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Gran Desert a Over Ed As

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  • by Nonada Cultural Ltda.

    Direitos de edio da obra em lngua portuguesa adquiridos pela EDITORANOVA FRONTEIRA S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte destaobra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ouprocesso similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrnico, de fotoc-pia, gravao etc., sem a permisso do detentor do copirraite.

    EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.Rua Bambina, 25 Botafogo 22251-050Rio de Janeiro RJ BrasilTel.: (21) 2131-1111 Fax: (21) 2537-2659http://www.novafronteira.com.bre-mail: [email protected]

    Biblioteca do Estudante1a impresso

    EdioIZABEL ALEIXODANIELE CAJUEIRO

    RevisoANA LCIA KRONEMBERGERDANIELE CAJUEIROENI VALENTIM TORRES

    CapaEVELYN GRUMACH

    Produo grficaLIGIA BARRETO GONALVES

    Este livro foi impresso em So Paulo, em maro de 2006, pela Lis Grfica eEditora, para a Editora Nova Fronteira.

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Rosa, Joo Guimares, 1908-1967Grande serto: veredas / Joo Guimares Rosa.

    1. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2006(Biblioteca do Estudante)

    ISBN 85-209-1885-9

    1. Romance brasileiro. I. Ttulo.

    CDD 869.93CDU 869.0 (81)-3

    R694g1. ed.

  • AAracy, minha mulher, Ara,pertence este livro.

  • N ota d o E d i t or

    Com o objetivo de trazer a pblico uma nova e bem-cuidadaedio das obras de Joo Guimares Rosa, trabalhamos nesterelanamento com duas prioridades: atendendo a uma solicita-o j antiga de nossos leitores, foi elaborado um novo projetogrfico, mais leve e arejado, permitindo uma leitura mais agra-dvel do texto. Alm disso e principalmente , procuramostambm estabelecer um dilogo com antigas edies da obra deGuimares Rosa, cuja originalidade do texto levou seus edito-res, algumas e j registradas vezes, a erros involuntrios, semque, infelizmente, contemos ainda com a bem-humorada acolhi-da desses erros pelo prprio autor, como afirmam alguns de seuscrticos e amigos, entre eles Paulo Rnai.

    Assim, a presente edio de Grande Serto: Veredas baseou-seno texto da 5 edio da obra, publicada em 1967, sendo feitasapenas, porque posteriores ao falecimento do escritor, as altera-es de grafia decorrentes da reforma ortogrfica instituda pelalei de 18 de dezembro de 1971, que aboliu o trema nos hiatostonos, o acento circunflexo diferencial nas letras e e o da slabatnica de palavras homgrafas e o acento grave com que se assi-nalava a slaba subtnica em vocbulos derivados com o sufixo mente e zinho.

    Quanto a outras grafias em desacordo com o formulrio or-togrfico vigente, manteve-se, nesta edio, aquela que o autordeixou registrada na edio-base. Utilizamos ainda outras edi-es tanto para corrigir variaes indevidas como para insistirem outras. Essas grafias em desuso podem parecer simplesmen-te uma questo de atualizao ortogrfica, mas, se essa atualiza-o j era exigida pela norma quando da publicao dos livros e

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    de suas vrias edies durante a vida do autor, partimos do prin-cpio de que elas so provavelmente intencionais e devem, por-tanto, ser mantidas. Para justificar essa deciso, lembramos aosleitores que as antigas edies da obra de Guimares Rosa apre-sentavam uma nota alertando justamente para a grafia persona-lssima do autor e que algumas histrias registram a sua teimosiaem acentuar determinadas palavras. Alm disso, mais de umavez em sua correspondncia, ele observou que os detalhes apa-rentemente sem importncia so fundamentais para o efeito quese quer obter das palavras.

    Esses acentos e grafias sem importncia, em desacordo coma norma ortogrfica vigente (mas a lngua e eu somos um casalde amantes que juntos procriam apaixonadamente, mas a quemat hoje foi negada a bno eclesistica e cientfica), compemum lxico literrio cuja variao fontica to rica e irregularquanto da linguagem viva com que o homem se define diaria-mente. E ousamos ainda dizer que, ao lado das, pelo menos, tre-ze lnguas que o autor conhecia e utilizava em seu processo devoltar origem da lngua, devemos colocar, em igualdade de re-cursos e contribuies poticas, aquela em cujos erros vemosmenos um desconhecimento e mais uma possibilidade de ex-presso, e por isso tambm ter de ser agreste ou inculto o neo-logista, e ainda melhor se analfabeto for.

    Com esse critrio, a certeza de que algumas dvidas nopuderam ser resolvidas, e uma boa dose de bom senso, espera-mos estar agora apresentando o resultado de um trabalho res-ponsvel e consistente, altura do nome deste autor, por cujapresena em nossa casa nos sentimos imensamente orgulhosos.

    2006.

  • Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de brigade homem no, Deus esteja. Alvejei mira em rvore, no quin-tal, no baixo do crrego. Por meu acerto. Todo dia isso fao,gosto; desde mal em minha mocidade. Da, vieram me chamar.Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nemser se viu ; e com mscara de cachorro. Me disseram; euno quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebita-do de beios, esse figurava rindo feito pessoa. Cara de gente,cara de co: determinaram era o demo. Povo prascvio. Ma-taram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhasarmas, cedi. No tenho abuses. O senhor ri certas risadas...Olhe: quando tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega alatir, instantaneamente depois, ento, se vai ver se deu mor-tos. O senhor tolere, isto o serto. Uns querem que no seja:que situado serto por os campos-gerais a fora a dentro, eles

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    dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucia. Toleima.Para os de Corinto e do Curvelo, ento, o aqui no dito serto?Ah, que tem maior! Lugar serto se divulga: onde os pastoscarecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze lguas, semtopar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucia vem dosmontes oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo d fazendes de fazendas, almargem de vargens de bom render, asvazantes; culturas que vo de mata em mata, madeiras de gros-sura, at ainda virgens dessas l h. O gerais corre em volta. Essesgerais so sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, osenhor sabe: po ou pes, questo de opinies... O serto estem toda a parte.

    Do demo? No gloso. Senhor pergunte aos moradores. Emfalso receio, desfalam no nome dele dizem s: o Que-Diga.Vote! no... Quem muito se evita, se convive. Sentena numAristides o que existe no buritizal primeiro desta minha modireita, chamado a Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita todoo mundo cr: ele no pode passar em trs lugares, designados:porque ento a gente escuta um chorinho, atrs, e uma vozinhaque avisando: Eu j vou! Eu j vou!... que o capiroto, oque-diga... E um Jis Simpilcio quem qualquer daqui jura eletem um capeta em casa, mido satanazim, preso obrigado a aju-dar em toda ganncia que executa; razo que o Simpilcio seempresa em vias de completar de rico. Apre, por isso dizem tam-bm que a besta pra ele rupia, nega de banda, no deixando,quando ele quer amontar... Superstio. Jis Simpilcio e Aristides,mesmo esto se engordando, de assim no-ouvir ou ouvir. Aindao senhor estude: agora mesmo, nestes dias de poca, tem genteporfalando que o Diabo prprio parou, de passagem, noAndrequic. Um Moo de fora, teria aparecido, e l se louvou

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    que, para aqui vir normal, a cavalo, dum dia-e-meio eleera capaz que s com uns vinte minutos bastava... porque cos-teava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, tambm, quem sabe sem ofensas no ter sido, por um exemplo, at mesmo osenhor quem se anunciou assim, quando passou por l, por prazidodivertimento engraado? H-de, no me d crime, sei que nofoi. E mal eu no quis. S que uma pergunta, em hora, s vezes,claria razo de paz. Mas, o senhor entenda: o tal moo, se h,quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes,ser a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nossoEstado nosso, custante viagem de uns trs meses... Ento? Que-Diga? Doideira. A fantasiao. E, o respeito de dar a ele assimesses nomes de rebuo, que mesmo um querer invocar queele forme forma, com as presenas!

    No seja. Eu, pessoalmente, quase que j perdi nele a cren-a, mercs a Deus; o que ao senhor lhe digo, puridade. Seique bem estabelecido, que grassa nos Santos-Evangelhos. Emocasio, conversei com um rapaz seminarista, muito condizente,conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com umavara de maria-preta na mo proseou que ia adjutorar o padre,para extrarem o Cujo, do corpo vivo de uma velha, na Cachoei-ra-dos-Bois, ele ia com o vigrio do Campo-Redondo... Me con-cebo. O senhor no como eu? No acreditei patavim. Compa-dre meu Quelemm descreve que o que revela efeito so os baixosespritos descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas ecom nsias de se travarem com os viventes do encosto. Com-padre meu Quelemm quem muito me consola Quelemmde Gis. Mas ele tem de morar longe daqui, na Jijuj, Vereda doBurit Pardo... Arres, me deixe l, que em endemoninhamentoou com encosto o senhor mesmo dever de ter conhecidodiversos, homens, mulheres. Pois no sim? Por mim, tantos vi,

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    que aprendi. Rincha-Me, Sangue-dOutro, o Muitos-Beios, oRasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azi-nhavre... o Hermgenes... Deles, punhado. Se eu pudesse es-quecer tantos nomes... No sou amansador de cavalos! E, mes-mo, quem de si de ser jaguno se entrete, j por algumacompetncia entrante do demnio. Ser no? Ser?

    De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar no pensava. Nopossua os prazos. Vivi puxando difcil de difcel, peixe vivo nomoqum: quem mi no aspro, no fantasia. Mas, agora, feita afolga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de rangerede. E me inventei neste gosto, de especular idia. O diabo existee no existe? Dou o dito. Abrenncio. Essas melancolias. O se-nhor v: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira barranco decho, e gua se caindo por ele, retombando; o senhor consomeessa gua, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver negcio muito perigoso...

    Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os cres-pos do homem ou o homem arruinado, ou o homem dosavessos. Solto, por si, cidado, que no tem diabo nenhum.Nenhum! o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo,franco alta merc que me faz: e pedir posso, encarecido.Este caso por estrdio que me vejam de minha certaimportncia. Tomara no fosse... Mas, no diga que o senhor,assisado e instrudo, que acredita na pessoa dele?! No? Lhe agra-deo! Sua alta opinio compe minha valia. J sabia, esperavapor ela j o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter suaaragem de descanso. Lhe agradeo. Tem diabo nenhum. Nemesprito. Nunca vi. Algum devia de ver, ento era eu mesmo,este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seuestado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. At: nascrianas eu digo. Pois no ditado: menino trem do dia-

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    bo? E nos usos, nas plantas, nas guas, na terra, no vento... Es-trumes. ... O diabo na rua, no meio do redemunho...

    Hem? Hem? Ah. Figurao minha, de pior pra trs, as certaslembranas. Mal haja-me! Sofro pena de contar no... Melhor, searrepare: pois, num cho, e com igual formato de ramos e fo-lhas, no d a mandioca mansa, que se come comum, e a man-dioca-brava, que mata? Agora, o senhor j viu uma estranhez? Amandioca doce pode de repente virar azangada motivos nosei; s vezes se diz que por replantada no terreno sempre, commudas seguidas, de manabas vai em amargando, de tanto emtanto, de si mesma toma peonhas. E, ora veja: a outra, a man-dioca-brava, tambm que s vezes pode ficar mansa, a esmo, dese comer sem nenhum mal. E que isso ? Eh, o senhor j viu, porver, a feiura de dio franzido, carantonho, nas faces duma cobracascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto,capaz de, pudesse, roncar e engulir por sua suja comodidade omundo todo? E gavio, crvo, alguns, as feies deles j repre-sentam a preciso de talhar para adiante, rasgar e estraalhar abico, parece uma quic muito afiada por ruim desejo. Tudo. Temat tortas raas de pedras, horrorosas, venenosas que estra-gam mortal a gua, se esto jazendo em fundo de poo; o diabodentro delas dorme: so o demo. Se sabe? E o demo que sassim o significado dum azougue maligno tem ordem de se-guir o caminho dele, tem licena para campear?! Arre, ele estmisturado em tudo.

