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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
GUARDA MUNICIPAL E A ATUAÇÃO NO ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER: UM DIÁLOGO NECESSÁRIO
Jayce Layana Lopes Callou
Resumo: O presente trabalho teve por objetivo geral analisar como a Guarda Municipal de
Salvador/BA vem articulando as suas ações junto ao atendimento às mulheres em situação de
violência doméstica. Para dar conta do objetivo proposto foram estabelecidos três objetivos
específicos: elencar as principais ações desenvolvidas pela guarda municipal, bem como os
principais limites e dificuldades enfrentados; compreender como se dá o processo de
formação da guarda municipal; e por fim, investigar a atuação da guarda municipal junto às
mulheres em situação de violência doméstica. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas
com oito guardas municipais pertencentes ao grupo de Operações Especiais (GOE), após a
análise das entrevistas os resultados foram discutidos a partir de três categorias temáticas:
Guarda Municipal: atuação, limites e desafios; Capacitações e o Processo de Formação
Continuada; Guarda versus Violência Contra a Mulher: a Invisibilidade Feminina.
Considerando que a proposta apresentada aqui se trata de uma investigação pontual frente à
guarda municipal de Salvados/BA destaca-se mais uma vez a importância dessa instituição
para o enfrentamento à violência contra a mulher. Conclui-se que ainda são pontuais as
intervenções da guarda frente a perpetração da violência. No entanto, também foi possível
delimitar que a instituição possui uma preocupação mínima para refletir acerca das questões
teorias que envolvem o fenômeno da violência, mesmo que de maneira intimista.
Palavras-chave: Guarda Municipal, Violência Contra a Mulher, Lei Maria da Penha.
Introdução
Muitos são os dados que expressam a significativa prevalência do fenômeno da
violência contra a mulher nos domicílios brasileiros. De acordo com a pesquisa do instituto
IPEA, realizada no ano de 2013, o Brasil registrou entre os anos de 2009 e 2011, 16,9 mil
feminicídeos. Uma análise mais qualitativa de tais dados indica que a Bahia ocupa o segundo
lugar de todos os territórios investigados, sendo o nordeste a região de maior incidência.
Considerada um problema de saúde pública dada a sua expressividade, cerca de 19%
da população feminina já sofreram algum tipo de violência perpetrada no âmbito doméstico,
principalmente por um companheiro e/ou ex- companheiro (DATASENADO, 2013). A
incidência do fenômeno da violência contra a mulher demanda uma série de ações a serem
realizadas no seu enfrentamento, dentre elas a garantia de políticas públicas.
Até a década de 80 as iniciativas do governo brasileiro para dar conta da demanda da
violência perpetrada em mulheres, estavam centradas basicamente na esfera jurídica/policial e
na criação de alguns serviços, como ocorreu em 1985 com a primeira Delegacia Especializada
de Atendimento à Mulher (DEAM) no Estado de São Paulo e em 1986 com a instalação da
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primeira Casa Abrigo - o Centro de Convivência para Mulheres Vítimas de Violência
Doméstica, também conhecida como COMVIDA (SILVEIRA, 2006). Nessa época, o Brasil
passava por um processo de redemocratização e foi marcado por grande efervescência do
movimento de mulheres, sendo o fenômeno da violência contra a mulher uma das grandes
bandeiras de luta.
Na década de 90 as ações básicas foram ampliadas, mesmo que de maneira intimista,
para a criação de mais serviços especializados e a capacitação de profissionais que
trabalhavam junto a essas instituições. O ordenamento jurídico, até então vigente, também não
favorecia a mulher no enfrentamento a violência sofrida. Muito pelo contrário, com a criação
da Lei 9099/95 que instituiu os Juizados Especiais Criminais, os crimes que envolviam
violência perpetrada em mulheres acabavam sendo julgados como de menor potencial
ofensivo e as penas revertidas em cestas básicas.
Com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), no ano de 2003,
existiu uma efetiva estruturação frente a organização de ações no enfrentamento à violência e
as desigualdades de gênero (BRASIL, 2011). Realização das Conferências Nacionais de
Políticas para as Mulheres; construção dos Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres;
estabelecimento da Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher;
aprovação da lei 11.340 “Lei Maria da Penha” (LMP); são apenas algumas das conquistas
após a institucionalização da SPM. Aqui podemos afirmar que a pauta do enfrentamento ao
fenômeno da violência contra a mulher possuía o seu “lugar” junto às prioridades do governo
federal.
