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Camila Augusta Pereira
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educao e Humanidades
Faculdade de Comunicao Social
Camila Augusta Alves Pereira
Guerreiros no abandonam a batalha: publicidade e identidade do heri
nacional no Mundial de Futebol de 2010
Rio de Janeiro
2012
2
Camila Augusta Alves Pereira
GUERREIROS NO ABANDONAM A BATALHA: PUBLICIDADE E
IDENTIDADE DO HERI NACIONAL NO MUNDIAL DE FUTEBOL
DE 2010
Dissertao apresentada como requisito parcial para a
obteno do ttulo de Mestre ao Programa de Ps-
Graduao em Comunicao da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (PPGCom/Uerj). rea de
concentrao: Comunicao Social.
Orientador: Prof. Dr. Ronaldo George Helal
Coorientador: Prof. Dr. Hugo Rodolfo Lovisolo
Rio de Janeiro
2012
3
Camila Augusta Alves Pereira
Guerreiros no abandonam a batalha: publicidade e identidade do heri nacional no
Mundial de Futebol de 2010
Dissertao apresentada como requisito parcial para
obteno do ttulo de Mestre, ao Programa de Ps-
graduao em COMUNICAO, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Linha de pesquisa: Cultura
de massa, cidade e representao.
Aprovado em 24 de Abril de 2012.
Banca Examinadora:
__________________________________________
Ronaldo George Helal (Orientador)
Faculdade de Comunicao Social - UERJ
_________________________________________
Hugo Rodolfo Lovisolo
Faculdade de Comunicao Social - UERJ
__________________________________________
dison Luis Gastaldo
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - UFRRJ
Rio de Janeiro
2012
4
DEDICATRIA
Aos meus pais, Reginel Ayres e Rita de Cassia, familiares e a
Vinicius Guimares, vocs so meus heris!
5
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Reginel e Rita, pela presena constante em minha vida. O apoio de
vocs, o incentivo e a compreenso foram fundamentais para a concluso deste projeto.
Aos meus irmos e cunhadas, pela troca de ideias e momentos de descontrao de
sempre. minha famlia, pela torcida, apoio e exemplo. Vocs so tudo na vida!
Vinicius Guimares, por abrir mo de muitos momentos em funo deste projeto.
Sua dedicao, parceria e cumplicidade ao longo dos anos foram e so essnciais em
minha vida. toda sua famlia, pelo carinho e torcida de sempre.
Ao professor Ronaldo Helal, pela dedicao, sabedoria e generosidade em
transmitir seu conhecimento. Sem seu suporte e apoio no seria possvel a realizao deste
trabalho. Ao professor Hugo Lovisolo, pela dedicao e carinho sempre demonstrados.
Estendo o agradecimento ao professor dison Gastaldo, sempre disponvel e pronto para
colaborar.
Ao professor Guilherme Nery, pelo exemplo, disponibilidade e carinho ao longo da
minha vida acadmica.
Aos colegas da INVESTE RIO, em especial, Silvia Cosenza, Luiz Souza e Avelino
de Paula, pela parceria e compreenso com o tempo dedicado a este projeto.
Aos amigos de todas as horas, pela compreenso nos momentos de ausncia e
constante incentivo.
Aos amigos da turma de 2010 do Mestrado do PPGCOM UERJ, grande conquista
nestes dois anos. Em especial, Anderson Ortiz, Jos Messias, Mariana Bispo, Marcellus
Ferreira e Viviane Fernandes, queridos parceiros que acompanharam de perto a realizao
deste projeto, com troca de conhecimentos, momentos de alegria e desespero. Aos demais
amigos, pelos chopes, risadas e momentos que amenizaram nossa caminhada.
Aos amigos do Grupo de Pesquisa Comunicao e Esporte, pelas grandes
contribuies durante as reunies e trabalhos. Em especial, Fausto Amaro, novo parceiro
conquistado.
A todos os professores, alunos e funcionrios do PPGCOM UERJ, pelo convvio
sempre alegre e troca de experincia. Em especial, Ricardo Freitas, pela disponibilidade e
sorriso de sempre.
6
Macunama ficou muito contrariado. Ter de trabucar, ele, heri.
Murmurou desolado: - Ai! Que preguia! Macunama - V Piaim - Mrio de Andrade
De manh cedo, eu me benzo, me levanto e vou trabalhar.
Tudo o que eu tenho nessa vida conquistei,
tive de ralar. (...)
Sou do batente, sou da luta, sou guerreiro, eu
sou brasileiro. Jingle Brahma - 2008
7
RESUMO
PEREIRA, Camila Augusta. Guerreiros no abandonam a batalha: publicidade e
identidade do heri nacional no mundial de futebol de 2010. 2012. 153 f. Dissertao
(Mestrado em Comunicao) Faculdade de Comunicao Social, Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil, 2012.
Durante a Copa do Mundo de 2010, a marca de cerveja Brahma, patrocinadora oficial da
seleo brasileira de futebol, veiculou filmes publicitrios construindo a imagem do
jogador em campo como guerreiro e heri nacional. O presente trabalho busca analisar
como o discurso da marca utiliza a jornada do heri no futebol para criar uma esfera de
identificao da Brahma com o esporte, o heri e os consumidores, inseridos no contexto
do pas do futebol. O corpus de estudo composto dos sete filmes da Brahma veiculados
antes e durante a Copa do Mundo, entre novembro de 2009 e julho de 2010: Brasil contra
o resto do mundo; Lista de pedidos; Recado; Poucas palavras; Razes; Flmulas; e Em
2010 no deu. Os filmes apresentam temticas relacionadas guerra, ao ufanismo e ao
consumo durante o campeonato mundial de futebol, que ilustram recursos publicitrios
fundamentais para o entendimento dos signos e arqutipos que contriburam para a
construo do Guerreiro Brahmeiro na proposta na campanha da Brahma. Para a anlise,
adotamos metodologia com base na semitica discursiva e nos arqutipos da jornada do
heri mitolgico.
PALAVRAS-CHAVE: Heri. Futebol. Publicidade. Identidade. Brahma.
8
ABSTRACT
During the 2010 FIFA World Cup, the beverage brand Brahma, official sponsor of
Brazilian football team, launched a television advertising campaign positioning some of its
players' image as warriors and national heroes. The study aims to analyze how the brand
holds the discourse of the hero's journey in football to create a sphere of identification
linking the beverage brand and sports, heroes and consumers, within the context of the
mythological "Brazil football country". The corpus study is composed of seven films of
Brahma, launched before and during the World Cup between November 2009 and July
2010: Brazil versus the rest of the world; Wishlist; Comment; Few words, Roots,
Streamers and During 2010, football didnt works. The films shows issues related to war,
jingoism and consumption during the World Cup, sources of advertising that illustrate
symbols and archetypes that contributed to the construction of the warrior brahmeiro", the
proposal in the campaign of Brahma. For the analysis, we adopted the methodology based
on the discursive semiotic and the archetypes of mythological hero's journey.
KEY WORDS: Hero. Football. Advertising, Identity . Brahma.
9
SUMRIO
INTRODUO 11
1. NO PAS DO FUTEBOL 15
1.1. Futebol e identidades sociais no Brasil: uma reviso 15
1.2. Copa do Mundo e identidade nacional 20
1.3. A Copa do Mundo de 2010: um cenrio 24
1.3.1. A seleo em campo 24
1.3.2. Economia e consumo na Copa do Mundo de 2010 30
2. O DISCURSO PUBLICITRIO DENTRE OS DISCURSOS MIDITICOS 38
2.1. Definindo um gnero discursivo 42
2.2. O discurso publicitrio 45
2.2.1. Especificidades do discurso publicitrio 50
2.3. A publicidade na televiso 55
3. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS 58
3.1. Semitica Discursiva: para uma anlise descritiva da publicidade 58
3.2. Morfologias, estgios e os arqutipos na Jornada do Heri 65
4. FUTEBOL, PUBLICIDADE E O MITO DO HERI: UMA LEITURA 73
4.1. A campanha da Brahma e a Copa do Mundo da frica 76
4.1.1. Os guerreiros da Brahma na Copa de 2010 78
4.1.1.1. Dunga: superao, garra e a Copa do Mundo de 2010 79
4.1.1.2. Luis Fabiano: o fabuloso na frica 82
4.1.1.3. Daniel Alves: reserva de luxo na Copa 83
4.1.1.4. Julio Cesar: disciplina em campo 84
4.1.2. Corpus: os filmes da Brahma na Copa de 2010 85
4.1.2.1. Brasil contra resto do mundo 85
4.1.2.2. Lista de Pedidos 90
4.1.2.3. Recado 97
4.1.2.4. Poucas Palavras 102
4.1.2.5. Razes 107
4.1.2.6. Flmulas 112
4.1.2.7. Em 2010 no deu 117
10
4.1.3. Porque somos guerreiros: uma anlise 122
4.1.3.1. A jornada do jogador guerreiro brahmeiro 132
CONSIDERAES FINAIS 141
REFERNCIAS 145
ANEXO A 151
ANEXO B 152
ANEXO C 153
11
INTRODUO
A publicidade e o futebol se constituem como construtores de identidade e
veiculadores de representaes, que nos levam compreenso do contexto social, material
e cultural em que vivemos.
No Brasil, so vrios os estudos que mostram a existncia de uma articulao entre o
futebol e um imaginrio simblico de significados e representaes que abordam temas
mais amplos como nacionalismo, identidade, gnero, mitos e heris. As mais fortes
expresses do brasileiro so encontradas no samba, no carnaval, na religio e no futebol,
que passou a fazer parte da esfera de identidade nacional na mesma poca em que se havia
uma preocupao em se constituir a imagem de brasilidade no pas. (DAMATTA in
DAMATTA; GUEDES; NEVES e VOGEL, 1982).
As mensagens publicitrias representam e so reflexo da cultura em que esto
inseridas. Nosso pas reconhecido por sua publicidade criativa e premiada, que utiliza,
com frequncia, smbolos que identifiquem o brasileiro, estabelecendo laos de
proximidade com o pblico receptor e estimulando o consumo. Nos veculos de
comunicao no Brasil, seja rdio, TV, meios impressos ou Internet, a mensagem
publicitria tem como caractersticas o texto criativo repleto de humor e stiras, o que pode
expressar certa alegria e o modo de ser do brasileiro, ou ainda o texto emotivo, utilizando
funes de linguagem, como a metfora para vender o produto ou servio inserido numa
esfera mgica da publicidade. Podemos apontar tambm o apelo sensual como presena
constante nos anncios brasileiros, principalmente quando a publicidade objetiva vender
produtos destinados ao gnero masculino.
