grão da voz

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    revista Fronteiras estudos miditicos16(1):20-27, janeiro/abril 2014 2014 by Unisinos doi: 10.4013/fem.2014.161.03

    RESUMO

    Diante dos processos de digitalizao da voz na produo musical contempornea, com sintetizadores e programas de udio emcomputadores que so corretores de imperfeies vocais, questionamos que corpos emergem dessas materialidades sonoras. Partimosde um debate sobre as prticas de produo das canes para tentar compreender as formas de escuta e engajamento presentes nasmatrizes sonoras digitalizadas. O conceito de gro da voz, proposto por Roland Barthes, apontado como baliza conceitual paraa discusso em torno do que chamamos de pixel da voz: a visualizao no apenas de um corpo que emerge da performance vocal,mas um sistema de produo de sentido que envolve a figura do produtor musical, lgicas de metamorfose presentes na cultura digitale a capacidade atual de se gerar matrizes vocais que so emprestadas a corpos que no as cantaram.

    Palavras-chave: cultura musical, voz, performance.

    ABSTRACT

    Voice digitization in contemporary music production, with synthesizers and audio programs in computers that correct vocalimperfections, is the starting point to question which bodies emerge from these sound materialities. We start a discussion about thepractices in song production trying to understand how listening is affected in the contemporary music culture. The concept of grainof the voice, proposed by Roland Barthes, guides us as a beacon for the discussion around of what we call pixel of the voice: theperception not only of a body emerging from the vocal performance, but a production system of meaning that includesthe musicproducer, the metamorphosis logics in current digital era and the ability to generate voices for bodies that have not even sung.

    Keywords:music culture, voice, performance.

    O pixel da voz

    The pixel of the voice

    1Universidade Federal da Paraba. Centro de Comunicao, Turismo e Artes (CCTA). Av. Castelo Branco, s/n, 58051-900, CidadeUniversitria, Cabo Branco, Joo Pessoa, PB, Brasil. E-mail: [email protected]

    Thiago Soares1

    No, o autotune no basta pra fazer o canto andarpelos caminhos que levam grande beleza (Gal Gosta).

    A cano toca. Eu ouo uma cantora brasileira. Suavoz lmpida, encorpada qualquer adjetivo soa imprecisopara descrever o que ouo. Talvez encorpada defina asensao que tenho ao escutar aquela voz. que perceboque o vocal se sobrepe aos outros instrumentos musicaisdo arranjo. A voz est adensada, arrisco dizer que visualizoalgum, numa mesa de som (um produtor musical, um

    tcnico de som), regulando a gravao aumentandoo volume da voz e, suavemente, destacando-a. Ento,ponho-me diante de uma problemtica. Ao ouvir essa

    cano, estou diante de um duplo: consigo ouvir aquelecorpo que se apresenta no que ouo (a respirao, o grito,o sussurro, os tons mais graves e os mais agudos, chego ainferir a possibilidade de visualizar a boca mais ou menosaberta, os pulmes plenos diante de um momento dra-mtico da faixa musical cantada), mas passo a visualizartambm uma outra camada, para alm do corpo que se

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    apresenta performatizado (Zumthor, 2000) pela sonori-dade, a de algum, num estdio de gravao, trabalhandoa voz, limpando-a, processando-a em softwares, numregistro de gravao, dando a essa voz, digamos, um tra-tamento (e quero aqui destacar o mesmo uso da palavratratamento para som e para imagem2) com o intuito deacentuar particularidades no cantar, na relao entre avoz e os instrumentais, no processo de produo de umafaixa musical.

