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I SEMINÁRIO ARTE E CIDADE - Salvador, maio de 2006 PPG-AU - Faculdade de Arquitetura / PPG-AV - Escola de Belas Artes / PPG-LL - Instituto de Letras UFBA Grelhas. Notas sobre o expressionismo e a neutralidade em arquitetura Douglas Vieira de Aguiar Vazio conceitual O termo expressionismo é utilizado no presente contexto para descrever estratégias arquitetônicas que, ao deixarem de lado a preocupação com o equilíbrio entre as categorias Vitruvianas, mergulham na exploração gratuita do reino da forma; uma situação na qual a arquitetura chega perto, e mesmo freqüentemente coincide, com o domínio da escultura. Há, no entanto, que ser reconhecido que a matéria é complexa visto que a arquitetura é sempre, por sua própria natureza, uma manifestação em algum grau expressionista. É sabido que a arquitetura em forma de caixote, de grelha e livre de ornamentos do movimento moderno provocou forte impacto em sua primeira aparição no início do século passado. No entanto, na medida em que o enfoque modernista difundiu-se sua arquitetura foi crescente e naturalmente privada do poder de expressão original. Nas últimas décadas do século vinte a arquitetura dita modernista sofreu uma série de reações; majoritariamente em razão de sua reconhecida discrição e imagem de neutralidade. A primeira dessas reações – as quais podem ser interpretadas como buscas inconseqüentes de expressão – está naquela atitude ou tendência que veio a ser denominada como pós- modernismo, uma tendência que trouxe de volta à cena arquitetônica uma variedade de estilos recuperados aleatoriamente da história. O pós- modernismo foi rapidamente consumido a medida em que a arquitetura comercial adotou-o como estilo oficial. Simultaneamente a esse declínio se observa a emergência do que veio a ser chamado deconstrutivismo, uma

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I SEMINÁRIO ARTE E CIDADE - Salvador, maio de 2006 PPG-AU - Faculdade de Arquitetura / PPG-AV - Escola de Belas Artes / PPG-LL - Instituto de Letras

UFBA

Grelhas. Notas sobre o expressionismo

e a neutralidade em arquitetura Douglas Vieira de Aguiar

Vazio conceitual

O termo expressionismo é utilizado no presente contexto para descrever

estratégias arquitetônicas que, ao deixarem de lado a preocupação com o

equilíbrio entre as categorias Vitruvianas, mergulham na exploração

gratuita do reino da forma; uma situação na qual a arquitetura chega perto,

e mesmo freqüentemente coincide, com o domínio da escultura. Há, no

entanto, que ser reconhecido que a matéria é complexa visto que a

arquitetura é sempre, por sua própria natureza, uma manifestação em

algum grau expressionista. É sabido que a arquitetura em forma de

caixote, de grelha e livre de ornamentos do movimento moderno provocou

forte impacto em sua primeira aparição no início do século passado. No

entanto, na medida em que o enfoque modernista difundiu-se sua

arquitetura foi crescente e naturalmente privada do poder de expressão

original.

Nas últimas décadas do século vinte a arquitetura dita modernista sofreu

uma série de reações; majoritariamente em razão de sua reconhecida

discrição e imagem de neutralidade. A primeira dessas reações – as quais

podem ser interpretadas como buscas inconseqüentes de expressão –

está naquela atitude ou tendência que veio a ser denominada como pós-

modernismo, uma tendência que trouxe de volta à cena arquitetônica uma

variedade de estilos recuperados aleatoriamente da história. O pós-

modernismo foi rapidamente consumido a medida em que a arquitetura

comercial adotou-o como estilo oficial. Simultaneamente a esse declínio se

observa a emergência do que veio a ser chamado deconstrutivismo, uma

tendência ao que parece ideologicamente comprometida com o papel da

arquitetura dentro da descontinuidade e fragmentação da metrópole

contemporânea. A expressão arquitetônica desse estilo – em muito

assemelhada ao construtivismo soviético – tornou-se moda e, conforme o

esperado, foi consumido e descartado ainda mais rapidamente que o estilo

pós-moderno. Na seqüência, quase que simultaneamente à decadência do

deconstrutivismo como estilo o cenário arquitetônico é assolado, no início

dos anos noventa, pelo que veio a ser denominado, de modo em princípio

equivocado, como tendência topológica ou arquitetura digital.1 Esse estilo

tem como expressão dominante as superfícies e espaços curvos e,

segundo os arautos, formas surgidas de um processo de ‘deformação

contínua’ dessas linhas e superfícies. Teóricos dessa tendência parecem

estar em busca de uma arquitetura que se mova, que se desloque;

possibilidade essa que se tornou facilmente realizável na tela do

computador, mas que de fato tem pouco, ou nenhum, impacto em

edificações reais. De fato, os esforços de construção surgidos dessa

tendência são bastante ambíguos. Exemplo emblemático é o já não tão

novo museu de Bilbao que exibe uma pirotécnica demonstração de ‘high

technology’ em suas superfícies curvas de titânio as quais, em anti-climax,

são apoiadas em estrutura absolutamente convencional desde o ponto de

vista dos princípios da estática. Outro representante dessa tendência

introduz uma espécie de arquitetura em origami na qual formas são

arbitrariamente produzidas a partir de ‘malhas deslocadas’; malhas

sobrepostas de modo desencontrado sem qualquer razão aparente. Nessa

linha o Aronoff Center of Arts, recentemente construído em Cincinatti,

mostra uma imagem de destruição; uma espécie de cenário pós-terremoto

ou quem sabe um terremoto em andamento. A Federation Square em

Melbourne sucumbe a essa postura arquitetônica (fig.1).

