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1 quarteto à deriva cia. les commediens tropicales guerra sem batalha ou agora e por um tempo muito longo não haverá mais vencedores neste mundo apenas vencidos

GUERRA sem batalha

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programa da peça: GUERRA sem batalha ou agora e por um tempo muito longo não haverá mais vencedores neste mundo apenas vencidos tradução da peça MAUSER, de Heiner Müller, feita por Eduardo Socha textos de Cássio Pires, Kil Abreu, Rubens Velloso, quarteto À Deriva, Michele Navarro e Carlos Canhameiro

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quarteto à deriva

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mundo

apenas vencidos

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10Muitos anos de vidae ainda é bem provável seguiremos em guerra (sem batalha?)

09Muitas felicidadessomos mais que um grupo de teatro somos um plágio de muitos e ainda somos uma banda (de garagem de cinema pornô)

08Parabéns pra vocêNósconciliados com a destruição para sempre.

07Nessa data queridaAmanhã vamos mudar o mundo e ver[ ]ter na rua.

06Rá tim bumJá não somos jovens jovens jovens ainda assim teremos filhos.tivemos um drama: Pa(r)to Selvagem - viva a tecnologia queira você ou não.

05É hora Segundo d.Pedro segundo (3x é hora) a história já era um plágio enquanto dançávamos Dancing Queen no palco.

04É piqueDepois da Morte ainda teremos filhos(3x é pique) depois da última quimera.

michele navarro

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03Com quem será?

Augusto (dos Anjos)primeiro

Seu Pedrosegundo

TalvezO imperador do Acre

terceiro

02É pica

Seu pintoSeu futuro do Brasil

01É pica

Invertemos a ordem. Ou melhor, mais (ou menos) do que isso. Deixa pra lá. Vá ao teatro.

Faça sexo não veja novela.Não veja a veja.

00É pica

A Cia les commediens Tropicales é uma Chalaça, e sempre será algum tempo depois (bem depois?) não haverá vencedores mas

apenas vencidos mesmo nesse mundo. Estamos tentando remover a relva para que o verde permaneça e

nem sabíamos porque éramos tão jovens.

Discurso.Discurso.Discurso.

michele navarro

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mauser

heiner müller cássio piresquarteto à deriva

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fricções nestadécada

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faça amor e vá para a guerra

o plágio da cópia autorizada da peça roubada

rubens velloso carlos canhameiro kil abreu

notas e perguntaspara um encontro com o fracasso

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MAUSERDE HEinER MÜLLER

eduardo Sochatradução

CoroVocê lutou no fronte da guerra civilO inimigo não encontrou fraqueza alguma em vocêNós não encontramos fraqueza alguma em você.Agora, você mesmo é uma fraquezaQue não podemos deixar o inimigo encontrar em nós.Você levou à morte os inimigos da revoluçãoNa cidade de Witebsk, sob nossas ordens, Sabendo que o pão de cada dia da revoluçãoNa cidade de Witebsk como em outras cidades,É a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneça

Revisão

MARINA TRANJAN

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Nós matamos os inimigos com a sua mão.Mas em uma certa manhã na cidade de WitebskVocê mesmo acabou matando com a sua mãoNão os nossos inimigos e não sob as nossas ordens.E agora você precisa ser morto, você mesmo é um inimigo.Agora faça seu trabalho no último lugarQue a revolução te reservouE do qual você não vai sair de péNa parede, que será sua última paredeComo naquele outro trabalho que você faziaSabendo que o pão de cada dia da revoluçãoNa cidade de Witebsk como em outras cidades,É a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneça.

AEu fiz meu trabalho.

CoroAgora faça o seu último.

AEu matei pela revolução.

CoroAgora morra por ela.

ACometi um erro.

CoroVocê é o erro.

AEu sou um ser humano.

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CoroO que é isso.

ANão quero morrer.

CoroNão estamos perguntando se você quer morrer.A parede às suas costas é a sua última paredeÀs suas costas. A revolução não precisa mais de você.O que ela precisa é da sua morte. Mas você se recusa a dizer SIM Ao NÃO que foi decidido sobre vocêE por isso não está fazendo seu trabalho.Diante dos fuzis da revolução que precisa da sua morteAprenda essa última lição. Sua última lição é:Você, que está aí na parede, é o seu inimigo e também o nosso.

ANas prisões desde Omsk até OdessaFoi escrito o texto na minha carneFoi lido sob os bancos escolares e sobre as latrinasPROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOSCom punhos e armas, com a ponta da bota e com pontapés,Ao filho do pequeno-burguês com seu próprio samovarPreparado para uma carreira eclesiásticaNas tábuas do assoalho gastas de tanto ajoelhar diante do ícone.Mas eu escapei a tempo desse buraco.Nas reuniões, nas manifestações, nas grevesMassacrado por cossacos ortodoxosTorturado por funcionários preguiçososNão aprendi nada sobre a vida após a morte.Na época do matar ou morrer,Aprendi a matar em prolongadas lutas, contra emboscadas. Dizíamos: quem não quer matar, também não deve comerLançar a baioneta sobre um inimigoSeja ele cadete, oficial ou camponês que não entendeu nada

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Dizíamos: esmagar cabeças e dar tirosé um trabalho como qualquer outro.

A (Coro)Mas em certa manhã na cidade de WitebskCom o estrondo da batalha muito próximo, com a aprovação do partido,A revolução me deu as ordensDe conduzir o tribunal da revoluçãoNa cidade de Witebsk, que leva os inimigos da revolução à morteNa cidade de Witebsk.

CoroVocê lutou no fronte da guerra civilO inimigo não encontrou fraqueza alguma em vocêNós não encontramos fraqueza alguma em você.Abandone o fronte e ocupe o lugarNo qual a partir de agora a revolução precisa de você Até o dia em que ela precisar de você em outro lugar.Guie nossa luta atrás de nós,Leve os inimigos da revolução à morte.

A (Coro)E eu estava de acordo com as ordensSabendo que o pão de cada dia da revoluçãoÉ a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneçaDe acordo eu estava com as ordensQue a revolução havia me dadoCom a aprovação do partido no estrondo da batalha.E esse matar era um matar diferenteE era um trabalho como nenhum outro.

CoroSeu trabalho começa hoje. Quem fazia o trabalho antes de vocêDeve ser morto antes de amanhã, ele mesmo é um inimigo.

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A (Coro)Por que ele.

BDiante do meu revólver três camponesesInimigos da revolução por ignorânciaSuas mãos, calejadas de tanto trabalhar,Estão bem amarradas com cordas às suas costasMinha mão está amarrada ao revólver sob as ordens da [revoluçãoMeu revólver apontado para suas nucas.Os inimigos deles são meus inimigos, eu sei dissoMas os que estão diante de mim, com o rosto virado para a [pedreiraNão sabem disso, e eu que sei dissoNão tenho outro corretivo para a ignorância delesA não ser a bala. Eu levei à morteMeu revólver sendo minha terceira mãoOs inimigos da revolução na cidade de WitebskSabendo que o pão de cada dia da revoluçãoÉ a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneçaSabendo que a revolução mata com as minhas mãosJá não sei mais disso, não consigo mais matar.Eu retiro a minha mão das ordensQue a revolução me deuEm certa manhã na cidade de WitebskCom a aprovação do partido no estrondo da batalha.Eu corto as cordas das mãosDos nossos inimigos, que trazem as marcasDe seus trabalhos, como se fossem meus semelhantes.Eu digo: os inimigos de vocês são nossos inimigosEu digo: voltem ao trabalho.

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Coro (os Atores dos três CAmponeses)E eles voltaram ao trabalhoTrês inimigos da revolução, sem terem aprendido nada.Quando ele retirou a mão dele das ordensQue a revolução havia lhe dadoEm certa manhã na cidade de WitebskCom a aprovação do partido no estrondo da batalhaEssa mão era mais uma em volta da nossa garganta.Pois a sua mão não é a sua mãoAssim como a minha mão não é a minha mãoAntes de a revolução ter triunfado completamenteNa cidade de Witebsk como em outras cidades.Pois a ignorância pode matarAssim como o aço e a febrePorém o conhecimento não basta, a ignorânciaPrecisa acabar totalmente, e não basta matarMatar é uma ciênciaE precisa ser aprendida, para que possa acabarPois o natural não é naturalMas precisamos arrancar a relvaE precisamos vomitar o pãoAté que a revolução tenha triunfado completamenteNa cidade de Witebsk como em outras cidadesPara que o jardim floresça e a fome desapareça.Quem coloca a si mesmo como propriedade de siÉ um inimigo da revolução assim como outros inimigosPois nosso semelhante não é nosso semelhanteE nós não somos nossos próprios semelhantes, a própria [revoluçãoNão coincide consigo mesma, apenas o inimigo comUnhas e dentes, baioneta e metralhadoraDesenha em sua imagem viva os seus traços horríveisE suas feridas cicatrizam em nosso rosto.

