eventos cheios de mal-entendidos.Muito mais confivel o testemunho de Valdez Lozano (1942), escritoem resposta ao livro de Reyna (1942). Valdez Lozano trabalhou paraFitzcarrald e estava presente na primeira visita de no-ndios ao Manude Ucayali.

    O autor relata que, quando eles primeiro viajaram desde Camiseaat o Manu em 1891, encontraram uma aldeia piro nas cabeceiras desserio, cujos habitantes eram amigveis e lhes contaram que a trs dias rioabaixo se encontrava um assentamento de Piro-Mashco. Fitzcarrald para

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    l se dirigiu com uma fora de 1.500 homens e encontrou a popula-o Piro-Mashco, assim chamados, escreve Valdez Lozano, por causa daconjuno de duas tribos. Os Piro-Mashco receberam os visitantesamistosamente e contaram a Fitzcarrald que rio abaixo havia um rio,chamado Sutlija, habitado por muitos Mashco, que eram pacficos.Fitzcarrald os chamou e lhes deu machados, facas e vrios bens, que elesreceberam com grande curiosidade. Um ms depois, os Mashco mas-sacraram os caucheiros no Rio Cumarjali, e uma srie de ataques econtra-ataques violentos se seguiu. Valdez Lozano (1942) escreve sobreessa violncia:

    Os ndios Mashco, dos mais beligerantes que existem atualmente, vivem

    ao longo do Rio Colorado e foram encontrados espalhados nos bancos do

    Madre de Dios e do Manu; mas em face dos ataques do pessoal de

    Fitzcarrald, tiveram que recuar mais para o interior do Colorado e s suas

    terras originais das cabeceiras dos rios, que eles chamam, em sua lngua,

    Pinquene, Panahua, Cumarjali e Sutilija, e que so afluentes do Manu.

    Colorado claramente um topnimo espanhol, mas Cumarjali eSutilija so sem dvida topnimos piro.

    O relato de Valdez Lozano importante porque ele foi uma teste-munha visual desses eventos. Ele aparentemente nomeia trs popula-es aqui: os Piro, os Piro-Mashco misturados, e os Mashco. No entan-to, a referncia aos rios Madre de Dios e Colorado sugere que seu usode Mashco inclui dois povos muito distintos, mas igualmente hostis:os Mashco propriamente ditos e vrios povos Haramkbt. Suspeito queos Piro estavam cientes de que os primeiros Mashco e os MashcoHaramkbt eram diferentes, j que a palavra makayari aparentemen-te antiga, tendo sido seu uso citado por Gray em 1910 (1999). Mas pa-rece que os patres da borracha, provavelmente pouco curiosos em ques-

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    tes lingusticas, assumiram que a categoria piro de mashco se referia aum nico grupo hostil. Essa confluncia liga-se, evidentemente, a umaprtica do trabalho seringalista: todos os povos indgenas hostis na re-gio so Mashcos, at prova em contrrio, e, portanto, devem ser aba-tidos assim que avistados. Essa confluncia perdurou na literatura.

    Tal confluncia foi certamente produzida pela dependncia deFitzcarrald e seus trabalhadores no conhecimento dos Piro, tanto do BajoUrubamba quanto do Manu. Fica claro pelas fontes histricas que osPiro guiaram Fitzcarrald em seu novo territrio e lhe contaram onde eleestava e com quem. muito provvel que chamassem a todos os povosda regio do Manu de Mashco, e assim eles vieram a se unificar nos rela-tos dos no-ndios. Mais, depois que os Mashco de fato recuaram e seesconderam, os nicos contatos e conflitos que os patres da borrachae seus trabalhadores tiveram foram com os Mashco falantes deHaramkbt, de modo que o nome lhes foi transferido.

    Um aspecto importante do relato de Valdez Lozano (1942) que elemuda os dados histricos apresentados por Lyon em um ponto de im-portncia. Os falantes de Piro da regio das cabeceiras do Mishahua-Manu eram os Piro, enquanto os Mashco viviam rio abaixo, no Manupropriamente. Isso confirmado pelo antroplogo americano Farabee(1922), que registra ter encontrado os Piro vivendo em 1907 na regiodas cabeceiras do Mishahua-Manu, trabalhando para o Seor Torres.Presume-se que eram os mesmos que Valdez Lozano descreveu na mes-ma regio poucos anos antes. Pela descrio e pelas fotografias de Lozano(1942), so muito certamente Piro do Urubamba, no Mashco. Ele des-creve a regio como territrio tradicional dos Piro, ignorando os Pirodo Bajo Urubamba.

    verdade que muitos poucos Piro estavam vivendo no Urubambana poca da visita de Farabee, pois a maioria estava mais a leste, no Purusou Yuru, trabalhando com borracha (ver Gow, 1991). Aqueles que

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    Farabee (1922) descreveu se esconderam na regio das cabeceiras doMishahua-Manu depois de terem matado o patro Baldomero Rodri-guez em 1908. Alguns deles acabaram por se mudar para o BajoUrubamba para viver com Francisco Vargas em Sepa, e outros se muda-ram rio abaixo para a foz do Manu, presumivelmente para ficarem pr-ximos s fontes de bens de mercado (Alvarez, 1959). Parece-me prov-vel, pelo que Conrad Feather me contou, que os Nahua estavam semudando para essa regio nesse perodo, e possvel que isso tenha esti-mulado esses Piro a abandonar seu territrio (ver Feather, 2010).