A situação acima descrita apenas confirma o permanente estado de crise

vivido pela disciplina arquitetônica. Tal cenário parece reviver a discussão

teórica de meados do século dezenove a respeito do pinturesco - ou o

‘picturesque’, como dizem os ingleses – um estilo que ‘emergiu como uma

revolta contra a idealidade da tradição acadêmica . . . e . . . foi

simultaneamente um culto do remoto e do local, do específico e altamente

pessoal’’. Nessa linha a busca de uma expressão característica foi ‘um

corolário da consciência romântica a respeito da natureza e da história, da

1 Uma coleção de teorias nessa linha é dada em Cristina, G. (Ed.) (2001). ‘Architecture and Science’, Chichester : Wiley-Academy.

liberdade e da individualidade 2. A história parece repetir-se com a

diferença que nos tempos atuais a mídia e as tecnologias de informação

vieram a substituir a natureza e a história como modelos nesse novo

pitoresco digital; um estilo que, na linha do original, tende a ser

predominantemente voltado para o impacto de superfície que as formas

causam ao olho. De qualquer modo o culto do caráter – modo como esse

fenômeno foi descrito por Colin Rowe – ou a necessidade de expressar

caráter a qualquer custo parece ser um ponto em comum entre o presente

momento da disciplina arquitetônica e o pinturesco de meados do século

dezenove.

Originalidade e criatividade

Em um de seus textos sobre arquitetura e ‘disjunção’ o arquiteto e teórico

Bernard Tschumi se refere ao mundo material como ‘o labirinto da

experiência’ e ao mundo dos conceitos como ‘a pirâmide’; um campo no

qual à arquitetura seria permitido ser autônoma 3. Nas últimas duas

décadas a pirâmide conceitual identificada por Tschumi vem sendo, de

modo crescente, materializada no trabalho de arquitetos ditos de

vanguarda os quais defendem a autonomia da arquitetura, sua total

dissociação do mundo das necessidades e usos e, sobretudo, seu fazer

como pura manifestação artística. Nessa linha, o arquiteto e teórico

americano Peter Eisenman declara: ‘. . . meu trabalho não trata da

conveniência, trata da arte . . . meus melhores trabalhos não tem

propósito’.4 Essa provocativa declaração pode até de certo modo contribuir

para a cultura arquitetônica ao promover a disciplina a um status de arte

autônoma, no entanto certamente não é uma contribuição positiva ao

ensino de arquitetura, uma área onde o principal agente, o estudante,

tende naturalmente a buscar originalidade, independentemente de um

insólito aval da academia. De qualquer modo, ao final, essa postura de

distanciamento do mundo da experiência tende a produzir resultados

desastrosos desde o ponto de vista da prática arquitetônica.

Nesse cenário os estudantes de arquitetura são freqüentemente

confrontados com o trabalho de arquitetos famosos que excedem no

inesperado, com exageros, distorções, pirotecnia formal, etc., etc., tudo em

2 Rowe, C. ‘Character and Composition’ in ‘The mathematics of the ideal villa, and other essays’ Cambridge, Mass. : MIT Press, 1976, p. 69 and 74 . 3 Tschumi, B. (1975). Questions of Space: The Pyramid and the Labyrinth. In Studio International, Sept-

Oct. 1975. London, Medical Tribune Group. 4 Cuff, Dana. Through the looking glass: Seven New York architects and their people. In Russell Ellis

and Dana Cuff eds. Architects’ People. New York: Oxford, University Press, 1989.

busca do impacto emocional através do objeto arquitetônico. Estudantes

freqüentemente tomam o trabalho desses profissionais como um

parâmetro de criatividade – ou originalidade? – e, sobretudo, de um

ambicionado sucesso profissional. É oportuno a essa altura do argumento

esboçar, ainda que de modo tentativo, uma distinção entre originalidade e

criatividade em arquitetura. De certo modo originalidade e criatividade

parecem coincidir. No entanto a noção de originalidade parece ser explícita

em sua referência a algo nunca antes visto ou feito. Resta saber por outro

lado se a originalidade completa seria algo alcançável. Nesse aspecto a

história mostra que a originalidade pode sim ser alcançada; ainda que seja

pelo gênio. E isso ocorre de quando em quando nos diferentes campos do

conhecimento, são ocorrências excepcionais e provavelmente dependam

pouco de processos de educação formal. Seria o talento de um Salieri,

uma vez adequadamente treinado, capaz de aproximar-se ao talento de

um Mozart? Ou, de outro modo, seria Mozart, uma vez formalmente

educado, um gênio em tão tenra idade? Ninguém sabe exatamente, mas

para ambas as questões a resposta parece ser não. Parece, ao contrário,

que quanto mais o gênio vier a ser contaminado por informação prévia ou

circundante menor será a probabilidade de que ele produza material

original. Tanto quanto a evidência histórica mostra não há treinamento

para originalidade; há a circunstância . . .

Já a criatividade parece acontecer de outro modo na medida em que está

afeta à cultura; quanto mais o agente estiver inserido em uma cultura mais

será ele capaz de interagir criativamente. O ato criativo se assemelha à

colagem; no sentido utilizado pelo antropólogo francês Claude Levi-

Strauss5. A criatividade depende de conhecimento prévio, conhecimento

sobre possíveis relações entre os elementos que se está lidando, colando,

sejam eles notas musicais ou elementos de arquitetura; e isso não tem

qualquer relação com uma ambição de originalidade. Ao contrário, a

criatividade se baseia em estruturar conhecimento, em relações

perceptíveis entre os elementos de uma cultura. Por isso a criatividade

pode ser formalmente aprendida e treinada. O gênio não parece ser feito

para isso. No entanto, curiosamente, a ambição de originalidade em

arquitetura é uma característica bastante comum entre estudantes. E o

expressionismo gratuito é, freqüentemente, bem acolhido por orientadores

alheios à distinção entre criatividade / originalidade. Nesse contexto o

5 Lévi-Strauss, C. Structural anthropology. Harmondsworth, England : Penguin, 1972.

argumento ora perseguido não tem a ambição de fornecer receita para o

trabalho criativo em arquitetura. Porém, alimenta uma ambição, ainda que

singela; aquela de reafirmar o papel da tradição – tanto a clássica quanto a

moderna – no ensino e na prática da arquitetura; uma proposição que nos

dias que correm soa conservadora. Esse não é, no entanto, o caso, na

medida em que a tradição está lá, na cidade, que em meio à onda de

pirotecnia arquitetônica vem se mantendo, onde é possível, como um

digno pano de fundo.