A popularizao do futebol, processo este incentivado pelos meios de comunicao
de massa, transcende ao campo de jogo, no cabendo mais, h um tempo, ser diminudo
como pio do povo. Somos vistos como a ptria de chuteiras e essa representao j
faz parte do nosso imaginrio e realidade social, ainda que observemos uma crise no
futebol brasileiro, como quando, por exemplo, Hugo Lovisolo destacou em entrevista ao
jornal O Globo, em 01/10/2001, que a ptria cala chuteiras cada vez menores. Para Helal
12
(2010) to importante quanto a frase de Lovisolo foi o que editor fez com ela, colocando-a
no ttulo da matria.1
a partir de fins da dcada de 70 que se comea a se falar dessa crise,
primeiramente sentida e dramatizada pela imprensa esportiva, passando a ser objeto de
estudos acadmicos, visando detectar quais tipos de problemas afligiam o futebol
brasileiro. Como abordaremos mais diante, a transformao do futebol no principal
esporte do Brasil fez parte do processo realizado por agentes culturais, polticos e
esportivo, com base nas ideias nacionalistas do Estado. O cenrio de descrdito em relao
s instituies que controlam o futebol, provocando o distanciamento de torcedores, o
aumento da violncia nos estdios e a sada dos jogadores para times fora do pas, hoje se
apresenta diferente do que era vista h alguns anos. Ainda que os clubes estejam
endividados e que os campeonatos nacionais aconteam inseridos em modelos de
organizaes deficitrias (HELAL e GORDON, 2002: p. 37-55), observamos um
movimento inverso a partir de 2003, nos oito anos de governo Lula e mudana no cenrio
econmico brasileiro, com a valorizao da moeda e o aumento da receita de alguns clubes
atravs de parcerias financeiras.
Hoje, o pas vive momento de repatriao de muitos de seus jogadores. E a
presena de dolos reconhecidos traz para os torcedores a ideia do esporte de volta aos
velhos tempos, sem a noo de sucateamento de craques que pairava nos clubes. Dessa
forma, possvel estabelecer uma consequente identificao dos fs com os jogadores. E
mais, os clubes entenderam que a imagem de um jogador astro se transforma em valioso
produto comercial que pode garantir retorno financeiro para as instituies, ainda que,
grande parte dos ganhos diretos fique com estes clubes.
Esse universo que cerca o futebol produz discursos sociais, atravs de eventos como
a Copa do Mundo, empreendimento integrado lgica comercial e capitalista. Sabemos
que o interesse dos brasileiros pelo futebol sempre foi incorporado pela mdia, criando um
circuito de comunicao e consumo, que assume papel simblico como definidor de
prticas culturais, identidades e noes de pertencimento.
1 Para uma discusso mais detalhada sobre o esmaecimento do epteto Brasil Pais do Futebol ver HELAL,
Ronaldo, As Novas Fronteiras do Pas do Futebol. Pesquisa Rio / Faperj, v. 11, p. 37-40, 2010 e HELAL, Ronaldo; SOARES, Antonio Jorge G. O Declnio da Ptria de Chuteiras: imprensa, futebol e identidade nacional na Copa do Mundo de 2002. In: Miguel Pereira; Renato Cordeiro Gomes; Vera Lucia Follain de Figueiredo. (Orgs.). Comunicao, Representao e Prticas Sociais. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio,
2004, v. 1, p. 257-277.
13
Na Copa do Mundo de 2010, o brasileiro esperava que a seleo canarinho trouxesse
o sexto ttulo de melhor futebol mundial, e muitos foram os anncios publicitrios que
adotaram tal temtica em seu discurso. Os jogadores da seleo brasileira foram
explorados na publicidade da Brahma, marca reconhecida em todo o territrio nacional e
patrocinadora oficial da seleo brasileira e do evento, que veiculou sete filmes na
televiso, desde novembro de 2009 at os ltimos dias da Copa, em 2010.
E, visando identificar como a publicidade colabora na construo do mito do heri
no futebol, utilizaremos como corpus para anlise todos os filmes produzidos pela marca,
que envolveu a temtica do jogador de futebol como guerreiro, como aquele que vai para o
campo de batalha em busca da conquista do campeonato.
Para tal, na primeira parte da pesquisa, contextualizaremos o que chamamos de pas
do futebol, traando, por meio de uma reviso bibliogrfica, aspectos da identidade social
no Brasil, relacionados com o futebol e o evento Copa do Mundo. Entendemos que durante
o mais celebrado evento esportivo no pas, sentimentos nacionalistas, de patriotismo so
exagerados e explorados ao extremo, de modo que se faz necessrio uma breve anlise do
cenrio brasileiro durante o ano de 2010, com dados econmicos e do consumo durante os
preparativos e o transcorrer do evento. Tambm aqui, contaremos como foi a participao
da seleo brasileira no Mundial. Logo, neste captulo, partiremos da ideia de que o futebol
cumpre o papel de amenizar conflitos sociais (SALVADOR E SOARES), quando o
esporte apresentado como forma de socializao de pessoas (DAMATTA), alm de
cumprir importante papel de aglutinador do povo brasileiro (ORTIZ e GUEDES). Assim,
pensaremos tambm na formao do povo brasileiro, a partir da contribuio de
instituies secundrias com o processo de constituio da identidade nacional (FREYRE,
CHARAUDEAU e HELAL, 2001), fundamentada em referncias no campo acadmico
sobre o tema.
Com o segundo captulo, a pesquisa busca o funcionamento do discurso publicitrio,
no sentido de se entender como se d a construo e a formao da mensagem publicitria
e as especificidades de tal discurso entre os discursos miditicos. Para essa abordagem
adotaremos quadro terico sobre a formao do gnero discursivo (BAKHTIN), para
identificarmos diferenas entre os tipos discursivos miditicos (CHARAUDEAU,
KELLNER e MAINGUENEAU). Dessa forma, tambm neste captulo traaremos
caractersticas e especificidades do gnero publicitrio, quando nos interessa para a
14
presente pesquisa a troca simblica por meio do discurso, na qual valores e representaes
produzem sentidos na comunicao de massa. (BARTHES, BAUDRILLARD,
FIGUEIREDO, JOLY, VESTERGAARD e SCHRODER).
Para a metodologia do presente trabalho, propomos inicialmente uma anlise
descritiva a fim de identificar elementos que contribuem na formao da mensagem da
marca, por meio de um roteiro baseado na Semitica Discursiva, de origem francesa e
indicada para o trabalho com textos publicitrios audiovisuais (GREIMAS e COURTS,
FISCHER e FONTANILLE). Em seguida, buscaremos tambm identificar nos filmes o
papel dos atores do discurso publicitrio com referncia no Modelo Actancial de
Participao elaborado por Greimas, como proposto em A linguagem da propaganda
(VESTERGAARD e SCHRODER). A partir desta primeira anlise, analisaremos o
processo ritual da saga do heri mitolgico, analisando os arqutipos que constituem sua
jornada (VAN GENNEP, PROPP, BARTHES e CAMPBELL).
Dessa forma, busca-se entender na presente pesquisa como a marca de cerveja
Brahma construiu a imagem dos atletas como guerreiros heris na batalha da Copa do
Mundo de 2010. Analisaremos os elementos utilizados no discurso publicitrio para traar
o processo de significao do heri durante a campanha, refletindo sobre o porqu de
certos jogadores serem preteridos como garotos-propagandas, as temticas e estratgias
adotadas nos filmes, e por fim, sobre que tipo de discurso a Brahma adotou para vender seu
produto ligado ao futebol.
15
1. NO PAS DO FUTEBOL
A ideia do Brasil como o pas do futebol no imaginrio popular j vem sendo
consolidada h tempos, o que pode ser observado quando pensamos possuir os melhores
atletas, que jogamos de forma diferente, no futebol-arte, ou ainda na ideia que temos um
dom natural para a prtica do esporte e de que somos os melhores do mundo.
Tal epteto foi construdo a partir de vrios acontecimentos no pas que, repletos de
sentidos e significados simblicos, contriburam para a perpetuao deste imaginrio.
Podemos afirmar que o nacionalismo na era Vargas, o otimismo ps-guerra, a emblemtica
derrota de 1950 em pleno Maracan, as conquistas das Copas de 1958 e 1962, o milagre
econmico e a euforia do desenvolvimento com o governo Juscelino Kubitschket, o futebol
da seleo de 1970 somado conquista do Mundial daquele ano, o fato do Brasil ser o
nico pentacampeo mundial de futebol so motivos que, permanentemente, alimentam
essa construo no imaginrio popular.
Com o futebol, deixamos de lado o complexo de vira-latas2, aquela velha
inferioridade em relao a outras nacionalidades, elevando o esporte a categoria de
fenmeno cultural brasileiro. E, pensando no futebol, notamos que o que caracteriza o ser
brasileiro pode ser o gostar do esporte, praticar o jogo bonito - o famoso futebol-arte, e
numa certa analogia, enfrentar as dificuldades do jogo e da vida com uma dose de
molecagem, irreverncia, malandragem e jogo de cintura, da mesma forma como atuamos
dentro das quatro linhas do campo de jogo, uma construo exitosa do brasileiro em
determinado momento da histria, como veremos mais frente.
1.1 Futebol e identidades sociais no Brasil: uma reviso
No Brasil, o futebol se transformou em instrumento de representao do pas e do
ser brasileiro em todas as circunstncias, e atravs dele, veiculamos sentidos coletivos
sobre ns mesmos. O futebol se tornou fenmeno social e histrico que contribui para a
formao da identidade do brasileiro, que une toda a sociedade - antes dividida pela
2 Termo utilizado por Nelson Rodrigues em maio de 1958, antes da Copa daquele ano, para se referir forma
como o brasileiro se coloca em face do resto do mundo. O texto de Nelson Rodrigues pode ser lido por
completo em .
16
poltica, pela cultura, pelos costumes, por meio de um sistema ritual que ocorre durante
os jogos da seleo nacional e de quatro em quatro anos, em Copas do Mundo.