    Farabee (1922) reporta os Mashco como vivendo ao sul do RioManu, entre os rios Sutlija e Alto Madre de Dios, exatamente ondeValdez Lozano mencionou sua localizao. Eles haviam trabalhado paraBaldomero Rodriguez, mas teriam partido, e ningum sabia para onde.Farabee com certeza encontrou ao menos um homem Mashco, j quelhe tomou as medidas. No fica claro em seu relato se eram os Mashcopropriamente ditos de Valdez Lozano ou se eram seus Piro-Mashco.Farabee escreve: Em suas relaes matrimoniais, no so to restritosquanto algumas outras tribos, j que frequentemente casam com Cam-pa ou Piro. O chefe atual um homem Piro casado com uma mulherMashco (ibidem, p. 77)

    Essa afirmao, em sua aparente simplicidade, contm muito do pro-blema da histria Mashco. Os Piro-Mashco de Valdez Lozano, uma co-munidade formada pelo casamento de Piro e Mashco, efetivamente desa-pareceram nesse ponto para reaparecerem na dcada de 1980. Os Mashco,nesse meio tempo, responderam violncia extrema se escondendo. Sus-peito que os trabalhadores de Rodriguez eram os Piro-Mashco de ValdezLozano, e, no entanto, ningum sabia para onde tinham ido. A visitade Farabee aconteceu justo quando os trabalhadores Amahuaca, do pa-tro Carlos Scharff, o tinham matado no Rio Piedras, em uma cadeia deeventos que levou os Piro do Manu a matar Rodriguez um ano depois.

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    Rodriguez deu a Farabee uma lista de palavras na lngua Mashco.Patricia Lyon comenta:

    [...] a lista contm certas peculiaridades que me levam a pensar que o au-

    tor no conhecia de fato a lngua. Ela contm algumas palavras que pare-

    cem com algum dialeto Hte [Harakmbt] e mais algumas palavras em

    Piro, mas no as pude relacionar a outra lngua existente na regio [...].

    (1975, p. 190)

    A autora nota, ainda, que essa lista de palavras, estranha e de segundamo, foi usada por todos os estudiosos que tentaram classificar as ln-guas locais, causando grande confuso. Parece-me provvel que Rodri-guez tenha dado a Farabee uma lista de palavras faladas pelos Mashco,no sentido que esse termo veio a adquirir na regio de Madre de Dios:palavras de um ndio selvagem genrico. Essa pequena lista de pala-vras tambm a fonte de uma persistente suspeita de que a lnguaMashco de algum modo uma mistura das lnguas Piro e Haramkbt.

    A lista de palavras de Farabee levou a uma srie de confuses notveisna literatura antropolgica e lingustica sobre essa regio da Amazniaperuana. Levou iluso de que as lnguas Arawak e Haramkbt eramintimamente relacionadas; confuso dos diferentes grupos chamadosMashco pelos Piro; e provvel iluso de que a lngua Mashco umafuso Piro-Haramkbt. Obviamente, essa ltima iluso pode ou no serprovada como verdadeira. Imagino que a lngua Mashco, dada a locali-zao histrica de seus falantes, tem um maior nmero de emprstimoslingusticos do Haramkbt do que o Piro do Urubamba, assim como oextinto dialeto Piro dos Kuniba, antes falado no Mdio Yuru, contin-ha emprstimos de lnguas locais. Mas nada justifica as muitas conclu-ses tiradas com base na lista de palavras de Farabee, a no ser a quasecompleta falta de informao sobre os povos indgenas dessa regio.

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    No consigo encontrar referncias sobre os Mashco de 1907 at osanos 1940. Penso que essa falta de referncias no fortuita. Com oaumento da violncia e a queda do preo da borracha, o Madre de Diostornou-se marginal e uma rea largamente abandonada pela economiada Amaznia peruana, que ainda estava centrada em Iquitos, no RioAmazonas. Os mercadores e patres da rea reorientaram suas ativida-des para a Bolvia, e de fato viajar partindo dessa regio para a costa doPeru era mais fcil por essa via. Os principais autores sobre o Madre deDios nesse perodo foram os dominicanos, que inicialmente tiveram dechegar rea subindo o rio pela Bolvia. A regio de Manu/Alto Madrede Dios, que foi a zona proximal dos trabalhadores de Fitzcarrald, tor-nou-se zona distal aos desenvolvimentos posteriores. Lyon (1975) notaque o termo mashco usado pelos brancos da regio do Madre de Diosde um modo pejorativo, significando selvagem, maligno, incivilizado,beligerante, etc. Ela apresenta o importante argumento de que, nessaregio, mashco substitui o termo chuncho, com o significado de povosindgenas que resistem s incurses dos brancos.

    Para os dominicanos, o termo mashco era absolutamente identifica-do com falantes de lnguas Harakmbt, em particular os Arasairi, e de-pois os Amarakaeri. Nada em minha pequena familiaridade com a lite-ratura dominicana no Manu/Madre de Dios indica uma percepo daparte deles de que os Mashco podiam ser qualquer outra coisa que noum povo falante de Harakmbt. Suspeito que, durante esse perodo,eles permaneceram na rea a eles atribuda por Farabee (1922), ondedois dos grupos Mashco ainda vivem.