    Que o que gasta, vai gastando o diabo de dentro da gente,aos pouquinhos, o razovel sofrer. E a alegria de amor com-padre meu Quelemm diz. Famlia. Deveras? , e no . O se-nhor ache e no ache. Tudo e no ... Quase todo mais gravecriminoso feroz, sempre muito bom marido, bom filho, bom

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    pai, e bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. S que tem osdepois e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

    Mas, em verdade, filho, tambm, abranda. Olhe: um chama-do Aleixo, residente a lgua do Passo do Pubo, no da-Areia, erao homem de maiores ruindades calmas que j se viu. Me agradouque perto da casa dele tinha um audinho, entre as palmeiras,com traras, pra-almas de enormes, desenormes, ao real, quereceberam fama; o Aleixo dava de comer a elas, em horas justas,elas se acostumaram a se assim das locas, para papar, semelha-vam ser peixes ensinados. Um dia, s por graa rstica, ele ma-tou um velhinho que por l passou, desvalido rogando esmola.O senhor no duvide tem gente, neste aborrecido mundo,que matam s para ver algum fazer careta... Eh, pois, emps, oresto o senhor prove: vem o po, vem a mo, vem o so, vem o co.Esse Aleixo era homem afamilhado, tinha filhos pequenos; aque-les eram o amor dele, todo, despropsito. D bem, que no nemum ano estava passado, de se matar o velhinho pobre, e os meni-nos do Aleixo a adoeceram. Andao de sarampo, se disse, mascomplicado; eles nunca saravam. Quando, ento, sararam. Masos olhos deles vermelhavam altos, numa inflama de sapiranga rebelde; e susseguinte o que no sei se foram todos dumavez, ou um logo e logo outro e outro eles restaram cegos.Cegos, sem remisso dum favinho de luz dessa nossa! O senhorimagine: uma escadinha trs meninos e uma menina to-dos cegados. Sem remedivel. O Aleixo no perdeu o juzo; masmudou: ah, demudou completo agora vive da banda de Deus,suando para ser bom e caridoso em todas suas horas da noite edo dia. Parece at que ficou o feliz, que antes no era. Ele mes-mo diz que foi um homem de sorte, porque Deus quis ter penadele, transformar para l o rumo de sua alma. Isso eu ouvi, e me

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    deu raiva. Razo das crianas. Se sendo castigo, que culpa dashajas do Aleixo aqueles meninozinhos tinham?!

    Compadre meu Quelemm reprovou minhas incertezas.Que, por certo, noutra vida revirada, os meninos tambm ti-nham sido os mais malvados, da massa e pea do pai, demniosdo mesmo caldeiro de lugar. Senhor o que acha? E o velhinhoassassinado? eu sei que o senhor vai discutir. Pois, tambm.Em ordem que ele tinha um pecado de crime, no corpo, porpagar. Se a gente conforme compadre meu Quelemm quemdiz se a gente torna a encarnar renovado, eu cismo at queinimigo de morte pode vir como filho do inimigo. Mire veja: seme digo, tem um sujeito Pedro Pind, vizinho daqui mais seislguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele,sempre sidos bons, de bem. Eles tm um filho duns dez anos,chamado Valti nome moderno, o que o povo daqui agoraaprecia, o senhor sabe. Pois essezinho, essezim, desde que al-gum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que : pedidomadrasto, azedo queimador, gostoso de ruim de dentro do fun-do das espcies de sua natureza. Em qual que judia, ao devagar,de todo bicho ou criaozinha pequena que pega; uma vez, en-controu uma crioula benta-bbada dormindo, arranjou um cacode garrafa, lanhou em trs pontos a popa da perna dela. O queesse menino babeja vendo, sangrarem galinha ou esfaquearporco. Eu gosto de matar... uma ocasio ele pequeninome disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que sedebrua o vo j est pronto! Pois, o senhor vigie: o pai,Pedro Pind, modo de corrigir isso, e a me, do nele, de mis-ria e mastro botam o menino sem comer, amarram em rvo-res no terreiro, ele n nuelo, mesmo em junho frio, lavram ocorpinho dele na peia e na taca, depois limpam a pele do san-gue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica gasturado.

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    O menino j rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha deossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura daque puxa secos peitos. Arre, que agora, visvel, o Pind e a mu-lher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim fo-ram criando nisso um prazer feio de diverso como regulamas sovas em horas certas confortveis, at chamam gente paraver o exemplo bom. Acho que esse menino no dura, j est noblimbilim, no chega para a quaresma que vem... U-u, ento?!No sendo como compadre meu Quelemm quer, que explica-o que o senhor dava? Aquele menino tinha sido homem. De-via, em balano, terrveis perversidades. Alma dele estava no breu.Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando est cho-rando e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzi-nho... Ave, vi de tudo, neste mundo! J vi at cavalo com solu-o... o que a coisa mais custosa que h.

    Bem, mas o senhor dir, deve de: e no comeo para peca-dos e artes, as pessoas como por que foi que tanto emendadose comeou? Ei, ei, a todos esbarram. Compadre meu Quele-mm, tambm. Sou s um sertanejo, nessas altas idias navegomal. Sou muito pobre coitado. Inveja minha pura de uns con-forme o senhor, com toda leitura e suma doutorao. No queeu esteja analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, me-mria e palmatria. Tive mestre, Mestre Lucas, no Curralinho,decorei gramtica, as operaes, regra-de-trs, at geografia eestudo ptrio. Em folhas grandes de papel, com capricho traceibonitos mapas. Ah, no por falar: mas, desde do comeo, meachavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursarlatim, em Aula Rgia que tambm diziam. Tempo saudoso!Inda hoje, apreceio um bom livro, despaado. Na fazenda OLimozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina dessealmanaque grosso, de logogrifos e charadas e outras divididas

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    matrias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia na leituraproveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos missionrioesperto engambelando os ndios, ou So Francisco de Assis, San-to Antnio, So Geraldo... Eu gosto muito de moral. Raciocinar,exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo. Mi-nha mulher, que o senhor sabe, zela por mim: muito reza. Ela uma abenovel. Compadre meu Quelemm sempre diz que euposso aquietar meu temer de conscincia, que sendo bem-assis-tido, terrveis bons-espritos me protegem. Ipe! Com gosto...Como de so efeito, ajudo com meu querer acreditar. Mas nemsempre posso. O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei pormim, forro, sou nascido diferente. Eu sou eu mesmo. Divrjode todo o mundo... Eu quase que nada no sei. Mas desconfio demuita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe,sou co mestre o senhor solte em minha frente uma idialigeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amm!Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sbios, pol-ticos, constituies gradas, fecharem o definitivo a noo pro-clamar por uma vez, artes assemblias, que no tem diabo ne-nhum, no existe, no pode. Valor de lei! S assim, davamtranquilidade boa gente. Por que o Governo no cuida?!

    Ah, eu sei que no possvel. No me assente o senhor porbecio. Uma coisa pr idias arranjadas, outra lidar com pasde pessoas, de carne e sangue, de mil-e-tantas misrias... Tantagente d susto se saber e nenhum se sossega: todos nas-cendo, crescendo, se casando, querendo colocao de emprego,comida, sade, riqueza, ser importante, querendo chuva e neg-cios bons... De sorte que carece de se escolher: ou a gente setece de viver no safado comum, ou cuida s de religio s. Eupodia ser: padre sacerdote, se no chefe de jagunos; para outrascoisas no fui parido. Mas minha velhice j principiou, errei de

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    toda conta. E o reumatismo... L como quem diz: nas escorvas.Ah.

    Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mun-do louco. O senhor, eu, ns, as pessoas todas. Por isso que secarece principalmente de religio: para se desendoidecer,desdoidar. Reza que sara da loucura. No geral. Isso que asalvao-da-alma... Muita religio, seu moo! Eu c, no percoocasio de religio. Aproveito de todas. Bebo gua de todo rio...Uma s, para mim pouca, talvez no me chegue. Rezo cristo,catlico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meuQuelemm, doutrina dele, de Cardque. Mas, quando posso,vou no Mindubim, onde um Matias crente, metodista: a gentese acusa de pecador, l alto a Bblia, e ora, cantando hinos belosdeles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha merefresca. Mas s muito provisrio. Eu queria rezar o tempotodo. Muita gente no me aprova, acham que lei de Deus privi-lgios, invarivel. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? o quefao, que quero, muito curial. E em cara de todos fao, executa-do. Eu? no tresmalho!

    Olhe: tem uma preta, Maria Lencia, longe daqui no mora,as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago,todo ms encomenda de rezar por mim um tero, todo santodia, e, nos domingos, um rosrio. Vale, se vale. Minha mulherno v mal nisso. E estou, j mandei recado para uma outra, doVau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza tam-bm com grandes meremerncias, vou efetuar com ela trato igual.Quero punhado dessas, me defendendo em Deus, reunidas demim em volta... Chagas de Cristo!

    Viver muito perigoso... Querer o bem com demais fora,de incerto jeito, pode j estar sendo se querendo o mal, por prin-cipiar. Esses homens! Todos puxavam o mundo para si, para o

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    concertar consertado. Mas cada um s v e entende as coisasdum seu modo. Montante, o mais supro, mais srio foiMedeiro Vaz. Que um homem antigo... Seu Joozinho Bem-Bem,o mais bravo de todos, ningum nunca pde decifrar como elepor dentro consistia. Joca Ramiro grande homem prncipe! era poltico. Z-Bebelo quis ser poltico, mas teve e no tevesorte: raposa que demorou. S Candelrio se endiabrou, porpensar que estava com doena m. Tito Passos era o pelo prode amigos: s por via deles, de suas mesmas amizades, foi queto alto se ajagunou. Antnio D severo bandido. Mas pormetade; grande maior metade que seja. Andalcio, no fundo,um bom homem-de-bem, estouvado raivoso em sua toda justi-a. Ricardo, mesmo, queria era ser rico em paz: para isso guer-reava. S o Hermgenes foi que nasceu formado tigre, e assassim.E o Urut-Branco? Ah, no me fale. Ah, esse... tristonho leva-do, que foi que era um pobre menino do destino...

    To bem, conforme. O senhor ouvia, eu lhe dizia: o ruimcom o ruim, terminam por as espinheiras se quebrar Deusespera essa gastana. Moo!: Deus pacincia. O contrrio, odiabo. Se gasteja. O senhor rela faca em faca e afia que seraspam. At as pedras do fundo, uma d na outra, vo-se arre-dondinhando lisas, que o riachinho rola. Por enquanto, que eupenso, tudo quanto h, neste mundo, porque se merece e care-ce. Antesmente preciso. Deus no se comparece com refe, noarrocha o regulamento. Pra que? Deixa: bobo com bobo umdia, algum estala e aprende: esperta. S que, s vezes, por maisauxiliar, Deus espalha, no meio, um pingado de pimenta...