Na referida lei 11.340 no quesito que versa sobre a assistência à mulher, no capítulo
acerca das medidas integradas de prevenção é citada a necessidade de ações de capacitações
no que refere as questões de gênero e raça/etnia em instituições relacionadas a segurança
pública, dentre elas destaca-se a Guarda Municipal, responsável por prestar serviço público no
contexto dos municípios.
No caso específico da Guarda Municipal existem algumas experiências pontuais no
Brasil que demonstram o seu papel efetivo nesse enfrentamento. Como por exemplo, no
município de Curitiba/PR com o desenvolvimento da Patrulha Maria da Penha que
corresponde ao atendimento às mulheres em situação de violência doméstica que possuem
medidas protetivas efetivadas pela justiça.
O presente trabalho teve por objetivo geral analisar como a Guarda Municipal de
Salvador/BA vem articulando as suas ações junto ao atendimento às mulheres em situação de
3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
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violência doméstica. Para dar conta do objetivo proposto foram estabelecidos três objetivos
específicos: elencar as principais ações desenvolvidas pela guarda municipal, bem como os
principais limites e dificuldades enfrentados; compreender como se dá o processo de
formação da guarda municipal; e por fim, investigar a atuação da guarda municipal junto às
mulheres em situação de violência doméstica.
A pesquisa justificou-se pela própria necessidade de enfrentamento ao fenômeno da
violência contra a mulher, vivenciado por muitas mulheres, independentemente dos
marcadores sociais em questão (gênero, raça, regionalização, classe, geração, dentre outros).
Nessa lógica, torna-se imprescindível a implantação de políticas públicas que atentem para o
imperativo de construirmos junto a população uma cultura de paz.
Considerações Metodológicas
Ao propor a análise de como a Guarda Municipal de Salvador/BA vem articulando as
suas ações junto ao atendimento às mulheres em situação de violência doméstica estamos
diante de uma proposta metodológica qualitativa que valoriza o estudo das relações, crenças,
percepções e significados de uma dada realidade. Não se trata de uma mera explicação
descritiva, mas dá ênfase em interpretações, falas, fatos dos sujeitos que estão inseridos dentro
do contexto que será investigado (MINAYO, 2013).
Para dar conta dos objetivos propostos foram considerados como sujeitos de pesquisa
os profissionais pertencentes a Guarda Municipal que atuam no município de Salvador/BA.
Juridicamente a Guarda está respaldada pela Lei Orgânica do Município e está desde 2008
vinculada a Superintendência de Segurança Urbana e Prevenção à Violência (SUSPREV). Na
tentativa de efetivar a pesquisa foi utilizada a seleção dos sujeitos a partir da rede social da
pesquisadora e das indicações de sujeitos realizadas pelos próprios Guardas Municipais.
Metodologicamente, essa técnica recebe o nome de Bola de Neve, já que cada um dos
entrevistados vai direcionando a pesquisadora para outros.
Considerando o seu caráter flexível delimitou-se duas técnicas para a coleta de dados.
A primeira consistiu na aplicação de questionários para que fosse possível delimitar o perfil
social, econômico e demográfico do entrevistado. Já a segunda técnica, foi a realização de
entrevistas semi-estruturadas. Como procedimento da coleta de dados foi solicitado a
instituição uma autorização via carta de aceite para que fosse possível a entrada da
pesquisadora nos serviços. No total, foram realizadas 8 entrevistas com duração média de 50
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minutos, sendo que todos os entrevistados autorizaram a gravação após a assinatura do termo
de consentimento livre e esclarecido.
Acerca do perfil destaca-se que dos oito sujeitos entrevistados sete são homens e
apenas uma foi mulher. Salienta-se também que os participantes possuem entre 30 e 41 anos;
se autodenominaram negros ou pardos; trabalhavam na Guarda Municipal desde o ano de
2007, período da criação efetiva; a grande maioria são casados ou possuem um
relacionamento estável; todos possuem filhos; a totalidade ingressou no ensino superior, tendo
alguns já concluídos e outros em andamento; e por último destaca-se que todos os guardas
entrevistados, pertencem atualmente ao Grupo de Operações Especiais (GOE).