    O Rio Manu foi efetivamente abandonado por estrangeiros quandoo preo da borracha caiu durante a Primeira Guerra Mundial, emborauma misso tenha sido fundada em sua foz pelos dominicanos, em 1908,abandonada em 1921, porque muitos haviam partido. Eles ento fun-daram uma nova misso para os recm-contatados Machiguenga do Rio

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    Palota, que foi abandonada, por sua vez, em cinco anos, em razo deataques de ndios (MacQuarrie & Brtschi, 1998). No est claro seesses ataques vieram dos Mashco ao norte ou dos Wachipaeri falantesde Harakmt ao sul (cf. Lyon, 1975). Apesar da falta de registros, pare-ce-me provvel que os Mashco tenham tido contatos ocasionais com osPiro, os Machiguenga e outros povos indgenas.

    provvel que uma ateno mais cuidadosa dos registros dominica-nos sobre o Madre de Dios revelasse, na condio de uma leitura crtica,mais detalhes sobre os povos Mashco nesse perodo. Que eles sabiam desua existncia est indicado na seguinte passagem de Barriales sobre avida do padre Jos Alvarez:

    Em 20 de junho [1940], chegou um hidroplano comandado pelo capito

    Conterno. Nele, padre Jos sobrevoou, na regio de Colorado, Manu,

    Pinkn e Alto Madre de Dios, as casas e as aldeias dos Mashco, jogando

    inmeros presentes. Sua nsia em cham-los enquanto eles corriam louca-

    mente para se esconder na floresta quase o derrubou pela janela. (Barriales,

    s.d., p. 49)

    Essa passagem sugere que os dominicanos estavam cientes da exis-tncia dos Mashco, mas assumiram que eram falantes de Harakmbt,como os no contatados Amarakaeri do Rio Colorado. O sobrevoo dasaldeias mashco fazia parte dos eventos dramticos envolvendo a expedi-o Wenner-Green, liderada por Paul Fejos, que efetivamente alou aidentificao dos Mashco como falantes de Harakmbt a fato cientfico.

    As prximas referncias de que disponho sobre os Mashco vm deminha prpria pesquisa nos incios de 1980 no Rio Bajo Urubamba.Os Piro mais velhos me contaram que haviam encontrado os Mashcono Rio Manu no incio da dcada de 1940, quando trabalhavam comborracha para o patro Manuel Basagoita. Contam-me que eles no

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    so verdadeiros Piro, eles falam diferente. Um homem lembrou quetinham muitos perus domsticos, e outro comentou sobre sua falta devestimentas. Conclu, de princpio, que falavam dos Piro de Diamante.

    Os Piro frequentemente buscam se diferenciar de outros como osPiro verdadeiros: meus informantes das aldeias abaixo do Sepa diriamque os de Miara, acima do Sepa, no eram verdadeiros Piro, eles sodiferentes, eles so Machiguenga (i.e., casaram com Machiguenga). Issono significa que eles no possam simultaneamente reconhecer essaspessoas como Piro em outros contextos, mas dizem que ser Piro vem debero, ou algo assim. Cheguei ento concluso de que era provvelque meus informantes considerassem o povo de Diamante comoMashco-Piro, no sentido de que eles vivem perto dos Mashko deShintuya e arredores. Isso refletiria o uso contemporneo dos Piro: selhes pedir que definam a palavra Mashko, eles diro Amarakaeri.

    Hoje em dia no tenho tanta certeza de que meus informantes fala-vam de um nico grupo de pessoas, j que, como muitos estrangeiros,no incio dos anos 1980, eu no sabia que dois povos falantes de Piroviviam no Manu, sendo portanto incapaz de formular questes que meusinterlocutores pudessem facilmente responder. Se a referncia abun-dncia de perus domsticos talvez relativa aos Piro de Diamante, areferncia falta de vestimentas certamente no o . Os Piro de Dia-mante sabiam da existncia dos Mashco e que eles eram diferentes de-les, e estou seguro de que os Piro do Urubamba tambm o sabiam. Umhomem, que tinha visitado recentemente sua filha mais velha que mo-rava em Diamante me relatou, em 1984, que as pessoas daquele locallhe haviam contado sobre trs mulheres e de como as conheceram pes-soalmente. Disse que elas falavam Mashco, e que eles conseguiam en-tender metade do que falavam. Elas so nossos parentes Piro, disse-me,em oposio aos Amahuaca, Nahua ou Amarakaeri, que falam lnguascompletamente diferentes. Tampouco se referia a uma lngua relaciona-

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    da, j que os Piro negam categoricamente que Ashninka e Machiguen-ga, que dividem muitos cognatos com o Piro, se paream de algummodo com sua lngua. Ele quis dizer que o Mashco um dialeto doPiro, como a lngua Manitineri, falada no Brasil e na Bolvia. Assegu-rou-me que o Mashco eram totalmente diferentes das pessoas de Dia-mante. Disse-me que o povo de Diamante era exatamente como os Pirodo Urubamba, gente civilizada, mas que os Mashco eram um povoindgena selvagem que vive na floresta. Disse, ainda: Eles vivem nus nafloresta, e eles so meus parentes Piro! verdade! e riu do absurdo disso.

    O padre dominicano Alvarez (s.d.) afirma que os Mashco visitaram amisso dominicana de El Rosrio del Sepahua nos anos que se seguiram sua fundao, em 1948. Ele escreve que, quando chegou em Sepahua,em 1952, conheceu cinco famlias Mashco compostas de mulheresMashco casadas com homens Amahuaca, cujos filhos frequentavam asescolas primria e secundria. Os homens teriam obtido suas esposas naregio do Alto Purus, no Rio Cujar. Elas eram mais altas que seus mari-dos e falavam um dialeto Piro. Alvarez diz que essas famlias retornaramao Purus e que seus filhos vivem hoje no Juru. Relata, ainda, que em1953 outras trs famlias de mulheres Mashco com maridos Amahuaca(dos rios Inuya e Curiuja) mudaram-se do Sepahua para o Tambo, a fimde viver com seus parentes na hacienda La Colonia, de Francisco Vargas(na verdade, Vargas morreu em 1940), sob comando de mulheres.Alvarez registra outro casal, um homem Mashco casado com uma mu-lher Yaminahua do Alto Purus, que tambm visitaram o Tambo; depoisum homem Mashco com sua mulher Machiguenga, que visitaram igual-mente o Tambo e viviam em Sepahua; e, enfim, outras quatro famliasde homens e mulheres Mashco que permaneceram na misso.