Presença e ausência

O reconhecimento do papel das tradições clássica e moderna no presente

cenário de confusão teórica abre oportunidade para enfocar, e especular, a

respeito da condição de neutralidade em arquitetura; suas peculiaridades,

sua performance, sua potencialidade. Expressionismo e neutralidade são,

senso comum, reconhecidos como pólos opostos. Neutro significa não

envolvido, ou imparcial ou ainda, algo sem um caráter ou peculiaridade

que o distinga. No entanto, conforme sugere a experiência, neutralidade

parece ser uma condição utópica. Em arquitetura neutralidade pode ser

considerada como a qualidade de permanecer como pano de fundo, não

interferindo ou interferindo o mínimo na cena principal; algo que está lá,

mas não é imediatamente percebido, algo quase ausente. Expressionismo,

ao contrário, é a busca de presença; e freqüentemente de uma presença

forte. A arquitetura é então colocada na linha de frente. Presença e

ausência são um modo sinônimo de descrever a polarização entre

expressionismo e neutralidade. Há, no entanto, a considerar que essa

condição de ausência, de pano de fundo, tomada de modo positivo,

confere à arquitetura um papel subsidiário e, paradoxalmente,

fundamental; o papel de enquadrar, estruturar as situações, criando

condições para que sejam enfatizadas características particulares do

ambiente; tanto ambientes construídos quanto naturais e, sobretudo, o

ambiente social i.e. a vida espacial das pessoas, a arquitetura como um

pano de fundo para a vida espacial das pessoas. Em tempos ancestrais,

muito antes dos arquitetos virem à existência, esse era provavelmente o

modo natural de lidar com situações / assuntos espaciais. E ainda hoje o

tradicional, o modo senso comum de lidar com demandas espaciais é

buscar abrigo sob a racionalidade de panos de fundo mais neutros.

Grelhas

O reconhecimento da polaridade entre expressionismo e neutralidade em

arquitetura traz naturalmente ao argumento o papel da repetitividade e,

sobretudo, da malha, ou grelha, na morfogênese da tradição arquitetônica;

tanto a clássica quanto a moderna. Nos cursos de arquitetura estudantes

tendem a associar as grelhas e o ângulo reto com rigidez, falta de

flexibilidade e de um certo modo, falta de criatividade. As razões para isso

parecem estar na recorrente presença da grelha no ambiente

contemporâneo: ‘O esqueleto de aço, ou a estrutura de concreto, é o tema

mais recorrente na arquitetura contemporânea e está dentre aqueles que

Sigfried Giedion teria apontado como seus elementos constituintes’ 6. Na

mão contrária, as grelhas também tem sido vistas como as configurações

mais abertas ao exercício da criatividade. Essa abertura, um atributo que

parece ser inerente às grelhas, acontece tanto em termos operativos

quanto simbólicos: ‘ . . . a grelha veio a possuir um valor para a arquitetura

contemporânea equivalente ao da coluna para a antiguidade clássica e

Renascença. Assim como a coluna, a grelha estabelece por todo o edifício

uma razão comum à qual todas as demais partes se reportam; assim como

o arco ogival na catedral gótica, ela dita um sistema ao qual todas as

demais partes se submetem’ 7. O operativo é naturalmente seguido pelo

simbólico: ‘Aparentemente a neutra malha especial que é abrigada pelo

esqueleto estrutural nos fornece um símbolo particularmente convincente,

e por essa razão a grelha estabelece relações, define uma disciplina e

gera formas. A grelha tem sido o catalizador de uma arquitetura; e se

verifica também que a grelha também tornou-se ela própria arquitetura, e

sobretudo que a arquitetura contemporânea seria quase inconcebível na

sua ausência’ 8.

Vestígios de grelhas, ou padrões em grelha, são encontrados em grande

número nos registros mais antigos da história humana. É provável que o

recurso configuracional mais utilizado pelo homem – os primeiros

arquitetos – através da história seja o padrão em grelha. A simples

intersecção e seu caso particular, o ângulo reto, estão na origem da

malha. Ainda que o ângulo reto seja usualmente considerado como uma

evidência explícita de racionalidade – e artificialidade – ele carrega

também, paradoxalmente, uma característica bastante natural; em muitas

espécies vivas desse planeta, aí incluídos os humanos – os corpos

humanos – tendem a materializar naturalmente ângulos retos em relação

ao horizonte e, como corolário, em relação ao plano horizontal sob nossos

pés. Essa verticalidade é natural nos humanos, em muitos animais e na

maioria das árvores. O ângulo reto, apesar de sua aparente artificialidade,

pode ser considerado como um elemento natural na cultura, talvez o mais

difundido, o mais tradicional, o mais neutro e, paradoxalmente, o mais

expressivo, especialmente quando confrontado com os arranjos mais livres

da natureza, aqueles reconhecidos pelo senso comum como naturais.

Ângulos retos são naturais geradores de malhas e padrões regulares em

6 Rowe, C. ‘The mathematics of the ideal villa, and other essays’ op.cit.p.90. . 7 Ibid. p.90. 8 Ibid. p.90.

geral e, de volta ao ponto inicial, geradores naturais de padrões de

neutralidade. Nessa linha as intersecções, o caso genérico, são geradoras

naturais de malhas deformadas 9.

O símbolo de cidade utilizado pelos egípcios é uma cruz dentro de um

círculo10: ‘. . . esse hieróglifo . . . sugere duas das mais simples, mais

duradouras imagens urbanas. O círculo é uma única ininterrupta linha

fechada; ele sugere fechamento, uma parede ou um espaço como uma

praça; dentro desses limites a vida acontece. A cruz é a mais simples

forma de diferentes linhas se agregarem; ela é talvez o objeto mais antigo

no processo ambiental . . . linhas que se cruzam representam um modo

elementar de fazer ruas, seguindo o padrão em grelha’11. O modo como os

antigos gregos construíram suas cidades através de uma configuração em

grelha é bem conhecido. Isso foi repetido pelos romanos e por sucessivas

culturas em diferentes períodos da história da cidade; de Mileto a Nova

Iorque e Barcelona (fig. 2). Ao longo dos tempos a grelha tem sido de

modo recorrente tomada como um padrão teoricamente neutro que vem a

permitir diferentes modos de ocupação; diferentes tamanhos e formas para

os quarteirões, diferentes tamanhos e formas para os lotes, diferentes tipos

de edificação, diferentes tipos de atividade, diferentes padrões de

movimento. Nessa condição de pano de fundo para múltiplas finalidades a

grelha foi tomada sem questionamento e, em tempos mais recentes

banalizada.

