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Do futebol ao judo a depressão no desporto é um tabu que começa a cair GRANDE REPORTAGEM PÁGS.44A47

GRANDE REPORTAGEM Do ao a depressão no desporto tabu que ... · primeiro grande despertador de cons-ciências para um problema que come-ça a ver cada vez mais a luz do dia atra-vés

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Page 1: GRANDE REPORTAGEM Do ao a depressão no desporto tabu que ... · primeiro grande despertador de cons-ciências para um problema que come-ça a ver cada vez mais a luz do dia atra-vés

Do futebol ao judoa depressão nodesporto é um tabuque começa a cair

GRANDE REPORTAGEM

PÁGS.44A47

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Saúde mental. Há pouco mais de um mês, a revelação do futebolistaAndré Gomes de que se sentia infeliz em Barcelona voltou a despertarconsciências. Bloqueios mentais, stress competitivo, ansiedade ou depressãofazem parte da realidade do dia-a-dia da alta competição. Uma parte quepermaneceu escondida durante muito tempo, tratada como um estigma

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Depressão nodesporto, um tabuque começa a cair

RUI FRIAS

"Quando ganhamos, ganhamos todos.

Quando perdemos, perdemos sozi-nhos. É esta a dinâmica do desporto."A crua conclusão sai da boca de CélioDias, ao recordar o peso da desilusãosentida após os Jogos Olímpicos do Riode Janeiro, há dois anos. Uma derrotaao primeiro combate, inesperada paraquem partira para o Brasil com a "con-vicção de poder chegar a uma meda-lha", fez o judoca português mergulharnum complexo processo mental que olevou a um internamento.

A dificuldade em lidar com resulta-dos inesperados ou expectativas frus-tradas é uma das principais causas dedepressão entre os atletas de alta com-petição. Frederico Gil também atraves-sou essa via-sacra quando enfrentou o

muro psicológico do top 50 do rankingmundial, numa altura em que estavano topo do ténis português. "A determi-nada altura percebi que não estava aconseguir chegar ao meu objetivo [top50] . Comecei a ter momentos compli-cados com o meu treinador e as pes-soas que me rodeavam. E isso cria fra-gilidades", recorda o tenista ao DN.

"Comecei a decidir sozinho e sen-tia-me perdido. Tinha muitas dúvidas.Foi uma fase muito difícil. Caí noranking, gastei dinheiro a ir treinar lá

para fora, seis meses para a Alemanha,algumas semanas nos Estados Uni-dos... Nunca mais encontrei um cami-nho seguro e isso desestabilizou o meujogo", revê agora, com a força que dizter encontrado dentro de si próprio,

após a ajuda de psicoterapia, para sairde um poço que envolveu um diagnós-tico de bipolaridade e uma descidadesde o 62.° lugar do ranking ATP atéforado toplOOO, entre 2011 e2014.

Frederico Gil e Célio Dias, que con-seguiram reencontrar a estabilidadeemocional, são apenas dois exemplosde atletas que tiveram de enfrentar fa-ses de ansiedade, depressão ou outrosproblemas relacionados com a saúdemental no mundo da alta competição.Há cerca de um mês, o universo do fu-tebol foi surpreendido com a admissãodo médio internacional André Gomes,campeão europeu com Portugal em2016 e atual jogador do Barcelona, queabriu o jogo à revista espanhola Pa-nenka para confessar estar a lidar malcom a pressão no gigante clube catalão,revelando inclusive sentir-se "envergo-nhado" e com "medo de sair à rua".

Mas os exemplos têm-se multiplica-do nos tempos recentes. Bloqueiosmentais, stress competitivo e depressãofazem parte de uma realidade que per-maneceu escondida tanto tempo nodesporto de alta competição, tratadacomo um estigma, mas que irrompeude forma dramática com a morte doguarda-redes alemão RobertEnke, em2009. 0 suicídio do ex-benfiquistafoi o

primeiro grande despertador de cons-ciências para um problema que come-ça a ver cada vez mais a luz do dia atra-vés de vários atletas de referência.