    Haja? Pois, por um exemplo: faz tempo, fui, de trem, l emSete-Lagoas, para partes de consultar um mdico, de nome meindicado. Fui vestido bem, e em carro de primeira, por via dasdvidas, no me sombrearem por jaguno antigo. Vai e acontece,

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    que, perto mesmo de mim, defronte, tomou assento, voltandodeste brabo Norte, um moo Jazevedo, delegado profissional.Vinha com um capanga dele, um secreta, e eu bem sabia os dois,de que tanto um era ruim, como o outro ruim era. A verdadeque diga, primeiro tive o estrito de me desbancar para um longedali, mudar de meu lugar. Juzo me disse, melhor ficasse. Pois,ficando, olhei. E lhe falo: nunca vi cara de homem fornecidade bruteza e maldade mais, do que nesse. Como que era urco,trouxo de atarracado, reluzia um cr nos olhos pequenos, e ar-mava um queixo de pedra, sobrancelhonas; no demedia nemtesta. No ria, no se riu nem uma vez; mas, falando ou calado, agente via sempre dele algum dente, presa pontuda de guar. Arre,e bufava, um poucadinho. S rosneava curto, baixo, as meias-palavras encrespadas. Vinha reolhando, historiando a papelada uma a uma as folhas com retratos e com os pretos dos dedosde jagunos, ladres de cavalos e criminosos de morte. Aquelaaplicao de trabalho, numa coisa dessas, gerava a ira na gente. Osecreta, xereta, todo perto, sentado junto, atendendo, caprichan-do de ser co. Me fez um receio, mas s no bobo do corpo, nono interno das coragens. Uma hora, uma daquelas laudas caiu e eu me abaixei depressa, sei l mesmo por qu, no quis, nopensei at hoje crio vergonha disso apanhei o papel docho, e entreguei a ele. Da, digo: eu tive mais raiva, porque fizaquilo; mas a j estava feito. O homem nem me olhou, nemdisse nenhum agradecimento. At as solas dos sapatos dele svendo que solas duras grossas, dobradas de enormes, pare-cendo ferro bronze. Porque eu sabia: esse Jazevedo, quandoprendia algum, a primeira quieta coisa que procedia era quevinha entrando, sem ter que dizer, fingia umas pressas, e ia pisavaem cima dos ps descalos dos coitados. E que nessas ocasiesdava gargalhadas, dava... Pois, osga! Entreguei a ele a folha de

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    papel, e fui saindo de l, por ter mo em mim de no destruir atiros aquele sujeito. Carnes que muito pesavam... E ele umbigavaum princpio de barriga barriguda, que me criou desejos... Comminha brandura, alegre que eu matava. Mas, as barbaridades queesse delegado fez e aconteceu, o senhor nem tem calo em cora-o para poder me escutar. Conseguiu de muito homem e mu-lher chorar sangue, por este simples universozinho nosso aqui.Serto. O senhor sabe: serto onde manda quem forte, comas astcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado! E bala um pedacinhozinho de metal...

    Tanto, digo: Jazevedo um assim, devia de ter, precisava?Ah, precisa. Couro ruim que chama ferro de ponta. Haja que,depois negcio particular dele nesta vida ou na outra,cada Jazevedo, cumprido o que tinha, descamba em seu tempode penar, tambm, at pagar o que deveu compadre meuQuelemm est a, para fiscalizar. O senhor sabe: o perigo que viver... Mas s do modo, desses, por feio instrumento, foi que ajagunada se findou. Senhor pensa que Antnio D ou OlivinoOliviano iam ficar bonzinhos por pura soletrao de si, ou porrogo dos infelizes, ou por sempre ouvir sermo de padre? Teacho! Nos visos...

    De jaguno comportado ativo para se arrepender no meiode suas jagunagens, s deponho de um: chamado Jo Cazuzo foi em arraso de um tiroti, pra cima do lugar Serra-Nova,distrito de Rio-Pardo, no ribeiro Traadal. A gente fazia mminoria pequena, e fechavam para riba de ns o pessoal dumCoronel Adalvino, forte poltico, com muitos soldados fardadosno meio centro, comando do Tenente Reis Leme, que depoisficou capito. Aguentamos hora mais hora, e j dvamos quase decercados. A, de bote, aquele Jo Cazuzo homem muito va-lente se ajoelhou giro no cho do cerrado, levantava os bra-

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    os que nem esgalho de jatob seco, e s gritava, urro claro eurro surdo: Eu vi a Virgem Nossa, no resplandor do Cu, com seusfilhos de Anjos!... Gritava no esbarrava. Eu vi a Virgem!... Elealmou? Ns desigualamos. Trape por meu cavalo que achei pulei em mal assento, nem sei em que rompe-tempo desateio cabresto, de amarrado em p de pau. Voei, vindo. Bala vinha.O cerrado estrondava. No mato, o medo da gente se sai ao intei-ro, um medo propositado. Eu podia escoicear, feito burro bruto,d-que, d-que. Umas duas ou trs balas se cravaram na borrainada minha sela, perfuraram de arrancar quase muita a paina doencheio. Cavalo estremece em pr, em meio de galope, sei: pen-sa no dono. Eu no cabia de estar mais bem encolhido. Baleadoveio tambm o surro que eu tinha nas costas, com poucas mi-nhas coisas. E outra, de fuzil, em ricochete decerto, esquentouminha cxa, sem me ferir, o senhor veja: bala faz o que quer se enfiou imprensada, entre em mim e a aba da jereba! Temposloucos... Burumbum!: o cavalo se ajoelhou em queda, mortoqui, e eu j caindo para diante, abraado em folhagens grossas,ramada e cips, que me balanaram e espetavam, feito eu estavapendurado em teio de aranha... Aonde? Atravessei aquilo, vidatoda... De medo em nsia, rompi por rasgar com meu corpoaquele mato, fui, sei l e me despenquei mundo abaixo, rola-va para o oco de um groto fechado de mitas, sempre me agar-rava rolava mesmo assim: depois depois, quando olheiminhas mos, tudo nelas que no era tirado sangue, era um amassoverde, nos dedos, de folhas vivas que puxei e masgalhei... Pouseino capim do fundo e um bicho escuro deu um repulo, comum espirro, tambm dido de susto: que era um papa-mel, queeu vislumbrei; para fugir, esse est somente. Maior sendo eu, memolhou meu cansao; espichei tudo. E um pedacinho de pensa-mento: se aquele bicho irara tinha jazido l, ento ali no tinha

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    cobra. Tomei o lugar dele. Existia cobra nenhuma. Eu podia melargar. Eu era s mole, moleza, mas que no amortecia os trancos,dentro, do corao. Arfei. Concebi que vinham, me matavam.Nem fazia mal, me importei no. Assim, uns momentos, ao me-nos eu guardava a licena de prazo para me descansar. Conformepensei em Diadorim. S pensava era nele. Um joo-congo can-tou. Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim, mano-oh-mo, que estava na Serra do Pau-dArco, quase na divisa baiana,com nossa outra metade dos s-candelrios... Com meu amigoDiadorim me abraava, sentimento meu ia-voava reto para ele...Ai, arre, mas: que esta minha boca no tem ordem nenhuma.Estou contando fora, coisas divagadas. No senhor me fio? At-que, at-que. Diga o anjo-da-guarda... Mas, conforme eu vinha:depois se soube, que mesmo os soldados do Tenente e os cabrasdo Coronel Adalvino remitiram de respeitar o assopro daqueleJo Cazuzo. E que esse acabou sendo o homem mais pacificiosodo mundo, fabricador de azeite e sacristo, no So DomingosBranco. Tempos!

    Por tudo, ris-coado, fico pensando. Gosto. Melhor, para aidia se bem abrir, viajando em trem-de-ferro. Pudesse, viviapara cima e para baixo, dentro dele. Informao que pergunto:mesmo no Cu, fim de fim, como que a alma vence se esque-cer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado? Acomo? O senhor sabe: h coisas de medonhas demais, tem. Dordo corpo e dor da idia marcam forte, to forte como o todoamor e raiva de dio. Vai, mar... De sorte que, ento, olhe: oFirmiano, por apelidado Piolho-de-Cobra, se lazarou com a per-na desconforme engrossada, dessa doena que no se cura; e noenxergava quase mais, constante o branquio nos olhos, das cata-ratas. De antes, anos, teve de se desarrear da jagunagem. Pois,uma ocasio, algum esteve no rancho dele, no Alto Jequita, de-

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    pois contou que, vira tempo, vem assunto, ele dissesse: Me d saudade de pegar um soldado, e tal, pra uma boa esfola,com faca cega... Mas, primeiro, castrar... O senhor concebe?Quem tem mais dose de demo em si ndio, qualquer raa debugre. Gente v nao desses, para l fundo dos gerais de Gois,adonde tem vagarosos grandes rios, de gua sempre to claraaprazvel, correndo em deita de cristal roseado... Piolho-de-Cobra se dava de sangue de gentio. Senhor me dir: mas que elepronuncia aquilo fora boca, maneira de representar que aindano estava velho decadente. Obra de opor, por medo de ser man-so, e causa para se ver respeitado. Todos tretam por tal regra:proseiam de ruins, para mais se valerem, porque a gente ao re-dor duro dura. O pior, mas, que acabam, pelo mesmo vau,tendo de um dia executar o declarado, no real. Vi tanta cruez!Pena no paga contar; se vou, no esbarro. E me desgosta, trsque me enja, isso tudo. Me apraz que o pessoal, hoje em dia, bom de corao. Isto , bom no trivial. Malcias maluqueiras, eperversidades, sempre tem alguma, mas escasseadas. Geraominha, verdadeira, ainda no eram assim. Ah, vai vir um tempo,em que no se usa mais matar gente... Eu, j estou velho.

    Bom, ia falando: questo, isso que me sovaca... Ah, formeiaquela pergunta, para compadre meu Quelemm. Que me res-pondeu: que, por perto do Cu, a gente se alimpou tanto, quetodos os feios passados se exalaram de no ser feito sem-modez de tempo de criana, ms-artes. Como a gente no care-ce de ter remorso do que divulgou no latejo de seus pesadelos deuma noite. Assim que: tosou-se, floreou-se! Ah. Por isso dito, que a ida para o Cu demorada. Eu confiro com compadremeu Quelemm, o senhor sabe: razo da crena mesma que tem que, por todo o mal, que se faz, um dia se repaga, o exato.Sujeito assim madruga trs vezes, em antes de querer facilitar

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    em qualquer minudncia repreensvel... Compadre meu Quele-mm nunca fala vazio, no subtrata. S que isto a ele no vouexpor. A gente nunca deve de declarar que aceita inteiro o alheio essa que a regra do rei!

    O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mun-do, isto: que as pessoas no esto sempre iguais, ainda no fo-ram terminadas mas que elas vo sempre mudando. Afinamou desafinam. Verdade maior. o que a vida me ensinou. Issoque me alegra, monto. E, outra coisa: o diabo, s brutas; masDeus traioeiro! Ah, uma beleza de traioeiro d gosto! Afora dele, quando quer moo! me d o medo pavor! Deusvem vindo: ningum no v. Ele faz na lei do mansinho assim o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se econo-miza. A pois: um dia, num curtume, a faquinha minha que eutinha caiu dentro dum tanque, s caldo de casca de curtir,barbatimo, angico, l sei. Amanh eu tiro... falei, comi-go. Porque era de noite, luz nenhuma eu no disputava. Ah, en-to, saiba: no outro dia, cedo, a faca, o ferro dela, estava sidorodo, quase por metade, por aquela aginha escura, toda quieta.Deixei, para mais ver. Estala, espoleta! Sabe o que foi? Pois, nes-sa mesma da tarde, a: da faquinha s se achava o cabo... O cabo por no ser de frio metal, mas de chifre de galheiro. A est:Deus... Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe meentende...