A discussão e análise dos dados coletados foram realizadas por meio da Análise de
Conteúdo Temática (BARDIN, 1994), visando descobrir os núcleos de sentido que
frequentemente estão presentes nos discursos dos sujeitos envolvidos. As oito entrevistas
foram transcritas e após a leitura e análise o material resultou em três categorias temáticas que
serão apresentadas nas próximas sessões de maneira descritiva.
Guarda Municipal: atuação, limites e desafios
Na totalidade dos discursos a função da Guarda Municipal aparece enquanto
responsável pela proteção do patrimônio público, sendo que o maior bem público seria a
população. Transpondo essa função para a prática os guardas trabalham em diferentes
instituições e locais: praças públicas, postos de saúde, estações de transbordo, secretarias do
município, diferentes instituições públicas, trabalhos administrativos na sede da guarda
municipal, entre outros.
Para além dessas funções, possui também grupos que trabalham com operações
específicas: Grupo de Operações de Cães (GOC), o Grupo de Operações ambientais (GEPA);
Grupo de Operações com Motociclistas (GEM); Grupo de Apoio ao Turista (GAT) e o Grupo
de Operações Especiais (GOE). No caso da presente pesquisa, como já mencionado nos
aspectos metodológicos foram entrevistados apenas Guardas Municipais que pertencem ao
GOE: responsável por ficar em pronto atendimento e realizar diferentes missões que são
demandadas pela sociedade.
Observa-se assim que corresponde uma instituição extremamente plural no que refere
as suas possibilidades de atuações. Essa pluralidade aparece nos discursos muitas vezes como
uma problemática para a delimitação da própria identidade profissional da guarda municipal.
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Ao serem questionados acerca das principais dificuldades enfrentadas para uma
atuação efetiva da guarda, os sujeitos elencaram a falta de apoio por parte da gestão: o pouco
contingente de materiais básicos de trabalho, a exemplo do próprio fardamento; Falta de
logística no trabalho, entre outras situações.
Paralela a gestão, existiu um discurso bem notório acerca das dificuldades enfrentadas
na atuação com relação a própria definição e exercício prático da função da guarda municipal.
Principalmente quando são pensadas as representações que a população e outros profissionais
do município possuem da guarda municipal, inclusive a própria gestão.
Falta a instituição mostrar os feitos nossos para que a população nos
venha a respeitar. Hoje a gente se vê mais respeitado, por conta de ...
a gente está ajudando muitas pessoas e na propaganda boca a boca
[...] mas, a falta de informação da população [...] causa desrespeito da
população [...] muita gente acha que a gente é guardinha.
(Entrevistado 03)
A partir dos discursos foi possível identificar que a Guarda vem ganhando espaço
dentro da gestão do município, mas que ainda existe uma cultura de desqualificação por parte
da população, da gestão municipal e de outras instituições da própria prefeitura para com a
Guarda. Ainda sobre isso, foi identificado que a modificação frente essa cultura de
desqualificação, principalmente no que refere as representações da população, vem sendo
repensada desde que a Guarda de Salvador/BA começou a ampliar os seu campo de atuação,
após passarem pelo processo de armamento (desde 2014).
O dado do armamento é extremamente pertinente já que nos próprios discursos dos
sujeitos apareceram que nem sempre a ação de armar a guarda municipal foi acolhida por
parte de algumas instituições, mas que essa discordância vem sendo cada vez mais diminuída
diante das possibilidades de atuações da guarda.
Capacitações e o Processo de Formação Continuada
Acerca do processo de formação os entrevistados elencaram que ao entrar na Guarda
Municipal no ano de 2007 eles passaram por um processo de capacitação e no ano de 2010
passaram por outro curso de complementação de carga horária. Ambos os cursos possuíram
disciplinas que versavam sobre direitos humanos, defesa pessoal, direito constitucional,
armamento, curso de primeiros socorros, questões acerca da interatividade com o público,
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direito penal, legislação da guarda municipal, matérias de abordagens, técnicas de segurança
para quem trabalha na rua, dentre outras temáticas.
Como os entrevistados pertencem ao grupo de operações especiais, destacaram que
para além dos processos de formação do ano de 2007 e 2010, também passaram por outro
processo no ano de 2014, referente a entrada no GOE.