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BPara que matar e para que morrerSe o preço da revolução é a revoluçãoAqueles que devem ser libertados são o preço da liberdade.

AEle gritava isso e outras coisas contra o estrondo da batalhaQue tinha aumentado e aumentava ainda mais.Milhares de mãos havia em volta de nossa gargantaContra a dúvida sobre a revolução não haviaOutro meio a não ser a morte daquele que duvidava.E eu não tinha olhos para suas mãosQuando ele estava diante do meu revólver, com o rosto virado para [a pedreiraTanto fazia se estavam calejadas ou não de tanto trabalharElas estavam, isso sim, bem amarradas com cordasE nós o matamos com a minha mãoSabendo que o pão de cada dia da revoluçãoÉ a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneçaEu sabia disso, matando outros em outra manhãE ainda outros mais em uma terceira manhãE eles não tinham mãos nem rostoApenas o olho, com o qual eu olhava para eles.E a boca, com a qual eu falava para eles,Era o revólver, e a minha palavra era a balaE eu não me esqueci disso quando eles gritaramQuando meu revólver os arremessou na pedreiraInimigos da revolução para outros inimigosE era um trabalho como qualquer outro.Eu sabia que quando se atira em um ser humanoDele escorre sangue como qualquer animalHá pouca diferença entre um morto e outroE quanto mais tempo passa menor fica a diferença. Mas o ser [humano não é um animal:Na manhã do sétimo dia, eu olhava para o rosto deles

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As mãos bem amarradas com cordas às suas costas,Trazendo as marcas de seus diversos trabalhosEnquanto aguardavam, o rosto virado para a pedreira,A morte sair do meu revólver, e a dúvida encontrava lugarEntre o dedo e o gatilho, com o peso Dos assassinados de sete manhãsSobre as minhas costas, que carregam o jugo da revoluçãoPara que todos os jugos sejam rompidosE minha mão, amarrada ao revólver Sob as ordens da revolução que me foram dadasEm certa manhã na cidade de WitebskCom a aprovação do partido no estrondo da batalhaLevar à morte os seus inimigosPara que não seja mais necessário matar, e eu dava o comandoNessa manhã assim como na primeira manhãMORTE AOS INIMIGOS DA REVOLUÇÃO E levei à morte, mas minha voz Deu o comando como se não fosse a minha voz e minha mãoLevou à morte como se não fosse a minha mãoE o matar era um matar diferenteE era um trabalho como nenhum outroE no fim da tarde eu vi meu rostoQue me olhava não com os meus olhosNo espelho da parede, que havia rachado inúmeras vezesCom o bombardeio da cidade, que havia sido conquistada [inúmeras vezesE à noite eu não era um homem, com o pesoDos assassinados de sete manhãsMeu sexo, o revólver, que levou à morteOs inimigos da revolução, com o rosto virado para a pedreira.

A (Coro)Por que eu. Livre-me dessas ordensPara as quais eu sou muito fraco.

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CoroPor que você.

AEu lutei no fronte da guerra civilO inimigo não encontrou fraqueza alguma em mimVocês não encontraram fraqueza alguma em mim.Agora, eu mesmo sou uma fraquezaQue não podemos deixar o inimigo encontrar em nós.Eu levei à morte na cidade de WitebskOs inimigos da revolução na cidade de WitebskSabendo que o pão de cada dia da revoluçãoÉ a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneçaEu não me esqueci disso na terceira manhãNem na sétima. Mas na décima manhãEu já não sei mais isso. Matar e matarE um de cada três talvez não fosse culpado, aqueleQue está diante do meu revólver, com o rosto virado para a [pedreira.

CoroNessa luta que nunca terminaráNa cidade de Witebsk como em outras cidadesNem com a nossa vitória nem com a nossa derrotaCada um de nós executa com duas mãos fracasO trabalho de duas mil mãos, mãos destruídasMãos amarradas com correntes e cordas, mãosDecepadas, mãos em volta da nossa garganta.Temos milhares de mãos em volta da nossa gargantaNenhum fôlego para se perguntar sobre a culpa ou sobre a [inocência,Cada mão em nossa garganta, ou ainda sobre a origem,Se ela está ou não está calejada de tanto trabalharSe ela envolve a miséria em torno do nosso pescoço e aIgnorância sobre a raiz da miséria

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Ou o temor diante da revolução, que ela arranca pela raiz. Quem é você, que se acha diferente de nós Ou que se acha especial, você que é feito de suas fraquezas.Esse eu que fala com a sua boca, é um outro bem diferente de você.Até a revolução triunfar completamenteNa cidade de Witebsk como em outras cidadesVocê não será propriedade de você. Com a sua mãoA revolução mata. Com todas as mãosCom as quais a revolução mata, você também mata.Sua fraqueza é a nossa fraquezaO conhecimento de si mesmo é a brecha em sua consciênciaQue é uma brecha em nosso fronte. Quem é você.

AUm soldado da revolução.

CoroVocê quer entãoQue a revolução te livre das ordensPara as quais você é muito fraco, as ordens que precisam ser cumpridasPor quem quer que seja.

A (Coro)Não.E o assassinato continuava, o rosto virado para a pedreira.Na manhã seguinte, diante do meu revolver, um camponêsComo diante do meu revolver um semelhante dele em outras manhãsComo diante de mim um semelhante meu diante de outros [revólveresSuando na nuca de tanto medo: quatro combatentes da [revoluçãoEle denunciou ao inimigo nosso e deleSuando na nuca de tanto medo, enquanto estava parado diante de outros revólveres.

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O seu semelhante foi mortoPelo meu semelhante, durante dois mil anosCom roda, forca, corda, corrente, chicote, katorgaPor um semelhante do meu inimigo, que é inimigo deleE meu revólver apontado agora para a sua nucaEu roda, forca, corda, corrente, chicote, katorgaEu diante do meu revólver, rosto virado para a pedreiraEu meu revólver apontado para minha nuca.Sabendo que com minha mão a revolução mataAcabando com roda, forca, corda, corrente, chicote, katorgaE não sabendo disso, diante do meu revólver um ser humanoEu entre a mão e o revólver, entre o dedo e o gatilhoEu brecha em minha consciência, em nosso fronte. CoroSua ordem não é matar seres humanos, mas simInimigos. Pois não se conhece o ser humano.Nós sabemos que matar é um trabalhoMas o ser humano é mais do que o seu trabalho.Até a revolução triunfar completamenteNa cidade de Witebsk como em outras cidadesNão saberemos o que é um ser humano.Pois ele é nosso trabalho, o desconhecidoAtrás das máscaras, o enterrado no estercoDe sua história, o verdadeiro desconhecido sob a lepraO desconhecido que vive nas petrificaçõesPois a revolução arrebenta suas máscaras, curaSua lepra, lava sua imagem do esterco endurecido De sua história, o ser humano, comUnhas e dentes, baioneta e metralhadoraErguendo-se da sucessão das geraçõesRompendo seu sangrento cordão umbilicalNo raiar do verdadeiro início reconhecendo a si mesmoUm reconhecendo o outro em sua diferençaE do ser humano se desenterra pela raiz o ser humano.O que vale é o exemplo, a morte não significa nada.

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AMas no estrondo da batalha, que tinha aumentadoE aumentava ainda mais, eu estava com as mãos [ensanguentadasSoldado e baioneta da revoluçãoE eu clamei com a minha voz por uma certeza.

A (Coro)Quando a revolução triunfar, matar não será necessário.A revolução vai triunfar. Quanto tempo ainda é necessário.

CoroVocê sabe o que nós sabemos, nós sabemos o que você sabe.A revolução vai triunfar ou o ser humano vai deixar de existirE desaparecerá em uma progressiva humanidade.