    Somemos, no ache que religio afraca. Senhor ache o con-trrio. Visvel que, aqueles outros tempos, eu pintava cr queo caro levanta a flor. Eh, bom meu pasto... Mocidade. Mas mo-cidade tarefa para mais tarde se desmentir. Tambm, eu dessede pensar em vago em tanto, perdia minha mo-de-homem parao manejo quente, no meio de todos. Mas, hoje, que raciocinei, epenso a eito, no nem por isso no dou por baixa minha compe-

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    tncia, num fgo-e-ferro. A ver. Chegassem viessem aqui comguerra em mim, com ms partes, com outras leis, ou com sobe-jos olhares, e eu ainda sorteio de acender esta zona, ai, se, se! na boca do trabuco: no t-ret-retm... E sozinhozinho noestou, h-de-o. Pra no isso, hei coloquei redor meu minha gen-te. Olhe o senhor: aqui, pegado, vereda abaixo, o Paspe meeiromeu meu. Mais lgua, se tanto, tem o Acau, e tem o Com-padre Ciril, ele e trs filhos, sei que servem. Banda desta mo, oAlaripe: soubesse o senhor o que que se preza, em rifleio e faca, um cearense feito esse! Depois mais: o Joo Nonato, oQuipes, o Pacam-de-Presas. E o Fafafa este deu lances altos,todo lado comigo, no combate velho do Tamandu-to: limpa-mos o vento de quem no tinha ordem de respirar, e antes essesdesrodeamos... O Fafafa tem uma eguada. Ele cria cavalos bons.At um pouco mais longe, no p-de-serra, de bando meu foramo Sesfrdo, Jesualdo, o Nelson e Joo Concliz. Uns outros. OTriol... E no vou valendo? Deixo terra com eles, deles o que meu , fechamos que nem irmos. Para que eu quero ajuntarriqueza? Esto a, de armas areiadas. Inimigo vier, a gente cruzachamado, ajuntamos: hora dum bom tiroteiamento em paz,exprimentem ver. Digo isto ao senhor, de fidcia. Tambm, nov pensar em dobro. Queremos trabalhar, propor sossego. Demim, pessoa, vivo para minha mulher, que tudo modo-melhormerece, e para a devoo. Bem-querer de minha mulher foi queme auxiliou, rezas dela, graas. Amor vem de amor. Digo. EmDiadorim, penso tambm mas Diadorim a minha neblina...

    Agora, bem: no queria tocar nisso mais de o Tinhoso;chega. Mas tem um porm: pergunto: o senhor acredita, acha fiode verdade nessa parlanda, de com o demnio se poder tratarpacto? No, no no? Sei que no h. Falava das favas. Mas gos-to de toda boa confirmao. Vender sua prpria alma...

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    Invencionice falsa! E, alma, o que ? Alma tem de ser coisa inter-na supremada, muito mais do de dentro, e s, do que um sepensa: ah, alma absoluta! Deciso de vender alma afoitez vadia,fantasiado de momento, no tem a obedincia legal. Posso ven-der essas boas terras, da de entre as Veredas-Quatro que sodum senhor Almirante, que reside na capital federal? Posso al-gum!? Ento, se um menino menino , e por isso no se autorizade negociar... E a gente, isso sei, s vezes s feito menino. Malque em minha vida aprontei, foi numa certa meninice em sonhos tudo corre e chega to ligeiro ; ser que se h lume deresponsabilidades? Se sonha; j se fez... Dei rapadura ao jumen-to! Ah. Pois. Se tem alma, e tem, ela de Deus estabelecida,nem que a pessoa queira ou no queira. No vendvel. O se-nhor no acha? Me declare, franco, peo. Ah, lhe agradeo. Se vque o senhor sabe muito, em idia firme, alm de ter carta dedoutor. Lhe agradeo, por tanto. Sua companhia me d altos pra-zeres.

    Em termos, gostava que morasse aqui, ou perto, era umaajuda. Aqui no se tem convvio que instruir. Serto. Sabe o se-nhor: serto onde o pensamento da gente se forma mais fortedo que o poder do lugar. Viver muito perigoso...

    Eh, que se vai? Jj? que no. Hoje, no. Amanh, no. Noconsinto. O senhor me desculpe, mas em empenho de minhaamizade aceite: o senhor fica. Depois, quinta de-manh-cedo, osenhor querendo ir, ento vai, mesmo me deixa sentindo suafalta. Mas, hoje ou amanh, no. Visita, aqui em casa, comigo, por trs dias!

    Mas, o senhor srio tenciona devassar a raso este mar deterritrios, para sortimento de conferir o que existe? Tem seusmotivos. Agora digo por mim o senhor vem, veio tarde.Tempos foram, os costumes demudaram. Quase que, de legti-

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    mo leal, pouco sobra, nem no sobra mais nada. Os bandos bonsde valentes repartiram seu fim; muito que foi jaguno, por apena, pede esmola. Mesmo que os vaqueiros duvidam de vir nocomrcio vestidos de roupa inteira de couro, acham que traje degibo feio e capiau. E at o gado no grameal vai minguandomenos bravo, mais educado: casteado de zeb, desvm com oresto de curraleiro e de crioulo. Sempre, no gerais, pobreza, tristeza. Uma tristeza que at alegra. Mas, ento, para umasafra razovel de bizarrices, reconselho de o senhor entestar via-gem mais dilatada. No fosse meu despoder, por azas e reuma-tismo, a eu ia. Eu guiava o senhor at tudo.

    Lhe mostrar os altos claros das Almas: rio despenha de l,num af, espuma prspero, gruge; cada cachoeira, s tombos. Ocio da tigre preta na Serra do Tat j ouviu o senhor gargaragemde ona? A gara rebrilhante da dos-Confins, madrugada quandoo cu embranquece neblim que chamam de xererm. Quemme ensinou a apreciar essas as belezas sem dono foi Diadorim...A da-Raizama, onde at os pssaros calculam o giro da lua sediz e canguss monstra pisa em volta. Lua de com ela se cu-nhar dinheiro. Quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo. Cheirode campos com flores, forte, em abril: a ciganinha, roxa, e anhica e a escova, amarelinhas... Isto no Saririnhm. Cigarrasdo bando. Debaixo de um tamarindo sombroso... Eh, frio! Lgia at em costas de boi, at nos telhados das casas. Ou noMeomeo depois dali tem uma terra quase azul. Que noque o cu: esse cu-azul vivoso, igual um ovo de macuco. Ven-tos de no deixar se formar orvalho... Um punhado quente devento, passante entre duas palmas de palmeira... Lembro, des-lembro. Ou o senhor vai no soposo: de chuva-chuva. Vum crrego com m passagem, ou um rio em turvao. No Buriti-Mirim, Angical, Extrema-de-Santa-Maria... Senhor caa? Tem l

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    mais perdiz do que no Chapado das Vertentes... Caar anta noCabea-de-Negro ou no Buriti-Comprido aquelas que co-mem um capim diferente e roem cascas de muitas outras rvo-res: a carne, de gostosa, diversia. Por esses longes todos eu pas-sei, com pessoa minha no meu lado, a gente se querendo bem. Osenhor sabe? J tenteou sofrido o ar que saudade? Diz-se quetem saudade de idia e saudade de corao... Ah. Diz-se que oGoverno est mandando abrir boa estrada rodageira, de Piraporaa Paracat, por a...

    Na Serra do Cafund ouvir trovo de l, e retrovo, osenhor tapa os ouvidos, pode ser at que chore, de medo mauem iluso, como quando foi menino. O senhor v vaca parindona tempestade... De em de, sempre, Urucia acima, o Urucia to a brabas vai... Tanta serra, esconde a lua. A serra ali corretorta. A serra faz ponta. Em um lugar, na encosta, brota do choum vapor de enxofre, com estrdio barulho, o gado foge de l,por pavor. Semelha com as serras do Estrondo e do Roncador donde do retumbos, vez em quando. Hem? O senhor? Olhe: orio Carinhanha preto, o Paracat moreno; meu, em belo, o Urucia paz das guas... vida!... Passado o Porto das On-as, tem um fazendol. Ficamos l umas semanas, se descansou.Carecia. Porque a gente vinha no caminhar a p, para no acabaros cavalos, mazelados. Medeiro Vaz, em lugares assim, fora deguerra, prazer dele era dormir com camisolo e barrete; antesde se deitar, ajoelhava e rezava o tero. Aqueles foram meus dias.Se caava, cada um esquecia o que queria, de de-comer no falta-va, pescar peixe nas veredas... O senhor v l, ver. Os lugaressempre esto a em si, para confirmar.

    Muito deleitvel. Clarguas, fontes, sombreado e sol. Fazen-da Boi-Preto, dum Eleutrio Lopes mais antes do Campo-Azulado, rumo a rumo com o Queimado. A foi em fevereiro

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    ou janeiro, no tempo do pendo do milho. Trsmente: que como capito-do-campo de prateadas pontas, vioso no cerrado; oaniz enfeitando suas mitas; e com florzinhas as dejaniras. Aque-le capim-marmelada muito restvel, redobra logo na brotao,to verde-mar, filho do menor chuvisco. De qualquer pano demato, de de-entre quase cada encostar de duas folhas, saam emgiro as todas as cores de borboletas. Como no se viu, aqui se v.Porque, nos gerais, a mesma raa de borboletas, que em outraspartes trivial regular c cresce, vira muito maior, e commais brilho, se sabe; acho que do seco do ar, do limpo, destaluz enorme. Beiras nascentes do Urucia, ali o pov canta altinho.E tinha o xenxm, que tintipiava de manh no revordo, o sac-do-brejo, a doidinha, a gangorrinha, o tempo-quente, a rola-vaqueira... e o bem-te-vi que dizia, e araras enrouquecidas. Bomera ouvir o mm das vacas devendo seu leite. Mas, passarinho debilo no desvu da madrugada, para toda tristeza que o pensa-mento da gente quer, ele repergunta e finge resposta. Tal, detarde, o bento-vieira tresvoava, em vai sobre vem sob, rebicandode vo todo bichinhozinho de finas asas; pssaro esperto. Iadechover mais em mais. Tardinha que enche as rvores de cigar-ras ento, no chove. Assovios que fechavam o dia: o papa-banana, o azuljo, a garricha-do-brejo, o suirir, o sabi-ponga, ogrunhat-do-coqueiro... Eu estava todo o tempo quase com Dia-dorim.

    Diadorim e eu, ns dois. A gente dava passeios. Com assim,a gente se diferenciava dos outros porque jaguno no mui-to de conversa continuada nem de amizades estreitas: a bem elesse misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um feito umpor si. De ns dois juntos, ningum nada no falava. Tinham aboa prudncia. Dissesse um, caoasse, digo podia morrer. Seacostumavam de ver a gente parmente. Que nem mais maldavam.