No entanto, a constatação da grande variedade de situações urbanas em

grelha sugere que esta, em princípio reconhecida como um instrumento

radical na canalização de pessoas e ordenamento de atividades, é também

vista por muitos como um agente efetivo de liberdade especial. O fundo

aparentemente neutro permite o desenvolvimento dos mais diversos e

contrastantes comportamentos espaciais, todos acomodados na suposta

neutralidade do padrão especial em grelha. A malha parece fornecer a

ausência de um esforço configuracional. Nessa linha a relação das

configurações em grelha, ângulos retos e linhas retas com rigidez e falta

de criatividade parece ser um falso axioma e até um limitador, desde o

ponto de vista do treinamento em arquitetura, visto que esses elementos

parecem ser justamente aqueles mais abertos ao exercício da criatividade.

9 As given in Hillier B. and Hanson J, The Social Logic of Space, CUP, Cambridge, 1984. 10 Rykwert, J. (1976). The idea of a town:The anthropology of urban form n Rome, Italy and the ancient world. London : Faber and Faber, p. 192. 11 Sennet, R. (1990). The Conscience of the Eye: the design and social life of cities. New York : Random House, pp. 46-47.

Sobre a neutralidade

No capítulo da arquitetura que trata das propriedades da malha urbana um

tópico relevante é o da neutralidade; o argumento toma as grelhas

regulares em geral e a malha urbana regular como um tipo de organização

espacial absolutamente homogênea, vazia de expressão e, portanto

aberta, de modo irrestrito, a qualquer conteúdo. Esse tópico parece ser

particularmente oportuno no estágio do treinamento em arquitetura

quando, é sempre oportuno relembrar, os estudantes freqüentemente

tendem a considerar a adoção da grelha como elemento operativo na

atividade de projeto, como um limitador no drive criativo. Duas questões

emergem daí. A primeira; seria um padrão especial em malha regular, uma

vez utilizado na configuração de um assentamento urbano, um instrumento

de neutralidade ou algo dotado, na origem, de neutralidade? A segunda;

considerando a prática da arquitetura de um modo geral, pode o uso de

padrões espaciais em grelha – como base operativa (um substrato) para o

desenho arquitetônico - ser considerado como uma técnica neutralizante?

O enfoque trazido por Richard Sennet em A Consciência do Olho parece

trazer alguma luz sobre o assunto. A tese de Sennet, em um capítulo

intitulado ‘a cidade neutra’, é a de que a adoção da urbanização em grelha

seria responsável por uma falta de identidade pública tanto nas cidades

americanas e, ampliando o argumento, no povo americano de um podo

geral. O argumento de Sennet vai na linha do determinismo arquitetônico;

ele considera os efeitos da malha regular como um subjacente fator

espacial negativo a incidir sobre o modo de vida americano.12 O tema é

ambíguo e é na ambigüidade que se encontram as oportunidades de

avançar nessa discussão. Sennet considera que na urbanização do novo

mundo a malha se tornou a expressão de um comportamento protestante;

uma vez chegados à América os Puritanos, em sua condição de refugiados

e na busca de realização do desejo de deixar o cenário europeu totalmente

para trás, teriam reconhecido na neutralidade da grelha regular o padrão

espacial ideal a partir do qual poderiam iniciar uma nova vida a partir do

zero. Deixar o passado para trás significava deixar para trás o opressivo

cenário urbano medieval. Nessa linha o autor sugere que ‘as igrejas nos

centros dos tradicionais tornavam evidente ao olho onde estava Deus.

Esses centros eram um espaço de reconhecimento. Deus é legível; ele

está dentro, dentro do santuário assim como dentro da alma. No exterior

12 Sennett, R. (1990), The Conscience of the Eye : the design and social life of cities. New York : Random House.

só há exibição, desordem e crueldade’.13 Ao contrário, o lugar ambicionado

pelo Puritano ‘devia ser tratado como uma tela branca buscando atender a

dupla compulsão de exaurir-se; para que o homem, ou a mulher, tenham

mais auto controle para o recomeçar em outro lugar’. Além disso ‘o olho do

Puritano só podia ver dentro de si próprio. Do lado de fora não havia nada.

Ele existe, esse interior selvagem, no espaço onde Beckett imaginou

Esperando Godot, um espaço vazio em um tempo sem narrativa’ 14.

Comparado com a cidade européia o ambiente ambicionado pelos

Puritanos incorporou objetivos políticos radicalmente distintos; ‘. . . a busca

por um santuário físico expressava o desejo de colocar-se nas mãos da

autoridade. A perspectiva puritana do espaço, ao contrário, expressava

uma ambição de poder’ 15.

Sennet oferece ao leitor um relato sobre a origem histórica dos padrões

espaciais em malha, se valendo para esse fim do trabalho do historiador

Joseph Rykwert que, em seu relato antropológico da forma urbana no

mundo antigo, é a todo o momento ciente do forte conteúdo simbólico

contido no padrão em grelha. Ainda que o autor em princípio reconheça

que em paralelo, senão sobreposto, à finalidade simbólica sempre tenha

havido um subjacente pragmatismo na a adoção do que ele denomina

como planejamento ortogonal; ‘. . . o planejamento ortogonal apareceu por

toda a parte, na América do Sul, na China, Índia, Egito, Mesopotâmia, e

por todo lugar onde formas de parcelamento foram desenvolvidas, e sob

qualquer estatuto da terra’16. O pragmatismo inerente ao planejamento

ortogonal transcende ao lado prático da simples divisão da terra e,

segundo Rykwert, ele estaria bastante ligado à dimensão operativa de

algumas sociedades antigas e, como tal, esse tipo de planejamento era

então uma novidade; ‘. . . a cidade Hipodâmica não é diferente de outras

(do seu tempo) só porque era ortogonal, mas sim porque ela é zoneada de

acordo com a classe de seus habitantes (guerreiros, fazendeiros, artesãos)

e de acordo com o estatuto da terra (sagrada, pública, privada)’17. A

suposta razão pragmática para a adoção generalizada dos padrões

espaciais em malha na antiguidade é, segundo Rykwert, superada pelos

conteúdos simbólicos, pois nas suas origens mais antigas a malha sempre

13 Ibid. p.44. 14 Ibid. p.45. 15 Ibid. p.45. 16 Rykwert, J. (1976).The idea of a town:The anthropology of urban form n Rome, Italy and the ancient world. London : Faber and Faber, p.72. 17 Ibid. p.86.