    O trabalho de produo musical3que se esconde/revela por trs do meu ouvir, articula noes ligadasaos gneros musicais. Na MPB, por exemplo, por umanecessidade de se ouvir-a-letra da cano, sabe-se dointento da produo musical destacar a voz diante doarranjo; em outros gneros, como o punk , a produo

    musical pode, deliberadamente, soterrar a voz em meioa sonoridades de guitarras e baterias, uma vez que esta-mos diante de diferentes formas de fruio do materialsonoro. Mudam as formas de fruio (o volume daquiloque ouvido, os ambientes em que se ouvem, as circuns-tncias), mudam tambm os valores o bom, o ruim,sobre uma voz numa cano, aquilo que construdocomo uma bela voz, um mal cantar. No heavy metal,por exemplo, a voz gutural4de um cantor ligado a essegnero musical dificilmente se adequaria s regras dobem cantar de um reality showmusical como The Voice,The X FactorouAmerican Idol exibidos nas emissoras

    televisivas e com aparatos de valorao construdos soba gide de gneros musicais consagrados, como o pop,o sertanejo, o rock, entre outros. Estou aqui tentandoconstruir pontos de coeso e de fuga a respeito da(s)forma(s) com que somos agenciados pela voz gravadana cano, com o intuito de debater as particularidadesdo atual estatuto da voz na cultura musical. Apesar demeu intuito ser o de pensar duas dimenses de produode sentido a voz e a cultura , tentarei debater essaquesto a partir daquilo que Roland Barthes chama degro: o gro da voz.

    Ou, como dou ttulo a este texto, o pixel da voz.

    Algumas consideraessobre o gro

    O gro como uma unidade mnima. Uma meto-nmia na constituio do solo. Na fotografia, a unidadeformadora. O gro de prata da imagem que queimado efaz gerar a imagem fotogrfica. Em seu texto, O Gro daVoz, escrito em 1972, Roland Barthes conduz a metforado gro para debater a msica, mais especificamente, avoz na msica. Essa relao entre metforas fotogrficase musicais na obra de Barthes parece sublinhar uma cons-tante inquietao do autor em debater os cdigos culturaisa partir de movimentos que atravessem os textos, passem

    de uma dimenso material e ttil para uma outra que seconstitui a partir desse texto mas o atravessa, constitui-opara outrem, cria outro senso de pertencimento e vincu-lao. Foi assim com a noo fotogrfica de punctumem A Cmara Clara (Barthes, 1984, p. 26) e tambmcom a musicalidade do gro em O Gro da Voz.Nos dois conceitos, possvel visualizar o Roland Barthesps-estruturalista, tentando dar conta dos desafios doentendimento das estruturas textuais, mas reconhecendoque o material investigado conduz a algo um corpo? umasensibilidade? que pode derivar das inscries previstasno texto. O punctum est na fotografia, mas parece querer

    tra-la. , antes, um amlgama, um fantasma, uma inquie-tao que no nos liberta de olhar a imagem. O gro amaterialidade da voz, aquilo que podemos tocar na voz.O seu volume, o seu gnero (masculino ou feminino), o seucorpo. Mas , sobretudo, o que profana a minha audio:o corpo de algum que convoca a minha histria, a minhabiografia, o momento em que eu ouvi aquela cano, aslgrimas que eu posso derramar ao ouvi-la.

    Como advertiu Martin Grisel, Barthes , pa-radoxalmente, um escritor que, de maneira bastanteracional, escreve contra o significado5 (Grisel, 2000,p. 264). Quero pontuar que j se formatou uma esp-

    2Com a popularizao de programas como o Adobe Photoshop, popularizou-se a expresso tratamento de imagem, como a aode corrigir rudos da imagem, ressaltar contrastes, fazer pequenos (ou grandes) ajustes. Usa-se o mesmo termo, tratamento, emoperaes anlogas com sons.3Fao aqui o uso do termo produo musical de forma genrica, sem me ater mais detidamente sobre as funes que envolvem taisatividades, como o produtor musical, o profissional de mixagem, o tcnico de som, entre outras. Meu interesse no cartografar asatividades da produo musical, mas reconhecer uma instncia de ingerncia sobre aquilo que se ouve.4O vocal gutural produz um som rouco, grave, que se obtm na relao entre a garganta e o diafragma, juntamente com distoresno som produzido nas pregas vocais e na laringe. Caracterizada como agressiva, a voz gutural muito usada por cantores de bandasderivadas do heavy metal, como odeath metal, deathcore, thrash metal, entre outros (Walser, 1992, p. 268).5Traduo nossa para: Barthes, paradoxically, a writer who, in a very rational manner, writes against meaning (Grisel, 2000, p. 264).