AE eu ouvi a minha voz dizerNessa manhã como em outras manhãsMORTE AOS INIMIGOS DA REVOLUÇÃO e eu viAquele quem eu era matar uma coisa de carne sangueE de outras matérias, sem se perguntar sobre a culpa ou sobre a [inocênciaSem se perguntar pelo nome, sem perguntar se era inimigoOu não era inimigo, e aquela coisa não se movia maisMas aquele quem eu era não desistia de matar essa coisa.Ele dizia: / (Coro) Eu me livrei do pesoNas minhas costas os mortos não me sobrecarregam maisUm ser humano é uma coisa, na qual se atiraAté que o ser humano se levante dos escombros do ser humano. /E enquanto ele não parava de atirarAtravés da pele sendo arrebentada na carne ensanguentada, em cima dos ossos estilhaçados, ele juntava os restos do cadáver com os pés.

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A (Coro)Eu carrego embaixo das botas aquilo que eu mateiEu danço em cima dos meus mortos com passos bem marcadosPara mim não basta matar aquilo que deve morrerPara que a revolução triunfe e para que não se precise matarSimplesmente isso não deve mais existir, mais nadaE desaparecido da face da terraPara os que vão chegar, uma mesa limpa.

CoroOuvimos seus berros e vimos o que ele tinha feitoNão sob nossas ordens, e ele não parava de gritarCom a voz do ser humano que devora o ser humano.Então soubemos que seu trabalho o havia consumidoE seu tempo havia passado e o levado emboraUm inimigo da revolução como outros inimigosE não como outros, mas sim como seu próprio inimigo tambémSabendo que o pão de cada dia da revoluçãoÉ a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneçaMas ele se livrou da sua obrigaçãoQue deveria ter mantido até a revolução triunfarSobre suas costas os mortos não lhe pesam maisEsse mortos incômodos até a revolução triunfarMas sua obrigação era seu despojoPor isso a revolução não tinha mais lugar para eleE ele mesmo não tinha mais nenhum outro lugarA não ser na frente dos fuzis da revolução.

ANão antes de terem retirado de mim o meu trabalhoE tirado o revólver da minha mãoE meus dedos terem se curvado como se ainda estivessem [segurando a armaDiferente de mim, eu vi o que tinha feitoE não antes de terem me levado embora eu ouvi

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A minha voz e mais uma vez o estrondo da batalhaQue tinha aumentado e aumentava ainda mais.

A (Coro)Meus semelhantes agora me levam para a paredeE eu que entendo isso, não entendo isso.Por que.

CoroVocê sabe o que nós sabemos, nós sabemos o que você sabe.Seu trabalho foi sangrento e como nenhum outroMas ele precisa ser feito como qualquer outro trabalhoPor quem quer que seja.

AEu fiz meu trabalho. Vejam a minha mão.

CoroVemos que sua mão está ensanguentada.

AComo não.E mais alto do que o estrondo da batalha foi o silêncioNa cidade de Witebsk que durou um instanteE mais longo do que a minha vida foi esse instante.Sou um ser humano. O ser humano não é uma máquina.Matar e matar, a mesma coisa após cada morteEu não conseguia. Deem-me o repouso da máquina.

CoroAté a revolução triunfar completamenteNa cidade de Witebsk como em outras cidadesNós não saberemos o que é um ser humano.

AEu quero saber isso aqui e agora. PerguntoNessa manhã na cidade de Witebsk

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Com as botas ensanguentadas em direção a meu último destinoQuem é conduzido para a morte, quem não tem tempoCom meu último fôlego aqui e agoraPergunto à revolução sobre o ser humano.

CoroVocê pergunta cedo demais. Não podemos te ajudar.E a sua pergunta não ajuda a revolução.Ouça o estrondo da batalha.

AEu só tenho um tempo.Por trás do estrondo da batalha como uma neve negraO silêncio me aguarda.

CoroVocê morre apenas uma morteMas a revolução morre muitas mortes.A revolução tem muitos tempos, nunca o suficiente. O ser humano é mais do que o seu trabalhoOu ele não existirá. Você já não existePois o seu trabalho te consumiuVocê deve desaparecer da face da terra.Aquele sangue com o qual você sujou a mãoQuando ela era mão da revoluçãoPrecisa ser lavado com o seu sangueEm nome da revolução, que necessita de todas as mãosSó não mais da sua.

AEu mateiSob as ordens de vocês.

CoroE não sob nossas ordens.Entre o dedo e o gatilho, o instante

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Era o seu tempo e o nosso. Entre a mão e o revólver, o intervaloEra o seu lugar no fronte da revoluçãoMas quando sua mão coincidiu com o revólverE você coincidiu com o seu trabalhoE deixou de ter consciência deleDe que esse trabalho precisa ser feito aqui e agoraPara que ninguém mais precise fazê-loO seu lugar era uma brecha no nosso fronte E para você não há mais lugar no nosso fronte.É terrível o hábito, mortal a facilidadeO passado habita em nós com muitas raízes Que devem ser arrancadas juntamente com todas as raízesSobre as nossas fraquezas se erguem os mortosQue devem ser enterrados mais uma vez e sempre mais uma vezCada um de nós precisa desistir de si próprioMas não devemos desistir uns dos outros.Você é aquele um e você é o outroQue você dilacerou embaixo da sua botaAquele que te dilacerou embaixo da sua botaVocê desistiu de você, um do outroA revolução não desiste de você. Aprenda a morrer.O seu aprendizado faz aumentar a nossa experiência.Morra aprendendo. Não desista da revolução.

AEu me nego. Eu não aceito a minha morte.A minha vida pertence a mim.

CoroSua propriedade é o nada.

A (Coro)Eu não quero morrer. Eu me jogo no chão.Eu me seguro firme na terra com todas as mãos.Eu mordo forte essa terra com os dentesEssa terra que eu não quero abandonar. Eu grito.

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Coro (A)Nós sabemos que morrer é um trabalho.O seu medo pertence a você.

A (Coro)O que existe depois da morte.

Coro (A)Ele ainda perguntava e já se levantava do chãoSem mais gritar, quando então nós respondemos a ele:Você sabe o que nós sabemos, nós sabemos o que você sabeE a sua pergunta não ajuda a revolução.Quando a vida for uma respostaTalvez ela seja permitida. Mas a revolução precisaQue você diga SIM à sua morte. E ele não perguntou mais nadaApenas foi à parede e deu o comandoSabendo que o pão de cada dia da revoluçãoÉ a morte de seus inimigos, sabendo queAinda precisamos arrancar a relva para que o verde permaneça.

A (Coro)MORTE AOS INIMIGOS DA REVOLUÇÃO.

MAUSER, escrita em 1970 como a terceira peça de uma série de experiências, da qual a primeira peça foi PHILOKTET (FIloctetes) e a segunda DER HORATIER (O Horácio), pressupõe e ao mesmo tempo critica a teoria e prática da peça didática de Brecht. MAUSER, variação sobre um tema do romance DER STILLE DON, de Sholokhov, não é uma peça de repertório; o caso extremo não é tema, mas exemplo no qual se manifesta o rompimento do continuum da normalidade; a morte, que o teatro do indivíduo transfigura na tragédia ou recalca na comédia, uma função da vida, tratada como

obs

erva

ção

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uma produção, um trabalho entre outros, organizado pelo coletivo e organizando o coletivo. PARA QUE ALGO APAREÇA ALGO DEVE SUMIR [.] A PRIMEIRA FIGURA DA ESPERANÇA É O MEDO [.] A PRIMEIRA APARIÇÃO DO NOVO É O TERROR. A apresentação para o público é possível quando se possibilita ao público controlar/verificar tanto a encenação no texto quanto o texto na encenação, por meio de uma leitura conjunta da parte do coro ou da parte do primeiro papel (A), ou ainda, da parte do coro através de um grupo de espectadores e da parte do primeiro papel através de um outro grupo de espectadores, de modo que aquilo que não está sendo lido em conjunto no texto [que consta no programa da peça] se torna irreconhecível, ou ainda, outras escolhas; [a exibição para o público] é possível quando as reações do público forem controladas/verificadas pelo descompasso entre texto e encenação, pela não identidade entre aquele que fala e aquele que interpreta [entre ator e papel]. A divisão do texto apresentada aqui é um esquema variável, sendo que a forma e o grau das variantes resultam de uma decisão política que deverá ser tomada de acordo com cada caso. Exemplos de possíveis variantes: o coro coloca um intérprete do primeiro papel (A1) à disposição do primeiro papel, para determinadas partes; todos os atores do coro, um após o outro ou ao mesmo tempo, interpretam o primeiro papel; o primeiro papel assume determinadas partes do coro, enquanto A1 o interpreta. Nenhum ator/papel pode substituir outro diretamente. Experiências só são repassadas de modo coletivo; o treinamento da habilidade (individual) para realizar experiências é uma função da encenação. O segundo papel (B) é representado por um ator do coro que, depois de seu assassinato, volta ao seu lugar no coro. O uso de recursos teatrais deve ser visível; adereços, partes do guarda-roupa, máscaras, produtos de maquiagem etc, devem estar no palco. A cidade de Witebsk representa qualquer local onde uma revolução foi ou será forçada a matar seus inimigos.