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    E estvamos conversando, perto do rego bicame de velhafazenda, onde o agrio d flor. Desse lusfs, ia escurecendo. Dia-dorim acendeu um foguinho, eu fui buscar sabugos. Mariposaspassavam muitas, por entre as nossas caras, e besouros gradosesbarravam. Puxava uma brisbrisa. O ianso do vento revinha como cheiro de alguma chuva perto. E o chiim dos grilos ajuntava ocampo, aos quadrados. Por mim, s, de tantas mincias, no erao capaz de me alembrar, no sou de parada pouca coisa; mas asaudade me alembra. Que se hoje fosse. Diadorim me ps o ras-tro dele para sempre em todas essas quisquilhas da natureza. Seicomo sei. Som como os sapos sorumbavam. Diadorim, duro s-rio, to bonito, no relume das brasas. Quase que a gente noabria boca; mas era um delm que me tirava para ele o irre-medivel extenso da vida. Por mim, no sei que tontura de vexa-me, com ele calado eu a ele estava obedecendo quieto. Quaseque sem menos era assim: a gente chegava num lugar, ele falavapara eu sentar; eu sentava. No gosto de ficar em p. Ento, de-pois, ele vinha sentava, sua vez. Sempre mediante mais longe. Euno tinha coragem de mudar para mais perto. S de mim era queDiadorim s vezes parecia ter um espevito de desconfiana; demim, que era o amigo! Mas, essa ocasio, ele estava ali, maisvindo, a meia-mo de mim. E eu mal de no me consentir emnenhum afirmar das docemente coisas que so feias eu meesquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava depensar. Mas sucedia uma duvidao, rano de desgosto: eu ver-sava aquilo em redondos e quadrados. S que corao meu podiamais. O corpo no traslada, mas muito sabe, adivinha se no en-tende. Perto de muita gua, tudo feliz. Se escutou, banda dorio, uma lontra por outra: o issilvo de plim, chupante. Tque, mas eu quero que esse dia chegue! Diadorim dizia. No posso ter alegria nenhuma, nem minha mera vida mesma,

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    enquanto aqueles dois monstros no forem bem acabados... Eele suspirava de dio, como se fosse por amor; mas, no mais, nose alterava. De to grande, o dele no podia mais ter aumento:parava sendo um dio sossegado. dio com pacincia; o senhorsabe?

    E, aquilo forte que ele sentia, ia se pegando em mim masno como dio, mais em mim virando tristeza. Enquanto os doismonstros vivessem, simples Diadorim tanto no vivia. At queviesse a poder vingar o histrico de seu pai, ele tresvariava. Du-rante que estvamos assim fora de marcha em rota, tempo dedescanso, em que eu mais amizade queria, Diadorim s falavanos extremos do assunto. Matar, matar, sangue manda sangue.Assim ns dois espervamos ali, nas cabeceiras da noite, juntoem junto. Calados. Me alembro, ah. Os sapos. Sapo tirava sacode sua voz, vozes de osga, idosas. Eu olhava para a beira do rego.A ramagem toda do agrio o senhor conhece s horas dde si uma luz, nessas escurides: folha a folha, um fosform agrio acende de si, feito eletricidade. E eu tinha medo. Medoem alma.

    No respondi. No adiantava. Diadorim queria o fim. Paraisso a gente estava indo. Com o comando de Medeiro Vaz, dalidepois daquele carecido repouso, a gente revirava caminho, iaem cima dos outros deles! procurando combate. Muniono faltava. Ns estvamos em sessenta homens mas todoscabras dos melhores. Chefe nosso, Medeiro Vaz, nunca perdiaguerreiro. Medeiro Vaz era homem sobre o sisudo, nos usos for-mado, no gastava as palavras. Nunca relatava antes o projetoque tivesse, que marchas se ia amanhecer para dar. Tambm, tudonele decidia a confiana de obedincia. Ossoso, com a nuca enor-me, cabeona meia baixa, ele era dono do dia e da noite quequase no dormia mais: sempre se levantava no meio das estre-

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    las, percorria o arredor, vagaroso, em passos, calado com suasboas botas de caitit, to antigas. Se ele em honrado juzo achas-se que estava certo, Medeiro Vaz era solene de guardar o rosriona algibeira, se traar o sinal-da-cruz e dar firme ordem para sematar uma a uma as mil pessoas. Desde o comeo, eu aprecieiaquela fortaleza de outro homem. O segredo dele era de pedra.

    Ah, eu estou vivido, repassado. Eu me lembro das coisas,antes delas acontecerem... Com isso minha fama claria? Remeivida solta. Serto: estes seus vazios. O senhor v. Alguma coisa,ainda encontra. Vaqueiros? Ao antes a um, ao Chapado doUrucia aonde tanto boi berra... Ou o mais longe: vaqueirosdo Brejo-Verde e do Crrego do Quebra-Quinus: cavalo delesconversa cochicho que se diz para dar sisado conselho aocavaleiro, quando no tem mais ningum perto, capaz de escu-tar. Creio e no creio. Tem coisa e cousa, e o da raposa... Dalipara c, o senhor vem, comeos do Carinhanha e do Piratingafilho do Urucia que os dois, de dois, se do as costas. Saemdos mesmos brejos buritizais enormes. Por l, sucur geme.Cada surucui do grosso: va corpo no veado e se enrosca nele,abofa trinta palmos! Tudo em volta, um barro colador, quesegura at casco de mula, arranca ferradura por ferradura. Commedo de me-cobra, se v muito bicho retardar ponderado, paz dehora de poder gua beber, esses escondidos atrs das touceirasde buritirana. Mas o sassafrs d mato, guardando o po; o quecheira um bom perfume. Jacar grita, uma, duas, as trs vezes,rouco roncado. Jacar choca olhalho, crespido do lamal, feiomirando na gente. Eh, ele sabe se engordar. Nas lagoas aondenem um de asas no pousa, por causa de fome de jacar e dapiranha serrafina. Ou outra lagoa que nem no abre o olho,de tanto junco. Da longe em longe, os brejos vo virando rios.Buritizal vem com eles, burit se segue, segue. Para trocar de

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    bacia o senhor sobe, por ladeiras de beira-de-mesa, entra de brutona chapada, chapado que no se devolve mais. gua ali nenhu-ma no tem s a que o senhor leva. Aquelas chapadas compri-das, cheias de mutucas ferroando a gente. Mutucas! D o sol, deonda forte, d que d, a luz tanta machuca. Os cavalos suavam sale espuma. Muita vez a gente cumpria por picadas no mato, cami-nho de anta a ida da vinda... De noite, se de ser, o cuembola um brilho. Cabea da gente quase esbarra nelas. Bonitoem muito comparecer, como o cu de estrelas, por meados defevereiro! Mas, em desla, no escuro feito, um escuro, quepia e pga. noite de muito volume. Treva toda do serto, sem-pre me fez mal. Diadorim, no, ele no largava o fogo de gelodaquela idia; e nunca se cismava. Mas eu queria que a madruga-da viesse. Dia quente, noite fria. Arrancvamos canela-de-ema,para acender fogueira. Se a gente tinha o que comer e beber, eudormia logo. Sonhava. S sonho, mal ou bem, livrado. Eu tinhauma lua recolhida. Quando o dia quebrava as barras, eu escutavaoutros pssaros. Tirir, grana, a fariscadeira, juriti-do-peito-bran-co ou a pomba-vermelha-do-mato-virgem. Mas mais o bem-te-vi. Atrs e adiante de mim, por toda a parte, parecia que era umbem-te-vi s. Gente! No se acha at que ele sempre um,em mesmo? perguntei a Diadorim. Ele no aprovou, e esta-va incerto de feies. Quando meu amigo ficava assim, eu perdiameu bom sentir. E permaneci duvidando que seria que eraum bem-te-vi, exato, perseguindo minha vida em vez, me acu-sando de ms-horas que eu ainda no tinha procedido. At hoje assim...

    Dali vindo, visitar convm ao senhor o povoado dos pretos:esses bateavam em faisqueiras no recesso brenho do Vargem-da-Cria donde ouro j se tirou. Acho, de baixo quilate. Unspretos que ainda sabem cantar gabos em sua lngua da Costa.

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    E em andemos: jaguno era que perpassava ligeiro; no chapado,os legtimos coitados todos vivem demais devagar, pasmacez. Atanta misria. O chapado, no pardo, igual, igual a muitagente ele entristece; mas eu j nasci gostando dele. As chuvas setemperaram...

    Digo: outro ms, outro longe na Aroeirinha fizemos pa-ragem. Ao que, num portal, vi uma mulher moa, vestida devermelho, se ria. moo da barba feita... ela falou. Nafrente da boca, ela quando ria tinha os todos dentes, mostravaem fio. To bonita, s. Eu apeei e amarrei o animal num pau dacerca. Pelo dentro, minhas pernas doam, por tanto que dessestrs dias a gente se sustava de custoso varar: circunstncia detrinta lguas. Diadorim no estava perto, para me reprovar. Derepente, passaram, aos galopes e gritos, uns companheiros, quetocavam um boi preto que iam sangrar e carnear em beira dgua.Eu nem tinha comeado a conversar com aquela moa, e a poei-ra forte que deu no ar ajuntou ns dois, num grosso rojo aver-melhado. Ento eu entrei, tomei um caf coado por mo demulher, tomei refresco, limonada de pra-do-campo. Se chama-va Nhorinh. Recebeu meu carinho no cetim do plo alegriaque foi, feito casamento, esponsal. Ah, a mangaba boa s se colhej cada no cho, de baixo... Nhorinh. Depois ela me deu depresente uma presa de jacar, para traspassar no chapu, comtalento contra mordida de cobra; e me mostrou para beijar umaestampa de santa, dita meia milagrosa. Muito foi.

    Me dela chegou, uma velha arregalada, por nome de AnaDuzuza: falada de ser filha de ciganos, e dona adivinhadora daboa ou m sorte da gente; naquele serto essa disps de muitavirtude. Ela sabia que a filha era meretriz, e at contanto quefosse para os homens de fora do lugarejo, jagunos ou tropeiros no se importava, mesmo dava sua placena. Comemos fari-

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    nha com rapadura. E a Ana Duzuza me disse, vendendo fortesegredo, que Medeiro Vaz ia experimentar passar de banda a bandao liso do Sussuaro. Ela estava chegando do arranchado de MedeiroVaz, que por ele mandada buscar, ele querendo suas profecias.Loucura duma? Para que? Eu nem no acreditei. Eu sabia queestvamos entortando era para a Serra das Araras revinharaquelas corujeiras nos bravios de ali alm, aonde tudo quantoera bandido em folga se escondia l se podia azo de combinarmais outros variveis companheiros. Depois, de arte: que o Lisodo Sussuaro no concedia passagem a gente viva, era o raso piorhavente, era um escampo dos infernos. Se , se? Ah, existe, meu!Eh... Que nem o Vo-do-Buraco? Ah, no, isto coisa diversa por diante da contravertncia do Preto e do Pardo... Tambmonde se forma calor de morte mas em outras condies... Agente ali ri rampa... Ah, o Tabuleiro? Senhor ento conhece?No, esse ocupa desde a Vereda-da-Vaca-Preta at o CrregoCatol, c em baixo, e de em desde a nascena do Peruass at orio Coch, que tira da Vrzea da Ema. Depois dos cerrades dasmangabeiras...

    Nada, nada vezes, e o demo: esse, Liso do Sussuaro, omais longe pra l, pra l, nos ermos. Se emenda com si mes-mo. gua, no tem. Crer que quando a gente entesta com aquiloo mundo se acaba: carece de se dar volta, sempre. Um que dalino avana, espia s o comeo, s. Ver o luar alumiando, me, eescutar como quantos gritos o vento se sabe sozinho, na camadaqueles desertos. No tem excrementos. No tem pssaros.

    Com isso, apertei aquela Ana Duzuza, e ela no aguentou araiva em meus olhos. Se Medeiro Vaz, pois foi ele mesmoprprio quem me contou... ela teve de falar. Soturnos. Noera possvel!