A identidade brasileira constituda pelo encontro e a mistura de raas, quando o
povo pode se ver representado pela miscigenao, pela criatividade e por certa
malandragem. O sucesso do futebol brasileiro funciona para lanar as qualidades do pas
no mundo desenvolvido (SALVADOR e SOARES, 2009: p. 21). Assim, desde sempre, o
futebol vem cumprindo o papel de amenizar tenses e conflitos sociais no Brasil.
O senso comum aponta a introduo do futebol no Brasil a Charles Miller,
brasileiro de nome ingls, nascido na cidade de So Paulo. Ainda que estudos faam
referncia a pratica do esporte antes de Miller, quando padres j jogavam o futebol nos
colgios durante as aulas de educao fsica, ou ainda quando funcionrios de fbricas
inglesas trouxeram o esporte no final do sculo XIX para o pas3, numa espcie de esfera
mitolgica sobre o surgimento do futebol no Brasil, Charles Miller ainda o nome de
maior representatividade.
Miller morou durante muito tempo na Europa, e de volta ao Brasil em 1894, trouxe
como bagagem: bolas, manuais, camisas e chuteiras para a prtica do velho esporte breto.
Foi a partir da que se introduziram as regras do jogo e comeou a se definir o que hoje
conhecemos como futebol no pas.
Inicialmente, a prtica do futebol estava restrita s elites dominantes do Brasil,
transformando-se, assim como o remo, em esporte smbolo de elegncia e sofisticao.
Mas, tal exclusividade no perpetuou durante muito tempo, e rapidamente, o futebol foi
apropriado por todos os setores sociais. Em poucas dcadas, j havia se tornado esporte de
massas, com ampla participao das camadas mais populares.
Logo, entendemos que em nosso pas, instituies secundrias foram fundamentais
no processo de constituio da identidade nacional. As fortes expresses dos indivduos
brasileiros so encontradas no carnaval, na malandragem, no samba, no futebol, na escola e
na religiosidade. O futebol rene classes e sintetiza a cultura, e passou a traduzir a
essncia de ser brasileiro nas narrativas oficiais dos jornais, rdios e revistas, como
podemos notar ainda hoje, de acordo com interpretaes e estudos no campo da histria, da
sociologia, entre outros. Por isso, o futebol uma mquina de socializao de pessoas e
3 Nesse sentido, ver NETO, 2002.
17
um sistema altamente complexo de comunicao de valores essenciais. (DAMATTA in
DAMATTA; GUEDES; NEVES e VOGEL, 1982: p.40).
Dessa forma, o futebol visto como espao de encontro de classes e de tradies
que acabam por diferenciar o Brasil das outras naes, ou seja, passa a ser apresentado
como sntese da cultura nacional. O futebol tem papel importante como princpio
aglutinador do povo brasileiro e, consequentemente, sua constituio como nao,
compondo assim a esfera da identidade nacional (ORTIZ, 1994 e GUEDES, 1998).
A identidade implica a tomada de conscincia de si mesmo, quanto mais forte a conscincia do outro, mais fortemente se constri
sua prpria conscincia. (...) A identidade se constri no atravs de
identidades globais, mas de traos de identidades. (...) Ela em parte
determinada pela situao da comunicao (...) em nome de um saber
reconhecido institucionalmente, de saber-fazer reconhecido pela
performance do indivduo, de uma posio de poder reconhecida por
filiao ou atribuio, de uma posio de testemunha por ter vivido o
acontecimento ou ter-se engajado. (CHARAUDEAU, 2009: p. 309-326).
Na histria do Brasil, ocorreu um momento de indefinio da identidade nacional.
Lembramos aqui de alguns acontecimentos com os quais, possivelmente, essa identidade
comeou a ser formada, como a Semana de Arte Moderna, em 1922, e o nacionalismo de
Getlio Vargas, em 1930. Porm, novas formas de conceituar o pas, com o ufanismo,
puderam ser vistas em obras de importncia histrica de escritores como Gilberto Freyre,
com Casa Grande e Senzala, e Srgio Buarque de Holanda, com Razes do Brasil, autores
estes que passaram a ver a mistura de raas no Brasil como um valor positivo, ao contrrio
de autores como Nina Rodrigues4 e Oliveira Viana
5. Estes ltimos, pensadores na dcada
de 30, viam tal mistura de raas como algo negativo, aquilo que explicaria o atraso do
pas. (HELAL, 2001: p.18).
Na obra de Freyre, observamos o apontamento da mestiagem como fator
integrador na histria do Brasil, equilibrando antagonismos sociais e raciais, na qual a
diversidade seria motivo de orgulho nacional e de crena no pas. E, ao escrever a crnica
intitulada Foot-ball Mulato, no jornal Dirio de Pernambuco, no dia 18 de junho de 1938,
4 Raimundo Nina Rodrigues (1862 - 1906): mdico legista, psiquiatra, professor e antroplogo brasileiro.
5 Francisco Jos de Oliveira Viana (1883-1951): professor, jurista, historiador e socilogo brasileiro, imortal
da Academia Brasileira de Letras.
18
Freyre anuncia o surgimento de um estilo inconfundvel de jogar o futebol brasileiro,
utilizando a dana mestia e dionisaca como metfora na descrio da forma particular
como o pas praticava o esporte. O nosso estilo me parece contrastar com o dos europeus
por um conjunto de qualidades de surpresa, de manha, de astcia, de ligeireza e, ao mesmo
tempo, de brilho de espontaneidade individual (...). Freyre afirma ainda que o futebol,
como instituio brasileira, tornou possvel a sublimao de elementos irracionais da nossa
formao social e cultural. (FREYRE, 2003: p. 25).
A construo discursiva do Brasil como pas do futebol se d repleta de
significados, e essa imagem foi fomentada principalmente por cronistas esportivos que
foram fundamentais ao escrever sobre o futebol nos grandes jornais que circulavam em
espaos de sociabilidades, levantando questes identitrias e projetos para a nao
brasileira. Tais cronistas identificavam que a paixo e o sofrimento do torcedor de futebol
poderiam ter reflexos em outras esferas da vida social, e assim, passaram a difundir a ideia
de que o brasileiro agia da mesma forma fora do campo de jogo. Assim, ao ganhar
autoconfiana com as vitrias no esporte, tambm ficaria mais confiante para enfrentar
outras atividades relativas ao convvio social. (ANTUNES, 2010: p. 11).
Entre tais cronistas, destacamos Nelson Rodrigues, Mrio Filho, Armando
Nogueira e Joo Saldanha, nomes estes que ainda hoje figuram entre os principais autores
e fundadores do jornalismo esportivo, alm de colaborarem para a construo de uma
identidade do ser brasileiro atravs do futebol. Em algumas das crnicas desses nomes,
percebemos claramente a associao entre o povo brasileiro e a seleo nacional, o que nos
leva a afirmar que a vitria de um seria sempre a conquista do outro. O futebol funcionava
assim como um resgate da auto-estima do brasileiro, acentuando o sentimento de unio
nacional.
(...) Portanto, e aqui vai o bvio: o escrete realiza o brasileiro e o compensa de velhas humilhaes jamais cicatrizadas. No posso olhar
sem uma compassiva ironia os que negam qualquer relao entre o
escrete e a ptria (...). Pois o escrete no outra coisa seno a ptria. (RODRIGUES, 1999: p. 151-152)
As crnicas desses autores tornaram-se documentos de valor histrico sobre a
formao do povo brasileiro, permitindo-nos entender a origem de certos sentimentos
19
nacionalistas e de modos de pensar o Brasil ainda em formao, de ideias hoje j
consolidadas a partir do contexto em que surgiram.
Helal afirma ainda que O pas do futebol foi uma construo social realizada por
jornalistas e intelectuais em um momento de consolidao do estado-nao,
acompanhada por formulaes acadmicas sobre a sociedade (HELAL, 2011: p.28).
Dentro desse projeto nacionalista do Estado Novo6, Mrio Filho desempenhou importante
papel ao utilizar o futebol como forma de consolidar a idia de nao brasileira e de se
entender a cultura do pas. Com o livro O Negro no Futebol Brasileiro, o autor narra a
trajetria do incio do futebol no Brasil, praticado exclusivamente pelas elites intelectuais e
financeiras. Esse quadro s comeou a sofrer mudanas com o jogador Friedenreich, filho
de alemo com negro, o primeiro heri esportivo e de identificao com o povo brasileiro.
Dessa forma, de acordo com o livro, o futebol atingiu as camadas populares e a
miscigenao acabou por colaborar na construo de um estilo brasileiro de jogar.
At ento, pesquisadores que se arriscavam em estudar futebol e identidade
buscavam no livro de Mrio Filho suas fontes de anlise. O texto do jornalista ainda hoje
emblemtico na divulgao do esporte, na discusso sobre o racismo dentro do jogo, alm
de funcionar como um dos poucos registros histricos do perodo do surgimento do
futebol7.
Contudo, a partir do antroplogo Roberto DaMatta, com o livro Universo do
Futebol, lanado na dcada de 80, os estudiosos se voltaram para o esporte, reconhecendo-
o como objeto de valor nos estudos das cincias sociais. A abordagem de DaMatta no livro
descaracteriza o futebol como pio do povo, ideia ainda naquela dcada difundida entre
alguns segmentos da intelectualidade, que segundo uma perspectiva marxista, o futebol
seria reduzido a um fenmeno de alienao das massas. Assim, o antroplogo afirma que a
identidade do pas se formou por meio de instituies secundrias, questo esta j abordada
aqui, principalmente por conta da poltica social que impedia a manifestao e expresso
do indivduo.
6 A identidade nacional tem no futebol a edificao de seus pilares com forte participao do Estado desde a dcada de 1930, na era Vargas, principalmente durante o Estado Novo. No foram economizados esforos do
governo para transformar o futebol em um instrumento para a consolidao das ideias de um Brasil
democrtico (...). O futebol deveria cumprir o papel de diluir as tenses e os conflitos tnicos e sociais no
pas. (SALVADOR e SOARES, 2009: p.21).
7 Neste sentido ver o debate sobre a importncia ou no do livro de Mrio Filho como fonte histrica em
Helal, Soares e Lovisolo (2001).