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quarteto à deriva

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Dez anos à Deriva, é possível?

Do náufrago espera-se que busque um porto, um lugar de sobrevivência, repouso. Ânsias de identidade.

Mas este grupo de quatro músicos – percussão, teclado, sopro e corda – há dez anos avista terras, entrevê e revê maravilhas, respira frescos ares. Sem nunca aportar. Sem desistir. Sem esquecer a procura em que estão metidos. Na água mesmo, traça um caminho que não se apaga. Como? E por quê?

O problema, para eles, esteve posto desde o início, de todos os lados: orientar-se em meio à contemporaneidade. Desenvolver uma linguagem, semovente, neste tempo que dissolve ou fragmenta, furiosamente, toda linguagem. Alcançar um pensamento artístico, móbile, em época avessa aos cansaços do pensamento. Intuir um futuro, reter um passado, sem se aprisionar. Conhecer, na arte, sua própria liberdade. Humanizar-se.

Assustadora tarefa, sempre. Deliciosa tarefa. Por isso, quem ouve sua música há de perceber um fino equilíbrio. Não o equilíbrio pronto, dos materiais já construídos. Um equilíbrio de ventos e águas, como na linha do horizonte em mar aberto, refluxo de azuis, imensidão oferta aos sentidos e inteligências do homem. Equilíbrio soprando fresco entre a música meditada, rigorosa, e um lirismo guiado por pressentimentos, louco, difícil, pungente. Equilíbrio teso em arco, entre a fruição do ouvir e a exigência ao ouvido, posta, renovadamente imposta. Equilíbrio obstinado, percutido a todo instante, entre o som simplesmente imaginado, anterior a todo gesto, e a massa sonora de repente, vibrante, presença. Equilíbrio aos poucos dedilhado, entre a música para si, pura expressão, puro querer, e a música para os outros, para além, generosa em diluição.

tiago tranjan

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Equilíbrio de silêncios, como o das ondas.

Equilíbrio enfim – se equilíbrio é – entre o que duramente se aprendeu e o que se desaprende, dia a dia.

Já no começo do século XX, esse mestre da contemporaneidade que foi Schoenberg reclamava: “Nosso tempo busca muito. Mas encontrou, antes de tudo, uma coisa: o conforto”. Conforto também de ideias, principalmente de ideias. Certeiro diagnóstico, implacável, que nos impressiona e nos arrasta. Mas nós também lutamos. E então percebo: eis por que é tão prazeroso, tão valioso, penetrar o mundo sonoro que, À Deriva nestes dez anos, o grupo vem oferecendo a quem tem a sorte de ouvir. O conforto preguiçoso não está onde eles estão. Já não estão. Vão traçando um caminho pela água. Que de bom, não se apaga.

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à deriva porque sempre em partida antes mesmo de chegar

promíscuo porque se deixa cativar e seduzir por outras artes, parcerias, ideias, sementes, núcleos... porque não se contenta em cultivar somente seu próprio canteiro, mas quer povoar o universo

em floresta

inclassificável porque não responde a estéticas, filosofias ou correntes: mas a impulsos, desejos e necessidades vitais

vira- lata porque não tem pedigree, grife, sobrenome, marca, rótulo, carimbo, selo de garantia

feio porque não persegue o infinito

poluído porque faz com o que é resto, sobra, lixo, com o que não interessa

infatigável porque mais vale um pássaro voando que dois na mão

inútil porque compra guerras perdidas, projetos absurdos, causas impossíveis

multiplicando suas raízes ao longo do seu percurso de existência, como a hera que expande seus ramos por onde toca

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Estamos completando 10 anos juntos, mas antes de 2011 havíamos experimentado apenas individualmente o fazer musical para teatro.

No final daquele ano, a cia lct nos convidou, enquanto quarteto, para que realizássemos juntos essa Guerra Sem Batalha. O curioso do convite é que não era para que compuséssemos e gravássemos a música da peça e sim para que participássemos juntos da criação de um espetáculo em que essas duas linguagens pudessem dialogar e se alimentar mutuamente, sem hierarquias. Ninguém, àquela altura, fazia muita ideia de para onde isso podia nos levar.

Um pouco depois vieram outros convites - cia Auto-Retrato, espetáculo Origem Destino, Cia Estrela D’Alva, espetáculo Ulisses Molly Bloom: Dançando para adiar e Experimento Finnegans – que, embora de núcleos muito diferentes, traziam na essência esse mesmo desejo de compartilhar o processo criativo. De repente as parcerias com teatro, numa perspectiva horizontal e contando com a performação compartilhada em tempo real, no palco ou na rua, viraram rotina.

De certa forma, isso ainda nos surpreende. Quando nos perguntamos o porquê de esses diferentes grupos terem olhado para o À Deriva e ter lhes ocorrido que desenvolver conosco um trabalho colaborativo poderia dar certo, imaginamos que a explicação deve se relacionar à abertura propositiva de nossa música. As pessoas costumam achar que ela é especialmente sugestiva de imagens poéticas e/ou de conteúdos narrativos/expressivos que a transcendem. Nos parece também que um ponto de contato entre as três companhias que nos convidaram é o desejo de explodir o teatro, de ampliar as possibilidades que essa linguagem tem oferecido, no cenário contemporâneo, tanto para o espectador quanto para o performador. Compartilhamos o gosto de expandir as fronteiras, o desafio de experimentar novos caminhos.

Mesmo sabendo que os novos caminhos, via de regra, não são facilmente desbravados. A vantagem do À Deriva é que a gente não

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se impõe a necessidade de navegar em linha reta. Não precisamos necessariamente ligar dois pontos. No longo e dolorido processo que atravessamos ao lado da cia lct, acabamos preferindo ficar com o aceite das contradições. Aceitar é também um movimento.

Dez criadores, juntos, acabamos vivenciando no processo e dando existência concreta, na múltipla superfície de eventos que se tornou esse espetáculo, a uma série de equilíbrios provisórios, mais ou menos precários, entre o que é próprio do indivíduo e o que é do coletivo; entre o que é da ordem do desejo humanista e o que suscita a violência revolucionária; o que é do estético e o que é do político; o que é a busca de uma totalidade integrada e o que é sobreposição de fragmentos; o que é da música e o que é do teatro, da dança, da performance ou das artes visuais; do som da palavra, do som sem palavra e da palavra sem som; do planejado e do que emerge ao acaso; da pura imagem e da narrativa; do que nasce no gesto criativo do artista e do que brota na subjetividade de quem frui.

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Fric

ções

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da (Divagações sobre propostas para o texto e a cena a partir dos 10 anos do LCT)

cássio pires

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“TERRoR E MISéRIA” (2003)

Vi a peça em 2004. Era a clareza. Há, no texto de Brecht, situação dramática e, logo, personagem, espaço e tempo precisamente delimitados. Tudo isso ia para a cena. Era um teatro de representação. Brecht pensava sobre os efeitos do nazismo na Alemanha dos anos 1930. Quando Brecht escreveu o texto, ele falava de uma questão específica em um contexto específico. Remontado em outro tempo e lugar, o que era específico, pontual e direto, tornava-se um paralelo: a turma da UNICAMP mandava um recado. Há, no mundo de agora, algo que “é como” aquele mundo em que Brecht viveu. O paralelo não se opõe à clareza: ele apenas converte um enunciado direto em um enunciado indireto. Naquele primeiro momento, em que talvez o LCT ainda não fosse exatamente o LCT, mas o seu feto, eles quiseram significar claramente. “Terror e Miséria” era grande teatro. Os comentaristas a trataram como bom teatro universitário.