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    cie de senso comum de a crtica acadmica se referir aRoland Barthes como um autor que escreve contra osignificado herana, possivelmente, herdada em funode seus textos ensasticos e questionadores das mximasestruturalistas. Acrescento ao debate do Roland Barthescontra o significado (essas mximas fizeram parte dolegado barthesiano, basta lembrarmos de seu A Mortedo Autor ou O Prazer do Texto, entre tantos outros)a premissa de que o interesse de Barthes no era o de ircontra o significado (Barthes, 1985, p. 42) pelo menosno como Susan Sontag abertamente foi em seu textoContra a Interpretao mas o fato de que o francstalvez estivesse falando em profanaes (Agamben,2012): profanaes do(s) texto(s) em derivas no pre-vistas. Uma materialidade que, ao acaso de fruidores e

    contextos, vai de encontro ao que, supostamente, estariana sua partitura.Tanto o punctum fotogrfico quanto o gro da

    voz so profanaes do estatuto material que os gerou.Naquilo que no nos liberta da imagem fotogrfica, opunctum parece ir de encontro prpria noo de con-gelamento da imagem, do que nos dado, entregue comoconstituinte do fotogrfico, sendo uma espcie de mem-ria/inveno sempre atualizada do que visto. O gro,em seu senso definidor de um corpo, tambm parece serebelar contra esse corpo na medida em que nos agenciamemrias/invenes que atualizam nossa escuta e vai de

    encontro ou acrescenta novas biografias (as nossas, ascoletivas, as que supomos serem de outros) a essas vozes/corpos. Eu sou o que meus fs inventam sobre mim, euno existo, disse a cantora Lady Gaga em seu show BornThis Way Ball em So Paulo, tambm indo contra o seuprprio corpo: o que Lady Gaga seno a profanao deseu gro, de sua voz, daquilo que materialmente se ouvedela em suas canes?

    Quero seguir debatendo a noo de gro dei-xarei o debate sobre punctum para outra ocasio namedida em que tentarei rascunhar aquilo que chamode pixel da voz ou algumas questes que no estavamprevistas por Barthes na constituio de seu conceito degro da voz, sobretudo, em funo da atual popularizaode aparatos de tratamento de udio, como o Autotune,e diante das lgicas digitais nos processos de produomusical. Antes de arregimentar questes sobre o pixelda voz, tenho necessidade de pensar o estatuto da vozdigital na cultura contempornea, a consagrao de ummodo de escuta que leva em considerao um processo detratamento da voz e que noo de corpo debate-se diantedas vozes digitais.

    O gro da voz digital

    O gro, como atesta Barthes, o corpo na voz:como esse corpo canta, a mo que escreveu a letra cantada,os membros corporais como executam a msica (boca,braos, pernas). Numa faixa instrumental, por exemplo,o gro da msica estaria na corporificao dos dedos deum msico sobre o instrumento musical. O toque. Umarelao ttil e, como Michael Szekely (2013) preferechamar, ertica. Um certo erotismo musical propostopor Barthes, escreve Szekely. Perceber o gro em umacano o reconhecimento da noo de texto na anliseou a criao de um sistema de avaliao que ser individual(estou ouvindo a minha relao com o corpo do homemou da mulher cantando/tocando nos diz Barthes), mascircunscrito numa cultura (A avaliao ser feita almdo valor escondido atrs de eu gosto ou eu no gostoou h um movimento progressivo da lngua para o po-ema, do poema para a msica e para a msica para suaperformance pontua ele). No momento em que pensa ogro como uma unidade de tentativa de entendimentode uma voz que nos afeta, Barthes trata, sutilmente, deuma efemeridade no ato de anlise (o prazer pode noreforar o entendimento do assunto, mas, ao contrrio,perd-lo e apontar outras questes j que estamos dianteda dicotomia prazer ejouissance proposta pelo autor).

