129

Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida
Page 2: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Guia Compacto

do Processo Penal

conforme a Teoria dos Jogos

Page 3: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

www.lumenjuris.com.brEditores

João de AlmeidaJoão Luiz da Silva Almeida

Conselho Editorial

Adriano PilattiAlexandre Morais da RosaCezar Roberto Bitencourt

Diego Araujo CamposEmerson Garcia

Firly Nascimento FilhoFrederico Price GrechiGeraldo L. M. Prado

Gustavo Sénéchal de Goffredo

Helena Elias PintoJean Carlos Fernandes

João Carlos SoutoJoão Marcelo de Lima AssafimLúcio Antônio Chamon Junior

Luigi BonizzatoLuis Carlos Alcoforado

Manoel Messias Peixinho

Marcellus Polastri LimaMarco Aurélio Bezerra de Melo

Marcos ChutNilo Batista

Ricardo Lodi RibeiroRodrigo KlippelSalo de Carvalho

Sérgio André RochaSidney Guerra

Conselheiro benemérito: Marcos Juruena Villela Souto (in memoriam)

Conselho Consultivo

Andreya Mendes de Almeida Scherer NavarroAntonio Carlos Martins SoaresArtur de Brito Gueiros Souza

Caio de Oliveira Lima

Francisco de Assis M. TavaresGisele Cittadino

João Theotonio Mendes de Almeida Jr.Ricardo Máximo Gomes Ferraz

Filiais

Sede: Rio de JaneiroCentro – Rua da Assembléia, 36,

salas 201 a 204.CEP: 20011-000 – Centro - RJ

Tel. (21) 2224-0305

São Paulo (Distribuidor)Rua Correia Vasques, 48 –

CEP: 04038-010Vila Clementino - São Paulo - SP

Telefax (11) 5908-0240

Minas Gerais (Divulgação)Sergio Ricardo de Souza

[email protected] Horizonte - MGTel. (31) 9296-1764

Santa Catarina (Divulgação)Cristiano Alfama Mabilia

[email protected]ópolis - SC

Tel. (48) 9981-9353

Page 4: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Folha de Rosto

Alexandre Morais da RosaDoutor em Direito (UFPR);

Professor de Processo Penal da UFSC; Juiz de Direito (TJSC).dos programas de Mestrado e Doutorado, em Direito,

da UFSC e UNIVALI.

Guia Compacto

do Processo Penal

conforme a Teoria dos Jogos

Editora Lumen Juris

Rio de Janeiro2013

Page 5: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Créditos

Copyright © 2013 by Alexandre Morais da Rosa

Produção EditorialLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Produção de ebookS2 Books

A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA. não se responsabiliza pelaoriginalidade desta obra nem pelas opiniões nela manifestadas por seu Autor.

É proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, inclusive quantoàs características gráficas e/ou editoriais.

A violação de direitos autorais constitui crime (Código Penal, art. 184 e §§, e Lei no 6.895,de 17/12/1980), sujeitando-se a busca e apreensão e indenizações diversas (Lei no

9.610/98).

Todos os direitos desta edição reservados à Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

Dados internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Ros788 Rosa, Alexandre Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos /Alexandre Morais da Rosa. — 1. Ed. – Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2013. ISBN 978-85-375-2235-6 (broch.) 1. Processo Penal – Brasil. 2. Teoria dos jogos. I. Título.

CDD 345.8105

Page 6: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Agradecimentos

Dedico este Guia aos parceiros de caminhada, em especial aos alunos da UFSC. Valeu“Morcegada”, UNIVALI, ao pessoal da 4a Vara Criminal de Florianópolis e da Turma de

Recursos. Aos amigos Jacinto Coutinho, Aldacy Coutinho, Lenio Streck, Aury Lopes Jr, DiogoMalan, Júlio Marcellino Jr, Juliano Keller, Rodrigo Mioto, Jonas Ramos, Marli Modesti, DeiseKrantz, Gláucio Vincentin, Eugênio Pacelli, Rosivaldo Toscano, André Karam Trindade, RafaelTomaz de Oliveira, Clarisse Tessinari, Clara Roman Borges, Marco Marrafon, Sylvio Lourenco

da Silveira Filho, Juarez Tavares, Geraldo Prado, Rubens Casara, Leonardo Costa de Paula,Márcio Staffen, Fernanda Becker, Izaura Hack, Aline Gostinski, Ana Cláudia Pinho, Gabriel