20
Roberto DaMatta afirma ainda que o futebol uma forma de cidadania, onde
possvel juntar o mundo da casa com a impessoalidade da rua, quando vivenciamos a
sociedade como um grande jogo: as regras so iguais para todos e devem ser levadas
srio. Por sua vez, as regras so um fator muito importante para o conceito de jogo. Todo
jogo tem suas regras. So estas que determinam aquilo que vale. (...) As regras de todos
os jogos so absolutas e no permitem discusso (HUIZINGA, 2010: p. 14). A partir das
regras universalizadas, o futebol seria o espao onde diferenas raciais e de classes
ficariam de lado, dando lugar competncia em campo, com participao popular e certo
tipo de exerccio da cidadania.
Logo, o futebol desempenha papel social que determinante dentro da sociedade,
estando associado a valores como paixo, devoo, divertimento, patriotismo. O esporte
faz parte da sociedade, construindo relaes e se expressando por meio de regras, gestos,
ideologias, permitindo a abertura de um espao social determinado.
O ser brasileiro se constri atravs de traos de identidades (raa, crena,
costumes), quando implica a conscincia de si mesmo e do outro. Dessa forma, o futebol
brasileiro pode ser visto como aquele capaz de dramatizaes do mundo social,
demarcando interaes entre regras universais e vontades individuais.
O futebol meio de veicular mensagens sobre o que realmente ser brasileiro, sobre o sentido da vida, do destino e do papel da tcnica no
universo social. Tudo isso de modo direto, grfico, literal, profundo e
dramtico. Pois o futebol no um jogo de palavras, que se arma somente
com a inteligncia, mas um sistema de regras fechadas, atualizado por
meio de aes e relaes. (DAMATTA in DAMATTA; GUEDES; NEVES e VOGEL, 1982: 29)
1.2 Copa do Mundo e identidade nacional
No Brasil, como j vimos, o futebol considerado umas das manifestaes mais
relevantes na cultura contempornea do pas. Podemos afirmar que o ser brasileiro fica
mais evidenciado dentro do estdio de futebol, em perodos de Copa do Mundo, ao
contrrio de datas cvicas festivas como o a Independncia do Brasil ou a Proclamao da
Repblica.
21
De quatro em quatro anos, o Brasil torna-se um pas de ruas vazias, quieto, quando
os rudos que ouvimos so as vozes dos narradores da TV e do rdio, com as transmisses
esportivas. Tanto as cidades grandes como as pequenas perdem seus movimentos por
algumas horas: as empresas alteram o horrio da jornada de trabalho, pedestres no so
mais vistos nas ruas, as buzinas cessam, lojas fecham as portas porque a seleo brasileira
est em campo. Casas, ruas, mercados e empresas se enfeitam com as cores da bandeira
nacional, smbolo ptrio sempre mais valorizado durante este perodo. Em frente aos
televisores, grupos de pessoas reunidas aguardam o gol para soltar o grito da vitria e os
fogos de artifcios, e assim, dar incio ao carnaval nacional fora de poca.
A Copa do Mundo representa para os brasileiros o verdadeiro momento ritual de
celebrar o ideal de nacionalidade triunfante, envolvido no clima de uma competio na
qual o pas est sempre entre os favoritos rumo a conquista do ttulo de melhor futebol. O
evento que mais concentra pessoas reunidas com o mesmo objetivo, ressaltando o sentido
de comunidade reunida, o ns contra todos, envolve ainda preparao antecipada,
vesturio prprio, o consumo de produtos e servios, a celebrao em grupo
(GASTALDO, 2002: p.22). Inserido no clima da Copa do Mundo, tudo no pas
modificado em favor do evento, quando as pessoas esto envolvidas numa grandiosa festa
cvica, j transformada em espetculo global.
Porm, nem sempre foi dessa forma. A derrota brasileira de 1950 para o Uruguai no
Rio de Janeiro tem peso social significativo, sendo considerada a maior tragdia
(DAMATTA in DAMATTA; GUEDES; NEVES e VOGEL, 1982: p. 31) contempornea
do Brasil, ainda que inserida na esfera esportiva, quando se d incio ao que chamamos de
saga herica brasileira no futebol (SALVADOR E SOARES, 2009: p. 16). Jogando em
casa, com campanha arrasadora em campo, naquele ano o pas viveu perodo de luto
coletivo, quando no estdio e nas ruas foi possvel observar a comoo geral da populao.
Junto ao acontecimento, as idias de nao, de coletividade, de perda e solidariedade,
surgiram no imaginrio social. A derrota ficou fortemente marcada por ter se dado na
mesma poca em que o Brasil buscava se firmar como nao, e assim, deu-se uma busca
por responsveis pelo insucesso.
O naufrgio brasileiro diante do Uruguai, vizinho pequenininho e incmodo, deixou de ser um acontecimento meramente esportivo. Virou
uma lenda, um trauma mal resolvido. (...) Logo, logo o jogo se
22
transformou, na galeria das feridas nacionais, em tragdia descrita por todos os superlativos possveis. (...) O naufrgio brasileiro diante do
Uruguai ganhou, na imaginao do pas, a dimenso de lenda. (MORAES E NETO, p. 39-42, in SALVADOR E SOARES, 2009: p.
16).
O futebol nacional caminhou para a notoriedade aps as sucessivas conquistas dos
Mundiais de 1958 e 1962, quando os brasileiros passaram a ver o esporte como a
oportunidade de reconhecimento internacional. Com tais conquistas, a populao se viu
recompensada pela tragdia de 50, deixando de lado o complexo de vira-latas. J a vitria
na Copa do Mundo de 1970 representou, alm da marca do futebol-arte, a consagrao do
jogador Pel, a tcnica e a fibra dos que estavam em campo, o sentido de organizao
nacional e a vitalidade do povo brasileiro (SALVADOR E SOARES, 2009: p. 18). A
mdia, ainda hoje, enaltece tanto a mais comemorada conquista - do tricampeonato
mundial, quanto as caractersticas do povo brasileiro. Pois ao trazer de volta a memria
daquele campeonato, tericos e a imprensa associam o futebol ao samba, ao carnaval e a
festa, sintetizando qualidades do povo e do futebol brasileiros. E assim, o sucesso do
futebol funciona como metfora do povo com mistura de raas, alegre, disposto a mostrar a
todos sua faceta j sem complexos.
Dessa forma, cabe ressaltar a questo central abordada por Salvador e Soares com
relao reconstruo da memria da Copa de 1970 pela mdia. Os autores afirmam que a
memria tem papel fundamental no processo de construo de identidade nacional ou
tnica, reforando elos de pertencimento em comum de um grupo ou uma nao. O evento
da Copa de 1970, rememorado de forma espetacular pelo discurso miditico tornou-se
marco na memria social do futebol, que se concilia com aquilo que o brasileiro acredita
ser: obra de arte no mundo ocidental, um ser de ruptura, criativo, que constri
possibilidades de enfrentar o mundo desenvolvido e civilizado. (SALVADOR E SOARES,
2009: p. 8 11).
Trazer tona lembranas de um passado requer uma interligao com as estruturas do presente, ou seja, apenas ser resgatado aquilo que faz
sentido para o que est sendo vivido coletivamente na atualidade. Nesse
sentido, quando as narrativas jornalsticas reconstroem a memria da
Copa de 1970, rememoram um estilo singular que acreditam ser
tipicamente brasileiro, no caso, um futebol alegre com a ginga e a malandragem de um povo acostumado a superar as situaes difceis do cotidiano. SALVADOR E SOARES, 2009: p. 9).
23
Aps a Copa de 70, o Brasil s voltou a conquistar o Mundial em 1994, numa
deciso de pnaltis contra a Itlia, com um futebol pragmtico8 e o talento individual de
Romrio. Ainda que a seleo daquele ano no tivesse empolgado, a torcida brasileira no
deixou de festejar e celebrar o ttulo h anos aguardado. J em 2002, ltima conquista do
Brasil em uma Copa do Mundo, a presso da mdia e da opinio pblica pela convocao
de Romrio marcou o perodo anterior ao incio dos jogos. Resistindo presso, o tcnico
Luis Felipe Solari apostou nos dois jogadores de nome Ronaldo. Como observamos, a
mdia utiliza de todos os meios possveis para a construo da realidade que mitifica a
Copa do Mundo, j que o acesso ao evento est condicionado ao seu carter
mediatiatizado: constri peas de propaganda com a presena de jogadores smbolos da
seleo, motiva o consumo, produz cadernos especiais, revistas, matrias sobre o evento,
alm de fazer ampla cobertura dos jogos, colaborando para reforar cada vez mais o epteto
de pas do futebol.
Hoje em dia, a vitria em uma Copa do Mundo, parece atestar a crescente influncia do campo econmico no campo de jogo,
promovendo ou consolidando o poder de empresas transnacionais em luta
pelo capital especfico desse campo: participao no mercado mundial (GASTALDO, 2002: p.61).
A experincia de viver uma Copa do Mundo pode ser apontada como marco inicial
de pertencimento a algo maior, a uma nao. Quando deixamos de ser torcedores dos
nossos times e passamos a brasileiros. Porm, segundo Helal (2011: p. 11 - 37) a relao
dos torcedores com a seleo nacional vem mudando, principalmente por conta da
globalizao, quando os dolos saem de seus clubes para jogar fora do pas, formando
assim uma seleo de pouca identificao. Ainda que alguns jogadores estejam fazendo o
movimento inverso, como j abordamos, tambm observamos que grande parte dos atletas
que jogam pela seleo atua fora do pas. As pessoas acabam por torcer mais por seus
times locais do que pela seleo nacional.
Para Helal e Gordon, no tocante ao processo de desterritorializao do dolo e do
futebol, cria-se novo processo de identidade cultural,
8 A imprensa esportiva considerou como pragmtico o futebol apresentado pela seleo brasileira na Copa do
Mundo de 1994.
24
na medida em que se coloca a nfase do futebol como produto a ser consumido em mercado de entretenimento cada vez mais diversificado,
sem projeto que o articule a tais instncias mais inclusivas (pensamos
aqui na identidade nacional sintetizada como narrativa homognea na
ptria de chuteiras), o que se consegue esgarar cada vez mais o vnculo estabelecido antes, com Freyre e Filho. (HELAL e GORDON, 2011: p.30).
E o futebol jogado no Brasil reinterpretado de acordo com elementos marcantes de
nossa cultura, unindo jogadores e torcedores de tal forma que ultrapassa a competio e os
interesses comerciais, despertando emoes e alimentando paixes. O futebol como
esporte de massa oferece imagens, gestos, smbolos com os quais os brasileiros se
identificam.