    Quero aqui pontuar diferenas entre as noes deprazer ejouissancena obra de Roland Barthes, sobretudo,porque sabemos que o ato de fruio musical articuladiferentes engajamentos. Talvez, debater as instncias deprazer ejouissancepossa ser um artefato interessante paradiscutir aspectos ligados permanncia e efemeridadenas formas de escuta (Barthes, 1987, p. 22). So inmerastradues para os termos plaisir (prazer) e jouissance(gozo) dentro das obras barthesianas, no entanto, o queparece premente de ser debatido, sobretudo, em O Prazerdo Texto, um aspecto, digamos, musical dos termos

    investigados: a noo de prazer, como proposta porBarthes em O Prazer do Texto, possivelmente, trate dacontinuidade de um engajamento, na permanncia de umsensvel que envolve o fruidor na instncia enunciativa,uma vez que a ideia de jouissance estaria na ordem dadissipao, do gozo, mas, sobretudo, tratando de anli-ses textuais (a mecnica proposta por Barthes em seuO Prazer do Texto), da descontinuidade, do acaso, deum engajamento intenso, porm efmero na enunciao.Essas questes rascunham pressupostos que so levadosem considerao nas dinmicas de produo da msica.

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    Parece sintomtico, portanto, pensarmos em novas nem to novas, verdade formas de produo e escutada voz para debatermos o gro nessas vozes digitaliza-das. Os processos de digitalizao da voz foram possveisgraas a instrumentais de captao de udio de naturezaeltrica. No cabe aqui historiografar esses artefatos, masquero destacar trs deles, como agentes fundamentaisda compreenso de um estatuto particular do gro davoz digital: (i) o microfone; (ii) os sintetizadores; e (iii)o Autotune.

    Como lembra Simon Frith (1996), o microfoneeltrico tornou possvel ouvintes perceberem algumassonoridades at ento no identificveis em atos perfor-mticos ao vivo. O microfone nos permitiu ouvir pessoasnuma maneira que, normalmente, implicava em alguma

    intimidade com elas: o sussurro, o murmrio (Frith, 1996,p. 187) Essa disposio apresentada por Frith parece evo-car aquilo que Barthes chama de um certo erotismo noouvir, a presena de um corpo que se faz na performance.Alm disso, foi o microfone na gravao que transformoua voz numa disposio digital: uma matria-prima brutapronta para ser lapidada no estdio.

    Uma vez captada ao microfone, a voz, para serdigitalizada, precisava de um artefato capaz de sintetiz-la. Chamados, genericamente, de sintetizadores de voz,esses dispositivos adentraram a seara da msica vindosdas telecomunicaes, na herana de transmisso de

    dados atravs da voz sinttica. Entre os sintetizadores,os vocalizadores tinham como finalidade codificar avoz para transmisso eletrnica de rdio segura e foramincorporados pelos produtores musicais, sobretudo, nosanos 1970, durante o perodo da disco music em que,de alguma forma, havia ecos de uma esttica futurista,eletrnica, ligada ao imaginrio tecnolgico da pista dedana (Echols, 2010, p. 12). Um sintetizador de voz ficoufamoso pelas formas com as quais foi usado na indstriafonogrfica: o Moog, que trazia o nome de seu criadorRobert Arthur Moog. Entre os diversos modelos de sin-tetizadores de voz (Moog Music Inc., usado, por exemplo,na trilha sonora de Laranja Mecnica; o Moog Taurus,sintetizador para ser tocado com os ps; o PolyMoog,que vinha com sons pr-gravados para serem articuladosa outras gravaes), quero destacar aqui o Vocoder, queera ligado a um microfone, permitia alterao de voz econstitua uma esttica semelhante a de algum falandoao telefone.