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    Diadorim estava me esperando. Ele tinha lavado minha rou-pa: duas camisas e um palet e uma cala, e outra camisa, nova,de bulgariana. s vezes eu lavava a roupa, nossa; mas quase maisquem fazia isso era Diadorim. Porque eu achava tal servio opior de todos, e tambm Diadorim praticava com mais jeito, momelhor. Ele no indagou donde eu tinha estado, e eu menti ques tinha entrado l por causa da velha Ana Duzuza, a fim de re-querer o significado do meu futuro. Diadorim tambm disso nodisse; ele gostava de silncios. Se ele estava com as mangas arre-gaadas, eu olhava para os braos dele to bonitos braos al-vos, em bem feitos, e a cara e as mos avermelhadas e empola-das, de picadas das mutucas. No momento, foi que eu ca emmim, que podia ter perguntado Ana Duzuza alguma passagemde minha sina por vir. Tambm uma coisa, de minha, fechada, eudevia de perguntar. Coisa que nem eu comigo no estudava, notinha a coragem. E se a Duzuza adivinhasse mesmo, conhecessepor detrs o pano do destino? No perguntei, no tinha pergun-tado. Quem sabe, podia ser, eu estava enfeitiado? Me arrependide no ter pedido o resumo Ana Duzuza. Ah, tem uma repeti-o, que sempre outras vezes em minha vida acontece. Eu atra-vesso as coisas e no meio da travessia no vejo! s estavaera entretido na idia dos lugares de sada e de chegada. Assaz osenhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vaidar na outra banda num ponto muito mais em baixo, bem di-verso do em que primeiro se pensou. Viver nem no muitoperigoso?

    Redisse a Diadorim o que eu tinha surripiado: que o projetode Medeiro Vaz s era o de conduzir a gente para o Liso do Sus-suaro a dentro, adiante, at ao fim. E certo . certo Diadorim respondeu, me afrontando com a surpresa de queele j sabia daquilo e a mim no tinha antecipado nem mida

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    palavra. E veja: eu vinha tanto tempo me relutando, contra oquerer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo sepertence gostar; e, agora aquela hora, eu no apurava vergonhade se me entender um cime amargoso. Sendo sabendo queMedeiro Vaz depunha em Diadorim uma confiana muito maiordo que em ns outros todos, de formas que com ele externavaos assuntos. Essa diferena de regra agora me turvava? MasMedeiro Vaz era homem de outras idades, andava por este mun-do com mo leal, no variava nunca, no fraquejava. Eu sabia queele, a bem dizer, s guardava memria de um amigo: Joca Rami-ro. Joca Ramiro tinha sido a admirao grave da vida dele: Deusno Cu e Joca Ramiro na outra banda do Rio. Tudo o justo. Mascime mais custoso de se sopitar do que o amor. Corao dagente o escuro, escuros.

    Ento, Diadorim o resto me descreveu. Pra por l do Sus-suaro, j em tantos terrenos da Bahia, um dos dois Judas possuasua maior fazenda, com os muitos gados, lavouras, e l morava suafamlia dele legtima de raa mulher e filhos. A gente suprissede varar o Liso em boas farsas, se chegava l sem ser esperados,arrastava aquele pessoal por dura surpresa acabou-se comaquilo! Mesmo quem havia de deduzir que o Liso do Sussuaroprestasse para nele caminho se impor? Ah, eles prosperavam emsua fazenda feito num quartel de bronze com que por outroscantos no se podia remeter, pois de arredor decerto tinham vi-gias, reforo de munio e rcua de camaradas, pelos pontos depassagem dificultosa, que eles governavam, em cada grota e cadaipueira. Truco que, de repente, do lado mais impossvel, a gentefosse surgir de sobrevento, soflagrar aqueles desprevenidos... Euescutei, e perfiz at um arrepio. Mas Diadorim, de vez mais s-rio, temperou: Essa velha Ana Duzuza que inferna e no seserve... Das perguntas que Medeiro Vaz fez, ela tirou por tino a

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    teno dele, e no devia de ter falado as pausas... Essa carece demorrer, para no ser leleira...

    Ouvi mal ouvi. Me vim dguas frias. Diadorim era assim:matar, se matava era para ser um preparo. O judas algum? na faca! Tinha de ser nosso costume. Eu no sabia? No sou ho-mem de meio-dia com orvalhos, no tenho a fraca natureza. Masme venceu pena daquela Ana Duzuza, ela com os olhos para fora a gente podia pegar nos dedos. Coisa que me contou tantaslorotas. Trem, caco de velha, boca que se fechava aboborosa, desem dentes. Raspava a rapadura com a quic, ia ajuntando napalma da mo o farelo peguento preto; ou, se no, segurava onaco, rechupando, lambendo. A gente engrossava njo, salivava.Por que , ento, que ela merecia tanto d? Eu no tive solrciade contradizer. As vontades de minha pessoa estavam entreguesa Diadorim. A razo dele era do estilo acinte. S previ medo foide que ele falasse para eu mesmo ir voltar l, por minhas pr-prias acabar a Ana Duzuza. Eu no sojigava tudo por sentir. Faziatempo que eu no olhava Diadorim nos olhos.

    Mas, de seguinte, eu pensei: se matarem a velha Duzuza, peloresguardar o segredo, ento capaz que matem a filha tambm,Nhorinh... ento assassinar! Ah, que se puxou de mim umadeciso, e eu abri sete janelas: Disso que voc disse, descon-venho! Bulir com a vida dessa mulher, para a gente d atraso... eu o quanto falei. Diadorim me adivinhava: J sei quevoc esteve com a moa filha dela... ele respondeu, seco,quase num chio. Dente de cobra. A, entendi o que pra verdade:que Diadorim me queria tanto bem, que o cime dele por mimtambm se alteava. Depois dum rebate contente, se atrapalhouem mim aquela outra vergonha, um estrdio asco.

    E eu quase gritei: A a intimao? Pois, fizerem, eu saiodo meio de vs, pra todo o nunca. Mais tu h de no me ver!...

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    Diadorim ps mo em meu brao. Do que me estremeci, dedentro, mas repeli esses alvoroos de doura. Me deu a mo; eeu. Mas era como tivesse uma pedra pontuda entre as duas pal-mas. Voc j paga to escasso ento por Joca Ramiro? Porconta duma bruxa feiticeira, e a m-vida da filha dela, aqui nesteconfim de gerais?! ele baixo exclamou. E tive ira. Dou! falei. Todo o mundo, ento, todos, tinham de viver honrandoa figura daquele, de Joca Ramiro, feito fosse Cristo Nosso Se-nhor, o exato?! E por a eu j tinha pitado dois cigarros. Ser donodefinito de mim, era o que eu queria, queria. Mas Diadorim sa-bia disso, parece que no deixava:

    Riobaldo, escuta, pois ento: Joca Ramiro era o meupai... ele disse no sei se estava plido muito, e depois foique se avermelhou. Devido o que, abaixou o rosto, para maisperto de mim.

    Acalmou meu flego. Me cerrou aquela surpresa. Sentei emcima de nada. E eu cri to certo, depressa, que foi como sempreeu tivesse sabido aquilo. Menos disse. Espiei Diadorim, a duracabea levantada, to bonito to srio. E corri lembrana emJoca Ramiro: porte luzido, passo ligeiro, as botas russianas, arisada, os bigodes, o olhar bom e mandante, a testa muita, otopete de cabelos anelados, pretos, brilhando. Como que brilha-va ele todo. Porque Joca Ramiro era mesmo assim sobre os ho-mens, ele tinha uma luz, rei da natureza. Que Diadorim fosse ofilho, agora de vez me alegrava, me assustava. Vontade minha foideclarar: Redigo, Diadorim: estou com voc, assente, em todosistema, e com a memria de seu pai!... Mas foi o que eu nodisse. Ser por qu? Criatura gente no e questo, corda de trstentos, trs tranos. Pois, para mim, pra quem ouvir, no fatoessa Ana Duzuza fica sendo minha me! foi o que eu disse. E,

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    fechando, quase gritei: Por mim, pode cheirar que chegue omanac: no vou! Reajo dessas barbaridades!...

    Tudo turbulindo. Esperei o que vinha dele. De um acso, demim eu sabia: o que compunha minha opinio era que eu, sloucas, gostasse de Diadorim, e tambm, recesso dum modo, araiva incerta, por ponto de no ser possvel dele gostar comoqueria, no honrado e no final. Ouvido meu retorcia a voz dele.Que mesmo, no fim de tanta exaltao, meu amor inchou, deempapar todas as folhagens, e eu ambicionando de pegar emDiadorim, carregar Diadorim nos meus braos, beijar, as muitasdemais vezes, sempre. E tinha njo maior daquela Ana Duzuza,que vinha talvez separar a amizade da gente. Em mesmo eu qua-se reconheci um surdo prestgio de, sendo preciso, ir l, por mim,reduzir a velha s no podia maltratar era Nhorinh, que, aotanto afeto, eu, eu bem-queria. H-de que eu certo no regulas-se, xe? No sei, no sei. No devia de estar relembrando isto,contando assim o sombrio das coisas. Lenga-lenga! No deviade. O senhor de fora, meu amigo mas meu estranho. Mas, tal-vez por isto mesmo. Falar com o estranho assim, que bem ouve elogo longe se vai embora, um segundo proveito: faz do jeitoque eu falasse mais mesmo comigo. Mire veja: o que ruim,dentro da gente, a gente perverte sempre por arredar mais de si.Para isso que o muito se fala?

    E as idias instrudas do senhor me fornecem paz. Principal-mente a confirmao, que me deu, de que o Tal no existe; pois no? O Arrenegado, o Co, o Cramulho, o Indivduo, o Ga-lhardo, o P-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Cxo, oTemba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Mafarro, o P-Preto, o Canho,o Duba-Dub, o Rapaz, o Tristonho, o No-sei-que-diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos... Pois, no existe! E, se no existe,como que se pode se contratar pacto com ele? E a idia me

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    retorna. Dum mau imaginado, o senhor me d o lcito: que, ouento ser que pode tambm ser que tudo mais passadorevolvido remoto, no profundo, mais crnico: que, quando umtem noo de resolver a vender a alma sua, que porque ela jestava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita est s certificando o regular dalgum velho trato que j se vendeuaos poucos, faz tempo? Deus no queira; Deus que roda tudo!Diga o senhor, sobre mim diga. At podendo ser, de algum al-gum dia ouvir e entender assim: quem-sabe, a gente criatura ain-da to ruim, to, que Deus s pode s vezes manobrar com oshomens mandando por intermdio do di? Ou que Deus quando o projeto que ele comea para muito adiante, a ruinda-de nativa do homem s capaz de ver o aproximo de Deus emfigura do Outro? Que que de verdade a gente pressente? Dvidodez anos. Os pobres ventos no burro da noite. Deixa o mundodar seus giros! Estou de costas guardadas, a poder de minhasrezas. Ah. Deamar, deamo... Relembro Diadorim. Minha mu-lher que no me oua. Moo: toda saudade uma espcie develhice.

    Mas a, eu estava contando quando eu gritei aquele desa-fio raivoso, Diadorim respondeu o que eu no esperava: Temdiscrdia no, Riobaldo amigo, se acalme. No preciso se havercautela de morte com essa Ana Duzuza. Nem ns vamos comMedeiro Vaz para fazer barbaridade com a mulher e filhos pe-quenos daquele pior dos dois Judas, to bem que mereciam, por-que ele e os da laia dele tm costumes de proceder assim. Mas oque a gente quer s pegar a famlia conosco prisioneira; ento,ele vem, se vem! E vem obrigado pra combates... Mas, se vocalgum dia deixar de vir junto, como juro o seguinte: hei de ter atristeza mortal... Disse. Tinha tornado a pr a mo na minhamo, no comeo de falar, e que depois tirou; e se espaou de

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    mim. Mas nunca eu senti que ele estivesse melhor e perto, peloquanto da voz, duma voz mesmo repassada. Corao isto ,estes pormenores todos. Foi um esclaro. O amor, j de si, al-gum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todosos pssaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matavae morria, se bem.

    Mas Diadorim mais no supriu o que mais no explicava. E,quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: Riobal-do, se lembra certo da senhora sua me? Me conta o jeito debondade que era a dela...