Divan, Alexandre Matzbacher, Ilidia Oliveira, Alexandre Bizzoto, Elmir Duclerc, MariaClaudia Antunes de Souza, Jaqueline Quintero, Paulo Ferrarezi, Alexandre Simas Santos,

Juliano Bogo, Alceu de Oliveira Pinto, Paulo Cruz, Jorge Andrade, Sérgio Cademartori, SérgioGraziano, Nereu Giacomolli, Aramis Nassif, Alice Biachini, Rosberg Crozara, Leonardo de Bem,

José Antônio Torres Marques, Maurício Zanóide, Ruth e Gabriel Gauer, Álvaro Oxley Rocha,Marcelo Carlin, Felipe Amorim Machado, Flaviane Barros, Cristiano Mabilia, Gustavo

Noronha Àvila, Thiago Fabres de Carvalho, Ilton Robl, Chico Monteiro Rocha, Felippe BorringRocha, Guilherme Merolli, Salo de Carvalho, Marcelo Pertille, Marcelo Pizolati, Guilherme

Boes, Giovani Saavedra, Rui Cunha Martins, Aroso LInhares, Adriano Lima, Márcio Rosa,Leandro Gornick, Maurício Salvadori, Ivan Cavalazzi, Ana Carolina Ceritotti. Não fiquem

bravos. No próximo coloco mais gente!!! Silvia Espósito está correta ao dizer: “Em pleno 2013ainda vivemos na Lei de Segurança Nacional.”

Em especial para Ana Luisa por me mostrar que se pode amar!

Em fevereiro de 2013.Alexandre Morais da Rosa

Page 7: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Instruções de Uso

1. O Guia Compacto de Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos pretendeaproximar a teoria do processo penal ao que se passa no mundo real. Não se trata deconstrução transcendente e imaginária, desvinculada do que acontece nos foros. Daí quesua estrutura diferencia-se da manualística em geral. Não é resumido, nemesquematizado. Muito menos simplificado. É compacto. Indicam-se online[1] asreferências bibliográficas que devem necessariamente ser consultadas para se ter adimensão do que se passa. Fornece, assim, elementos para releitura do processo penalbrasileiro a partir da noção de guerra e da teoria dos jogos.

2. Este Guia Compacto não pretende expor teorias mirabolantes e que se desfazemna primeira ida ao Fórum, nem aos repositórios de julgados. Também não pretende serrealista, ou seja, simplesmente acomodar as diversas decisões dos tribunais, em especialdo STF e STJ, fazendo parecer algo harmônico. Esse universo em que os manuais seapresentam, a saber, expondo os princípios (diversos) e depois repetindo o que seconstruiu no século passado acerca das noções de Jurisdição, Ação e Processo, já foi feito.Alguns muito bem e outros nem tanto. A pretensão desse livro compacto é o deapresentar uma visão em paralaxe[2] da questão do processo penal a partir da noção deguerra e da teoria dos jogos.

3. Alguns mais apressados dirão que não é novidade. Sim, há textos que trabalham aquestão, inclusive renomados. Entretanto, na lógica que se pretende estabelecer para oensino e prática do processo penal[3], as noções trazidas serão de conteúdo variado (RuiCunha Martins), longe de conceitos eclipsados no imaginário, desprovidos de serventia.Alguns poderão dizer que se pretende reinventar a roda (processo). É sempre umapossibilidade de crítica. O tempo dirá!

4. Importante: as questões relativas ao processo penal serão apenas referenciadas.Deve-se complementar, necessariamente, mediante a leitura de um dos Manuais a seguir:a) Aury Lopes Jr – Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2013; b) Eugênio Pacellide Oliveira. Curso de Direito Processual. São Paulo: Atlas, 2013; c) Paulo Rangel. DireitoProcessual Penal. São Paulo: Atlas, 2012; d) Gustavo Badaró. Processo Penal. São Paulo:Elsevier Campus, 2012; e) Elmir Duclerc. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2011; f) NICOLITT, André. Manual de Proceso Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.Dentre outras, poucas...