Na NBA, os basquetebolistas DeMarDeßozan e Kevin Love foram notícia

neste ano por admitirem ter experiên-cias de depressão e ataques de pânico,respetivamente. No futebol, o defesaalemão Per Mertesacker revelou à re-vista Der Spiegelque tem vómitos antesde cada partida. Michael Carrick, mé-dio inglês que anunciou a retirada no fi-nal desta época, disse à BBC que se sen-tia deprimido ao representar a seleçãoe pediu para não ser convocado. Na na-tação, alituanaßutaMeylutite, campeãolímpica em 2012 com apenas 15 anos,luta contra a depressão "todos os dias",relacionando -a com a exigência de re-sultados. E até o maior atleta olímpicode todos os tempos, o nadador ameri-cano Michael Phelps, admitiu no iníciodeste ano, à CNN, que chegou a terpensamentos suicidas.

A ignorância como obstáculo"Há fenómenos que ainda suscitammuitas reservas no desporto. Este, dasaúde mental, é um deles", lamenta o

presidente do Sindicato dos Jogadoresde Futebol Profissional, Joaquim Evan-gelista. Um lamento partilhado por Su-sana Feitor, referência nacional da mar-cha atlética que marcou presença emcinco edições dos Jogos Olímpicos."Este assunto tem de deixar de ser tabude uma vez por todas. Tem de deixar deser um constrangimento um atleta re-correr a apoio psicológico", refere aoDN a atual vice-presidente da Comis-são de Atletas Olímpicos (CAO) .

'Aperceção dos aspetos psicológicosno ser humano tem evoluído muito aolongo dos tempos. Durante anos isto foivisto como uma fraqueza", contextua-

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liza o presidente da Sociedade Portu-guesa de Psicologia do Desporto, Duar-te Araújo. "Não somos apenas seresbiológicos, somos também seres psico-lógicos. Se quem está mal fisicamentevai ao médico, quem está mal psicolo-gicamente deve recorrer a um psicólo-go", indica o professor da Faculdade deMotricidade Humana de Lisboa. "Teratletas de referência mundial, comoMichael Phelps, a falar sobre isso ajudaa desmistificar. Mostra que tambémeles passam ou passaram por proble-mas e tiveram de enfrentá-los, o quepode ajudar outros a atuar mais preco-cemente", acrescenta.

No futebol, de acordo com um estu-do publicado pelaFlFPro (associaçãomundial que representa os futebolis-tas), em 20 15 havia 33% dos jogadoresno ativo a sofrer de perturbação nosono, 18% com sinais de stress e 43%com ansiedade ou sinais de depressão.

"As principais causas desses proble-mas são o pós-carreira, as lesões, o fra-casso desportivo e também a transiçãodo futebol jovem para o profissional",desfia Jorge Silvério, psicólogo que co-meçou a trabalhar na área de desportohá 25 anos e atualmente faz parte da es-trutura da seleção de futsal que se sa-

grou campeã europeia em fevereiro.Joaquim Evangelista reconhece que

"são poucos os jogadores que expõemas suas dificuldades e menos ainda os

que procuram algum tipo de apoio es-pecializado". "As questões da saúdemental estão na ordem do dia no pla-no europeu. A partir do caso Enke co-meçou a haver jogadores a dar a caracom mais frequência. Mas em Portugalesta admissão ainda tem impacto ne-gativo", diz, pegando no exemplo docaso André Gomes. "Em Espanha fun-cionou bem, em Portugal não foi tãobem- visto. Transmitiu-se aimagem docoitadinho. Os jogadores não se que-rem vitimizar", frisa Evangelista, queimplementou recentemente no Sindi-cato um projeto de saúde mental, lide-rado por Bernardo Tengarrinha, fute-bolista que suspendeu a carreira paratratar um linfoma de Hodgkin (verpeçasecundária).

"O grande obstáculo é a ignorância.Ainda há o estigma de que o psicólogoserve para tratar maluquinhos. Mas otratamento de casos clínicos, digamosassim, é uma percentagem cada vezmenos significativa da intervenção do

psicólogo. Melhorar o rendimento e a

performances a principal área de inter-venção", esclarece Jorge Silvério, acres-centando que é ainda muito raro "verequipas da I liga com psicólogo do des-

porto nas estruturas técnicas. Nos es-calões de formação sim, já há. Mas noprofissional ainda há resistência".