O herosmo convertido em espetculo pela mdia construdo e motivado pelos
feitos, realizaes. Logo, a sociedade moderna, como espao privilegiado de produo de
discursos sociais e dos espetculos esportivos, produz mitos jogadores de futebol como
smbolos nacionais, j que so heris da nossa ptria de chuteiras, conceitos relevantes
no imaginrio social brasileiro carente de dolos, que voltaremos abordar mais a frente.
1.3 A Copa do Mundo de 2010: um cenrio
1.3.1 A seleo em campo
Durante o perodo da Copa do Mundo FIFA de Futebol, o Brasil para. Ainda antes
do incio efetivo do evento, a onda verde e amarela j toma conta do pas, o nacionalismo e
o patriotismo so potencializados. notria a comoo e a emoo que tomam conta da
populao, quando todos passam a entender de tudo sobre o velho esporte breto,
fenmeno esse que ocorre em outros pases que tambm participam do evento como
Argentina e Uruguai, entre outros.
Os meios de comunicao, as empresas, as lojas exploram o nacionalismo e o
orgulho que o pas tem de seu futebol durante eventos esportivos como a Copa do Mundo.
Se o Brasil ganha a Copa, os jogadores e os atletas so apontados como heris. Se perde,
eles so hostilizados, criticados pela falta de garra e patriotismo, e em nenhum momento se
exalta a qualidade do adversrio.
25
A misso do Brasil na Copa do Mundo de 2010 era apagar a imagem da seleo
eliminada pela Frana em 2006, durante a Copa da Alemanha, e trazer o ttulo de
hexacampeo mundial do futebol. Para tal, o ex-jogador Carlos Caetano Bledorn Verri, o
Dunga, assumiu o cargo de tcnico da seleo canarinho com a responsabilidade de
reestruturar a equipe, apostando em novos jogadores e rejeitando alguns outros. Mesmo
sem experincia como treinador, a escolha de Dunga para o cargo se deu por conta de sua
vivncia no futebol e seu conhecimento do esporte, aps sua passagem pelo futebol italiano
e alemo, a disputa de trs Copas do Mundo, chegando final em duas delas, alm de seu
interesse pela funo do tcnico.
Com Dunga frente da seleo, o Brasil conquistou a Copa Amrica em 2007, a
Copa das Confederaes em 2009 e liderou as eliminatrias para a Copa do Mundo de
2010. Dessa forma, a seleo brasileira chegou ao Mundial de Futebol da FIFA como a
grande favorita e com a estatstica de ter sido a nica equipe a vencer uma Copa fora de
seu continente, primeiro na Sucia em 1958 e depois na Coria do Sul e Japo em 2002.
A grande inimiga do tcnico brasileiro durante sua passagem pela seleo foi a
imprensa. Dunga fechou os treinos dos jogadores, se escondeu da torcida, respondeu aos
jornalistas de forma agressiva durante as entrevistas, culpando a imprensa e a badalao dos
jogadores pela eliminao na Copa de 2006. Naquele ano, o diagnstico apontado para o
fracasso da seleo foi a abertura excessiva do ambiente e a badalao em torno dos jogadores.
Dessa forma, tentando preservar ao mximo seus jogadores, Dunga decidiu manter o esquema
de clausura, com uma estrutura de treinamento rgida e unidade de pensamento de toda a equipe
no mesmo propsito: o ttulo.
A seleo brasileira sempre foi referncia por seu futebol ofensivo, com dribles
envolventes e jogadores habilidosos. Em 2010, Dunga apostou num time de estilo baseado no
pragmatismo e numa atuao impecvel na retaguarda, o que teria complicado, segundo a
imprensa, quando o Brasil enfrentou adversrios que se fechavam na defesa, obrigando assim a
seleo construir jogadas.
Dos 23 jogadores convocados para a disputa do Mundial, 16 jamais haviam entrado em
campo durante uma Copa do Mundo. A mdia de idade do time titular era de 27,5 anos, e
apesar de experientes, os jogadores apresentaram instabilidade durante as partidas 9. Nenhum
9 Estas informaes esto baseadas nas coberturas da imprensa esportiva: O Globo Economia - 30/05/2010 p. 8 e Portal Uol Acesso em Agosto de 2011.
26
jogador do Brasil se apresentou para a disputa fora de forma, porm, nem todos estavam em
condies fsica das melhores. O caso que mais retratou este fato foi o de Kak, grande aposta
do tcnico, que passou parte do ano de 2010 fora dos gramados por conta de leso, o que fez o
jogador enfrentar dificuldade para adquirir ritmo de jogo. Outros jogadores tambm tiveram
problemas com leses antes da Copa do Mundo, como Jlio Csar, Lus Fabiano e Juan, sem
contar aqueles que desfalcaram a equipe durante a competio.
A seleo escalada por Dunga em 2010 para atuar na frica do Sul poderia ser
apontada como a representao maior do futebol nacional, que sob alguns aspectos o
retrato do Brasil. As regies Sul e Sudeste produziram em seus clubes 20 dos 23 jogadores
chamados pelo tcnico. As excees foram Josu, vindo das divises de base de
Pernambuco, Daniel Alves, que comeou seu futebol na Bahia, e o capito Lcio, que teve
boa parte de sua formao inicial no Distrito Federal. Dado relevante que a produo de
jogadores no Brasil encontra correspondncia nos indicadores sociais dessas regies,
quando o Sul tem maior ndice de Desenvolvimento Humano (IDH), seguido pelo Sudeste,
que lidera no PIB e no PIB per capita do pas, de acordo com matria publicada no jornal
O Globo (Caderno de Economia edio de 30/05/2010).
A lista de convocados para a Copa do Mundo de 2010 saiu na tarde do dia 11 de maio e
contou com os seguintes nomes: Jlio Csar, Doni e Gomes (goleiros); Maicon, Daniel Alves,
Michel Bastos e Gilberto (laterais); Lcio, Juan, Luiso e Thiago Silva (zagueiros); Gilberto
Silva, Felipe Melo, Josu e Klberson (volantes); Ramires, Elano, Kak, Jlio Baptista (meias);
Nilmar, Lus Fabiano, Grafite e Robinho (atacantes).
O tcnico levou para o Mundial os jogadores que j conhecia a forma de jogar, que at a
Copa havia conquistado a Copa das Confederaes e a Copa Amrica, logo aqueles nos quais
depositava confiana, ainda que nem todos estivessem bem em seus clubes, como o caso de
Felipe Melo e Jlio Baptista10
, ou ainda, Elano e Robinho que voltaram a atuar no Brasil aps
emprstimo para conseguir jogar durante a Copa, j que fora do pas estavam no banco de
reservas de seus clubes.
Grandes nomes ficaram de fora da lista dos convocados por Dunga, como Paulo
Henrique Ganso, Neymar, Adriano, Ronaldinho Gacho, entre outros, que vinham sendo
pedido pelos torcedores e pela imprensa. Os santistas Ganso e Neymar, vistos como promessas
10 Idem.
27
do futebol nacional e a possibilidade de despontar na Copa do Mundo, ainda figuraram na lista
dos sete suplentes e poderiam ser utilizados em caso de alguma contuso no grupo principal.
Durante a preparao tcnica da seleo para a Copa do Mundo realizada em Curitiba, a
relao de Dunga com a torcida foi de amor e dio, principalmente por conta do esquema de
clausura como j afirmado acima, quando torcedores brasileiros foram excludos dos
treinamentos e passaram a hostilizar o treinador. Porm, a seleo brasileira deixou a cidade nos
braos do povo, festejada por uma multido de torcedores que transformou o aeroporto
internacional de Curitiba num estdio, com direito a bandeiras e bateria. Essa festa sinalizou um
possvel pacto de paz entre torcedores brasileiros e Dunga, afinal a aposta da populao, como
sempre, era de vitria da seleo na Copa 2010.
J em territrio africano, por determinao da FIFA, o Brasil fez apenas um treino
aberto para moradores do bairro pobre do Soweto. Concentrados em Johannesburgo, o contato
dos jogadores com a torcida foi praticamente nulo. Tambm nas diversas solenidades e
homenagens que a seleo brasileira recebeu na frica do Sul, o representante da delegao
nacional foi sempre o tcnico Dunga, nunca acompanhado de jogadores. E durante as
entrevistas coletivas, a mdia pouco acesso tinha aos jogadores, diferindo muito a relao
jogador e imprensa estabelecida em 2006. Qualquer possibilidade de contato aps entrevistas
era inibida por esquema de sada rpida dos jogadores da sala de conferncia na concentrao
oficial da seleo. Os atletas saam sempre escoltados por funcionrios da Confederao
Brasileira de Futebol (CBF). Tal cenrio, quando os atletas evitam qualquer contato com o
pblico e imprensa, colabora com a problemtica de pouca identificao com a seleo
justificada pelo afastamento do dolo, aqui j abordada atravs de Helal (2011).
A seleo estreou na Copa com uma vitria, considerada pela imprensa como
inexpressiva, de 2 a 1 sobre a seleo da Coria do Norte, vista como a mais fraca no grupo
do Brasil, no qual ainda figuravam Costa do Marfim e Portugal, este ltimo visto como o
principal adversrio na fase classificatria. Burocrtica e comprometida11
com a
responsabilidade de armar nos ps de Kak, vindo de sucessivas leses no seu clube, a seleo
apenas cumpriu o dever de casa e coube ao jogador camisa 11, Robinho, assumir a criatividade
das jogadas da seleo.
11 Neste sentido, consultar os jornais O Globo 03/02/2010, Campeo 03/02/2010 e o Portal UOL especial
sobre a Copa de 2010, disponvel em .
28
O segundo jogo da seleo foi contra a equipe da Costa do Marfim, com o placar de 3 a
1 para os brasileiros, numa disputa em que os atletas tiveram que superar o jogo duro e violento
dos marfinenses12
. Com esta vitria, a seleo brasileira garantiu antecipadamente a
classificao para as oitavas de final, com o ressurgimento do craque Lus Fabiano com dois
gols, outra grande aposta de Dunga. Com este jogo, o Brasil impressionou os europeus e ganhou
elogios da imprensa13
.