teria estabelecido, em um primeiro momento, um centro espiritual. Isso fica

claro, ainda segundo Rykwert, nas palavras do escritor Hyginus

Gromaticus, que acreditava que os antigos sacerdotes inaugurando um

novo vilarejo romano teriam colocado o primeiro eixo no cosmos visto que

‘os limites nunca são desenhados sem referência à ordem do universo, por

isso os decumanos são colocados em linha com o curso do sol, enquanto

os cardos seguem o eixo do céu’18. Essa evidência parece indicar de modo

claro que em sua origem a malha, em radical contraste com a tese da

neutralidade inicialmente posta, tem sido tomada, desde tempos ancestrais

e por diferentes sociedades, como um elemento dotado de forte conteúdo

simbólico.

Sennet reconhece essa primordial força simbólica ainda que seu

argumento sugira que a condição de neutralidade tenha sido perseguida

com sucesso no novo mundo na medida em que ‘os americanos tenderam

mais e mais a eliminar o centro público, o centro urbano, como mostram os

planos para Chicago de 1833 e aqueles para San Francisco de 1849 e

1856, que apresentam não mais que um punhado de pequenos espaços

públicos para as milhares de construções projetadas’19. O centro urbano,

ao contrário, foi um elemento essencial nas cidades americanas do assim

chamado lado espanhol. Isso decorre em grande parte da ‘Lei das Índias’,

um conjunto de regulamentos criados por Felipe II da Espanha, em 1573,

destinados a ordenar a criação de cidades no novo mundo. Sennet sugere

que ‘com a vinda das ferrovias e doses massivas de capital buscando um

porto, acontece uma mudança nas cidades de origem espanhola

enunciadas nas Leis das Índias. A praça deixa de ser um centro, ela não

mais é um ponto de referência na geração de novos espaços urbanos.

Praças urbanas passaram a ser pontos aleatórios em meio aos blocos

após blocos de lotes urbanos’.20 A conclusão de Sennet traz uma desilusão

determinista; ele culpa a grelha por muitas das falhas – por ele

reconhecidas – da sociedade Americana; desde a estéril vida social

suburbana até a insípida atmosfera por ele observada e vivida nos bares

de Manhattan. Nessa linha ele sugere que a grelha ‘pode ser vista como

uma arma usada contra a afirmação de um caráter ambiental, um espaço

para competição econômica a ser utilizado como um tabuleiro de xadrez;

18 Ibid. p.91. 19 Sennett, R. (1990), op.cit. p.48. 20 Ibid. p.50.

um espaço de neutralidade, uma neutralidade conseguida negando ao

ambiente qualquer valor vindo dele próprio’ 21.

O argumento é, por um lado, de reconhecimento ao forte conteúdo

simbólico inerente à malha urbana em sua origem e, por outro, de

reconhecimento à força da malha como instrumento de neutralidade. A

ambigüidade é evidente especialmente considerada a malha, como ele

próprio sugere, como um ‘signo protestante para a cidade neutra’ 22. Um

signo é por definição expressão; não pode ser, também por definição,

vazio, ou não será um signo. Por outro lado o desenho urbano em grelha

tem em geral vida curta, como fundo neutro, quando confrontado com o

comportamento espacial dos assuntos humanos. A confrontação da malha

com a situação existente, real, é sempre uma questão complexa; o sítio, a

natureza, a topografia, esses elementos estão sempre aí como elementos

perturbadores e contaminadores. Em sua relação com o mundo, a grelha

ganha vida, hierarquias, valores. Por meio desse mecanismo natural, a

grelha, em suas diferentes partes e porções, ganha identidade via

especificidade.

Ícone e índice

O trabalho do arquiteto alemão Mies van der Rohe é emblemático e

controverso no que diz respeito ao tópico da neutralidade na medida em

que ele liderou um modo de composição arquitetônica onde a repetição

tende a ser a regra (fig. 3). O arquiteto japonês Tadao Ando, após visitar

alguns dos edifícios de Mies durante os anos sessenta, sugeriu que ‘a

arquitetura de Mies pertence a todo o lugar e a lugar algum’, e prossegue;

‘tudo o que lembro é a frieza daqueles espaços uniformes. Me dei conta

que em Mies havia algo de trágico e cruel empurrando tudo para uma

conclusão lógica que ignora todas as considerações humanas . . . e ainda

que Mies não tivesse nascido ainda assim alguém teria produzido aqueles

edifícios entediantes, movidos pela necessidade de criar um espaço

homogeneizado capaz de absorver toda e qualquer diferença’ 23. O

discurso de Ando vem alinhado com a percepção de Sennet, vista acima,

de um zeitgeist neutralizante expresso no urbanismo americano em

xadrez, e reconhece a expansão dessa tendência na prática arquitetônica

contemporânea que tende a reproduzir esse modo homogeneizante de

21 Ibid. p.52 and 55. 22 Ibid. p.48. 23 Ibid. p. 476.

lidar com a produção do espaço; ‘. . . hoje temos que trabalhar com

tecnologias totalmente controladas por computadores e que apenas

entendem o que seja normal e não deixam margem para a diversidade’.24

Ao dar-se conta do quanto a padronização avançou no mundo

contemporâneo o arquiteto japonês já não parece tão certo do radicalismo

do mestre alemão, com o qual mostra, ao final, alguma complacência; ‘. . .

tentativas de humanização foram feitas pela introdução de eventos

informais em grelhas repetitivas. Em Mies, o espaço uniforme sempre

deixa essa margem para a liberdade e a diferença . . . ‘ 25.

O próprio trabalho de Ando foi sempre dotado de um explícito rigor

geométrico onde o papel da grelha tende a predominar. Nessa linha o

arquiteto sugere que uma geometria pura esteja entre os elementos

necessários para a cristalização da arquitetura; ‘uma estrutura que venha a

dotar de presença a arquitetura . . . o ponto de partida poderia ser um

volume tal como um sólido platônico, mas freqüentemente é uma estrutura

tridimensional; sinto que essa última seja uma geometria mais pura ’ 26.