No que refere a qualidade das atividades realizadas, os entrevistados consideraram que
os cursos dos anos de 2010 e 2014 foram satisfatórios. No entanto, seis entrevistados
afirmaram que o curso inicial do ano de 2007 acabou não atingindo o objetivo de formação.
Os motivos destacados nas falas foram: o curso não alcançou a carga horária prevista; não
existia nos discursos dos professores um consenso frente a atuação da guarda municipal; os
professores foram profissionais da segurança pública, logo não eram professores
especializados de algumas áreas; cursos sem coerência entre teoria e prática; bem como, os
cronogramas de algumas disciplinas não foram concluídos. Tais discordâncias podem ser
observadas nos discursos abaixo:
Os professores [...] estavam entrando em conflitos de opinião, onde
um dizia que a gente devia fazer x coisas e o outro na aula depois dizia
que a gente não podia fazer isso. (Entrevistado 03)
O curso ... quando a gente entrou na guarda ... foi um curso ... vamos
dizer assim ... furado [...] Tivemos um curso de mais ou menos um
mês, que não é um curso apropriado, vamos dizer assim ...
(Entrevistado 06)
Observe que a questão da dificuldade em construir a identidade profissional foi algo
que esteve acompanhando os entrevistados desde o processo de formação na entrada da
guarda municipal. Principalmente, por que os próprios professores formadores, representantes
da gestão municipal, não possuíam delimitada a função da guarda para o contexto da cidade
de Salvador/BA.
Com relação a existência de um processo de formação continuada, sete entrevistados
afirmaram que esse processo é precário, já que não existe um investimento efetivo por parte
dos órgãos responsáveis. Boa parte dos cursos que existem, para além do processo obrigatório
de capacitação, são realizados por meio de investimentos pessoais dos guardas municipais:
“Na verdade os cursos não são permanentes [...] nós mesmos que nos interessamos por curso
... se fosse de acordo com a instituição não teria” (entrevistado 06).
Quando questionados se participaram de algum curso que destacavam temáticas
relacionadas as questões de gênero e referentes ao próprio fenômeno da violência contra a
mulher, os sujeitos argumentavam que apesar de em alguns momentos já terem discutidos
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essas temáticas nos cursos de formação, tal feito foi realizado de uma maneira superficial. Os
discursos indicaram que os cursos geralmente trabalham com algumas temáticas relacionadas
as minorias, especificamente: questões raciais; homossexualidade e violência contra a mulher.
No entanto, os guardas argumentaram que a carga horária era pequena, já que geralmente
retiravam um único dia para trabalhar todas essas questões. Também foi mencionado que as
aulas poderiam ser mais dinâmicas, articulando a teoria com a prática: “Acredito que os
cursos de capacitação envolvendo mulher deveriam pensar em algo mais prático e não ficar
apenas no discurso. Não falava em conduta” (Entrevistado 05).
Aliás essas questões frente a articulação entre a teoria e a prática, foram as mais
pontuadas pelos entrevistados. Destacaram que a teoria foi passada descontextualizada.
Observou-se uma resistência por parte dos entrevistados em dialogar com as perspectivas
teóricas da teoria feminista. Inclusive, em alguns momentos a ideia do feminismo foi
deturpada, sendo comparada com uma alusão a superioridade feminina frente o universo
masculino: “Sei que tem que ter o respeito nas mulheres, mas só que ... o curso ... a palestra
que ela deu ... ela puxou muito para o feminismo dando a entender que a mulher pode tudo e o
homem não pode nada” (Entrevistado 03).
Tal comparação errônea possui inclusive respaldo nos discursos do senso comum. Já
que a própria sociedade, muitas vezes reproduz o discurso de que o feminismo seria a luta
pela superioridade feminina, ao invés de compreender que seria a luta pela igualdade entre
homens e mulheres.
Guarda versus Violência Contra a Mulher: a Invisibilidade Feminina
Os aspectos com relação a atuação da guarda frente ao fenômeno da violência contra a
mulher esbarrou nas próprias questões relacionadas ao papel da mulher dentro da guarda
municipal. Ao destacar os termos “invisibilidade feminina” no subtítulo do presente trabalho
estou denunciando a ausência de um olhar mais específico frente o universo feminino. Pois,
ao passo que a invisibilidade se faz presente dentro da própria instituição, também se faz
presente na atuação junto a sociedade.