O ltimo jogo da fase de grupos para o Brasil contra Portugal foi aguardado com
expectativa e com a promessa de jogo bonito, atraindo todos os olhares da imprensa e das
selees participante da Copa. Com a seleo brasileira j classificada para a prxima fase,
Portugal entrou em campo tambm sem desespero j que s perderia a vaga se Costa do Marfim
goleasse a Coria do Norte. O empate em 0 a 0, que classificou o Brasil como o primeiro do
grupo, realou o objetivo de jogar cautelosamente das duas equipes. O momento tenso do jogo
ficou por conta das jogadas rspidas envolvendo Felipe Melo e Pepe, alm da preocupao com
o goleiro Julio Cesar, que ao salvar uma bola sofreu pancada nas costas e deixou a vista um
cinturo utilizado como proteo ao local, o que gerou diversas especulaes sobre leses do
goleiro.
A equipe brasileira reconheceu que no esteve bem nos jogos na fase de grupos,
decepcionado a torcida que espera mais, e chegou as oitavas prometendo eliminar os erros
anteriores na partida contra o Chile, adversrio considerado fregus do Brasil durante a era
Dunga (foram cinco derrotas em cinco partidas ao todo)14
. Em entrevista para o Portal UOL
especial da Copa, o jogador Gilberto Silva declarou,
Erramos muitas bolas, algumas at ingnuas. Cometemos muitos erros nos passes. O Dunga teve razo [em esbravejar tanto na beira do campo],
pois no fizemos as coisas como estamos acostumados. Nas oitavas de
final no podemos errar tanto como hoje. A pegada daqui para frente
muda totalmente, no h espao para tantos erros. As coisas sero mais
complicadas agora. Todos precisaro se doar ao mximo. Portal Uol < http://copadomundo.uol.com.br/2010/ultimas-noticias/2010/06/25/brasil-
12 Fontes de Consulta: Portal Uol especial sobre a Copa de 2010 < copadomundo.uol.com.br > e Folha de So
Paulo . Acesso em agosto de 2011.
13 No sentido de conferir alguns comentrios da imprensa na Europa sobre a atuao da seleo brasileiro
neste jogo, acessar
14 Idem.
29
reconhece-divida-de-qualidade-e-tenta-eliminar-erros-antes-das-
oitavas.jhtm> . Acesso em agosto de 2011.
Atravs de jogadas de bola parada e contra-ataques, alm do primeiro gol de Robinho na Copa
da frica do Sul, os brasileiros conquistaram a vitria de 3 a 0 sobre a equipe chilena. Assim, os
jogadores seguiram mais confiantes para o jogo das quartas de final contra a Holanda.
A expectativa da partida contra seleo holandesa comeou envolta numa mstica em
torno do uniforme dos atletas brasileiros: a camisa azul utilizada pela ltima vez na Copa de
2002, quando venceu a Inglaterra nas quartas de final. E uma coincidncia ainda com relao ao
uniforme reforava tal mstica para o jogo: em 1994, tambm nas quartas de final, o Brasil
venceu justamente a Holanda usando a cor azul15
. Assim, pela segunda vez seguida, e na
mesma fase, o Brasil deixou uma Copa do Mundo. A Holanda aproveitou as oportunidades e
venceu o Brasil de virada por 2 a 1. Com falhas da zaga e do goleiro Julio Cesar, o que se
observou foi a falta de solues ofensivas na partida. A seleo passou a brigar em campo e o
jogador Felipe Melo, aps assistncia para o gol de Robinho, marcou contra e ainda foi expulso
por falta dura no adversrio, o que prejudicou o j abalado lado emocional dos atletas16
. A sada
da seleo brasileira do estdio Nelson Mandela Bay aps a derrota foi marcada por lgrimas
dos jogadores e proteo ao volante Felipe Melo. Kak tambm atraiu os microfones, afirmando
sua dificuldade e seu empenho para estar na Copa. O jogador, que esteve em campo durante os
90 minutos da partida nica que participou inteira, atribuiu ainda a derrota a detalhes decisivos
como as bolas paradas e ressaltou a comoo dos companheiros.
Aps a derrota, Dunga encarou uma rpida entrevista coletiva e confirmou seu
desligamento do cargo de tcnico da seleo. Os jogadores voltaram ao hotel enfrentando
xingamentos e hostilidades ao tcnico. Ricardo Teixeira, presidente da CBF, culpou o
descontrole emocional dos jogadores durante a partida contra a Holanda, considerando este
como um dos fatores responsveis pela eliminao precoce da seleo brasileira17
. O dirigente
aproveitou ainda para alfinetar a imprensa, culpando-a por inflar o ego dos jogadores
15 Idem.
16 Idem.
17 Idem.
30
brasileiros, colocando-os como deuses, sem que tivessem respaldo profissional para conviver
com o fato18
.
Apontada como a seleo que apresentaria o futebol mais bonito e ofensivo daquele
ano, a Espanha conquistou ttulo indito em cima da Holanda, com a defesa menos vazada,
alm do pior ataque da histria do Mundial. A Copa de 2010 ainda ficou marcada pela presena
do roqueiro Mick Jagger, pelas musas latino-americanas sempre em destaque durante as
partidas e pelo polvo palpiteiro, que num jogo de adivinhao acabou acertando quem ficaria
com o ttulo do mundial. Vale ressaltar que todas essas especificidades do evento de 2010
ficaram mais evidentes pelo papel desempenhado pela mdia na cobertura da competio, que
transcendeu o campo de jogo.
1.3.2 Economia e consumo na Copa do Mundo 2010
Como sabemos, a Copa do Mundo o evento esportivo que mais mobiliza a torcida
no Brasil. Brasileiros investem em enfeites, peas do vesturio, comidas e bebidas para
entrar no clima do evento e torcer pela seleo nacional. Hoje, com o crescimento da
indstria dos bens de consumo e varejo, existe grande variedade de produtos ligados ao
futebol, o que faz a torcida movimentar a economia nacional e o consumo no Brasil.
Com pesquisa da MasterCard International19
realizada durante a Copa de 2006, na
Alemanha, ficou evidente que os torcedores dos pases que possuem histricos mais
duradouros de participao nos mundiais de futebol, como o Brasil, tm maior tendncia a
consumir durante o evento. Esses torcedores se preparam para acompanhar a Copa do
Mundo, apresentando maiores probabilidades em gastar com vesturio, produtos
eletrnicos, nos supermercados e lojas de convenincia.
Atrelada s expectativas do mercado e da economia, a Copa do Mundo surge em
2010 como evento capaz de potencializar aes de marketing, promovendo concentrao
de pessoas, confraternizaes e estimulando o consumo. A situao econmica do pas em
2010 e o grande investimento em publicidade figuraram entre os motivos que colaboraram
18 Idem.
19 Pesquisa disponvel em: www.mastercard.com/br/geral/pt/imprensa/press_room_press_20060608.html.
Acesso em junho de 2011.
31
para alavancar as vendas e favorecer, principalmente, os setores lojistas, superando em
20% do que foi comercializado no ultimo Mundial, em 200620
.
O otimismo econmico dos brasileiros durante o ano de 2010, comprovado por pelo
instituto Nielsen de Pesquisa21
, revelou que o Brasil registrou 110 pontos, numa escala de 0
a 200, na pesquisa realizada sobre a confiana do brasileiro na economia do pas. Os
responsveis pela pesquisa revelaram que tal resultado pde ser explicado pelos baixos
nveis de desemprego registrados nos ltimos meses22
.
De acordo com o Servio Central de Proteo ao Crdito (SCPC), a Copa do
Mundo de 2010 teve forte impacto no consumo durante a primeira quinzena de junho do
ano, perodo em que os jogos iniciaram. Somando-se ao evento, o aumento na confiana do
consumidor baseado na segurana maior no emprego, o avano dos indicadores
econmicos no pas, a expanso do crdito e as projees favorveis sobre o Produto
Interno Bruto (PIB) tambm contriburam para esse avano do consumo no Brasil. Entre os
principais produtos vendidos que refletiram esse quadro observamos os televisores,
aparelhos de vdeo, celulares mveis e vesturio. Tambm o aumento significante do
consumo de bebidas e produtos perecveis, principalmente nos estados do Nordeste e do
Sudeste, nos primeiros seis meses de 2010, confirmou o bom momento da economia
brasileira.23
Com o mundial, a publicidade veiculada no Brasil s respirou futebol. Nos
intervalos comerciais de rdio e televiso, cerca de metade dos anncios fazia aluso aos
jogos. E, j durante a Copa, muitas empresas e vrias marcas colocaram jogadores para
correr, danar e fazer gols. De acordo com a Associao Brasileira de Propaganda (ABP),
as verbas destinadas comunicao das empresas no primeiro semestre de 2010 foram
25% maiores em relao ao mesmo perodo em 2009. (O Globo Economia 08/06/10
Pg. 27).
20 Dados disponveis em
21 The Nielsen Company uma empresa Global de informaes e mdia com posies de liderana na
indstria de informaes de mercado e consumidor, televiso, inteligncia on-line, mensurao de telefonia
celular, feiras e eventos e publicaes comerciais. . Acesso em agosto de 201.
22 Pesquisa disponvel em . Acesso em junho de 2011.
23 Dados disponveis em
32
Cyd Alvarez, presidente da ABP, avaliou o momento da seguinte forma:
Estamos em um momento em que todos se voltam para o tema futebol. Com os jogadores, as marcas conseguem criar uma conexo e falar direto
com o consumidor. Com essa Copa, a verba aumentou em mdia 25%. (O Globo Economia 18/06/10 Pg. 27).
Com a mobilizao do pas pelo esporte, ocorreu uma alocao de recursos neste
perodo e a economia aquecida acabou por favorecer o maior investimento em mdia. Para
especialistas, a mensagem das marcas incorporada ao tema Copa do Mundo transmite a
ideia de superao, desafio e vitria, e dessa forma, durante o evento, conseguem estar
presentes na cabea dos brasileiros. Entre os exemplos das marcas que criaram produtos
visando o Mundial, ou ainda, aproveitaram o evento para aliar sua imagem ao futebol,
citamos a Rexona - que investiu R$ 17 milhes no lanamento de novo produto
especialmente para o ano da Copa; a rede fast-food Bobs que investiu R$ 3 milhes na
campanha Torcida Bobs por meio de camisetas com o tema futebol e seleo brasileira;
alm da Brahma Chopp, Seara, entre outros. (O Globo Economia 18/06/10 Pg. 27).