    Na ao de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, naao da pergunta. S fao, que refugo, sempre quando outro querdireto saber o que prprio o meu no meu, ah. Mas desci disso,o minuto, vendo que s mesmo Diadorim era que podia acertaresse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assimdevia de ser. Toda me vive de boa, mas cada uma cumpre suapaga prenda singular, que a dela e dela, diversa bondade. E eununca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha me era aminha me, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especialde minha me tinha sido a de amor constando com a justia, queeu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios,querer-bem s minhas alegrias. A lembrana dela me fantasiou,fraseou s face dum momento feito grandeza cantvel,feito entre madrugar e manhecer.

    ...Pois a minha eu no conheci... Diadorim prosse-guiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar:barra beiras cabeceiras... Fosse cego, de nascena.

    Por mim, o que pensei, foi: que eu no tive pai; quer dizerisso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. No meenvergonho, por ser de escuro nascimento. rfo de conhecenae de papis legais, o que a gente v mais, nestes sertes. Ho-

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    mem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algumfilho o perdurado. Quem pobre, pouco se apega, um giro-o-giro no vago dos gerais, que nem os pssaros de rios e lagoas.O senhor v: o Z-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho ehabilidoso. Pergunto: Z-Zim, por que que voc no criagalinhas-dangola, como todo o mundo faz? Quero criarnada no... me deu resposta: Eu gosto muito de mu-dar... Est a, est com uma mocinha cabocla em casa, dois fi-lhos dela j tem. Belo um dia, ele tora. assim. Ningum discre-pa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteo. Eu, isto Deus,por baixos permeios... Essa no faltou tambm minha me,quando eu era menino, no sertozinho de minha terra baixoda ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dosAlegres, tapera dum stio dito do Caramujo, atrs das fontes doVerde, o Verde que verte no Paracat. Perto de l tem vila gran-de que se chamou Alegres o senhor v ver. Hoje, mudou denome, mudaram. Todos os nomes eles vo alterando. em se-nhas. So Romo todo no se chamou de primeiro Vila Risonha? OCedro e o Bagre no perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nomede lugar onde algum j nasceu, devia de estar sagrado. L comoquem diz: ento algum havia de renegar o nome de Belm deNosso-Senhor-Jesus-Cristo no prespio, com Nossa Senhora eSo Jos?! Precisava de se ter mais travao. Senhor sabe: Deus definitivamente; o demo o contrrio Dele... Assim que digo:eu, que o senhor j viu que tenho retentiva que no falta, recor-do tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado;mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos.Para trs, no h paz. O senhor sabe: a coisa mais alonjada deminha primeira meninice, que eu acho na memria, foi o dio,que eu tive de um homem chamado Gramacdo... Gente me-

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    lhor do lugar eram todos dessa famlia Guedes, Jidio Guedes;quando saram de l, nos trouxeram junto, minha me e eu. Fi-camos existindo em territrio baixo da Sirga, da outra banda,ali onde o de-Janeiro vai no So Francisco, o senhor sabe. Euestava com uns treze ou quatorze anos...

    De sorte que, do que eu estava contando, ao senhor, umanoite se passou, todo o mundo sonhado satisfeito. Declaro queera em abril, em entrar. Medeiro Vaz, para o que traava, tinhaquerido se adiar das restadas chuvas de maro dia de So Jose sua enchente temposa para pegar cu perfeito, com os cam-pos ainda subindo verdes, pois visto a gente ia baixar primeiropor campinas de brejais, e da avanar aquilo que se disse, dpo-depois. Porque era extraordinria verdade, logo conheci; noachei terrvel. Tangemos, esbarrando dois dias no Vesp l setinha boa cavalaria descansada, outros cavalos sob guarda dumsitiante amigo, Je Engrcio, por nome. Nos caminhos ainda selambuzava muita lama de ntem. Versar viagem a cavalo semter estradas s dido quem faz isso, ou jagunz... aqueleJe Engrcio falou, esse era homem srio trabalhador, mas de-mais de simplrio; e, do que ele falava, ele mesmo logo se ria,fortemente. Mas erro era porquanto Medeiro Vaz sempresoube rumo prtico, pelo firme. Modo mesmo assim, ele JeEngrcio reparou na quantidade de comidas e mantimentos quea gente tinha reunido, em tantos burros cargueiros: e que eradespropsito, por amor daquela fartura as carnes e farinhas,e rapadura, nem faltava sal, nem caf. De tudo. E ele, vendo oque via, perguntou aonde se ia, dando dizendo de querer ir jun-to. Bobou? foi s o que Medeiro Vaz indeferiu. Bobei,chefe. Perdo peo... Je Engrcio reverenciou.

    Medeiro Vaz no era carrancista. Somente de mais sisudez, apraxe, homem baseado. s vezes vinha falando surdo, de resmo.

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    Com ele, ningum vereava. De estado calado, ele sempre aceita-va todo bom e justo conselho. Mas no louvava cantoria. Esta-vam falando todos juntos? Ento Medeiro Vaz no estava l. Oque tinha sido antanha a histria mesma dele, o senhor sabe?Quando moo, de antepassados de posses, ele recebera grandefazenda. Podia gerir e ficar estadonho. Mas vieram as guerras eos desmandos de jagunos tudo era morte e roubo, e desres-peito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossvel qual-quer sossego, desde em quando aquele imundo de loucura subiuas serras e se espraiou nos gerais. Ento Medeiro Vaz, ao fim deforte pensar, reconheceu o dever dele: largou tudo, se desfez doque abarcava, em terras e gados, se livrou leve como que quises-se voltar a seu s nascimento. No tinha bocas de pessoa, nosustinha herdeiros forados. No derradeiro, fez o fez por suasmos ps fogo na distinta casa-de-fazenda, fazendo sido de pai,av, bisav espiou at o vojo das cinzas; l hoje arvoredos.Ao que, a foi aonde a me estava enterrada um cemiteriozinhoem beira do cerrado ento desmanchou cerca, espalhou aspedras: pronto, de alvios agora se testava, ningum podia des-cobrir, para remexer com desonra, o lugar onde se conseguiamos ossos dos parentes. Da, relimpo de tudo, escorrido dono desi, ele montou em ginete, com cachos darmas, reuniu chusmade gente corajada, rapaziagem dos campos, e sau por esse rumoem roda, para impor a justia. De anos, andava. Dizem que foificando cada vez mais esquisito. Quando conheceu Joca Ramiro,ento achou outra esperana maior: para ele, Joca Ramiro eranico homem, par-de-frana, capaz de tomar conta deste sertonosso, mandando por lei, de sobregovrno. Fato que Joca Rami-ro tambm igualmente saa por justia e alta poltica, mas s emfavor de amigos perseguidos; e sempre conservava seus bons ha-veres. Mas Medeiro Vaz era duma raa de homem que o senhor

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    mais no v; eu ainda vi. Ele tinha conspeito to forte, que pertodele at o doutor, o padre e o rico, se compunham. Podia aben-oar ou amaldioar, e homem mais moo, por valente que fosse,de beijar a mo dele no se vexava. Por isso, ns todos obedeca-mos. Cumpramos choro e riso, doideira em juzo. Tenente nosgerais ele era. A gente era os medeiro-vazes.

    Razo dita, de boa-cara se aceitou, quando conforme Me-deiro Vaz com as poucas palavras: que amos cruzar o Liso doSussuaro, e cutucar de guerrear nos fundes da Bahia! At, otanto, houve, prezando, um rebulio de festejo. O que ningumainda no tinha feito, a gente se sentia no poder fazer. Comofomos: dali do Vesp, tocamos, descendo esbarrancados eescorregador. Depois subimos. A parte de mais rvores, dos cer-rados, cresce no se caminhar para as cabeceiras. Boi brabeza podesurgir do caatingal, tresfuriado com o que de gente nunca soube vem feio pior que ona. Se viam bandos to compridos deararas, no ar, que pareciam um pano azul ou vermelho, desenro-lado, esfiapado nos lombos do vento quente. Da, se desceu mais,e, de repente, chegamos numa baixada toda avistada, felizinha deaprazvel, com uma lagoa muito correta, rodeada de buritizaldos mais altos: burit verde que afina e esveste, belimbeleza.E tinha os restos de uma casa, que o tempo viera destruindo; eum bambual, por antigos plantado; e um ranchinho. Ali se cha-mava o Bambual do Boi. L a gente seria de pernoitar e arrumaros finais preparos.

    Eu estava de sentinela, afastado um quarto-de-lgua, numalto retuso. Dali eu via aquele movimento: os homens, enxerga-dos tamanhinho de meninos, numa alegria, feito nuvem de abe-lhas em flr de ara, esse alvoroo, como tirando roupa e cor-rendo para aproveitarem de se banhar no redondo azul da lagoa,de donde fugiam espantados todos os pssaros as garas, os

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    jaburs, os marrecos, e uns bandos de patos-pretos. Semelhavaque por saberem que no outro dia principiava o peso da vida, oscompanheiros agora queriam s pular, rir e gozar seu exato. Masuns dez tinham de sempre ficar formando prontido, com seusrifles e granadeiras, que Medeiro Vaz assim mandava. E, de tardi-nha, quando voltou o vento, era um fino soprado seguido, naspalmas dos burits, roladas uma por uma. E o bambual, quaseigualmente. Som bom de chuvas. Ento, Diadorim veio me fazercompanhia. Eu estava meio dbito. Talvez, quem tivesse maisreceio daquilo que ia acontecer fosse eu mesmo. Confesso. Eu cno madruguei em ser corajoso; isto : coragem em mim eravarivel. Ah, naqueles tempos eu no sabia, hoje que sei: que,para a gente se transformar em ruim ou em valento, ah basta seolhar um minutinho no espelho caprichando de fazer cara devalentia; ou cara de ruindade! Mas minha competncia foi com-prada a todos custos, caminhou com os ps da idade. E, digo aosenhor, aquilo mesmo que a gente receia de fazer quando Deusmanda, depois quando o diabo pede se perfaz. O Danador! MasDiadorim estava a suaves. Olha, Riobaldo me disse nossa destinao de glria. Em hora de desnimo, voc lem-bra de sua me; eu lembro de meu pai... No fale nesses, Diado-rim... Ficar calado que falar nos mortos... Me faltou certezapara responder a ele o que eu estava achando. Que vontade erade pr meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele, ocul-tando, para no ter de tolerar de ver assim o chamado, at queponto esses olhos, sempre havendo, aquela beleza verde, me adoe-cido, to impossvel.

    Dormiu-se bem. De manhzim moal de aves e pssarosem revo, e pios e cantos a gente toda discorria, se esparra-mava, atarefados, ajudando para o derradeiro. Os bogs de cou-ro foram enchidos nas nascentes da lagoa, e enqueridos nas cos-

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    tas dos burrinhos. Tambm tnhamos trazido jumentos, s modopara carregar. Os cavalos ainda pastavam um pouco, do capim-grama, que tapava os ps deles. Se dizia muita alegria. Cada umpegava tambm sua cabaa dgua, e na capanga o dirio de sevaler com o que comer paoca. Medeiro Vaz, depois de nodizer nada, deu ordem de seguida. Primeiro, para adiante, foiuma turma de cinco homens, a patrulhazinha. Constante quecom a gente estavam trs bons rastreadores Suzarte, JoaquimBeij e Tipote esse Tipote sabia meios de descobrir cacimbase grotas com o bebvel, o Suzarte desempenhava um faro de ca-chorro-mestre, e Joaquim Beij conhecia cada recanto dos ge-rais, de dia e de noite, referido deletreado, quisesse podia mapearplanta. Samos, semoventes. Seis novilhos gordos a gente repon-tava, serviam para se carnear em rota. De repente, com a gentese afastando, os pssaros todos voltavam do cu, que desciampara seus lugares, em ponto, nas frescas beiras da lagoa ah, apapeagem no buritizal, que lequelequia. A ver, e o sol, em pulode avano, longe na banda de trs, por cima de matos, rebentava,aquela grandidade. Dia desdobrado.