Quando expresso a ideia da invisibilidade feminina dentro da própria instituição ela
está sendo colocada pelo simples fato da guarda municipal ainda ser um universo
extremamente masculinizado. Por consequência muitos valores machistas e sexistas foram
identificados nos discursos dos entrevistados, tanto dos homens, como da única mulher
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entrevistada. Tais valores respingaram na percepção frente a mulher e a violência sofrida,
como veremos adiante.
Considerando que a guarda municipal consiste em uma instituição responsável por
atuar conjuntamente na prevenção da violência não foi um dado surpresa o resultado de que a
grande totalidade dos profissionais que atuam aqui em Salvador/BA são homens. Esse é um
dado compartilhado por várias outras pesquisas que trabalham com o universo das instituições
de segurança pública, como policiais civis e militares (LOCATELLI;
BRUNETTA; OLIVEIRA; PICCININI, 2013; ROSA, 2012)
De acordo com os entrevistados, o efetivo de mulheres da guarda municipal de
Salvador não chegaria nem a 15% do total dos profissionais. Esses dados só reforçam os
estereótipos de gênero que durante anos estão sendo colocados na nossa sociedade e expressos
na divisão sexual do trabalho. Ou seja, homem enquanto aquele pertencente ao espaço público
e a mulher enquanto a detentora do espaço privado/doméstico, consequentemente seria um
“ser frágil” para conseguir dar conta das especificidades de uma profissão que a principal
função seria o combate a violência por meio do resguardo do patrimônio público.
Ao serem questionados acerca da atuação da mulher dentro da guarda municipal os
participantes destacaram que boa parte do efetivo de mulheres na guarda municipal trabalham
na parte administrativa e evitam o contato com atividades externas. Apesar dos dados
refletirem uma realidade pontual a partir de oito discursos é possível inferir a importância
acerca dos recortes de gênero na atuação da guarda municipal de Salvador/BA. Tal dado
também está coerente com outras pesquisas, já que a área administrativa estaria pertencente
ao espaço do privado e não colocaria a mulher em contato com situações que seriam
demandadas, até então para homens, a exemplo do conflito físico e armado.
Cabe salientar que os entrevistados colocam que a escolha por funções mais
administrativas é realizada pelas próprias mulheres: “Então é ... aqui se é respeitado a vontade
da mulher. Se ela quer ir para a rua se deixa ela ir para a rua, se ela prefere ficar no
administrativo é respeitado ela ficar no administrativo” (Entrevistado 03).
Quando questionados se já realizaram alguma intervenção relacionada ao foco da
violência contra a mulher, a grande maioria relatou que ao trabalhar em ambientes públicos já
interviram em brigas entre casais. Os discursos de uma maneira geral estavam engendrados
em uma lógica machista, reforçando a ideia de que muitas das mulheres que os guardas
tiveram contato estavam na verdade se aproveitando da situação e da lei Maria da penha para
incriminar o companheiro. O mais pertinente desse dado é que a grande totalidade dos
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guardas municipais citaram alguma situação que acabava por culpar a mulher pela violência
perpetrada pelo companheiro.
Foi no campo grande ... na praça da piedade.. é ...onde a gente foi
acionado por populares dizendo que tinha um homem espancando [...]
quando a gente chegou ele tava ainda agredindo a mulher ... a gente
encaminhou ele e ela para a delegacia . Só que quando chegou na
delegacia ela falou que não foi nada disso não que foi engano da
gente. (Entrevistado 06).
Nota-se que o fato da mulher não desejar formalizar a denúncia contra o companheiro
muitas vezes foi percebida por parte dos entrevistados como algo negativo e que reforçava a
ideia da culpabilização feminina pela violência sofrida. Os fatores que envolvem o
enfrentamento e a denúncia a situação de violência são complexos. Logo a mulher não desejar
formalizar a denúncia na delegacia especializada, não necessariamente quer dizer que ela não
queira romper a situação de violência. O fato é que por ser um fenômeno extremamente
complexo, não é possível pensá-lo a partir das relações de causa e efeito: o homem agrediu
fisicamente a esposa, logo a esposa irá separar.