    O que me parece um tanto estranho nesse relato de Alvarez quetoda essa movimentao dos Mashco no tenha atrado a ateno doSummer Institute of Linguistics (SIL). Seguramente, a linguista Esther

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    Matteson iria querer encontrar falantes de um dialeto do Piro to dife-rente, e com certeza nunca ouviu falar deles. Isso me faz suspeitar que amaior parte dessas pessoas no era Mashco, mas simplesmente Piro, doRio Manu, ou Manitineri, do Rio Yaco, com quem Matteson de fatotrabalhou, engajados em sua habitual mobilidade. Penso, porm, que asesposas dos primeiros cinco casais que Alvarez menciona poderiam bemter sido mulheres Mashco, j que ele descreve suas casas como redondase parecidas com favos de colmeia. Afirma que essas famlias permanece-ram alguns meses e depois retornaram ao Rio Purus, presumivelmentesem seus filhos (um fato importante que Alvarez no explora).

    Uma possvel confirmao vem de uma enigmtica histria narradapor Juan Sebastin Perez e publicada por Matteson (1965) como Kokgagwachine [Habitantes do Purus]. Ela fala de um ritual de magia decaa que os Piro do Urubamba no conheciam. Matteson a traduz comouma histria dos Piro ancestrais, mas ela tambm pode ser lida comouma descrio de um povo contemporneo que vive no Rio Purus-Cujare que age como seus ancestrais. Fica claro pela histria de Sebastin Perezque ele no havia encontrado essas pessoas, mas no diz quem lhe con-tou sobre elas. Contm a palavra powrapotutayy!, que talvez possa sertraduzida por o parente verdadeiramente distante!, uma forma quepoderia corresponder s imagens mais recentes dos Mashco.

    Esses casamentos Amahuaca-Mashco sugerem as origens dos Mashconos rios Piedras e Purus. Parece que, por volta dos fins de 1940, umgrupo de Mashco se mudou da regio Manu ao Rio Cujar suspeitoque em razo da retomada da coleta da borracha causada pela SegundaGuerra Mundial. Essa mudana estava ligada provavelmente a contatoscom os Amahuaca, talvez com homens que haviam ido trabalhar comborracha no Manu.

    Alvarez (s.d.) escreve:

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    Minha experincia no Sepahua a de que, se os Piro e os Machiguenga

    temiam o povo isolado e se organizaram para se defender deles, os

    Amahuaca, ao contrrio, esperaram a estao seca para sair em expedio e

    encontrar o povo isolado, com quem podiam fazer alianas e reparar seu

    dficit demogrfico.

    Gertrude Dole e Robert Carneiro, excelentes etngrafos americanosdos Amahuaca do incio dos anos 1960, aparentemente no fazem refe-rncia alguma aos Mashco em seus escritos. Dole, porm, confirma apoltica matrimonial registrada por Alvarez e nota o seguinte, em umadiscusso sobre subgrupos amahuaca: O (...) grupo Chayahuo (osAfins) ou Chiayahuo dito ter vivido em um tributrio do Sepahua enos rios Piedras e Manu, mas hoje est desaparecido. Informantes notinham certeza se eles eram parentes ou diferentes, outra nacin, outranao (1998). Os Afins, o povo cunhado, seria uma descrio perfei-ta para os Mashco de uma perspectiva amahuaca. Se essas pessoas fos-sem Mashco, isso confirmaria o relato de Alvarez.

    Os informantes Amahuaca de Dole contaram-lhe que os Chayahuodesapareceram no incio dos anos 1960, e o mesmo verdade para ogrupo Mashco setentrional. falta de qualquer evidncia, posso apenasespecular que eles entraram em conflito com os novos exploradores daregio do Bajo Urubamba, os madeireiros. Meus informantes relutavamao extremo em discutir ataques a ndios selvagens nesse perodo. Elesme contaram de ataques dos quais foram vtimas, mas ouvi apenas doisrelatos que tinham trabalhadores da madeira como agressores. Ambosso muito incertos. Um homem falou com admirao de um velhoAshninka que atacou uma aldeia de ndios selvagens no Alto Yuru ematou alguns. Um homem de meia idade de Sepahua me contou tervisto, quando jovem, um outro homem Piro tomar o poderoso alucin-geno to, a pedido de um madeireiro, para encontrar uma aldeia de n-

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    dios selvagens nas cabeceiras do Sepahua, o que ele fez. Isso teria ocorri-do nos anos 1960.

    Naquele tempo, conclu que essa busca tinha por motivao evitar aaldeia, mas agora posso pensar em um motivo mais bvio. Isto sugereque o grupo Mashco setentrional, das cabeceiras de Sepahua, Cujar ePurus, estava provavelmente em conflito com os Piro e outros trabalha-dores indgenas da madeira. Esse conflito talvez os tenha levado das ca-beceiras dos rios Sepahua e Cujar para leste, em direo regio entre oPiedras e o Purus, onde os madeireiros no estavam trabalhando.

    Ao fim dos anos 1960, eles comearam a ser vistos no Purus pelosSharanahua, que os identificaram como Mashco para os missionriosdo SIL que com eles trabalhavam (Beier e Michael, apud Leite Pitman,Pitman & Alvarez, 2003). Isso significa que os Sharanahua haviam de-batido sobre isso com os Piro, tendo usado um nome piro: esses debatespodem ter tido lugar na base do SIL em Yarinacocha, em viagens para edo Sepahua, e no prprio Purus (os Piro continuam a visitar esse riopartindo do Urubamba). Beier e Michael registram uma expedio doSIL para contatar os Piro Mashco que envolveu um homem Amarakaeri(Arakmbut). O instituto obviamente interpretou o nome Mashco comofalantes de Harakmbt, apesar do fato de que nenhuma meno ja-mais foi feita sobre tal povo to ao norte. A expedio encontrou algunsMashco que claramente nada entendiam do que aquele Amarakaerilhes dizia.