"No futebol há a imagem de que oatleta que recorre a um psicólogo temum problema. Por isso muitos não que-rem recorrer ao psicólogo, há esse es-tigma", aponta Susana Torres, a mentalcoach que ganhou projeção desde o tra-balho com Eder, avançado que marcou

o golo da vitória de Portugal no Euro2016. Uma área em franco crescimentojunto dos desportistas, o coachingsw-ge como alternativa ao estigma do psi-cólogo. "Há dois tipos de atletas queprocuram este trabalho: os que sofremde ansiedade não estão a conseguir li-dar com as preocupações e por isso so-frem bloqueios psicológicos e físicos,como aconteceu com o André Gomes;e os que não têm qualquer problemamas procuram melhorar a performan-ce, como foi o caso do Jonas, a determi-nada altura", explica a mental coach,para quem "a área dos sentimentos dosatletas é uma área desvalorizada" naalta competição.Psicóloga para Tóquio 2020O tenista Frederico Gil sentiu-o na pele,com a pressão da alta competição a ma-nifestar-se cedo. "Vivi muita coisa mui-to cedo. Cheguei ao top 1 00 aos 23 anos.

Jogava semana a semana com os me-lhores do mundo, era exigente, tinhaumapressão imensa, um desgaste enor-me", descreve, olhando para trás. "Sen-tia-me um robô. Fazia o que o treinadordizia e ponto."

Também Célio Dias viu a corda rom-per após os Jogos do Rio. "Foi como se ochão se abrisse debaixo de mim. Foimuito difícil ultrapassar essa desilusão.Chorei todos os dias. O stressda pressãodo resultado foi demasiado. E eu sentigrande necessidade de me isolar", recor-dao judoca, que játinha trabalhado compsicólogos noutras fases da carreira, mas

que na preparação para o Rio 20 16 nãosentiu essa necessidade. "Antes dos Jo-

gos estava tão confiante, tão certo de queiaterumamedalha... Sentia-me forte,com capacidade para lidar com as frus-

trações e as exigências da competição."A realidade demonstrou que não es-

tava. Célio Dias entrou em depressãoe começou a ter surtos psicóticos."É quando nós perdemos o contacto

com a realidade e passamos a ter pensa-mentos delirantes, que vão ao encontrode um imaginário", explica ao DN. Na se-

quência de um desses surtos, o judocaesteve alguns meses internado. "Tenho ?

"Tenhouma doençamental:síndromeesquizo--compul-siva. Precisode medica-ção e nãosabia. É disso

que precisopara estarprotegido"

CÉLIO DIASJUDOCA

"VM muitacoisa muitocedo. Che-guei aotop 100aos 23 anos,jogava comos melhoresdo mundosemanaa semana [...]Mas sentia--meumrobô. Faziao que o trei-nador diziae ponto"

FREDERICO GILTENISTA

"É difíciltornar estesproblemaspúblicosporque amaior partedas pessoas,e dos atletas,não queremmostrarfragilidade"

TENGARRINHAFUTEBOLISTA

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? uma doença mental, síndrome esqui -

zo-compulsiva. Preciso de medicação enão sabia. É disso que preciso para estar

protegido", diz hoje, de novo "equilibra-do, funcional e feliz com a vida" e tam-bém de volta aos treinos do judo, man-tendo-se acompanhado regularmenteporuma psicóloga, uma psiquiatraeumpsicoterapeuta: "Trabalham em interli-gação e isso transmite-me confiança."

Susana Feitor diz que é preciso "des-mistificar de uma vez por todas a sín-drome Fernando Mamede no desportoportuguês". "Criou-se um tabu que nãodevia existir", refere a ex-marchadora,admitindo que ela própria sentiu "mui-tas vezes necessidade de um apoio psi-cológico" e lamenta não ter tido esseacompanhamento adequado, sobretu-do "na fase final da carreira".