“MAL NEcESSáRIo” (2003)

Era uma espécie de pastiche deliberado de Beckett, que eu havia escrito em um final de semana, sem ter muita clareza sobre as razões que me levaram a escrevê-lo. Foi montada na II Mostra de Dramaturgia Contemporânea do Teatro Popular do SESI. Foi a primeira experiência que tive de ver um texto meu ser encenado em meios profissionais. Nem a experiência fundadora dos Les Commediens, nem a minha seriam balizas do que faríamos dali em diante. Sempre se detectam formas embrionárias que caracterizarão quaisquer obras em qualquer experiência original, mas o certo é que nossos passos seguintes contemplaram mudanças significativas em relação a essas primeiras experiências.

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“GALvEz”, “cHALAçA”, “QUIMERA” (2004-2007)

Nessas peças, a matriz do espetáculo já não é mais um texto teatral, mas romances (Márcio de Souza, Torero, Ana Miranda). A estrutura dramática e o dialogismo davam lugar a uma forma textual mais aberta, em que narrativas, formas líricas e breves diálogos se alternam sem encadeamento rigoroso. Agora, o texto constitui a cena na mesma medida que a cena constitui o texto. A encenação já não era mais um meio de materializar as circunstâncias dadas pelo texto. Suas escolhas a ele diziam respeito, mas o superavam também. Não havia mais um “espaço ficcional” a ser representado, mas antes o espaço da encenação. Não havia atores identificados com personagens. Havia atores mencionando figuras históricas. Essas peças eram três mergulhos sob três pontos de vista no século XIX brasileiro. Perguntar sobre o século XIX era perguntar sobre nossa formação e esses eram enunciados diretos. Os Les Commediens perguntavam debochando. Faziam perguntas de historiadores, mas não se colocavam como tais. Eram comediantes colocando em cena seus incômodos sobre a História.

“PERíMETRo”, “PARA UM bANHo DEPoIS DA TARDE”, “MAIS UM”

(2003-2006)

Esses três textos foram escritos em um mesmo momento de produção, em que eu estava interessado pela cena simultânea. “Para um banho...” foi escrita em parceria com Ana Roxo. Fazer duas ou mais cenas ao mesmo tempo significa não apenas dividir o público, mas tratar da questão do ponto de vista e, por decorrência, da verdade. Os temas das três peças eram distintos, mas o maior tema delas não era expresso por suas situações, mas sim por seu projeto formal (É assim em todas as peças, quase ninguém entende isso no Brasil, o modo brasileiro de criar relação com a obra é conteudísta, busca-se a “lição” que as obras eventualmente podem lhes dar e não a leitura da forma). Essas peças serviam para

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fazerem as pessoas serem levadas a construir relações distintas com a íntegra do material. Serviam também para que elas tivessem ciência de que não viram a totalidade do material apresentado, em um movimento semelhante ao da apreensão da realidade. Em ambos os casos, isso deu certo. Por isso, foram peças úteis. O limite do projeto se deu quando me dei conta da pouca efetividade da operação com um tema genérico como a verdade. Era preciso agir sobre perspectivas particulares. Passei uns anos procurando por isso, sem conseguir finalizar nenhum texto.

2o D. PEDRo 2o (2009)

Eles ainda estão assombrados com o século XIX brasileiro. O romance deixa de ser a matriz do trabalho. Eles abrem livros de História, diversas biografias de D. Pedro II, acima de tudo. Mas havia uma mudança ainda mais importante, que morava em seu tema: era uma peça que, essencialmente, se perguntava sobre a possibilidade da História encontrar a verdade. Era uma peça difícil: ela não apenas questionava a verdade de uma pretensa “História Oficial”, mas mostrava-se cética quanto a possibilidade de qualquer História ser verdadeira. D. Pedro II era um objeto nas mãos deles, não um sujeito, mas um exemplo (um ótimo exemplo) que se toma para se testar uma tese. Eles estavam, pelo viés do historicismo, se aproximando demasiadamente do “Nada a Dizer” becketiano, sem serem, do ponto de vista formal, nada becketianos.

“o PATo SELvAGEM” (2010)

Na abertura da montagem, não havia nenhum ator em cena. Havia um vídeo projetado em que se mostrava uma série de imagens de patos sendo abatidos, enquanto ouvia-se a “Naturträne” (Lágrimas da Natureza), de Nina Hagen. Era um prólogo que disparava contra a metáfora: eles estavam declarando guerra ao isso se refere àquilo

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da figura de linguagem. Depois, o texto de Ibsen vinha bastante cortado. Eles falavam os textos de maneira acelerada, sem se preocuparem com reproduzir ou sequer sugerir a situação a que eles se referiam. O “Não sei o que devo pensar” de Ekdal, que poderia ser repetido por Dostoievski, diz respeito ao procedimento dialético do grupo, e também à minha maneira tateante de encarar minhas incertezas. Era uma montagem feita com Ibsen e apesar de Ibsen. Eles entrecortavam textos de Ibsen com passagens de Heiner Müller. A certa altura, dançavam. Nessa época, eles começavam a falar com mais insistência em “teatro performativo”. Desde Galvez, isso sempre foi deles, mas agora eles parecem ter mais consciência sobre isso. A partir de “O Pato Selvagem” eles já não queriam mais significar necessariamente isso ou necessariamente aquilo. Eles produzem acontecimentos em cena. Ryngaert disse: “O sentido não é uma urgência”. Eles concordaram com isso. Li e ouvi comentários desfavoráveis a peça. As razões do descontentamento dos comentaristas giravam em torno do que tomavam como um fato: a peça é confusa. Na época, pensei sobre o assunto: a peça não é confusa, ela apenas não se preocupa em contar o texto de Ibsen como eles gostariam que fosse contado. Eles não se deram ao trabalho de entender as articulações de aceitação e rejeição do grupo em relação ao texto original do norueguês. Em geral, os comentaristas de teatro levam ao teatro suas expectativas de como o teatro deve ser feito, levam ao teatro as suas teorias do teatro (“teatro é ator e texto”, “Ibsen precisa de grandes atores”, etc), o que implica em postura conservadora. Esses comentaristas deixam a necessidade de se articular com as questões propostas pela obra em suas casas. Pode haver razão para não se interessar por qualquer peça, mas essa me parece a pior delas. “O Pato Selvagem”, neste sentido, prestou um ótimo serviço ao teatro. A montagem revelou o conservadorismo atávico de uma geração de comentaristas que não encontrou estímulo e conhecimento para agir de outra forma.

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NARRATIvAS (2010-ATUALIDADE)

A partir de 2010, escrevi uma série de peças, certamente mais de uma dezena, todas elas encenadas, três delas por mim, as demais por diversos grupos e encenadores. Em todas elas o narrador é o centro da experiência. As histórias não são mostradas, mas contadas, mas o ato de contar é, ele mesmo, uma outra história. A reescrita, em 2010, de “Vigília”, texto que havia escrito em 2006, me fez perceber meu interesse por uma proposição textual em que a palavra tem como maior finalidade ativar a imaginação de quem a ouve. Os atores dessas peças, devem, assim, trabalhar como projetores de cinema. A peça acontece na cena, mas acontece na imaginação de quem a assiste também. Quero a contramão de um mundo tomado por imagens, quero o anti-espetáculo no espetáculo de teatro. “Vigília”, assim como “Verbo”, “A Sonata a Kreutzer – uma história para o século XIX”, releitura de Tolstoi, e “Casa de Bonecas”, releitura de Ibsen, tem em comum uma proposição textual que é a do narrador-encenador. Os narradores destas histórias narram com a consciência de que estão em cena. Eles sabem que estão diante de um público e narram apenas e tão somente em função desta consciência. Essa é a situação dramática. Essa consciência faz com que não apenas narrem, mas também encenem o que estão narrando. Não sei se isso é “contemporâneo”, mas não estou preocupado com isso. Em “Ifigênia”, releitura do mito grego, e em “Oe”, releitura de “Jovens de um novo tempo, despertai!”, de Kenzaburo Oe, não há situação dramática, mas apenas narradores e expressividade lírica. São poemas narrativos escritos para a cena, nada mais que isso. Em “A Carne Exausta” e a “Força da Imaginação”, ao contrário, há situação dramática, como há dialogismo também. No entanto, essas peças aparentemente dialógicas são peças narrativas. As situações dialógicas, a vontade e a contra-vontade estão fundamentalmente a serviço da produção de narrativas de fatos que estão fora da cena.