Vê-se aí que o depoimento de Ando sobre o trabalho de Mies está

bastante distante de uma critica generalista sobre uma pressuposta

neutralidade dos padrões em grelha. Ando de fato não reconhece a grelha

em si própria um elemento de composição expressivo, mas sim um outro

elemento, ou procedimento, por ele apresentado que é o deslizamento

(slippage) entre grelhas; ‘dizem alguns que com o uso de grelhas o

resultado será apenas o espaço uniforme de um tipo ou de outro, mas eu

discordo. Quando dois espaços homogêneos, representados como

malhas, interferem um com o outro acontece um deslizamento entre eles o

qual provoca o incômodo, a rejeição de entidades idênticas que colidem.

Isso é o que considero ‘diferença’ e é isso o que procuro’ (fig. 4) 27. Esse é

o modo como Ando cria ‘lugares que abrangem a diversidade existente no

mundo e que dão expressão a quaisquer idéias que rejeitem

uniformidade’.28 De fato essa característica à qual Ando se refere é algo

bastante recorrente no meio urbano, em cidades de crescimento natural,

paulatino, onde grelhas pertencentes a diferentes estágios de

24 Ibid. p.476. 25 Maruyama, H. (1995). Interview with Tadao Ando. In Francesco Dal Co (Ed) Tadao Ando : Complete Works, London : Phaidon, p. 476. 26 Ando, T. (1995). Materials, Geometry and Nature. In Francesco Dal Co (Ed) Tadao Ando : Complete Works, London : Phaidon, p. 456. 27 Maruyama, H. (1995). Op.cit. p. 476. 28 Ibid. p. 476.

desenvolvimento colidem – em suas adjacências – de modo casual.

Nessas situações o caráter dessas grelhas em colisão tende a produzir

situações espaciais excepcionais – diferenças - estanhas aos padrões

originais (fig.3). Nesse sentido, e em comparação com as imaculadas

estruturas miesianas, o trabalho do arquiteto japonês parece assumir um

caráter bastante pitoresco ou, se quisermos, expressionista.

O arquiteto americano Peter Eisenman, em uma análise do trabalho de

Ando, sugere que ‘as linhas de Ando não são simplesmente uma grelha;

elas contém esse ‘outro’ que é simultaneamente índice e ícone . . . a

grelha tem secundariedade – uma qualidade de um índice sem

complexidade adjetival ou hierárquica, e não mais uma forma primária’ 29.

Eisenman se apóia em categorias – dadas pelo filósofo americano Charles

Peirce – que estabelecem diferença entre as condições do signo. Essas

categorias fornecem elementos que contribuem na compreensão da

dimensão oculta dos padrões em grelha.30 Um ícone, sugere Peirce, é um

signo que guarda uma relação primária e direta com um objeto. Exemplo

clássico de ícone são os números (um, dois, . . . , n) que se relacionam

diretamente a uma certa quantidade de algo. Um índice é um signo que

guarda uma relação secundária com o objeto. Um índice é o signo de um

conjunto de relações tais como os algoritmos, equações e sintaxes. Índices

descrevem ‘as complexas interações em um objeto que podem ser

conhecidas, mas não necessariamente vistas. São relações de

‘secundariedade’ na medida em que não se revelam a partir de uma visão

inicial’.31 Relações de secundariedade constituem uma espécie de

dimensão oculta da arquitetura, estão mais escondidas – no domínio da

forma espacial – enquanto o discurso arquitetônico trata, em geral, com a

aparência visual. Relações de secundariedade descrevem o modo como o

espaço, a arquitetura, de fato opera.

Seguindo essa tipologia, a grelha – os padrões em grelha em geral –

detém ambas as condições, ou seja, são simultaneamente ícones e

índices. Conforme Eisenman sugere, ‘ . . . quando se desenha a

intersecção de duas linhas, se produz uma cruz que é um óbvio ícone de

ponto, centro, foco, etc.. A repetição desse cruzamento produz uma grelha,

que não tem mais a ver com centro e foco, mas sim com superfície,

29 Eisenman, P. (1995). Indicencies: In the Drawing Lines of Tadao Ando. In Francesco Dal Co (Ed) Tadao Ando : Complete Works, London : Phaidon, p. 496-497. 30 Peirce, C. S. (1952). The Collected Papers of C. S. Peirce, ed. A. W. Burks, Cambridge: Harvard. 31 Ibid. p.496.

textura, etc. A grelha não é mais então primariamente icônica, mas

também um índice’.32 Isto é, a grelha carrega em si própria relações

espaciais que não podem ser vistas em sua totalidade, mas que serão

determinantes no uso do espaço em grelha resultante. Esse caráter de

secundariedade é bastante distinto do caráter icônico primário que pode

ser facilmente percebido em qualquer planta e em geral na iconicidade

utilizada pelos mestres do movimento moderno; ‘. . . (Mies e Le Corbusier)

ambos utilizaram a grelha como um ícone da arquitetura modernista; ela

representava as novas concepções de espaço como algo abstrato,

ilimitado e tectônico perseguindo uma imagem mecanicista ou de máquina

simplesmente’. A neutralidade da grelha, portanto, seguindo a tipologia

proposta por Sennet, parece ser apenas algo aparente, algo dado na

superfície, uma iconicidade aparente. Mais fundo, sob a superfície, imersa

na ‘secundariedade’, a grelha carrega uma essência espacial, uma

dimensão oculta que provém de sua sintaxe. Nesse sentido fica aparente

que Eisenman de certo modo perdeu o foco, ele próprio, ao sugerir que as

grelhas seriam não mais relacionadas com o ponto, ou centro(s), mas sim

com superfície e textura. A condição de acessibilidade espacial inerente a

qualquer padrão urbano em grelha é naturalmente dotada de centralidade.

Considerado o conjunto de relações espaciais inerentes a cada um se

seus segmentos de linha, a grelha, qualquer grelha, será naturalmente

dotada de um centro, um ponto focal, topológico (não geométrico). Como

tal a, acima teorizada, neutralidade da grelha mostra-se insustentável

quando confrontada como sua própria natureza sintática, sem falar de seu

confronto com o mundo real.