Em cinco participações olímpicas,Susana Feitor nunca viu qualquer psicó-logo na comitiva aos Jogos. Em 20 1 6, noRio, Célio Dias também não tinha. O ce-nário vai mudar, finalmente, em Tóquio2020. 0 Comité Olímpico de Portugal(COP)integrourecentementeapsicólo-ga do desporto Anaßamires na estrutu-ra da equipa médica. "Foi uma necessi-dade identificada há pelo menos trêsOlimpíadas", diz o diretor de medicinadesportiva do COP, Gomes Pereira, queaponta "um atraso muito grande no re-conhecimento desta área mental comofundamental no treino de alto rendi-mento". O médico esclarece que "não é

papel do COP prestar assistência aosatletas, mas pode ter aqui um papelcoordenativo numa rede de hierarquiaque engloba clubes, federações e técni-cos e em que é difícil por vezes estabele-cer essa coordenação".

Parajá, diz, "estamos numafase ini-cial de formação". "É a prioridade. For-mar treinadores, dirigentes, atletas e paispara a importância desta área. Em con-junto com as federações, vamos identi-ficar psicólogos e acompanhar o traba-lho desses piscólogos. Estabelecer si-nergias para implementação de umaação concertada e duradoura."

Célio Dias espera contar com esse su-porte em Tóquio, onde quer voltar amarcarpresençanosJogos.Ojudocade-cidiu, entretanto, assumir publicamen-te a homossexualidade - "era um stressadicional de que me libertei e espero quesirva para empoderar outros jovens"- evoltou aos treinos. "O regresso ao judo foimuito importante. Faz parte da minhaidentidade, dá-me um suporte imenso.

Mas quero alterar a forma como olho acompetição. Não focarem exagero, paranão descurar certas partes da minhavida. Aprender a enfrentar a competiçãode forma mais saudável", anuncia.

A mesma atitude devolveu a paz inte-rior a Frederico Gil. Aos 33 anos, garanteter voltado a desfrutar do ténis e recupe-rou um lugar entre os primeiros 450 domundo (442.°) . "Tenho aindamuitos ob-jetivos pessoais e profissionais. O topsoco topiOocontinuampresentes.Masasanidade mental passou também a serprioridade. Quero chegaria, mas queroser feliz. Antes, estava no topo mas nãome sentia bem. Queimei. Foi too much.Estava a tornar-me uma pessoa que nãoqueria."

43%> jogadores com ansiedadeSegundo um estudo organizado pelaFIFPro e realizado em 11 países, em2015 havia 43% jogadores no ativo

com sinais de ansiedade e depressão.

22,9%> Prevalência anual em PortugalNa Europa, só a Irlanda do Norte

(23,1%) tem maior prevalência anuaL

de perturbações psiquiátricas emaduLtos do que Portugal (dados DGS).

300 000 000> Pessoas af etadasSegundo a Organização Mundialde Saúde, há mais de 300 milhõesde pessoas no mundo com depressão,a "doença do sécuLo XXI".

Célio Dias (fotoprincipal dapágina) passoupor um longoprocesso dedepressão aseguir aos JogosOlímpicosdo Rio. AndréGomes, médioportuguês doBarcelona (fotoem cima), con-fessou publica-mente que apressão no clubecatalão, ondechegou a serassobiado emvários jogos,lhe estava até acausar vergonhaem sair à rua.Já o tenistaFrederico Gil(em baixo) lidoumal com o muropsicológicodo top 50no ranking

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Saúde mental, a novamissão de Tengarrinhapro jeto Um linfoma mudou-lhe a vida aos 29 anos e levou-o a aceitar ser embaixador do Sindicato

para a Saúde Mental. "Espero que os jogadores tenham abertura para falar das suas fragilidades"

Os primeiros sintomas de que algo nãoestava bem começaram ainda na partefinal da época passada, no Boavista,mas foi na última pré-época, ao serviçodo Politehnica da Roménia, que a vidade Bernardo Tengarrinha se alterou ra-dicalmente. "Desmaiei duas vezes emtreinos. Fizeram-me exames ao sanguee descobriram uma anemia grave",conta ao DN. Então, meteu-se numavião rumo a Lisboa e dirigiu-se às ur-gências de um hospital. Ficou interna-do 2 1 dias, perdeu dez quilos. Tinha afi-nal um linfoma de Hodgkin.