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“(vER[ ]TER)” (2011)

Não se trata mais de teatro performativo, mas de performance mesmo. Itinerância, música ao vivo, dança. Era feita em espaços públicos ou na rua. Vi no Centro Cultural São Paulo e na Oficina Cultural Oswald de Andrade, mas eles a fizeram também na Avenida Paulista e no Minhocão (onde eu desejaria ter visto), bem como em uma série de outras cidades. Há, nesse trabalho, tantos temas quanto a revista-de-ano ou uma conversa de bar. Mas o que importava eram os acontecimentos. Os temas não são a razão de ser da cena, mas antes os disparadores de acontecimentos. Nesse momento, eles estavam envolvidos com a formulação atribuída a Wittgenstein: “Não procure o significado, procure o uso”. No começo da performance, eles formam casais e se beijam (na boca, de língua). Mulher beija homem, homem beija homem, mulher beija mulher. Todos fazem isso de forma muito elegante. São beijos intensos, mas de gente bem vestida, de terno, de vestido longo, de salto. O público e os passantes reagem nitidamente. Eles geram fatos em espaços públicos.

“coNcíLIo DA DESTRUIção” (2012)

É um retorno à sala de espetáculo. Rara experiência do grupo em que se monta um texto original escrito por um de seus integrantes. Retornam ao significado, flertam com a parábola, discutem os mecanismos que valoram a obra de arte e acessam a discussão sobre seu mercado (discutir esse mercado não é só discutir esse mercado). Eles se rendem à situação dramática enquanto categoria dramatúrgica, ainda que não se preocupem com a representação das situações dramáticas do texto na cena. Em uma mesma área cênica, sem dividir o público, eles propõem planos simultâneos de acontecimentos, por meio de recursos cênicos e audiovisuais. Um dia eles foram a clareza, agora são acúmulo. Há coerência interna. É uma peça temática, que, por essa característica, rejeita

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princípios que estruturaram “(Ver[ ]Ter)”. Quem melhor diz sobre as contradições de nossos anseios é a nossa prática e nosso devir.

LAboRATóRIo PERMANENTE DE PLáGIo (2014)

Laboratório era uma expressão da moda nos anos 1970. Eles fizeram “plágios consentidos” de três montagens recentes: “Corra como um coelho”, “Petróleo” e “Quem não sabe mais quem é, o que é e onde está precisa se mexer”. Pode-se remontar um texto, pode-se remontar uma montagem. Eles copiavam as montagens em tudo: usavam os figurinos, os cenários, as gelatinas, as marcas, a forma de atuar. Levam às últimas consequências o “coloque-se no meu lugar”. Fazem deles poéticas que não são as deles, mas das quais afirmam gostar. O centro dessa experiência não era reacender os conteúdos das peças, mas experimentar-se em um exercício de alteridade e produzir discussão sobre a questão da autoria. Essa discussão é gerada não pelos temas das peças, mas pelo procedimento de remontá-las.

cRíTIcA àS PoLARIzAçõES DoMINANTES

Encontrei na crítica ao modelo Dramático (Brecht, Szondi) razões suficientes para entendê-lo como forma historicamente superada. Entretanto, o pensamento mais recente que declara a morte do personagem e da situação dramática (esta tomada aqui como um dos elementos estruturantes do Drama, e não o seu sinônimo) é expressão de pensamento na melhor das hipóteses panfletário. Há boas coisas para se ler sobre performance, que, em geral, tornam-se estúpidas quando fazem a crítica apriorística do que é cena mas não é performance. Minha dramaturgia, muitas vezes, tem sido um procedimento prático de questionamento da tese de que o personagem e a situação dramática não são mais veículos capazes de produzir indagações sobre nosso tempo. Esse

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procedimento prático se dá por meio de tentativas de reinvenção de seus usos tradicionais. As experiências desenvolvidas a partir do século XX dedicadas à negação da situação dramática (por meio da performatividade, da dança, da imagem, do audiovisual etc) trouxeram contribuições inquestionáveis para as práticas teatrais. Ampliaram o campo de atuação da cena e forçaram os limites do entendimento do que é teatro. Não implicam, no entanto, em um “estar lá na frente”. Em nosso tempo, a hybris do artista que se arroga posição de vanguardeiro serve apenas aos ditames dos mercadinhos da arte, falsos mercados muitas vezes instruídos por críticos e curadores inseguros. Da mesma forma, é primária a crítica - bastante presente no conservadorismo brasileiro – que toma o experimentalismo em si como um problema (a “simplicidade”, em si, não é necessariamente virtude). Alheio à polarização entre dramaturgias que operam com personagens versus dramaturgias que operam com “figuras”, “vozes” ou “discursos”, alheio, na mesma medida, à polarização entre a cena representativa e a cena performativa, me interesso, neste momento, pelo que, na cena, afirma sua capacidade de ser extemporâneo, no sentido dado por Agamben (com isso, afirmo minha rejeição pela falsa teoria do “teatro contemporâneo”) e, ao mesmo tempo, encontra diálogo radical entre forma e fundo. Aqui, certamente, reside minha capacidade de admirar não apenas aquilo que é similar ao que faço, mas também àquilo que difere do meu fazer.

vIGíLIA (2013)

A montagem do texto de 2006/2010, única experiência de compartilhamento que tive com membros da Cia LCT (Carlos Canhameiro e Daniel Gonzalez, estes acompanhados por André Capuano) resultou em uma performance em que os três atores permaneciam em cena por 12 horas seguidas. O diálogo feito de nossas concordâncias e divergências produziu algo que é extemporâneo e propõe radical associação entre forma e conteúdo.

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Sua recepção mostra sua contundência e, ao mesmo tempo, prova também o desamparo crítico que existe na cena brasileira.

NóS Não FAzEMoS AS MESMAS coISAS, MAS ESTAMoS No MESMo LUGAR

Somos a primeira “geração do edital”, somos de um tempo em que surgiram, por meio de mobilizações e transformações culturais e econômicas, escassas verbas públicas que dão conta de uma parcela da produção que nunca interessou ao capital brasileiro e suas mídias. Haveria muito o que dizer sobre esse momento histórico. Digo, no entanto, apenas sobre duas questões. A melhora na condição de produção não gerou, até o momento, melhora significativa na transformação do teatro em um fato relevante da cultura brasileira. Os tempos são outros, mas os mesmos de Alcântara Machado: “O teatro, esse enjeitado”. Estamos, ainda, às margens das margens. Mesmo o que parece repercutir, a rigor não repercute. Quanto à produção de pensamento sobre a cena, não apenas não avançamos, como retraímos. Os comentaristas, em geral, limitaram-se a agentes do bom-senso, a conselheiros do que o público deve ver e a organizadores de listas de “melhores” segundo critérios que não se declaram, mas se podem inferir. Pouco a pouco, quase sem ninguém perceber, a cena vai cedendo às perspectivas melodramáticas, disfarçadas por decalques de investigação de linguagem. Ainda assim, várias companhias comemoram 10, 15, 20 anos de atuação. É um fato histórico novo e não pode deixar de ser considerado.

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rubens velloso

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É isso ai.

No começo era um “conheço”, “já vi alguma coisa”, “já ouvi falar”, e isso já me dava um certo tesão de conhecer essa moçada, que tinha uma cara de coisa meio bandoleira e anarquista.

Até que um dia, não lembro se através de um telefonema, email ou inbox, veio o convite para um encontro. E a coisa era uma delícia: falar sobre possíveis novas narrativas, o que era interpretar e o que era performático e por ai vai. E ainda por cima tudo isso ia acontecer nas Oficinas Culturais Oswald de Andrade, o antropófago que uma vez disse “a massa ainda vai comer o biscoito fino que eu fabrico.” Fala a verdade, não dava para negar, era pura tentação e lá fui eu.

E tudo foi acontecendo. Narrativas inventadas, atravessamentos performáticos, liberdade criativa, ironia a dar com pau e ainda por cima um senso claríssimo do que estavam fazendo – domínio total do espaço e do tempo.

No meio disso tudo conversamos sobre os limites do risco que se corre quando se avançao sinal vermelho dos conceitos blocados e mergulha-se para além das bordas. Esse bando selvagem não atua no limite do risco, mas brinca articulando poéticas para além dele.

Poéticas indisciplinares.