Um emblema da arte moderna

Esse caráter duplo, inerente aos padrões em grelha tem sido largamente

reconhecido e levado a seu limite pela arte moderna, especialmente na

pintura. Nessa linha a crítica de arte americana Rosalind Krauss sugere

que ‘se a separação entre espírito e matéria, presidida pela ciência do

século 19, é o legado deixado às crianças do século 20, esse não deixa de

ser também o legado deixado à arte do século 20, e a grelha é sua forma

emblemática’33. O forte conteúdo simbólico vinculado aos padrões em

grelha desde a antiguidade fica adormecido por um milênio de

obscurantismo e ressurge com força total nos tempos modernos; ‘a grelha

32 Ibid. p.497. 33 Krauss, R. ‘Grids : format and image in 20th century art’, New York : Pace Gallery, 1980, p. 1.

é um emblema da modernidade por ser apenas isso: a forma que está em

toda a parte na arte do nosso século, e em lugar algum na arte do século

passado’ 34. Essa transição do tradicional conceito de arte como imitação

(da natureza) na direção de um conceito explicitamente abstrato teve, ao

longo do século 20, o padrão em grelha como seu principal protagonista

(fig. 5). Na medida em que toda a tradição da imitação é deixada para trás,

a malha vem a representar por si própria a autonomia da obra de arte.

Curioso, no entanto, é que nos tempos atuais – tempos explicitamente

presididos pelo secularismo combinado com o materialismo – a dimensão

espiritual é freqüentemente vinculada ao uso de padrões em grelha. Nessa

cisão entre o sacro e o secular, típica do tempo em que vivemos, verifica-

se a força da grelha tanto como um emblema quanto como mito; ‘. . . a

força mítica da grelha está no fato de ela nos fazer pensar que estamos

lidando com materialismo e ao mesmo tempo nos liberar na direção de

algo a acreditar (ou ilusão, ou ficção) 35. A obra de artistas como Agnes

Martin, Malevitch, Mondrian e tantos outros mostra vestígios dessa força

subjacente.

As grelhas e o mundo lá fora

Desde o ponto de vista da suposta neutralidade da grelha, a pré-existência

tende a se comportar como um fundo orgânico. Isso parece corresponder

ao que ocorre tanto no ambiente natural quanto no artificial. A presença

ordenadora da arquitetura está em seu modo de contrastar esse cenário

complexo. O expressionismo arquitetônico freqüentemente tenta mimetizar

a complexidade ambiental. Essa atitude parece afastar-se da condição de

elemento ordenador inerente à arquitetura. A tentativa de imitar a

espontaneidade natural, mais que uma missão impossível, termina

produzindo um expressionismo inconseqüente. E a melhor arquitetura –

Palladio e Mies são exemplos – é configurada tendo a neutralidade como

origem, no conceito. Por partirem, na origem, de configurações neutras,

essa arquitetura se torna fortemente comunicativa, e mesmo

expressionista, em seu desenvolvimento, quando confrontadas com o

ambiente, com a vida das pessoas e com a passagem do tempo. Quando

isso é obtido a arquitetura se torna arte. Isso fica evidente na planta de

Mileto, nos bulevares parisienses, na obra de Mies e no monolito

prismático de 2001, a Odisséia Espacial; a pedra negra que assusta os

34 Ibid. p.2. 35 Ibid. p.4.

macacos, ícone de racionalidade. Essas obras de arte mostram a

realização do que pode ser considerado como o caráter correto; aquela

situação na qual a expressão emerge da neutralidade, simplesmente da

interface com o mundo real.

A expressão simultânea de caráter e finalidade dos bulevares parisienses

vem do modo como esses espaços se confrontam com os mil anos do

tecido urbano onde foram situados. A colisão entre a linha reta da avenida

e o tecido labiríntico da cidade medieval faz o papel de um instrumento de

comunicação. O bulevar é simplesmente um eixo e precisamente por isso

um comunicador eficiente (fig. 6). A arte, a obra de arte, está no modo –

como e onde – esse eixo é realizado, o modo como ele intersecta a pré-

existência. É provável que Haussmann não estivesse consciente desse

aspecto, no entanto o resultado obtido é eficiente e belo. A destruição de

boa parte da Paris medieval para torná-lo possível, incluídas aí as

implicações sociais, é outro tema. O que conta no presente argumento é a

força, a beleza e a efetividade de uma linha reta – um elemento neutro na

origem – quando confrontado com a complexidade da pré-existência. A

grelha de Hippodamus realizada em Mileto produziu um efeito similar. O

contorno natural da península é confrontado com a neutralidade da grelha.

E a grelha é afetada pelo ambiente natural. Ela deve acomodar-se e por

outro lado sofre a pressão dada pelo programa – o ágora, os foruns, a

acessibilidade desde e para esses locais – e desse modo uma natural

hierarquia de caminhos emerge. A malha se torna naturalmente

expressiva, comunicativa. Efeito similar ocorre em Manhattan quando a

Broadway atravessa a malha regular em diagonal. O resultado é um

pedaço de Nova Iorque fortemente expressionista; ainda que naturalmente.

Os antigos parecem ter manejado de modo automático com a transposição

mecânica da genérica neutralidade de um modelo à especificidade de cada

situação. As casas gregas e a domus romana reproduzem na escala do

edifício esse mesmo princípio. As casas antigas são freqüentemente em

grelha; um espaço central articula espaços periféricos que por sua vez se

comunicam. É a matriz de compartimentos conectados de Evans.36 E o

mecanismo de deformação opera de modo similar aquele que atua sobre

as malhas urbanas. Essas edificações ainda que similares nunca são as

mesmas; muito embora sejam baseadas em um padrão simples e

originalmente neutro eles se transformam ao acomodar os diferentes usos,

36 Evans, R. (1978). Figures, Doors and Passages, in Architectural Design 4/, pp.267 – 278.

atividades e o movimento das pessoas. Os edifícios de planta central do

Renascimento são variações desse ancestral padrão neutro encontrado

nas casas greco-romanas. A malha vem sendo através dos milênios um

natural gerador de diversidade.