"Fiquei perdido. Tinha tantos planose de repente. . . As primeiras coisas queme passaram pela cabeçafoi pensar naminha família e se poderia voltar a jo-gar futebol", recorda Tengarrinha, obri-gado a suspender a carreira para darluta ao cancro. "É bastante frequente

que ao longo de uma época um jogadorpasse por problemas. Lesões, estar lon-ge da família, ordenados em atraso...Mas para um problema destes nuncaninguém está preparado."

O tratamento está feito, com suces-so, agora o jogador está em fase de vigi-lância. Pelo meio, Tengarrinha foi obje-to de um raro movimento de mobiliza-ção que juntou todos os clubes: a ofertade uma caixa com camisolas persona-lizadas de todos os clubes da Liga. "Sur-

preendeu-me terem feito algo destagrandiosidade num desporto que estátão egocêntrico", reconhece, agradeci-do, o médio de 29 anos, que agora tra-balha numa agência imobiliária en-quanto o futebol está em pausa.

Desde outubro do ano passado, Ten-garrinha é também o embaixador doprojeto Saúde Mental, implementado

pelo Sindicato de Jogadores. "O quemais espero é que os jogadores tenhamabertura para falar das suas fragilida-des. Eu sei que é difícil tornar públicoum problema, a maior parte das pes-soas não quer mostrar fragilidade. Masé por isso mesmo que existe este proje-to. Quem quiser falar com o Sindicatonão tem de ter receio porque o caso nãovai ser tornado público. Têm aqui umaferramenta de ajuda", salienta.

O projeto do Sindicato é feito emparceria com a Sociedade Portuguesade Psicologia do Desporto, cujo presi-dente, Duarte Araújo, explica ao DN os

quatro eixos de intervenção do projeto:"O primeiro é a informação: divulgar e

desmistificar esta questão junto dos jo-gadores; o segundo é aformação: ensi-nar-lhes o que podem fazer, a nível pes-soal e de grupo, em interajuda; o tercei-

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ro é a terapia: acompanhamentoprofissional para jogadores que reco-nheçam que há algo que querem traba-lhar num processo mais terapêutico; e

o quarto é o da investigação: uma reco-lha que permita a caracterização espe-cífica do panorama nacional e perceberse este reflete dados internacionais, ouse os dados são os mesmos nas duas li-

gas profissionais, por exemplo."Entre conselhos a transmitir aos jo-

gadores, Duarte Araújo revela que"o primeiro passo é o atleta reconhecerque não está a sentir-se bem", enquan-to o "mais preocupante" sinal de alertaé quando se verifica "um maior isola-mento". "Outro sinal são as mudançasbruscas de comportamento", diz o pro-fessor da Faculdade de MotricidadeHumana de Lisboa, que gostava de ver"estes aspetos da saúde mental terem

no desporto o mesmo apoio e suporteque todos os outros ligados à medicina,como a ortopedia ou a fisioterapia."

"A pressãoque sintoantes decada jogoé tão grandeque tenhonáusease vómitos"

PERMERTESACKERFUTEBOLISTA

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Tcngarrinha e as camisolas que todos os clubes lhe ofereceram

Michael Phelps(foto em cima),o mais meda-lhado atletaolímpico,reconheceuque chegou ater pensamen-tos suicidas. Oprojeto doSindicato dos

Jogadores deFutebol Profis-sional dedi-cado à SaúdeMental temTengarrinha (àdireita) comorosto e é esta-belecido emparceria com aSociedadePortuguesa dePsicologia doDesporto

"[Após os

Jogos de2012] Nãoqueria maisestar no des-porto. Nãoqueria vivermais. Passeidias tran-cado noquarto,sem dormir,quase semcomer e semquerer maisestar vivo"

MICHAEL PHELPSEX-NADADOR

"Aquilo che-gou do nada.Nunca tinhatido umataquede pânico.Aliás, eunem sequersabia queera umacoisa real.Mas foi real,tão realquanto umamão partidaou umtornozelotorcido"

KEVINLOVEBASQUETEBOLISTA

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Tilman Zychlinski"Temos de evitar umsegundo Robert Enke"

Criada em 2012, a Fundação RobertEnke concretizou aquilo que era umavontade do próprio guarda-redes ale-mão, que se suicidou em 2009. Ajudaroutros futebolistas a lidar com proble-mas de saúde mental e contribuirpara alterar a forma como o desportoolha para o tema tem sido a missão.