Acho que foi paixão à primeira vista. Conversamos longas horas, principalmente sobre nossas dúvidas. Verdade ninguém tinha nenhuma. Então tínhamos total liberdade para tentar ali juntos inventar o que não existia.

Depois aconteceu o depois, acompanhei uma serie de trabalhos do grupo e eles foram ver um meu e deu-se o pulo.

Vamos fazer alguma coisa juntos?

Para a surpresa de todos nós não ficou como uma fala de bons amigos que depois de uma bela tarde dizem um ao outro.

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Nós efetivamente íamos fazer uma coisa juntos.

E veio até mim Heiner Müller, como potência, destruição, atualização e muita muita muita da boa e saudável ironia.

Novos tempos novos jeitos.

Guerra sem Batalha é o que eu chamo de uma Superfície de Eventos. E eu sou parte dessa Superfície. Eu sou um dos Eventos. Aqui talvez caiba um simbólico abre aspas. Durante um tempo tenho desenvolvido alguns termos novos para que possamos abrir novas possibilidades para definir o lugar que estamos. E digo a vocês que a Cia. LCT trafega por estes conceitos:

1. Superfície de eventos _ plano das ideias formado por diferentes fluxos conceituais e artísticos (a palavra, o corpo, a imagem, as redes, as artes digitais, artes computacionais, etc... etc... etc...) que vão constituindo de forma rizomática esta superfície estética/ética/reflexiva.

2. Livres Singularidades Desejantes (LSD) _ receptor/interprete/antecipador/emissor dos fluxos que emergem na superfície de eventos. Estão sempre transmutando de estado e se apropriando de todas as formas corporais, mentais de que possam se utilizar para o enredamento do plano das ideias.

3. Tramaturgia _ o código desenvolvido, que é específico, para cada trabalho para que as LSD possam se enredar reflexivamente nos eventos da superfície. A tramaturgia não é só constituída pela palavra.

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4. Extensões corpoespaço ou digineurais _ se constitui de todo aparato tecnológico usado para ligar espaços e corpos e também para articular as relações que emergem na superfície de eventos.

5. Espaços heterotópicos _ lugares constituídos de singularidades, um espaço com muitos espaços. E aqui compreendemos espaço não só no seu sentido arquitetônico mas em um sentido mais amplo, por exemplo: uma tela de computador ou uma tela de projeção também podem ser espaços heterotópicos. A ligação entre esses espaços, de forma rizomática, é onde se torna visível a superfície de eventos.

6. Estrutura química das personas _ A LSD deve considerar para o seu tráfego pelos espaços heterotópicos uma transmutação entre dois estados da matéria – o carbônico (corpo) e o silícico (imagem). Ele deve entender esses dois estados sempre como uma forma de presença, para poder estabelecer neste trafego o continuum das personas.

7. Estar _ A LSD pode mudar de registro para interferir da melhor maneira nos vários espaços.

Breve em lugar dentro de você. Perca-se.

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O Evento:

“Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo a embriaguez, o atordoamento, o esquecimento, o prazer e o sofrimento dos corpos.

O meu discurso é o silêncio, o meu cântico o grito. Na sombra das minhas asas habita o medo. A minha esperança é o último fôlego. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o seu caixão. Eu sou o que há de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã”

Heiner Müller

Esse poema atravessa o pixo, as imagens, a areia, as transparências, e sei lá mais o que. Porque quando escrevo estas linhas o delírio ainda estava em andamento e você que lê esse texto é que vai saber o final, apesar de eu arriscar dizer para você, caríssimo leitor, que talvez não tenha final.

Beijos,

P.S.: Tudo isso no fluxo de infinitos sons à Deriva, mas que sempre acha o caminho.

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AEu matei pela revolução.

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COROAgora morra por ela.

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dizem que saber e sabor tem o mesmo radical e que para saber nada melhor que comer e que algum artista disse que a melhor maneira de entender uma obra é devorando-a e que os bons artistas copiam já os grandes artistas roubam e que roubar é pecado plagiar é sagrado e tanta coisa que dizem sem sabermos de fato se o que foi dito já sabíamos ou roubamos dos grandes artistasas vezes nas artes ao vivo ali na hora do acontecido você pensa quase sem saber que queria muito estar do outro lado fazendo aquilo que acontece entra a atriz e diz um texto ou canta uma música ou dança e você não contente com estar vendo ouvindo sentindo quer viver aquilo do outro lado de outro jeito é tão intenso ou tão provocativo ou tão divertido ou tão tão tudo isso ou ainda outro tão não aqui mencionado aquilo que acontece ao vivo que por que não experimentar um pouquinhonosso laboratório permanente de plágio foi um plágio dessa vontade compartilhada não criar nada entrar na criação do outro

o plágio

da cópia autorizada

da peça roubada

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fazer o que o outro já havia feito vestir e sair vestido e sacar o que é tudo issonada muito novo copiamos fôssemos grandes artistas e roubaríamos na dança todo mundo copiana música todo mundo copianas artes plásticas todo mundo copiaé pedagógico é importante é processual é aprendizado é entender os clássicosmas no teatro nunca vimos todo mundo encena o texto muitos textos muitas obras mas nunca a peça feita a cena a marca os figurinos a trilha sonoracopiamos tudoassistimos corra como um coelho da cia dos outros assistimos petróleo do alexandre dal farra do clayton mariano da janaina leite da marina henrique da ligia oliveira e do eduardo climachauska e assistimos quem não sabe mais quem é o que é e onde está

carlos canhameiro

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precisa se mexer da cia são Jorge de variedadese claro assistimos muitas outras peças de teatro que nos provocaram o desejo de copiar tal e qual se apresentavaescolhemos três peças e como um plágio tupiniquim falseando o próprio conceito pedimos autorização para roubar não só autorização pedimos os cenários e figurinos emprestados a trilha sonora o mapa de luz e umas assinaturas para o projeto de fomento ao teatro porque só conseguimos realizar o laboratório permanente ! de plágio porque em são paulo a lei de fomento ao teatro permite essas atrocidades criativase plagiamosadentramos encenações prontas textos finalizados cenas resolvidas personagens delineados durante nove meses realizamos a cópia das três peças e apresentamos publicamente porque a arte ao vivo precisa disso para que do outro lado o desejo de outrora faça sentido agorae tudo tem reverberações e o teatro que lida com o fazer de novo todos os dias ganhou para nós uma importante nova camada criativa o fazer de novo o novo dos outros e se pudéssemos arriscar axiomas concretos a experiência plagiada é talvez o nosso melhor processo pedagógico-criativo quando desincumbidos de pensar a cena a cena era toda a criação possível quando distantes da nossa atuação cotidiana era preciso fazer aquilo que o outro ator já havia feito e provado por a+b que funcionava em cenanão não era ser o outro a máxima vazia do teatro romanesco viver uma personagem diferente do que sou adentrar as psicologias literárias dos conflitos e muito menos fingir ser ou fingir estar não definitivamente era mais simples tínhamos que fazer o que eles faziam e fazer bem feito como bons artistas que copiamem pouco tempo com três atores e três atrizes com versão masculina e feminina com trocas dependendo do dia com os seis em cena onde antes havia três e tinha que ser tudo igual ainda que o igual seja para desespero do purista relativo

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mas esse texto não é uma ode ao laboratório inusual que inventamosfizemos e o copiar é sim um forma possível de aprender a fazer também no teatro e a primeira razão desse texto é esta uma afirmação de que copiar peças é uma experiência apesar da palavra gasta pedagógica complexa compreender e viver de fato as escolhas cênicas alheias ao seu modo criativo texto espaço luz som figurinos cenários temáticas dialéticas contradições que não tiveram a sua participação/contribuição e te provocaram quando você fruiu/assistiu e que em um segundo momento você tem que como ator manter as mesmas chamas acesas estando no papel agora de quem fazé uma experiência valiosa como nunca suspeitamos que seriae faríamos de novo de outras peças queridase tudo são flores no país do plágio consentidonãoo que é ver as entranhas do belo homem ou da mulher desejadagostar daquela pessoa e começar a tirar suas camadas sua pele músculos órgãos ver os ossos e querer entrar mais e mais até que o que está na sua frente são nacos vísceras sangue espalhados sujos disformes sem sentido e não ninguém aparece para dizer como montar onde colocar o coração a razão do esqueleto ser daquele jeito qual olho é o direito onde tudo era bonito na ideia aos olhos à primeira visita talvez nunca nunca mesmo uma obra sobreviva aos desmantelamento dos carniceiros plagiadoresnão só quando o sentido falha também quando ele é o avesso do seu quando a escolha é contrária às suas convicções quando os olhos veem e o coração não sente o plágio pode te dar a quarta dimensão o sexto sentido o chakra meio aberto a ilha perdidae as flores podem ser carnívorasa dimensão mais simples da metafísica a decepção com a banalidade escolhida a reafirmação da diferença e o juízo do valor da estética da poesia pretendida