Vrios foram os jogadores utilizados nas campanhas publicitrias que fizeram
referncia Copa do Mundo. Ainda que nem todos tenham sido convocados pelo tcnico
Dunga para jogar o Mundial e no estejam mais em atividade, puderam ser vistos com suas
imagens associadas ao futebol. A marca Seara, talvez apostando numa possvel
convocao dos jovens atletas Neymar e Ganso, do Santos, juntamente com Robinho, este
sim com participao garantida no evento, veiculou propaganda irreverente na televiso
que figurou entre os hits da Internet tempos depois da Copa encerrada. O ex-jogador Pel,
considerado ainda hoje o maior de todos os tempos, tambm foi lembrado durante o
Mundial e marcou presena em 11 campanhas simultneas durante a Copa do Mundo de
2010. Tal fato pode ser explicado pela forte representao do jogador como smbolo
nacional do esporte e a credibilidade que ele d a marca que anuncia. (O Globo
Economia 18/06/10 Pg. 27).
Assim, durante a Copa, pelo cenrio analisado, observamos que os lojistas
apostaram no sucesso da seleo canarinho e na possvel conquista do ttulo; entraram no
clima com a renovao do estoque e investiram pesado em promoes, lanamentos e
desconto nas mercadorias. No comrcio popular do Saara, na cidade do Rio de Janeiro, os
jogos de futebol, j em maio de 2010, fizeram o faturamento aumentar em 50%, conforme
33
afirmou Maiko Riche, proprietrio de quatro lojas no local. Segundo a Associao
Comercial do Rio de Janeiro, os cariocas gastaram em torno de R$ 30 milhes com tintas,
plsticos para bandeiras, tecidos, bandeirolas, cornetas e vesturio de forma geral para
torcer pela seleo brasileira. (Jornal do Brasil Economia 30/05/11 Pg. E4).
Com relao atividade da economia informal no pas, tambm esta se fortaleceu
com vendas dos mais diversos tipos de produto que remetiam ao patriotismo ligado ao
futebol. A expresso do nacionalismo durante o evento se deu, principalmente, pelo grande
uso da bandeira brasileira e da camisa da seleo, sendo ela oficial ou no. Outros produtos
como bons, culos, pulseiras e vuvuzelas24
tambm tiveram aumento significativo nas
vendas.
Abaixo, apresentamos grficos25
que comprovam os dados de alguns dos produtos
do varejo acima citados, de acordo com pesquisa realizada aps o Mundial pela eCMetrics
Consultoria de Marketing, especializada em construir e mensurar o relacionamento de
consumidores com marcas e produtos. O primeiro grfico apresenta dados referentes
inteno do consumo e algumas especificaes, como quem consome e a qual regio do
pas pertence. J o segundo traz uma amostragem dos itens mais consumidos pelos
torcedores brasileiros.
24 It's the vuvuzela, the noise-making trumpet of South African football fans, and it's come to symbolise the
sport in the country. It's an instrument, but not always a musical one. Describing the atmosphere in a stadium
packed with thousands of fans blowing their vuvuzelas is difficult. Up close it's an elephant, sure, but en
masse the sound is more like a massive swarm of very angry bees.
Acesso em setembro de 2011.
25 Para conhecer toda a pesquisa realizada pela eCMetrics, acesse
www.slideshare.net/JonatasDornelles/consumo-da-torcida-brasileira-na-copa-do-mundo-2010. Acesso em
junho de 2011.
34
Figura 1 Grficos representativos da pesquisa realizada pela eCMetrics.
35
Como observamos o verde e amarelo, no diferente de todos os anos de Copa do
Mundo, dominaram as vitrines em shoppings, as lojas de rua e o comrcio popular. J os
bares e restaurantes tambm se preparam para o melhor perodo de faturamento do ano,
com investimento na transmisso das partidas para atrair cada vez mais freqentadores.
Como os jogos foram realizados durante a jornada de trabalho, grande parte da populao
optou por assistir as partidas em locais pblicos, beneficiando os estabelecimentos que sem
prepararam para tal. Os bares e restaurantes, segundo pesquisa da Fecomercio26
realizada
no Rio de Janeiro, foram opo para assistir os jogos para 10% dos homens e 3% das
mulheres cariocas.
Durante a Copa do Mundo de 2010, tambm o consumo de Internet no Brasil sofreu
a significativa reduo de 60% em horrio considerado de pico em plena tera-feira. O
consumo s foi normalizado aps o trmino do jogo do Brasil, ainda que o uso da Internet
tenha apresentado pequena elevao durante a partida, provavelmente devido ao intervalo
do jogo. Porm, um estudo da Serasa Experian Hitwise, em pesquisa sobre a inteno das
pessoas ao visitar mais de 150 mil pginas por meio do maior painel de usurios do Brasil,
revelou que um ms antes da Copa do Mundo de 2010, em maio, o market share de visitas
a sites de venda de eletrnicos e eletrodomsticos cresceu 77,78% em comparao ao
mesmo ms em 200927
.
Sabemos que a chegada da televiso no Brasil contribuiu para maior popularizao
do futebol no pas. Com as conquistas da seleo nacional sendo acompanhada na tela ao
longo das dcadas, a Copa do Mundo se tornou o evento esportivo mais aguardado e
valorizado pelos brasileiros. Muito mais do que patriotismo, a mobilizao dos brasileiros
demonstra como o futebol est arraigado na cultura popular e como o evento representa um
momento de carnaval, festa e congregao nacional.
Com a possibilidade de assistir a Copa do Mundo de 2010 com transmisso digital
e em alta definio, os torcedores brasileiros buscaram aparelhos modernos no varejo de
eletro-eletrnicos, justificando tambm o aumento de visitas nos sites de venda tambm.
26 Fonte de dados: . Acesso em junho de 2011.
27 Fonte da pesquisa: http://www.serasaexperian.com.br/release/noticias/2010/noticia_00166.htm. Acesso em
junho de 2011.
36
Em pesquisa realizada pela Fecomercio do Rio de janeiro28
, observamos que cerca de 82%
dos entrevistados optaram por assistir aos jogos da Copa do Mundo em casa. Assim, a
estabilizao econmica, o aquecimento da produo e o alargamento do consumo, com a
ampliao da classe mdia pelo incremento do poder aquisitivo da classe C resultaram no
alto consumo durante a Copa e, incentivaram a corrida s lojas de televisores para
acompanhar a Copa do Mundo, na frica do Sul. Seduzidos pela propaganda e pela
promessa de um espetculo esportivo indito, os torcedores no hesitaram em lanar mo
de suas economias, do carto de crdito, ou do cheque especial para realizar o sonho de
consumo na poca29
.
A Copa do Mundo da frica do Sul rendeu bons frutos ao comrcio e indstria
brasileira em 2010, garantindo o crescimento na produo industrial e impulsionando as
vendas. Foram raras as empresas que no se renderam temtica do futebol para anunciar
seus produtos e servios.
Tambm a onda do patriotismo que tomou conta do pas durante a Copa de 2010
invadiu os supermercados, fazendo parte da decorao, dos uniformes dos funcionrios e
das promoes. Segundo a Associao Paulista de Supermercados, a procura por carnes
para churrasco, bebidas e salgadinhos apresentaram incremento de 15% em comparao ao
mesmo perodo de 2009, em funo das confraternizaes para assistir aos jogos. Entre os
produtos mais procurados, a pesquisa destacou a carne bovina e a cerveja.30
Para o setor de bebidas, o tipo de evento Copa do Mundo equivale a um incio de
vero ou a um carnaval a mais durante o ano. Logo, um perodo que seria de baixos ndices
de consumo de bebida, durante o inverno brasileiro, passa a ser visto como interessante e
rentvel para o mercado. 31
Para o Sindicato Nacional da Indstria da Cerveja (Sindicerv), o ano de 2010 vai
ficar na histria como aquele em que mais se vendeu cerveja no pas. O volume vendido
28 Fonte de dados: http://blog.netrevenda.com/2010/06/16/jogo-do-brasil-reduz-em-60-o-consumo-da-
internet/. Acesso em junho de 2011.
29 Com o fim da Copa do Mundo, os produtos eletrnicos ficaram mais baratos, de acordo com a anlise do
ndice de Preos no varejo (IPV), aferido pela Fecomercio de So Paulo. Com o trmino do mundial da
frica surgiram vrias promoes no comrcio varejista, o que pressionou os preos mdios dos produtos
eletroeletrnicos para baixo.
30 Fonte da pesquisa: . Acesso
em junho de 2011.
31 Guia do Engarrafador: . Acesso em agosto de 2011.
37
nacionalmente no ano ultrapassou os 126 milhes de hectolitros, cerca de 14 milhes a
mais que em 2009. E vrios foram os fatores responsveis pelo significativo aumento em
2010, quando o brasileiro passou a consumir mais cerveja, cerca de um crescimento de
19,2% no volume consumido por habitante. Desse modo, o Brasil passou a ocupar a 23
posio no ranking global no consumo de cervejas, quando em 2007 ocupava a 48
posio. Tambm outros fatores colaboraram com esse aumento, como o vero de altas
temperaturas, a Copa do Mundo e o aumento de renda imediata no bolso do consumidor
brasileiro, alavancada pelo aumento do salrio mnimo promovido pelo governo32
.
A seleo brasileira, aps as conquistas da Copa Amrica e da Copa das
Confederaes, antes do incio da Copa do Mundo, chegou ao mundial da frica como
uma das favoritas. E, por conta da derrota nas quartas de final para a Holanda, a Fundao
Getlio Vargas (FGV) divulgou no incio do ms de julho de 2010 que o comrcio deixaria
de arrecadar cerca de R$ 85 milhes, com produtos, acessrios parados nas prateleiras33
.
E com os dados divulgados pelo IBGE, observamos que a Copa do Mundo alterou
o padro de consumo do brasileiro e segurou a alta da inflao, mantendo a variao zero
do ndice de Preos ao Consumidor Amplo (IPCA). A principal razo para estes
indicativos est na paixo do brasileiro pelo futebol, que durante o evento modificou seus
hbitos de alimentao, as lojas de vesturio fizeram promoes de produtos ligados
Copa, as passagens areas aumentaram em funo dos feriados e festas de acordo com o
calendrio do evento esportivo. Tudo isso, logicamente, inserido no cenrio brasileiro de
economia aquecida, com boas taxas de emprego e de renda familiar34
.