Outro resultado importante refere-se ao conhecimento dos entrevistados da rede de
enfrentamento à violência contra a mulher. Os únicos serviços citados foram a Delegacia
Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) e o Centro de Referência à Mulher Loreta
Valadares. Sendo que apenas a DEAM foi realmente citada por todos os entrevistados. Um
dado preocupante já que para que ocorra efetivamente um atendimento integral para essa
mulher que está em situação de violência um dos pontos chaves seria o conhecimento por
parte dos profissionais dos serviços que podem ser úteis no atendimento.
Destaca-se que com relação ao ordenamento jurídico a totalidade dos entrevistados
possuem conhecimento frente a Lei Maria da Penha (11.340/2006). Como podemos observar
no discurso que segue: “Prestou (queixa)... porque a lei Maria da penha agora ... não precisa
da mulher prestar queixa. Se a gente já pegou agora ele já foi indiciado assim mesmo.”
(Entrevistado 06)
Já com relação a resolutividade da lei e dos serviços existiram discursos diversos.
Alguns entrevistados defendem que a lei Maria da Penha realmente funciona na prática, bem
como, existiram entrevistados que defenderam que os serviços de maneira geral não
disponibilizam um atendimento efetivo para essas mulheres.
Muitas querem até desvincular daquele companheiro, mas tem casos,
por exemplo, que ela vem do interior, não tem nenhum parente aqui,
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só tem ele o companheiro que sustenta a casa, aí toma as porradas dela
e quer procurar um serviço público para registrar e na minha opinião é
falho ... é muito falho seria uma coisa que deveria ser dada uma
maior atenção. Porque ... para onde é que ela vai? Quem vai sustentar
ela? Ela se afastou dela naquele primeiro dia. (Entrevistado 04)
Também apareceram no discurso questões relacionadas a masculinidade,
especificamente com relação aos homens que sofreram violência da companheira: “Eu já ouvi
fatos, não presenciei, de um homem foi na DEAM dar queixa contra a mulher e o delegado
zombar dele ‘você um homem forte a mulher fez isso em você, bateu em você’” (Entrevistado
03). Observe que a fala nada mais é do que o reforço aos estereótipos de masculinidades
preconizados pela sociedade: homem viril, detentor do poder. Esse é um tema bem delicado
no contexto dos estudos feministas, no entanto, o debate acerca das masculinidades e da
necessidade de serviços que pensem esses homens que perpetram violências, consiste em um
debate que já está sendo realizado em muitos contextos acadêmicos. Já que para pensarmos
uma cultura de paz frente a violência doméstica é necessário pensar para além dos dois polos:
masculino e feminino.
Conseguinte, quando foram problematizados quanto a atuação da guarda municipal no
enfrentamento à violência perpetrada nas mulheres, chamou a atenção a fala de dois
entrevistados ao mencionarem a atuação da guarda no município de São Paulo na Patrulha da
Lei Maria da Penha:
Atuação da guarda frente a mulher em situação de violência:
em são Paulo mesmo ... onde aqui eu andei observando ... a
Polícia Militar faz uma ronda para as mulheres que já foram
agredidas e prestaram queixas do marido. A Polícia Militar vai
na casa, procura saber como é que tá. Em são Paulo quem faz
é a guarda municipal. Aqui quem faz é a Polícia Militar.
(Entrevistado 04)
Um único entrevistado assumiu claramente que de fato a guarda municipal de
Salvador/BA ainda não estaria preparada para atuar com a temática da violência contra a
mulher: “A guarda não foi preparada para agir com a mulher [...] tem muito machista.
(Entrevistado 08).
Considerações Finais
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Considerando que a proposta apresentada aqui consiste em uma investigação pontual
frente à guarda municipal de Salvados/BA destaca-se mais uma vez a importância dessa
instituição para o enfrentamento ao fenômeno da violência contra a mulher.
Observou-se que ainda são pontuais as intervenções da guarda frente a perpetração da
violência. No entanto, também foi possível delimitar que a instituição possui uma
preocupação mínima para refletir acerca das questões teóricas que envolvem o fenômeno da
violência (mesmo que de maneira intimista). É possível chegar a conclusão de que a própria
atuação da guarda municipal ainda está sendo delimitada, justamente por ser uma instituição
nova no contexto de Salvador/BA. Uma das principais crises da Guarda consiste justamente
na de Identidade, já que existem dificuldades de delimitação efetivas frente a sua atuação.