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abstratonão tantoas entranhas do belo homem funcionam como a minhao belo homem quer apenas contemplar sua cópia no espelho para reafirmar sua belezavemos as belezassobre as entranhasdeixemos para os textosa segunda e última razão deste

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o JoVem CAmArAdA Não conseguimos avançar e há muito pelo que lutar. Muitos de nós estão

cheios de coragem, mas poucos sabem ler. Temos poucas máquinas e ninguém sabe trabalhar com elas. Trouxeram máquinas?

os três AGItAdoresNão.

o JoVem CAmArAdATrouxeram tratores?

os três AGItAdoresNão.

o JoVem CAmArAdAOs nossos camponeses ainda puxam eles próprios o velho arado de

madeira. E nada temos para semear nas nossas terras. Trouxeram sementes?

os três AGItAdoresNão.

o JoVem CAmArAdATrouxeram ao menos munição e metralhadoras?

os três AGItAdoresNão.

o JoVem CAmArAdAAqui somos só dois os que defendemos a revolução. Trouxeram a carta

do Comitê central onde está escrito o que devemos fazer?

os três AGItAdoresNão.

o JoVem CAmArAdAE são vocês que vão nos ajudar?

os três AGItAdoresNão.

(Trecho de A Decisão, de Brecht)

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No momento em que escrevo estas notas o Chico de Assis, autor de O testamento do cangaceiro, montado pelo Arena no início dos anos 60, acaba de ser enterrado. Antes dele foram Boal, Guarnieri, Vianinha. E Heiner Muller e Brecht.

Obama e Raúl Castro trocam gentilezas. Dizem que são dois bons sujeitos e que está tudo certo. O papa é argentino. A História não perdoa e ainda ironiza. E não é o acaso, não é ao acaso. Cuba começa seu processo de rendição. Soy loco por ti, América. Logo mais será (se já não é) um novo souvenir nas prateleiras mambembes do sonho socialista. Mamãe, eu queria ir e queria voltar. Não vai dar, fica pra próxima. Tudo bem. Sem rancores sigamos.

E nós que não fomos em socorro e não fizemos a revolução? Nem mesmo a burguesa. O que é isso, companheiro? Quanto vale o cobre? A Comissão da verdade deu por encerrados os trabalhos. Caminhando e cantando. Comoção: algumas ossadas localizadas. Mamãe, mamãe, não chore. A Mauser foi usada por guerrilheiros e militares. No coração do Brasil. Um amigo me lembra que o Araguaia desapareceu. O Araguaia é um rio, um pedaço de paisagem apresentado com filtros de telenovela. Os bandidos se divertem. Não a malandragem. Ganham as capas dos jornais descrevendo em minúcias a engenharia da tortura. Exportamos tecnologia. Vendeu bem e ficou por isso mesmo porque somos todos desaparecidos

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políticos. A presidenta vai seguir entre lágrimas, à frente, mais desaparecida que nunca.

O que querem, pois, esses caras? Galvez, o Imperador do Acre. Não somos Bolívia. Alguns homens são a caricatura de si mesmos. E às vezes fazem História. Rio Branco, Porto Velho, Manaus, Belém (minha incrível Bragança, quanta saudade). Amazônia adentro numa embarcação de motor, esses nossos países desconhecidos. Grandes Marcios. Que viva o enthusiasmos dos jovens, um teatro quase só coro. Poderia ser um começo de renovação verdadeira na terra em que se ostenta o pós-dramático-bijouteria (o que nasce quando ninguém entendeu ainda o negócio do drama e não consegue enxergar o porquê) . Caros arqueólogos do futuro, ainda vamos descobrir o valor do pré-dramático ou algo por aí. Faltou libertar ou quem sabe mesmo acabar com a plateia. O pato selvagem e a questão da verdade. Boa para uma época em que se vive o império do simulacro. É mesmo preciso manchar o bom mocismo da representação. É preciso insistir na mimese desconfiada. Ibsen como antídoto para o próprio veneno pode ajudar. (Ver[ ] Ter). Um respiro, uma alegria. É preciso tentar ouvir. O inaudito. Flashmobs, performance. Ainda vamos encontrar um nome melhor pra isso. Nossas formas de percepção são amestradas com a ração do sentido para o que cada vez mais é ou quem sabe sempre foi sem sentido. Mesmo assim o encontro há de ser potente. Vamos seguir À Deriva porque tem sido um prazer sempre. Banksy e o mistério da desobediência. Bem linkado, zonas de jogos juvenis pela cidade. Ana Cristina, meu amor, queremos flores do mais – devagar meça a primeira pássara bisonha que riscar o pano de boca aberto sobre os vendavais. Concílio da destruição. Uma coisa que se aborrece ali pelo em torno do umbigo. Mesmo sem o querer. Ou: não vejo, não tenho, não ouço, não compreendo, não sinto. Preguiça minha?

E agora? Qual é a dialética e qual é a didática possível do fracasso? O que ele tem a nos dizer, produtivamente, se não quisermos ficar reféns da melancolia ou da ironia que se auto anula? Qual é a temperatura da época em um país que não só se recusa a dar o

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salto como também vem botando panos quentes nas próprias feridas? Como arrancar a relva para que o verde venha? Qual é a temperatura da época abaixo da linha do equador e como medi-la sem os instrumentos e em uma situação em que nem mesmo estejamos certos de que ainda exista algo com a coerência de uma “época”? (Fredric Jameson). A mauser está apontada, mas para onde, para quem e por que?

Pós-escrito

... Os jipes destruídos estão nas margens

Do papel onde talvez para ninguém

Se vão escrevendo estas mensagens...

(Manuel Alegre, poeta português, no contexto da guerra colonial moçambicana).

E mesmo assim vamos. Com entusiasmo vamos.

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Galvez Imperador do Acre*a partir do livro homônimo de marcio Souza, encenação de marcio aurelio

estreia – 2005 / Centro Cultural São Paulo25 apresentações

CHALAÇA a peçaa partir do livro “o chalaça”, de JoSé roberto

torero, encenação de marcio aurelio

estreia - 2006 / Sesc Santana152 apresentações

A Última Quimeraa partir do livro homônimo de ana miranda, provocação cênica de GeorGette Fadel e verônica Fabrini

estreia – 2007 / Sesc Avenida Paulista63 apresentações

2o. d.pedro 2o.texto de carloS canhameiro, a partir de bioGraFiaS Sobre

d. pedro ii, provocação cênica de Fernando villar

estreia – 2009 / Teatro Sérgio Cardoso64 apresentações

O Pato Selvagema partir da peça de henrik ibSen, encenação da cia. leS commedienS tropicaleS

estreia – 2010 / Sesc Santana27 apresentações

*[peças fora do repertório]

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(ver[ ]ter)intervenção urbana criada a partir do artiSta bankSy, encenação da cia. leS commedienS tropicaleS, com participação de andreia yonaShiro, coletivo bruto, GeorGette Fadel e tica lemoS

estreia – 2011 / Centro Cultural São Paulo75 apresentações

Concílio da Destruiçãotexto de carloS canhameiro, encenação da cia. leS commedienS

tropicaleS, com provocação cênica de paulo barcelloS e WilSon Julião

estreia – 2013 / Sesc Pompéia67 apresentações

uni-v oco s* intervenção criada eSpecialmente para a proGramação “o imaGinário doS 50 anoS do Golpe” do centro cultural São paulo

encenação da cia. leS commedienS tropicaleS e Quarteto À deriva

abril de 20143 apresentações

Laboratório Permanente de Plágio*apreSentação daS peçaS: corra como um coelho, da cia. doS outroS; petróleo, de alexandre dal Farra e clayton mariano; Quem não Sabe maiS Quem é, o Que é e onde eStá, preciSa Se mexer, da cia. São JorGe de variedadeS

2013/2014 / Cine Dom José e Oficina Cultural Oswald de Andrade24 apresentações

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Edu Zal

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