    Em o que afundamos num cerrado de mangabal, indo semvolvncia, at perto de hora do almoo. Mas o terreno aumenta-va de soltado. E as rvores iam se abaixando menorzinhas, arre-gaavam saia no cho. De vir l, s algum tat, por mel e mangaba.Depois, se acabavam as mangabaranas e mangabeirinhas. Ali ondeo campo larguia. Os urubs em vasto espaceavam. Se acabou ocapinzal de capim-redondo e paspalho, e paus espinhosos, quemesmo as mitas daquele de prateados feixes, capins assins. Aca-bava o grameal, naquelas paragens pardas. Aquilo, vindo aos pou-cos, dava um peso extrato, o mundo se envelhecendo, nodescampante. Acabou o sap brabo do chapado. A gente olhavapara trs. Da, o sol no deixava olhar rumo nenhum. Vi a luz,

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    castigo. Um gavio-andorim: foi o fim de pssaro que a gentedivulgou. Achante, pois, se estava naquela coisa tapero detudo, fofo ocado, arrevesso. Era uma terra diferente, louca, elagoa de areia. Onde que seria o sobejo dela, confinante? O solvertia no cho, com sal, esfaiscava. De longe vez, capins mortos;e uns tufos de seca planta feito cabeleira sem cabea. As-exalastrava a distncia, adiante, um amarelo vapor. E fogo come-ou a entrar, com o ar, nos pobres peitos da gente.

    Exponho ao senhor que o sucedido sofrimento sobrefoi jinteirado no comeo; da s mais aumentava. E o que era paraser. O que pra ser so as palavras! Ah, porque. Por que? Juroque: pontual nos instantes de o raso se pisar, um sujeito dos com-panheiros, um Joo Bugre, me disse, ou disse a outro, do meulado:

    ...O Hermgenes tem pauta... Ele se quis com o Capi-roto...

    Eu ouvi aquilo demais. O pacto! Se diz o senhor sabe.Bobia. Ao que a pessoa vai, em meia-noite, a uma encruzilhada,e chama fortemente o Cujo e espera. Se sendo, h-de quevem um p-de-vento, sem razo, e arre se comparece uma porcacom ninhada de pintos, se no for uma galinha puxando barrigadade leites. Tudo errado, remedante, sem completao... O se-nhor imaginalmente percebe? O crespo a gente se retm ento d um cheiro de breu queimado. E o dito o Cxo to-ma espcie, se forma! Carece de se conservar coragem. Se assinao pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar a alma. Muitomais depois. O senhor v, superstio parva? Estornadas!...O Hermgenes tem pautas... Provei. Introduzi. Com ele ningumpodia? O Hermgenes demnio. Sim s isto. Era ele mesmo.

    A gente viemos do inferno ns todos compadre meuQuelemm instrui. Duns lugares inferiores, to monstro-medo-

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    nhos, que Cristo mesmo l s conseguiu aprofundar por um re-lance a graa de sua sustncia alumivel, em as trevas de vsperapara o Terceiro Dia. Senhor quer crer? Que l o prazer trivial decada um judiar dos outros, bom atormentar; e o calor e o friomais perseguem; e, para digerir o que se come, preciso deesforar no meio, com fortes dres; e at respirar custa dr; enenhum sossego no se tem. Se creio? Acho prosevel. Repensono acampo da Macaba da Jaba, soante que mesmo vi e assaz mecontaram; e outros as ruindades de regra que executavam emtantos pobrezinhos arraiais: baleando, esfaqueando, estripando,furando os olhos, cortando lnguas e orelhas, no economizandoas crianas pequenas, atirando na inocncia do gado, queimandopessoas ainda meio vivas, na beira de estrago de sangues... Essesno vieram do inferno? Saudaes. Se v que subiram de l antesdos prazos, figuro que por empreitada de punir os outros,exemplao de nunca se esquecer do que est reinando por de-baixo. Em tanto, que muitos retombam para l, constante quemorrem... Viver muito perigoso.

    Mas mor o infernal a gente tambm media. Digo. A igual,igualmente. As chuvas j estavam esquecidas, e o milo mal doserto residia ali, era um sol em vazios. A gente progredia dumaspoucas braas, e calcava o reafundo do areio areia queescapulia, sem firmeza, puxando os cascos dos cavalos para trs.Depois, se repraava um entrano de vice-versa, com espinhos erestolho de gravi, de spera raa, verde-preto cor de cobra.Caminho no se havendo. Da, trasla um duro cho rosado oucinzento, gretoso e escabro no desentender aquilo os cavalosarupanavam. Diadorim sempre em prumo a cabea o sor-riso dele me dobrava o ansiar. Como que falasse: H, valentessomos, corruscubas, sobre ningum que vamos padecer emorrer por aqui... Os medeiro-vazes... Medeiro Vaz se estugasse

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    adiante, junto com os que rastreavam? Ser que de l ainda sepodia receder? De devagar, vi visagens. Os companheiros se pros-seguindo, s prosseguindo, receei de ter um vgado comotonteira de truaca. Havia eu de saber por que? Acho que provi-nha de excessos de idia, pois caminhadas piores eu j tinha fei-to, a cavalo ou a p, no tosta-sol. Medo, meu medo. Aguentei.Tanto tudo o que eu carregava comigo me pesava eu ressentiaas correias dos correames, os formatos. A com lgua-e-meia deandada, bebi meu primeiro chupo dgua, da cabaa eu tinhaavarezas dela. Alguma justa noo no emendei, eu pensava des-conjuntado. At que esbarramos. At que, no mesmo padro delugar, sem mudana nenhuma, nenhuma rvore nem barranco,nem nada, se viu o sol de um lado deslizar, e a noite armar dooutro. Nem auxiliei a tomar conta dos bois, nem a destravar osburros de albarda. Onde era que os animais iam poder pastar?Noite redondeou, noite sem boca. Desarreei, peei o animal, cae dormi. Mas, no extremo de adormecer, ainda intruj duas coi-sas, em cruz: que Medeiro Vaz estava insensato? e que o Her-mgenes era pactrio! Tomo que essas traves fecharam meusolhos. De Diadorim, a jaz que descansando do meu lado, assimouvi: Pois dorme, Riobaldo, tudo h-de resultar bem... Antespalavras que picaram em mim uma gastura cansada; mas a vozdele era o tanto-tanto para o embabo de meu corpo. Noite essa,astcia que tive uma sonhice: Diadorim passando por debaixo deum arco-ris. Ah, eu pudesse mesmo gostar dele os gosta-res...

    Como vou achar ordem para dizer ao senhor a continuaodo martrio, em desde que as barras quebraram, no seguinte, nabrumalva daquele falecido amanhecer, sem esperana em uma,sem o simples de passarinhos faltantes? Fomos. Eu abaixava osolhos, para no reter os horizontes, que trancados no altera-

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    vam, circunstavam. Do sol e tudo, o senhor pode completar,imaginado; o que no pode, para o senhor, ter sido, vivido. Ssaiba: o Liso do Sussuaro concebia silncio, e produzia umamaldade feito pessoa! No destru aqueles pensamentos: ir, eir, vir e s; e que Medeiro Vaz estava demente, sempre existi-do doidante, s agora pior, se destapava era o que eu tinharompncia de gritar. E os outros, companheiros, que que osoutros pensavam? Sei? De certo nadas e noves iam como ocostume sertanejos to sofridos. Jaguno homem j meiodesistido por si... A calamidade de quente! E o esbraseado, oestufo, a dr do calor em todos os corpos que a gente tem. Oscavalos venteando s se ouvia o resfol deles, cavalanos, e otrabalho custoso de suas passadas. Nem menos sinal de sombra.gua no havia. Capim no havia. A debeber os cavalos em cochoarmado de couro, e dosar a meio, eles esticando os pescoospara pedir, eles olhavam como para seus cascos, mostrando tudoo que cangavam de esforo, e cada restar de bebida carecia de serpoupado. Se ia, o pesadlo. Pesadlo mesmo, de delrios. Os ca-valos gemiam descrena. J pouco forneciam. E ns estvamosperdidos. Nenhum po no se achava. Aquela gente toda sapiravade olhos vermelhos, arroxeavam as caras. A luz assassinava de-mais. E a gente dava voltas, os rastreadores farejando, procuran-do. J tinha quem beijava os bentinhos, se rezava. De mim, en-treguei alma no corpo, debruado para a sela, numa quebreira.At minhas testas formaram de chumbo. Valentia vale em todashoras? Repensei coisas de cabea-branca. Ou eu variava? A sau-dade que me dependeu foi de Otaclia. Moa que dava amor pormim, existia nas Serras dos Gerais Buritis Altos, cabeceira devereda na Fazenda Santa Catarina. Me airei nela, como adiguice duma msica, outra gua eu provava. Otaclia, ela queria

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    viver ou morrer comigo que a gente se casasse. Saudade sesusteve curta. Desde uns versos:

    Buriti, minha palmeira,l na vereda de l:casinha da banda esquerda,olhos de onda do mar...

    Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim. Meu amor deprata e meu amor de ouro. De doer, minhas vistas bestavam, seembaavam de renvem, e no achei acabar para olhar para ocu. Tive pena do pescoo do meu cavalo pedao, tbuasuante, padecente. Voltar para trs, para as boas serras! Eu via,queria ver, antes de dar casca, um pssaro voando sem movi-mento, o cho fresco remexido pela fossura duma anta, o cabe-cear das rvores, o riso do ar e o fogo feito duma arara. O senhorsabe o que o frege dum vento, sem uma mita, um p de pare-de pra ele se retrasar? Diadorim no se apartou do meu lado.Caso que arredondava a testa, pensando. Adivinhou que eu roa-va longe dele em meus pensamentos. Riobaldo, no se ma-tou a Ana Duzuza... Nada de reprovvel no se fez... falou. Eeu no respondendo. Agora, o que era que aquilo me importava de malfeitos e castigos? Eu ambicionava o suxo manso dumcrrego nas lajes o bom sumio dum riacho mato a fundo. Eadverti memria dos derradeiros pssaros do Bambual do Boi.Aqueles pssaros faziam arjo. Gritavam contra a gente, cada umasia sua sombra num palmo vivo dgua. O melhor de tudo agua. No escaldado... Saio daqui com vida, deserteio dejaguncismo, vou e me caso com Otaclia eu jurei, do propstode meus todos sofrimentos. Mas mesmo depois, naquela hora,eu no gostava mais de ningum: s gostava de mim, de mim!

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    Novo que eu estava no velho do inferno. Dia da gente desexistir um certo decreto por isso que ainda hoje o senhor aqui mev. Ah, e os poos no se achavam... Algum j tinha declaradode morto. O Miqum, um rapaz srio sincero, que muito valiaem guerreio, esbarrou e se riu: Ser que no sorte? De-pois, se sofreu o grito de um, adiante: Estou cego!... Maisaquele, o do pior cau total, virado trto; embaraando ospassos das montadas. De repente, um rosnou, reclamou baixo.Outro tambm. Os cavalos bobejavam. Vi uma roda de caras dehomens. Suas as caras. Credo como algum at as orlhas deleestavam cinzentas. E outro: todo empretecido, e sangrava dascapelas e papos-dos-olhos. Medeiro Vaz a nada no atendia? Ouviminhas veias. A, a rumo, eu pude pegar a rdea do animal deDiadorim aquelas peas doeram na minha mo tive quefiquei um instante no inclinado. Daqui, deste mesmo de lu-gar, mais no vou! S desarrastado vencido... mas fale