    Para alm do Vocoder, um dos mais populares sof-twaresde processamento e sntese vocal foi o Autotune (doingls auto afinar) e, ao contrrio do Vocoder, que previa

    um distanciamento de uma certa sonoridade natural davoz atravs de efeitos semelhantes a falas em alto-falantesou radioamadores, o Autotune era um corretor de voz,cuja principal funo, quando de seu uso na indstriafonogrfica, foi o de atenuar supostas falhas vocais oudesafinadas. Trata-se de um processador de udio cria-do pela empresa Antares Audio Technologies em 1994,que usa uma matriz sonora para corrigir as performancesno vocal e instrumental. O Autotune tambm pde seraplicado como um efeito deliberadamente preparadopara distorcer a voz humana. O efeito Autotune est,ainda hoje, disponvel tanto como um plug-in para pro-fissionais de udio utilizarem em estdios quanto para oprocessamento ao vivo, em showse espetculos musicais.

    Os trs artefatos elencados aqui o microfone,

    o sintetizador vocal Vocoder e o Autotune foram/sousados no sistema de produo musical, articulando pre-missas ligadas aos horizontes de expectativas dos gnerosmusicais, aos corpos cantantes performatizando canes eos ambientes de circulao dessas msicas. Tentar compre-ender o gro da voz digital significa ir em busca dos corposgerados por estas sonoridades digitalizadas, as bocas queentoaram os versos, os pulmes que inflaram e tiveram arespirao corrigida como uma suposta falha do bemcantar, os olhos fechados diante de um momento estri-dente da cano, aquilo que nos leva a crer na existnciade um corpo cantante, mas, tambm, em que medida, esse

    corpo tenta ser corrigido, adequado, constitudo dentrode modelos hegemnicos de vocalizao da cano emambientes miditicos.

    O gro da voz digital tenta romper com a premissade que existiria uma voz natural e outra processada,uma vez que a constituio de uma voz natural possveldentro de padres e efeitos tambm em softwares. Ou seja,quando interrogamos o gro da voz digital, visualizamoscorpos notadamente alterados pelos programas de dis-toro de som, mas, no nos esqueamos, tambm, deenxergarmos os corpos que tentam emular a naturalidadedo usual, os robs-humanos, com pouqussimas e mui-tas vezes imperceptveis diferenas do homem comum.Pensemos que todos os processos de produo musical soatravessados por softwaresque trabalham e corrigema voz. Cabe questionar que efeito se almeja dentro daslgicas especficas de cada cano entoada, lbum lanado.Para migrarmos dessa dimenso micro do gro da voz em direo a uma lgica macro uma cultura musical investigamos, a seguir, o gro da voz digital num momentoespecfico: quando a cantora Donna Summer teve seusussurro processado por sintetizadores na cano I Feel

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    Love (1977), um dos momentos emblemticos de umgnero musical chamado disco music. Essa experinciase configura naquilo que se chama de mito fundador oufenmenos que iniciam fenmenos que sero incorpora-dos como hegemnicos posteriormente6. I Feel Lovetraz uma relao peculiar entre os usos de microfones esintetizadores no processo de produo da faixa que geraaquilo que chamamos de uma corporificao ertico-rob,em seguida, largamente utilizada por outros artistas daindstria da msica.

    O gro da voz digital deDonna Summer

    A alterao da voz sintetizada durante o perodo dadisco music quase sempre pendia para uma sonoridadeque se assemelhasse quilo que imaginvamos ser a voz deum rob, uma espcie de utopia futurista ligada retricados espaos das pistas de dana: globos luminosos, luzesestroboscpicas, corpos-robs bailantes (Echols, 2010,p. 72). Um dos momentos mais emblemticos da gnesede esttica futurista se deu na cano I Feel Love, dacantora Donna Summer, lanada em seu lbum conceitualRemember Yesterday, de 1977. O disco tentava traduzirsonoridades de pocas especficas: a cano I RememberYesterday representaria a dcada de 40; Loves Unkind,a dcada de 50; Back in Love Again seria a faixa da so-noridade dos anos 60 e o lbum encerrado com a faixaI Feel Love, que seria o som do futuro.