    Agora: se o Mashco no era uma lngua Pano ou Harakmbt, o queera? O candidato bvio, nessa regio, era Maipuran/Arawak. Em 1956,Russell e Hart, os missionrios do SIL que estavam trabalhando com osAmahuaca, entrevistaram uma mulher Iapari que vivia entre osAmaracaeri/Arakmbut (Parker, 1995). Por volta de 1977, o institutodecidiu que os Mashco poderiam talvez ser falantes de Iapari (Ribeiroe Wise, 1978). Apesar do engajamento do SIL em traduzir a Bblia a

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    todas as lnguas humanas conhecidas, eles parecem no ter tentado, nessemomento, trabalhar com a lngua Iapari. Em 1977, eles pareciam con-siderar o Iapari uma lngua efetivamente extinta.

    Os Mashco emergem

    Tudo mudou no fim dos anos 1970, quando trs mulheres Mashco serevelaram a guardas do recm-criado Parque Nacional nas margens doRio Manu. Obviamente existentes, essas mulheres levantavam um pro-blema. Quem so elas? Sua chegada coincide com o incio de contatospacficos entre os Nahua das cabeceiras do Mishahua-Manu e estrangei-ros; e inicialmente se assumiu que elas tambm eram Nahua, falantes deuma lngua Yaminahua-Pano. No entanto, os Piro que as encontraramdisseram que elas falavam uma lngua que eles podiam entender apenasparcialmente, um dialeto Piro.

    Em 1988, Juan Sebastin Sandoval, lder da aldeia Miara e filho deJuan Sebastin Perez, me contou ter feito uma longa viagem ao Manu,onde encontrou e conversou com trs mulheres Mashco. Ele me disseque sua motivao era comer taricaya, ovos de tracaj, nas praias doManu, como seus antepassados faziam todo ano. Contou-me que o go-verno buscava evitar que os Piro explorassem recursos do Rio Manu eque ele queria garantir seu direito, bem como o direito de seus parentestambm. Essa viagem, atravs das cabeceiras dos rios Mishahua e Manu,deve ter ocorrido aps a remoo dos Nahua de Sepahua, tendo em vis-ta que Juan Sebastin Sandoval no teria tentado viajar antes disso. Pen-so que sua viagem era uma resposta a essas novas condies de paz parareativar uma possibilidade mais antiga.

    Sebastin Sandoval me contou que as mulheres Mashco falavam umalngua que ele podia compreender apenas parcialmente, que elas fala-

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    vam Piro. Estou certo de que eu no fui a nica pessoa a quem ele con-tou isso, porque Steven Parker, membro do SIL, registra o seguinte:

    Aos cuidados do SIL, o professor escolar bilngue Juan Sebastin Sandoval,

    do grupo tnico Piro, realizou uma expedio ao Departamento de Madre

    de Dios em novembro de 1990 para descobrir que grupos nativos eram

    encontradios nessa regio. O professor Sebastin encontrou uma famlia

    nos bancos do Rio Piedras que falava Iapari. Dado o interesse do SIL em

    todas as lnguas autctones da Amaznia peruana, mandamos um peque-

    no aeroplano a esse lugar. Neste voo, o professor Sebastin estava acompa-

    nhado de Stephen Parker, um linguista de campo do SIL que tem expe-

    rincias similares com outros grupos pequenos. Graas ao contato inicial

    do professor Sebastin, a famlia Iapari nos recebeu com entusiasmo.

    (Parker, 1995)

    Dada a falta de interesse anterior do SIL nos Iapari, essa viagemdramtica me sugere que Parker suspeitava que os Mashco podiam bemser falantes de Iapari e que eles tinham agora uma comunidade de falafuncional, tornando-se desse modo alvo da evangelizao.

    Poltica Mashco 1: machados de pedra

    Os aspectos mais surpreendentes dos relatos sobre o isolamento volun-trio dos Mashco so seu uso de ferramentas de pedra e sua falta de agri-cultura. Estas duas caractersticas evocam nos ocidentais poderosas ima-gens mticas. Os Mashco so caadores e coletores da Idade da Pedra. claro que esse um mito ocidental e que extremamente improvvelque os Mashco usem ferramentas de pedra e no pratiquem a agricultu-ra, porque eles so, por assim dizer, sobreviventes anacrnicos de um j

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    ultrapassado estgio evolucionrio do desenvolvimento humano. A uti-lizao de ferramentas de pedra por povos indgenas contemporneos eseu engajamento na caa e na coleta so extremamente raros, e tm sig-nificados polticos discernveis, contanto que pensemos em poltica aomodo indgena amaznico. Inicio com os machados de pedra.

    A descrio forense de Beier e Michael acerca de suas casas e o teste-munho do SIL sobre sua tecnologia em 1971 so notveis: essas pessoasusam machados de pedra e no demonstram nenhum interesse em ad-quirir ferramentas de metal. Conrad Feather me contou que mesmo osmais velhos Nahua nunca viram um machado de pedra e sempre usa-ram os de metal. Os Nahua parecem ter tido muito menos contatospacficos com povos que possuem machados de metal que os Mashco,mas de algum modo sempre conseguiam tomar posse deles. Parece-meextremamente improvvel que os Piro usassem machados de pedra hsculos, e, dadas as relaes pacficas entre os Mashco e outros povosPiro desde no mnimo o sculo XIX, provvel que os Mashco conhe-cessem ferramentas de metal e as tivessem adquirido se assim o desejas-sem. Por que, ento, usariam eles ferramentas de pedra?