A morte de Robert Enke fez alterar per-ceções sobre a saúde mental no futebolprofissional?Essa foi a ideia com que partimos para acriação da fundação. Gostávamos, atra-vés da fundação, de mudar a formacomo o desporto olha para a saúde men-tal dos atletas. E este é um grande desen-volvimento no futebol. Não podemos in-terferir com o seu lado político ou eco-nómico, mas podemos ajudar atorná-lomais sensível nesta área, mais preocu-pado com os seus jogadores, mais cons-ciente.E alterou meiitalidades entre os joga-dores na Alemanha? Nota-se maisabertura para falar destes casos?Hámuitos antigos jogadores, sobretudo,

que entretanto vieramapúblico admitirter lidado com problemas de depressãoao longo da carreira. Mas também sabe-mos que hámuitos jogadores atuais quetêm problemas e não falam sobre eles

porque ainda têm medo de ser vistoscomo jogadores fracos pelos colegas e

pelos adversários.E em relação à forma como os adeptosolham para esses jogadores, nota algu-ma evolução?Na Alemanha, os adeptos foram muitosensíveis ao caso do Enke, mas aindaháultras para quem é muito difícil entendereste tipo de estigma. Temos de continuara quebrar o estigma não só entre os atle-tas como entre os adeptos.Quais os objetivos principais daFundação Robert Enke nesta área?Há dois ou três objetivos fundamentais.Um era criar e desenvolver uma infraes-trutura à qual jogadores com algum tipode doençamental possam recorrer. Umaestrutura que contempla uma equipa de

psicólogos e psicoterapeutas comfor-

mação específica para trabalhar na áreado desporto, porque o Robert, por exem-plo, recorreu a quatro ou cinco psicólo-gos antes de começar a trabalhar comum vocacionado especificamente paraa área do desporto e perdemos ali algumtempo que podia ter sido crucial na suarecuperação. Outro objetivo passapordistribuir informação sobre saúde men-tal a jogadores, treinadores, árbitros, di-

rigentes, etc, para saberem reconhecersinais e saberem como podem ajudar fu-tebolistas nessa situação. Tambémfaze-mos aconselhamento de jogadores so-

bre como abordar o tema e falar publica-mente do assunto. E atuamos junto dascamadas jovens para prevenção.Já têm números sobre o resultado dovosso trabalho? Quantos jogadores re-correram à ajuda, por exemplo?Temos data compilada sobre a qual tra-balhamos, mas não a tornamos públicapor uma questão de filosofia interna. Sedisséssemos que foram cinco casos até

agora, as pessoas tenderiam a desvalori-zar o problema. Se disséssemos que fo-ram milhares, haveria um alarmismo so-cial sobre os futebolistas. Achamos que adiscrição em relação aos dados é impor-tante, em favor da segurança e do bem--estar do jogador.Vocês têm protocolos com aBundesliga e a federação alemã. Hásensibilidade das organizações do fute-bol para tratar esta área?As entidades estão muito mais desper-tas. Não só federação e Bundesliga comoos clubes. O Ronald Reng [autor da acla-mada biografia de Enke: UmaVidaCur-ta Demais] e o Martin Amedick [antigofutebolista] vão a academias jovens e aosclubes fazer apresentações. Temos tidoexcelente recetividade, em grandes clu-bes como Bayern, Hoffenheim, Estugar-da, etc, e é bom ver essa consciência adesenvolver-se.Teresa Enke, aviúva de Robert, dirige afundação. Numa entrevista recente elausou a palavra mártir para descrever o

legado de Robert para o futebol nestaárea. Pensa que é assim que os adeptos

o recordam?Não foiapalavramais feliz, elaprópriaoadmite e não a repetiria. Penso que os

adeptos o recordam como um símbolode alerta para estes problemas. Temos deevitar um segundo Robert Enke no fute-bol. É esse o grande fundamento destafundação. E era esse, aliás, o plano do Ro-bert para o pós-carreira: poder falar so-bre a depressão e saúde mental, formarconsciências, ajudar os outros a lidarcom isso.

Ex-jogador e atual conselheiroda Fundação Robert Enke,

criada em 2012