    At ento, grande parte das gravaes da discomusic eram apoiadas por guitarra, baixo e bateria, umaformatao, digamos, de produo de msica orgnica7.I Feel Love, produzida por Giorgio Moroder, foi gravadacom acompanhamento inteiramente feito por sintetiza-dores: todos os sons foram processados eletronicamente,

    inclusive a voz de Donna Summer (Echols, 2010, p. 34).No entanto, o uso dos sintetizadores, na cano, tem afuno de criar uma ambincia futurista que no perpassa avoz de Donna Summer. Ou seja, escutamos um arranjo que

    apela para ambincias futuristas, mas, em contrapartida,a voz de Donna Summer surge humana, sem variaesvocais que descaracterizem a sua naturalidade.

    Ouvimos em I Feel Love os sussurros de DonnaSummer em simulaes a gemidos de prazer. De fundo,o arranjo futurista, com nuances de batidas eletrnicase farto uso de texturas sonoras graves. A constituio dosentido se d no atrito entre este ambiente sonoro futuristagerado na cano e a voz humana e natural de DonnaSummer. O que significa perceber o gro da voz de DonnaSummer em I Feel Love? Talvez, estejamos diante deuma boa metfora para pensar o imaginrio de grandeparte da msica popdanante: a relao entre homense mquinas. Mas o gro em I Feel Love o corpo deDonna Summer que emerge de sua voz: sussurrado, manso,tateante. Esse corpo que se esconde entre as penumbrasdo som futurista fugidio e nos direciona a visualizar-mos a cena de uma mulher sentindo prazer entre robs ecenrios futuristas.

    Como moldura pensada por Roland Barthes, anoo de gro da voz nos interpela sobre a materialidadeque emerge da performance inscrita na cano, aquilo quedeliberadamente nos faz constituir uma certa tatilidadeno que ouvimos, de uma biografia, um corpo, algum quenos diz algo, nos sussurra, nos afeta. Mas, o que o conceitode gro da voz no parece discutir a prpria construode um senso vocal que no est na instncia do cantor/

    performer, mas sim, na dinmica da produo musical.As vozes que ouvimos nas canes so construdas emestdios de gravao, moldadas por volumes, texturas,corretores, ou seja, dispositivos que as alteram ou tentamemular o que seria uma voz correta ou original. Estoutentando aqui construir uma argumentao que leve emconta a ideia de que, de fato, a noo de gro da voz umimportante aporte conceitual para pensar os estatutosbiogrficos, retricos e estticos da msica popular, etento rascunhar uma instncia no prevista nos escritosbarthesianos: a da produo musical e seu fundamentalpapel na produo de sentido daquilo que ouvimos nas

    canes, refletindo tambm sobre os gneros musicais eas dinmicas performticas oriundas desses fenmenos.Voltando faixa I Feel Love, que tem a voz de

    Donna Summer nos guiando pelos itinerrios da cano,

    6A experincia de Donna Summer usando sua voz com sintetizadores est longe de ser o marco inicial desse uso na indstria fono-grfica. O grupo de msica eletrnica Kraftwerk, por exemplo, j no incio dos anos 1970, adotou vocais sintetizados, simulandorobs, em suas canes. No entanto, foi com a disco music que esses efeitos passaram a se popularizar.7O termo era corrente poca e opunha a ideia de msica orgnica, como aquela produzida com instrumentos musicais como gui-tarra, baixo, violo e bateria, de msica sinttica, como a que construa suas sonoridades diante de sons oriundos de instrumentoseletrnicos e programas de computador.

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    h que se lanar luz sobre o corpo que emerge da voz, estegro material a que Roland Barthes se refere, mas no sepode descolar que esta voz que ouvimos na cano integrauma engrenagem guiada pela figura do produtor musical,no caso dessa faixa, Giorgio Moroder. Ou seja, pensar ogro da voz de Donna Summer em I Feel Love significatambm visualizar o que Giorgio Moroder, o produtor,deliberadamente, fez com a voz dela: a escolha por tirarefeitos que pudessem deixar a textura vocal robotizada, amo do produtor sobre uma mesa de som testando texturasvocais, a discusso sobre que volume de voz ser dispostona faixa (um volume mais baixo misturando-se ao ar-ranjo ou uma voz que se sobressaia do instrumental, porexemplo), enfim, quero pontuar aqui um outro corpo quese materializa na dinmica de produo de sentido de uma