    Valdez Lozano escreveu sobre o primeiro encontro entre Fritzcarralde os Mashco, dizendo que ele lhes deu ferramentas de metal, comomachados, faces, facas e outros bens, que foram recebidos com grandecuriosidade pelos ndios porque era a primeira vez que eles os viam (...)(1942). Ele no conta como sabia que os Mashco nunca haviam vistoferramentas de metal, e me parece muito improvvel que eles nunca astivessem visto. Sua afirmao parece uma parfrase do comentrio pirosobre a grande curiosidade que os Mashco demonstraram pelos pre-sentes de Fitzcarrald. Valdez Lozano podia certamente ter visto o inte-resse intenso que os Mashco demonstravam pelos presentes, mas apenasuma pessoa Piro poderia t-lo explicado.

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    Matteson registra a seguinte afirmao piro de fins de 1940 ou co-meo de 1950: A gerao anterior usava bambus cortados por facas emachados de lmina de pedra. Os machados eram pouco usados para otrabalho com madeira, servindo antes para abrir cascas de tartaruga ecomo armas (1954, p. 55).

    Do modo como foi exposta, essa afirmao absurda, porque os Piroda regio do Bajo Urubamba provavelmente no usaram machados depedra com alguma frequncia por muitos sculos, e certamente no ousaram nos fins do sculo XIX. Mas uma afirmao piro muito comum a de que seus ancestrais, Tsrunni, os mortos antigos, viviam na flo-resta, no conheciam machados de metal (giyawa, gepchi) e usavam osde pedra (malyawa). Nesse contexto, o registro de Valdez Lozano eraprovavelmente o de um comentrio dos Piro de que os Mashco eramcomo seus prprios ancestrais, Gi gepchi rumata wa mashko [OsMashco no conhecem ferramentas de metal].

    Farabbe registrou em 1907 que os Mashco So os ltimos ndios daregio a fazer e utilizar ferramentas de pedra (1922). Relatos recentessobre os Mashco confirmam esse ponto, mas penso que devemos limp-los de seu sentido ocidental e lhes dar um sentido amaznico. Por essaltima perspectiva, o uso de ferramentas de metal pelos Mashco umaevidncia de sua recusa em trocar ou saquear ferramentas de metal dosoutros. essa recusa que notvel em todos os relatos sobre os Mashcodesde 1890. O que ento ela pode significar? Suspeito que ela significaque os Mashco tm como caracterstica e conhecimento prprio a habi-lidade de fazer machados de pedra. Esse conhecimento os posiciona deum modo especfico aos olhos de seus vizinhos. Fabricantes de macha-dos de pedra, seus vizinhos deles dependeriam para adquirir tais obje-tos, e essa dependncia colocaria os Mashco no centro de um complexosistema de trocas. No fim do sculo XIX, porm, os patres da borracha

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    comearam a inundar o Manu com substitutos baratos de metal aosmachados de pedra. E enfatizo barato. A maioria dos que escrevemsobre a histria amaznica tende a enfatizar o alto custo comparativodos machados de metal para os povos indgenas, em termos de trabalhoduro, vidas desperdiadas, destruio cultural. De um ponto de vistaindgena, machados de metal eram assustadoramente abundantes, j queos brancos tinham quantidades notveis deles. A dificuldade est emtentar tom-los das mos desses brancos, tomar posse deles. Isto o que,de uma perspectiva amaznica, d histria sua natureza trgica.

    Penso que essa perspectiva, e esse sentido de tragdia histrica, expli-ca o isolamento voluntrio dos Mashco. uma resposta ao fato de quenenhum de seus vizinhos queira mais machados de pedra. ComoStephen Hugh-Jones (1992) demonstrou acerca da troca na Amaznia,bens equivalem a uma relao social, e, se ningum quer trocar com osMashco os objetos que produzem, ento ningum quer ter uma relaode troca com eles. Os Mashco responderam na mesma moeda. Eles seisolaram voluntariamente.

    A mitologia da indstria de borracha nos conta que Fitzcarrald e seusseguidores foram constantemente violentos contra os povos indgenas,mas est claro que a poltica de Fitzcarrald era tentar endividar os povosindgenas e torn-los trabalhadores. O relato de Valdez Lozano (1942),que est longe de ser cheio de pruridos ou modstia, deixa claro que aprimeira tentativa de Fitzcarrald foi de habilitar, preparar os Mashco.Eles ento responderam, mais tarde, atacando os trabalhadores da bor-racha. De uma perspectiva indgena, este foi um movimento da troca guerra, um movimento que, como argumentou Lvi-Strauss (1976), tpico da ao poltica indgena amaznica. possvel que essa mudan-a para a violncia da parte dos Mashco tenha sido uma tentativa dedefender seu monoplio sobre os machados de pedra da competiodada pelo fluxo de machados de metal. Evidentemente, os Mashco

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    no podiam ter previsto quo violentos os trabalhadores da borracha deFitzcarrald estavam dispostos a se tornar.

    Poltica Mashco 2: nomadismo

    Os Mashco, ento, abandonaram tambm a agricultura. pouco pro-vvel que eles no fizessem roas no sculo XIX. Farabee (1922) relataque eles as faziam em 1907 e, portanto, o abandono da agricultura poreles um fenmeno do sculo XX. A Amaznia um ambiente muitodifcil para se viver de caa e coleta; e Bale (1994) argumentou que provavelmente impossvel faz-lo em reas que no so marcadas pelocultivo intensivo prvio. Apenas florestas secundrias antigas contmuma vegetao suficientemente apropriada para sustentar caadores ecoletores. Todos os relatos localizam os Mashco em tais reas de florestade regenerao de roas antigas, seja no Manu (suas roas ancestrais),seja em Purus e Piedras, antigas roas dos Piro e mais tarde de povosPano, e dos Iapari e Amahuaca, respectivamente.