O corpo e a malha

A relação entre ortogonalidade e o conceito mais geral de inteligibilidade

espacial merece atenção no contexto do presente argumento. Malhas são,

senso comum, reconhecidas como naturais provedores de orientação

espacial, naturais sistemas de referência. Coordenadas cartesianas são

um meio universal através do qual o homem é capaz de posicionar-se no

mundo físico e estão na base tanto do mais elementar mapa geográfico até

os mais sofisticados GPS. Um trivial exemplo de inteligibilidade espacial

dos padrões em grelha é dado por um observador deslocando-se ao longo

de uma rua que é atravessada por outras ruas em ângulo reto. A

percepção local de uma seqüência de esquinas assim configurada fornece

uma indicação sobre o padrão em malha desse entorno. A percepção local

opera como instrução para o reconhecimento do padrão global.37 Outro

exemplo banal é dado por um observador posicionado em um

compartimento tendo a sua frente paredes posicionadas em ângulo reto.

Ainda que esse não seja o caso há uma alta probabilidade que as paredes

nas costas desse observador descrevam padrão similar i.e. o observador

tende a concluir que está dentro de um compartimento retangular;

configurado por quatro paredes posicionadas em ângulos retos. Esses

exemplos não contêm julgamento de valor qualquer, porem, sugerem uma

relação instrumental entre ortogonalidade e a condição de inteligibilidade

espacial.

A ambição da arquitetura moderna de alcançar uma relação adequada

entre forma e função coincide e está sobreposta à ambição de alcançar

geometrias também adequadas; aquelas que sejam capazes de prover um

ambicionado padrão de uso e movimento. Esse objetivo pode ser buscado

pelo menos de dois modos diferentes. Um é através na canalização das

pessoas; a ‘promenade’ arquitetural. Outro é através da provisão de uma

estrutura espacial de referência que oriente o comportamento espacial das

pessoas. O movimento das pessoas no mundo parece ser em princípio

37 This concept is developed in Hillier, B. et al. Natural Movement in Environment and Planning B, volume 20, 1993, pp. 29 – 66.

naturalmente entrópico, ou seja, os corpos se moveriam aleatoriamente

sem a contenção arquitetônica que organiza o movimento. Isso tende a

ocorrer em diferentes escalas. Assim sendo, a arquitetura tende a ser por

definição ordenadora e, de certo modo, repressora. Diferentes graus de

restrição são introduzidos pelos objetos – barreiras – que atuam sobre o

movimento dos corpos no espaço. Nessa linha quanto mais neutra for a

arquitetura menos ela será um preventivo à ação livre das pessoas e

menor será o grau de violência – a violência espacial de Tschumi – que ela

irá impor à vida das pessoas. Por outro lado quanto mais a geometria dada

nas distribuições espaciais é complexa maior será a restrição imposta ao

movimento. Portanto pelo menos em teoria, quanto mais presente – ou

expressionista – for a organização espacial, mais limitadora ela tenderá a

ser ao movimento do(s) corpo(s). Na mão contrária as arquiteturas mais

neutras ou mais ausentes tendem a estabelecer apenas uma estrutura de

referência à vida espacial das pessoas.

No entanto, o partido em grelha não parece ser também uma garantia de

inteligibilidade espacial. Tanto a arquitetura moderna quanto a arquitetura

clássica fizeram, e tem feito, uso recorrente das grelhas em seus modos

de arranjo. E a promenade resultante é bastante contrastante se esses

dois modos de composição são comparados. Na arquitetura da

antiguidade a distribuição espacial tende a produzir em geral um padrão de

percursos claro e direto. A distribuição espacial é revelada de modo

explícito. Na arquitetura modernista, apesar da teoria em torno do passeio

arquitetônico, o padrão de percursos resultante é em geral mais complexo,

tortuoso e de difícil apreensão. A distribuição espacial é seguidamente não

explicitada. Na arquitetura moderna as distribuições espaciais em malha

freqüentemente configuram labirintos. Nessa linha um conhecido passeio

arquitetônico assim descrito por Colin Rowe é exemplar: ‘. . . no edifício da

Bauhaus enquanto se registra a apreciação mental tanto da planta quanto

da estrutura, o olho é confrontado com o perturbador problema do impacto

simultâneo de elementos amplamente dispersos. Um dominante elemento

central é eliminado; elementos subsidiários são por isso incapazes de

desempenhar um papel de apoio, e num estado de autonomia visual, eles

são dispostos em volta do vazio da ponte central que nem lhes fornece

orientação visual como um esquema consistente nem permite que eles

assumam independência como unidades autônomas . . . nessa estratégia

de perturbar, ao invés de fornecer prazer imediato ao olho, o elemento de

prazer da arquitetura moderna parece predominantemente enganar . . . um

esquema labiríntico é oferecido o qual frustra o olho ao intensificar o prazer

visual de episódios individuais’ 38. O passeio arquitetônico oferecido pela

distribuição espacial do edifício da Bauhaus mostra, na linha do argumento

ora perseguido, o modo como um padrão espacial em malha pode ser

fortemente expressionista e, sobretudo, um fator limitante à inteligibilidade

espacial.

Notas finais

As idéias acima apresentadas constituem uma incansável tentativa de

apresentar diferentes aspectos envolvendo o expressionismo e a

neutralidade em arquitetura. O principal objetivo é desmistificar a idéia de

que o uso de regularidades, e especialmente o uso de grelhas, seja um

fator limitante à criatividade em arquitetura. Procurou-se mostrar que a

grelha não é, em caso algum um instrumento projetual neutro e que de fato

ela pode ser, e freqüentemente é, um poderoso instrumento simbólico, e

expressionista, na atividade do desenho arquitetônico. O objetivo principal

aqui é o de encorajar a pesquisa sobre a potencialidade de padrões

espaciais em grelha como um modo efetivo de entrada no mundo da

arquitetura, especialmente os estudantes. Ao final, em contraponto, foi

também mostrado que o uso de grelhas não é uma garantia de que se

chegue a resultados seguros na obtenção de inteligibilidade espacial.

Nessa linha o caso do edifício da Bauhaus, estudado por Rowe, é

desconcertante. Finalmente há que reconhecer que o argumento

apresentado é de certo modo desestimulante ao uso de irregularidades e

configurações exóticas em arquitetura em geral. Há, no entanto, lugar para

tudo no presente contexto cultural e a proposição dada acima sugere

apenas que, em arquitetura, é sempre necessário que os primeiros passos

explorem, sintam o sabor e se habituem ao repertório dado, gratuitamente,

por uma tradição milenar.

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