    cano: o do produtor. O gro da voz digital , portanto,aquilo que ouvimos de um cantor/performermas tambmas formas com que o produtor trata aquela voz. Estamosdiante de algo que estaria na ordem da execuo, da buscapor uma perfeio, uma verdade, uma idiossincrasia, a vozdo cantor que est no estdio, no palco, executando oexerccio de cantar, notas que tentam traduzir algo fugidioe impreciso que chamamos to apressadamente de emoo,enfim, um corpo dionisaco por natureza; mas junto a estapremissa dionisaca, emerge uma outra, apolnea, centradana figura do produtor, na racionalidade, na tentativa deconstruir um sentido para o texto musical, integr-lo a

    um sistema classificatrio, a um gnero musical, delibe-radamente moldar este texto sonoro, fazer com que elecircule, ambiente-se em outros contextos.

    A noo de gro da voz digital me ajuda a pensara cano I Feel Love, de Donna Summer, como umaespcie de mito fundador de uma esttica musical ligada cultura danante, das boates, dos clubes noturnos: de umcorpo que emerge daquele material sonoro (um tipo es-pecfico de cantar, movimentos vocais, expresses, voca-bulrios de uma lngua), as configuraes vocais que estocircunscritas a gneros musicais (neste caso, em especfico,a disco music, mas em consequncia, uma srie de outrosgneros musicais que trazem resduos sonoros/imagticosda era disco, como as formas classificatrias chamadasde dance music, msica eletrnica, europop, entretantas outras), as lgicas de produo agenciadas peloshorizontes de expectativas dos gneros musicais e tambmdas disposies econmicas e de ordens mercadolgicas.Ou seja, pensar o gro da voz digital significa estar diantede um complexo quadro que tem a voz como uma espciede emblema de questes ligadas a uma forma de fazermsica no contexto da cultura musical contempornea.

    Quero agregar uma metfora de gro empreendidapor Roland Barthes e tentar arregimentar alguns ques-tionamentos sobre o novo estatuto do gro da voz. Ouquando o gro passa a ser chamado de pixel da voz.

    Do gro ao pixel da voz

    Diante de um quadro de digitalizao dos pro-cessos de captao e produo vocais, quero rascunharalgumas premissas que levem a debater o pixel da voz.Mais uma vez, voltamo-nos s metforas fotogrficas: anoo de gro como uma espcie de tcnica tica de for-

    mao da imagem, ligada a uma cultura analgica, passaa conviver com o pixel, o processo de formao de pontosde imagem de forma digital, atravs de combinaesnumricas dentro da cultura digital. O pixel da voz lanaluz sobre um sistema de produo vocal que est atreladoao computador e aos programas de ajuste, correo oudistores vocais, gerando aparatos que tangenciem no-es prvias de original-e-cpia e turvando premissas queindiquem uma relao binria de causa-e-consequnciapara o processo de vocalizao digital. Na medida em quea voz, nos sistemas de produo musical, desde a sua cap-tao, j se transforma num arquivo de udio pronto para

    ser modulado e processado, emerge uma questo ligada prpria dinmica de simulao existente nos meios deproduo digital (Campanelli, 2010).

    Debater o pixel da voz significa discutir o sistemade produo musical que tenta enxergar a convivncia devariadas experincias vocais na cultura contempornea:desde a ideia idlica dos trovadores, cantadores populares,que se apresentam nas feiras livres, no usam microfones,cantam a plenos pulmes; passando pelas apresentaes aovivo, com dispositivos eltricos, microfones, instrumentosmusicais, nos showsde rock, de msicapop, etc; chegandos experincias nos estdios musicais, nos computadorescaseiros, nos programas baixados na internet que mixamvozes, nos aplicativos baixados em celulares que brincamcom a digitalizao das vozes. A ideia de pixel da voz tentadar conta do fato de que, quando se trata de um artefatoconstrudo digitalmente, as formas de agenciamento,correo, distoro se do na matriz numrica gerada deum arquivo, ou seja, tem-se a clara ideia de ubiquidade,de uma lgica calcada na manipulao como uma prxis.