    Um dos problemas do estado corrente de nosso conhecimento sobreos Mashco que todos os contatos com estrangeiros de que temos not-cia ocorreram durante a estao seca, quando eles transitam pelas praiasdos grandes rios em busca de ovos de tracaj e outros recursos sazonais.Ningum sabe onde ou como eles passam a estao chuvosa. Isto signi-fica que possvel que, como os Arawet do Brasil, eles pratiquem algu-ma forma de agricultura durante a estao chuvosa, baseada talvez emmilho. No entanto, como me apontou Lev Michael, as regies em queeles poderiam passar a estao chuvosa foi intensamente fotografada peloar e nenhuma evidncia de atividade agrcola foi revelada.

    Trabalhos recentes sobre o retrocesso agrcola, sobre a deciso de pa-rar de fazer roas, sugerem que essa deciso exatamente isso, uma deci-

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    so. Como demonstrou Turner (1979) em sua anlise da histria recen-te dos Kayap, essas decises nunca so tomadas apenas por necessida-de econmica ou ecolgica, sendo sempre decises polticas, com conse-quncias dramticas para o corpo poltico. No temos acesso ao processode tomada de deciso dos Mashco, mas, seguindo o trabalho de Turnersobre os Kayap e o de Townsley (1994) sobre os Yaminahua, prov-vel que ela no tenha sido uma deciso sbita, e sim uma intensificaoou um prolongamento de um padro anterior de expedies sazonais.

    Em uma comunicao pessoal, Lev Michael me expressou sua sur-presa com o fato de que um grupo de falantes de Piro tenha escolhidoviver como vivem aparentemente os Mashco. De fato, eu tambm te-nho dificuldades em acreditar nisso. Mais significativo ainda, nossa in-credulidade partilhada, como demonstrei, por muitos Piro. Dito isto,penso que a escolha de se tornar nmades em isolamento voluntrioreflete algumas pequenas transformaes em aspectos importantes dasrelaes sociais e prticas econmicas piro.

    A mais surpreendente caracterstica dos Mashco, quando compara-dos aos Piro, sem dvida sua rejeio a um estilo de vida muito depen-dente da proximidade de grandes rios, com uma subsistncia fortemen-te baseada na pesca e na agricultura, em grandes aglomeraes que sosemipermanentes. De fato, a vida em tais aldeias, cercados por paren-tes, um valor central aos Piro: para eles o viver bem (Piro: gwashata).O verbo piro significa, literalmente, ficar por muito tempo em umlugar, sendo fortemente contrastado com uma vida em constantemovimento, consequentemente impeditiva de se construir casas, de fa-zer roas e de se engajar nas trocas cotidianas de comida com paren-tes corresidentes.

    Parece extremamente improvvel que os Mashco tenham gwashatacomo um valor importante, mas que tambm no importante paratodos os Piro. Em particular, no um valor-chave para os jovens.

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    Homens Piro jovens afirmam sua masculinidade mediante sua mobili-dade e disposio de enfrentar a solido. Eles fazem longas viagens aoutras comunidades em busca de esposas potenciais, ou simplesmentepor aventura. Uma verso disso, o equivalente dirio das longas viagens, a caa. Pela caa, o jovem Piro mostra aos outros, e em especialmentepara si, ser um homem que no apenas um provedor, mas tambmcapaz de enfrentar a solido.

    De um ponto de vista piro, os Mashco so uma solido coletivizada,uma coletivizao da condio do caador na floresta. O que impede osPiro de coletivizar a solido precisamente a necessidade do caador deretornar aldeia, de dar a caa a uma mulher (sua me ou esposa) paraque ela a prepare. no viver bem da aldeia que o produto do caador distribudo a outras mulheres, por sua me ou esposa, para ser prepa-rada e consumida. Para se tornarem Mashco, os caadores Piro teriamque convencer suas parentas e esposas a acompanh-los nas expediesde caa.

    Essa possibilidade permanece imanente, mas muito latente na vidasocial piro. Em primeiro lugar, ao contrrio da maioria das mulheresamaznicas, muitas mulheres Piro sabem caar e poderiam faz-lo. Elascaam com as mesmas tcnicas usadas pelos homens, e com as mesmasarmas. Aprendem a caar acompanhando seus maridos em expediesde caa, especialmente se so jovens e desincumbidas de filhos peque-nos. Muitas mulheres Piro parecem de fato apreciar essas escapadas scom seus maridos para a floresta, liberando-se do circuito dirio das pre-visveis tarefas femininas e indo para a excitante variedade da floresta.Pela caa, as mulheres Piro so capazes de acessar e apreciar alguns dosaspectos da experincia masculina.

    As expedies de caa de um casal Piro no constituem um mundosocial completo, porque as relaes sociais de que seu casamento feitopermanecem na aldeia. Para desenvolver um nomadismo plenamente

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    social, o casal Piro teria que convencer todos os seus parentes a acom-panh-los. Isso requer a quebra da ligao da vida social coletiva a per-manecer em um lugar. O valor de viver bem teria que mudar, passan-do do valor de uma vida permanente em aldeias para o de movimento.Gwashata, permanecer em um lugar, teria que dar lugar valorizaodo movimentar-se continuamente. Dadas as circunstncias histricasadequadas, posso imaginar essa dramtica transformao ocorrendo.Tais circunstncias histricas seriam, penso, aquelas que experimenta-ram os Mashco.