Consequentemente essa dificuldade respinga na atuação frente às mulheres, já que não existe
uma atuação sistemática pensada frente a esse público.
Nessa lógica, defende-se a realização de trabalhos que continuem focalizando a
perspectiva da guarda municipal. Pois, estudos como a presente investigação são importantes
para esclarecer problemáticas de atuação. Bem como, para que seja possível ter uma
percepção mais clara não só das mulheres que são atendidas por via do contato de
profissionais da guarda municipal, mas também das mulheres que estão inseridas no quadro
de funcionários da guarda, pertencentes a um espaço extremamente masculino.
No mais, também indico estudos que comecem a focalizar a perspectiva da violência
sob o olhar do masculino, já que nos discursos dos entrevistados isso foi muito recorrente. Ao
problematizar o binômio vítima e agressor, culpabilizando a mulher pela violência sofrida, os
entrevistados verbalizam um discurso machista, mas também colocam situações reais. O que
demonstra a importância de ampliar o olhar da violência apenas sob a perspectiva feminina.
Principalmente, porque precisamos problematizar a cultura de violência que se instalou na
nossa sociedade, cultura essa que precisa ser pensada a partir dos diferentes sujeitos
envolvidos.
Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edição 70. 1994. 281 p.
BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Pacto Nacional pelo
Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres. Coleção Enfrentamento à violência contra
as mulheres. Brasília: Presidência da República, 2011. 68p.
12 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
CARREIRA, Denise; PANDJIARJIAN, Valéria. Vem pra roda! Vem pra rede! Guia de
apoio à construção de rede de serviços para o enfrentamento da violência contra a mulher. São
Paulo: Rede Mulher de Educação, 2003. 73p.
DATASENADO. Violência doméstica e familiar contra a mulher. Secretária de
Transparência, 2013. Disponível em: <
http://www.senado.gov.br/senado/datasenado/pdf/datasenado/DataSenado-Pesquisa-
Violencia_Domestica_contra_a_Mulher_2013.pdf >. Acesso em: 10 out. 2014.
IPEA, Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada. Violência contra a mulher: feminicídeos
no Brasil. 2013. Disponível em: <
http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/130925_sum_estudo_feminicidio_leilagar
cia.pdf >. Acesso em: 14 out. 2014.
LOCATELLI; BRUNETTA; OLIVEIRA; PICCININI. Mulheres na Polícia Civil: um olhar
sobre as relações de gênero e identidade. Gestão Contemporânea, Porto Alegre, ano 10, n.
14, p. 9-34, jul./dez. 2013
MINAYO, Maria Cecília de Souza. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em
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ROSA, Isabela de Oliveira. “Eu era o terceiro homem”: um estudo de gênero com
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Social, do Trabalho e das Organizações)—Universidade de Brasília, Brasília, 2012.
SILVEIRA, Lenira Politano da. Serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência. In:
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Municipal Guardians And The Action In The Facing Of Violence Against Women:
Necessary Dialogue
Abstract: The objective of this study was to analyze how the Municipal Guard of Salvador /
BA has been articulating its actions with the assistance to women in situation of domestic
violence. In order to fulfill the proposed objective, three specific objectives were established:
to list the main actions developed by the municipal guard, as well as the main limits and
difficulties faced; Understand how the process of formation of the municipal guard takes
place; And finally, to investigate the actions of the municipal guard against women in
situations of domestic violence. Semi-structured interviews were carried out with eight
municipal guards belonging to the Special Operations Group (GOE); after the analysis of the
interviews the results were discussed in three thematic categories: Municipal Guard:
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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
performance, limits and challenges; Training and the Continuing Training Process; Guard
versus Violence Against Women: Feminine Invisibility. Considering that the proposal
presented here is a one-off investigation of the municipal guard of Salvados / BA, the
importance of this institution is once again highlighted in the face of violence against women.
It is concluded that the interventions of the guard against the perpetration of violence are still
punctual. However, it was also possible to delimit that the institution has a minimum concern
to reflect on the theories issues that involve the phenomenon of violence, even in an intimate
way.
Keywords: Municipal Guard, Violence Against Women, Maria da Penha Law.