    O pixel da voz nos permite perceber que possveltestar diversos modelos vocais a partir da multiplicao dos

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    arquivos de voz. Ou seja, estamos diante de um substratosimblico passvel de experimentos, de simulaes e de va-riaes de parmetros previamente previstos. A voz passa aser metonmia de um corpo, mas, sobretudo, metamorfosedesse corpo na medida em que ela no mais se refere ape-nas quela boca cantante, mas a um processo que leva emconsiderao o corpo em lgicas dispersivas, autnomas,no-previstas apresentando-se numa espcie de ideal deautonomia do resultado final com o corpo-origem. O pixelda voz prev ideias ligadas remixagem, bricolagem,ao sampleamento, ou seja, a juno de texturas de outrasvozes junto a uma matriz vocal que est sendo trabalha-da. Outros corpos so agregados a uma matriz, gerandoo que podemos chamar de matrizes vocais sincrticas eque no se pode sequer elencar que vozes foram usadas

    na formatao de um determinado manancial. A possibi-lidade de trocas de arquivos na internet, a disponibilidadede vocais em ambientes de compartilhamentos de som,entre outras dinmicas, agem sobre as formas de produode vocais de corpos que cantaram, mas, tambm, foramremixados a outros vocais. Dentro do sistema de produomusical, o conceito de pixel da voz tenta arregimentar,portanto, a ideia de que, hoje, diante do farto aparato dearquivos de som, talvez seja mais complexo enxergar umarelao to linear entre voz e corpo, como a proposta porRoland Barthes em seu O Gro da Voz. Poderamosestar ouvindo hoje a voz de um corpo que, na verdade, a

    bricolagem de outras vozes, outros corpos, centrados nummodelo que vai ser acoplado a umperformer.

    Pensar o pixel da voz parece nos ser til paradiscutir que, diante dos aparatos de produo musical, possvel dar a voz a algum e no simplesmente captaressa voz. Cria-se uma voz e se diz que essa voz pertencea um corpo. Vou me servir de uma metfora bastantesimples para tentar traduzir essa mxima: a do ventrloquo.As vozes que ouvimos hoje nas canes, no rdio, nosnossos aparelhos de MP3 podem no ser as vozes dosartistas que as cantaram, mas sim, simulaes construdasem estdio, geradas dentro de parmetros consagrados pelaindstria fonogrfica e do audiovisual e cujos cantorespassam a apenas dublar as suas vozes. H obviamenteuma relao tensa de valores dentro da cultura da msicae toda uma gama de discursos ligados a noes de auten-ticidade e sinceridade de artistas que cantam ao vivo,no dublam, so verdadeiros artistas da msica e noinveno de gravadoras e de produtores, entre outrosargumentos largamente disseminados pela crtica sejaela profissional em veculos jornalsticos ou na internet,em fruns e redes sociais.

    Em suma, o que tentamos discutir neste texto sorascunhos sobre os processos de digitalizao do groda voz a algumas premissas sobre o pixel da voz comoum conceito capaz de dar conta de processos complexosde produo, execuo e escuta musical. Reconhecemosassim, como nas premissas barthesianas, que h umareconfigurao do ethosda msica e dos processos designificao que so constitudos historicamente.Voltando a Barthes, seguimos na nsia de tratar a vozcomo um dispositivo de linguagem, sempre a partirde uma dinmica dual. Ele nos diz: o que vou tentardizer do gro apenas o lado aparentemente abstrato,a conta impossvel de uma emoo individual que eusempre experimento em ouvir algum cantar (Barthes,1977, p. 185).

    Parafraseando: o que vou dizer do pixel apenas olado metamorfoseante da voz na cultura digital, a sntesede uma emoo que experimento ao ouvir algum cantare a incerteza de no saber a origem daquela voz, daquelecorpo-ventrloquo que eu escuto, no sei de onde vem avoz, mas, ainda assim, me toca e me afeta.

    Referncias

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  • 7/24/2019 gro da voz

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    O pixel da voz

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    Submetido: 04/08/2013

    Aceito: 07/10/2013