    Tais mudanas so mais fceis e desejveis para algumas pessoas doque para outras: a caminhada perptua pela floresta mais fcil para osjovens e desincumbidos do que para os velhos e as mulheres com filhospequenos. A mudana para o nomadismo uma mudana coletiva aosvalores de homens jovens e suas jovens esposas, e pode ser interpretadacomo um processo de coletivizao de um modo de ser especificamentemasculino, aquele do caador. Ela leva, sem dvida, a transformaesdramticas na vida dos Mashco, muitas das quais so provavelmentebastante indesejveis para muitos deles; mas foi, sugiro, uma possibi-lidade imanente em suas vidas sociais antes da violncia da indstriada borracha, sendo, portanto, uma rota significativa e potencial rumo sobrevivncia.

    Talvez meu argumento seja confirmado pela singularidade da oca-sio em que as trs mulheres no Manu se dispuseram a aceitar o contatopacfico com estrangeiros. Seu permanente desligamento do resto dogrupo de Pinqun foi quase certamente causado por brigas. Um dosmeus informantes, que conheceu essas mulheres, descreveu uma delascomo seprolo, ou seja, louca, sem limites, fora de controle, sexualmentepromscua. Mulheres classificadas como seprolo no Bajo Urubamba sofoco de srias brigas entre outras mulheres e so foradas a viver por aat que tenham filhos com idade suficiente para as defender. Algo simi-

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    lar pode ter ocorrido com a mulher Mashco mais jovem. As outras duasmulheres, sua me e irm mais velha, podem ter ido ao curso principaldo Manu para proteg-la, ao se aproximarem desses outros, os estran-geiros, que seus parentes to cuidadosamente evitam.

    Sabemos por que essas mulheres aceitaram o contato, pois MacQuar-rie registra que:

    Finalmente, em 1979, a mais nova das mulheres se aventurou at a praia

    justamente quando um barco com funcionrios do parque passava. Os

    guardas rapidamente aportaram o barco e viram surpresos que a mulher

    comeou a fazer gestos inconfundveis de querer fogo. (MacQuarrie &

    Brtschi, 1998)

    Agora, no consigo imaginar o que esses gestos inconfundveis dequerer fogo podem ser. Penso que o que aconteceu foi que ela lhes dis-se chichi, fogo. Essa palavra comum ao Piro e s lnguas Pano locais, eseria reconhecvel por qualquer um que tenha mesmo que uma fugazfamiliaridade com as lnguas indgenas locais, tal como a que os guardasdo parque provavelmente tm.

    Por que essas mulheres estavam sem fogo? Suspeito que seja porquefazer fogo um conhecimento masculino para os Mashco. Parece-memuito improvvel que elas no saibam como fazer fogo, j que devemter crescido vendo as pessoas fazendo. Parece-me muito mais provvelque elas considerem o fogo como um atributo masculino, e que viversem fogo fosse uma consequncia de sua condio de viver sem homens.Quando decidiram encontrar homens, foi fogo o que primeiro pedi-ram. E esses novos homens, os guardas florestais, lhes deram uma caixade fsforos, mostraram-lhes como us-los e as deixaram em paz maisuma vez.

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    Concluso

    Como concluso, quero reiterar brevemente um ponto sobre a natu-reza do conhecimento antropolgico. Meu argumento aqui poderiamuito apropriadamente ser descrito como especulativo, no sentido deque no est fundamentado em um conhecimento etnogrfico genuno.Afinal, eu nunca encontrei uma pessoa Mashco e muito menos tive comeles aquela longa conversa que a observao participante, a base do co-nhecimento etnogrfico. Como sabemos, todo conhecimento etnogr-fico tem uma dimenso poltica e, talvez ainda mais importante, tica.No caso dos Mashco, um conhecimento etnogrfico genuno baseadoem observao participante requereria uma srie de circunstncias hist-ricas e eventos que, como espero ter demonstrado, poderiam ser franca-mente indesejados por eles. Com a exceo das trs mulheres do Manu,parece claro que os Mashco no gostariam de ser amolados por formasindesejveis de relaes sociais. Especular no saber, mas, em algumascircunstncias, o primeiro infinitamente prefervel ao segundo.

    Notas

    * Agradecimentos: O presente relato foi originalmente escrito para Lev Michael eConrad Feather, e agradeo-lhes por seu auxlio e comentrios. Luisa ElviraBelaunde forneceu novas informaes e tambm comentrios, e agradeo aindaaqueles que ouviram a verses anteriores na Universidade de St Andrews, no Mu-seu Nacional e na Universidade de So Paulo por seus comentrios. Minha pesqui-sa de campo no Bajo Urubamba entre 1980 e 2001 foi financiada pelo SocialScience Research Council, pelo British Museum, pela Nuffield Foundation, pelaBritish Academy e pela London School of Economics.

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    1 Os Mashco e seu isolamento voluntrio levantam uma questo e um problema emum contexto poltico contemporneo que no discuto aqui, por falta tanto de es-pao quanto de conhecimento especializado. Aqueles que estiverem interessadosnesse contexto podem encontrar informaes relevantes digitando as palavrasMashco, Mashco-Piro e Masco em um sistema de busca da Internet.

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    ABSTRACT: The paper attempts to give an ethnographic account of themeaning of voluntary isolation for the Mashco people of Peruvian Ama-zonia. The very nature of voluntary isolation rules out ethnographic researchbased on participant observation. In the absence of that kind of research,the paper explores what is known about these people through writtensources, and especially through what is known ethnographically of theirneighbours and relatives, the Piro (Yine) people. Particular attention is paidto what being left alone might mean to Mashco people, and to the historyand probable significance of their continued use of stone axes and their aban-donment of agriculture.

    KEY-WORDS: Mashco, Piro (Yine), Peruvian Amazonia, voluntary isola-tion, politics and history.

    Recebido em maro de 2011. Aceito em junho de 2011.