32 Guia do engarrafador: Revista Janeiro de 2011. . Acesso em agosto
de 2011
33 Dados disponveis em: Acesso em agosto de 2011.
34 Dados disponveis em: . Acesso em junho de 2011.
38
2. O DISCURSO PUBLICITRIO DENTRE OS DISCURSOS MIDITICOS
Um dos dispositivos mais poderosos de veiculao de ideias e discursos em nossa
sociedade a mdia, atuando por meio de jornais, televiso, publicidade, rdio, entre tantos
outros mecanismos do nosso cotidiano. Na sociedade contempornea, podemos dizer que a
mdia o discurso que interpela os sujeitos com textos verbais e no verbais, permitindo
que estes produzam formas simblicas sobre a experincia sensvel da realidade que os
cercam. O papel da mdia a mediao entre os indivduos e essa percepo.
Todo o momento, os indivduos esto submetidos a um grande fluxo de informaes,
sons e imagens, que interferem em suas escolhas, atitudes, expectativas e formao de
valores, tanto que se torna necessrio ter conhecimento das normas que regem os tipos
discursivos existentes, do contexto em que as informaes esto inseridas, para que possam
interpretar o que veiculado pela mdia. O discurso miditico transmitido por qualquer
meio de comunicao muda a forma como o indivduo receber a mensagem, dependendo
do meio pelo qual veiculada. A produo das formas simblicas na mdia, empregada por
meios tcnicos de produo, transmisso e recepo de informaes pode induzir o
indivduo a crer e descrer no discurso, ou ainda manter-se inclume diante deste,
intervindo e influenciando o curso dos acontecimentos miditicos.
Para que a informao alcance seu pblico, apontamos a linguagem como um dos
elementos fundamentais no processo de transmisso da mensagem. Como forma de
conhecimento e saber, a linguagem seria aquela que retiraria o indivduo do desconhecido
para o conhecido. A linguagem est inserida em sistemas de valores que, de certa maneira,
guiam os signos de uma determinada lngua nas formas de comunicao. Tratamos aqui,
ento, da linguagem enquanto ato de discurso, que aponta a forma como a fala de uma
sociedade se organiza ao produzir sentido. O discurso est voltado para alm das regras da
lngua, sendo as imbricaes das condies extradiscursivas e das realizaes
intradiscursivas que produzem sentido (CHARAUDEAU, 2007: p. 40), ainda que
submetida a regras da lngua. Logo, nos interessa aqui essa troca simblica por meio dos
discursos, na qual os indivduos podem regular trocas sociais e valores, construindo
39
representaes, criando e manipulando signos e significados, e assim, produzir sentidos na
mdia. 35
Na campanha da Brahma que aqui analisamos, observamos que valores e
representaes do ser brasileiro so enfatizados em todos os filmes, propondo essa troca de
significados com o indivduo receptor da mensagem, o consumidor. Ao construir a imagem
do jogador de futebol heri, a campanha faz comparaes com o povo brasileiro, traando
analogias comuns em nosso meio social de que o brasileiro guerreiro, aquele que no
desiste da batalha. O discurso elaborado na campanha da Brahma pode no se encaixar nos
argumentos de que a linguagem faz o caminho do desconhecido para o conhecido, quando
parece reforar, reafirmar por meio do clich na interdiscursividade aquilo que conhecido
pelos consumidores. Podemos considerar que a temtica do brasileiro guerreiro j est
inserida em nossos valores sociais e culturais, bem como em outras campanhas da marca,
anteriores a Copa do Mundo.
Com base industrial, porque so produzidos para a massa, os discursos da cultura
miditica se organizam para atingir o maior nmero de indivduos possvel ou um
segmento especfico do pblico. Hoje, nos meios de comunicao, o discurso miditico se
apresenta saturado de imagens, narrativas, valores e ideologias que visam produzir sujeitos
que reproduzam esse mesmo discurso como sua identidade. A identidade dos indivduos na
sociedade contempornea est sendo cada vez mais mediada pelo discurso da mdia que
fornece moldes de modos de ser sociais e pessoais fludos, mutveis, construdos pela
moda, pela publicidade e pelo consumo. O que veiculado na mdia pode induzir os
indivduos a identificarem-se com ideologias, representaes sociais e polticas
dominantes. Kellner aponta que uma viso crtica sobre o discurso da mdia pode colaborar
na resistncia a uma suposta manipulao, objetivando o fortalecimento dos sujeitos em
relao mdia e cultura dominante.
Em Arqueologia do Saber, de Michel Foucault (2008), observamos a mdia tambm
como prtica discursiva social, produto da linguagem e do processo histrico, que constitui
os sujeitos e os objetos. Para compreender seu funcionamento fundamental o
entendimento sobre a circulao de enunciados, posies dos sujeitos, as materialidades
que envolvem os efeitos de sentidos e as articulaes desses enunciados com o contexto.
35 Sobre a Anlise do Discurso, enquanto teoria que estuda os efeitos de sentidos dos acontecimentos
discursivos, trataremos no captulo sobre a metodologia da presente pesquisa.
40
Assim a produo discursiva seria controlada e organizada por procedimentos que
determinam o que pode ser dito em um dado momento histrico.
Os lugares de construo da mensagem miditica so apontados como
fundamentais no processo de produo de sentido, de acordo com uma determinada
organizao feita da combinao de formas, pertencentes ao sistema verbal e a diferentes
sistemas semiolgicos: icnico, grfico, gestual. O sentido do discurso vai depender da
maneira como essas formas so estruturadas. Elas precisam ser reconhecidas pelo receptor
da mensagem para que assim se realize de forma efetiva a troca comunicativa. A Brahma
prope esse reconhecimento nos filmes sobre a Copa do Mundo de 2010 estruturando
signos icnicos facilmente identificados pelos consumidores por meio de imagens do
brasileiro trabalhador, do heri da batalha, do jogador de futebol, alm de mensagens
verbais como Eu quero guerreiros porque ns tambm somos e Somos 190 bilhes
juntos, do filme Lista de pedidos (2009). Dessa forma, os consumidores podem
reconhecer seu lugar na campanha e participar da troca comunicativa no discurso
publicitrio, ou ainda, podem ficar isentos mensagem sem produzir retorno ou lucro para
a marca ou produto anunciado. Observamos aqui o quanto o receptor poderia, de certa
forma, manipular a publicidade.
Ao pensarmos os espaos das condies da produo do discurso miditico, estes so
qualificados como externo-externo e externo-interno (CHARAUDEAU, 2007: p. 24).
O primeiro corresponde s condies socioeconmicas da mquina miditica, regulada por
prticas mais ou menos institucionalizadas, onde o modo de trabalho de cada organismo
miditico hierarquizado, assim como os modos de funcionamento e escolhas de
programao nos canais de Tev, por exemplo. Para a anlise das prticas e representaes
no espao externo-externo, faz-se necessria uma problemtica sociolgica, quando os
discursos que definem as intenes e justificativas das prticas organizacionais, ou ainda,
as orientaes de fundo econmico e financeiro, fazem parte do objetivo final da
publicidade, ou seja, vender o produto ou servio anunciado.
J o espao externo-interno, o qual aqui nos interessa mais, compreende as
condies semiolgicas de produo do discurso, que orientam a prpria realizao do
produto miditico, seja ele o programa de rdio, a matria no jornal ou o filme comercial.
Esse espao constitui um lugar de prticas discursivas, representado pelo discurso do que
se fazer para determinado pblico, com intencionalidade orientada por efeitos de sentidos
41
visados, sem ter uma noo exata se o efeito do discurso ser o desejado ao alcanar o
receptor. Uma anlise deste espao depende de uma problemtica sociodiscursiva, quando
o objetivo a busca dos efeitos esperados por essa produo discursiva miditica.
Para que um dado acontecimento modifique ou interfira no discurso miditico e
esteja inserido nas significaes sociais dos indivduos ele precisaria produzir algum efeito
social, gerando um desequilbrio no cotidiano dos sujeitos. Logo, ao pensarmos os fatos
que se destacam na mdia, percebemos a Copa do Mundo como aquele evento que interfere
no cotidiano social do Brasil, para exemplificar como tal processo se desenvolve. E como
a finalidade do discurso miditico informar e relatar o que ocorre no espao pblico, o
acontecimento e seu discurso, respectivamente, sero selecionados e estruturados de
acordo com suas caractersticas e potencialidades de atualidade, socialidade e
imprevisibilidade (CHARAUDEAU, 2007: p. 101). Assim, esse potencial do
acontecimento ser transformado em tendncia nos discursos da mdia, sendo abordado em
todos os meios possveis.
Como discurso miditico, inseridos no contexto de potencialidades de acontecimento
miditico, ressaltamos que a campanha da Brahma atende aos critrios de atualidade e
socialidade . atual porque aborda o evento Copa do Mundo, mobilizando toda a
sociedade (socialidade) na torcida pela seleo brasileira. Ao associar a imagem do
brasileiro e do jogador de futebol como guerreiros, a Brahma foge do critrio da
imprevisibilidade, j que a mesma temtica vinha sendo utilizada desde 2008, como
veremos no captulo referente anlise. Tambm associar a imagem de qualquer atleta
esportivo figura do guerreiro, do heri, lugar comum no discurso da publicidade.
No tocante atualidade na mdia, o que a define o espao e o tempo do
acontecimento e de sua prpria transmisso nas instncias da informao. O tempo no
discurso na mdia tratado de forma diferente segundo o suporte miditico que pe o
acontecimento em cena. Voltaremos, mais adiante, questo do suporte miditico e suas
caractersticas ao tratarmos especificamente dos filmes comerciais veiculados na televiso,
aps uma descrio sobre o funcionamento do discurso publicitrio frente aos demais
discursos.
42
2.1 Definindo um gnero discursivo
Com o intuito de analisar o gnero discursivo publicitrio no corpus escolhido para a
presente pesquisa, faz-se necessrio tecer antes breves consideraes sobre as abordagens
que podem ser feitas a partir da formao do gnero discursivo para prosseguirmos com
uma viso terica sobre a mensagem publicitria. Para tal, apresentaremos conceitos e
fundamentos do enunciado/discurso apontados pelos tericos: Bakhtin, Maingueneau e
Charaudeau.
Contudo, neste estudo no nos aprofundaremos na questo do gnero discursivo
inserido na tradio literria e em sua origem clssica, devido multiplicidade de critrios
para trabalhos e anlises que se utilizam nesta rea. Ao estudarmos o discurso das mdias, a
priori, abordamos