Page 8: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Sumário

CapaFolha de RostoCréditosAgradecimentosInstruções de Uso Preleção Introdução Capítulo 1° Para entender o Processo Penal a partir da Teoria dos Jogos e da Guerra

1. O processo como jogo2. Teoria dos Jogos3. O Jogo de Guerra Processual4. A teoria de processo como jogo processual

Capítulo 2° Por uma leitura garantista do Sistema de Controle Social1. Para introduzir o Garantismo Penal2. Garantismo não é Religião: é limitação do Poder Estatal3. Garantismo Penal e Direito Penal Mínimo

Capítulo 3° Sistemas e Devido Processo Legal Substancial1. Para uma noção de Princípio2. Princípio Acusatório versus Inquisitório: o falso dilema3. Devido processo legal substancial4. A Presunção de Inocência

Capítulo 4° Para um Processo Penal Democrático1. Nova leitura do Processo Penal: o discurso da eficiência2. Jurisdição revisitada: o lugar do julgador3. Ação: nova leitura4. Processo como procedimento em contraditório

Capítulo 5° Subjogos Pré-Processuais e Incidentais (Cautelares, Prisão e Liberdade,Inquérito Policial, Flagrante)1. Aspectos Preliminares (Denúncia Anônima, Testemunha Protegida, Investigação eLegalidade)

Page 9: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

2. Inquérito Policial (CPP, art. 4° – 23)3. Prisão em Flagrante4. Prisão Cautelar como Tática (de Guerra) no Jogo Processual5. Medidas Cautelares Assecuratórias6. Busca e Apreensão7. Interceptação Telefônica8. Quebra de Sigilo Fiscal e Bancário Capítulo 6° O Jogo Processual: Lugar, Procedimentos e Nulidades1. Lugar do Jogo: Competência2. Regras da Partida: Procedimentos (ordinário, sumário, sumaríssimo, júri, especiais)3. Subjogo de Nulidades Capítulo 7° Prova e Decisão: o Resultado do Jogo1. Subjogo Probatório2. Decisão Penal como bricolage Capítulo 8° Prorrogação: Recursos e Ações de Impugnação autônomas1. Recursos2. Ações Impugnativas Autônomas

Page 10: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Preleção

É costume começar prefácios com orgulhosas exibições de modéstia – com perdãodo paradoxo (“perdão”? paradoxos não são pecados carentes de perdão). Para não fugir àtradição, tampouco ao contexto deste livro, declaro solenemente que me sinto como umgandula de várzea convidado a comentar um gol de Messi. O resultado de umaexperiência dessas tem tudo para ser jocoso. Bem, como jocoso (jocosus) vem de jogo(jocus), parece apropriado.

Ora, o que dizer? Que Alexandre Morais da Rosa marcou um golaço! Só que isso é o“óbvio ululante”. Considerando que “só os profetas enxergam o óbvio” (NelsonRodrigues), preciso urgentemente dizer algo a mais, nem que seja errado. Até para nãocorrer o risco de ter seguidores. Então, vamos lá.

No princípio, era o ego. Assim como na guerra e no jogo, no processo cada um buscaegoisticamente a vitória (desequilíbrio), não a “justiça” (equilíbrio) – Huizinga. A Teoriados Jogos diz que esse comportamento egoístico produz um resultado pior para oconjunto de jogadores.

O detalhe é que há jogadores que não se limitam às suas partidas. É o “populismopenal” citado neste livro: mídia, políticos, crime organizado, pressões corporativas eatores forenses. Em defesa de seus interesses (egoísticos, estamentais, de classe etc.),querem criar condições para que os resultados do conjunto de jogos de seu interesse,inclusive os alheios, sejam praticamente determináveis ex ante. (Ou não, poisnormalmente tiram proveito profissional do cenário que criticam. Não obstante,levantam essa bandeira. E é assim que atuam na esfera pública.)

Se isso até pode ser defensável no processo civil sumulado, não o é tão facilmente noprocesso penal. Porque o espetáculo da punição (Nietzsche), potencializado pelasociedade do espetáculo (Debord), faz do processo penal o palco perfeito para opopulismo penal: sua interferência desequilibra ainda mais o jogo, pois tende a temperá-lo com pânico, como bem observa Alexandre Morais da Rosa, no presente livro. Ou seja,a demanda populista por segurança alimenta justamente a insegurança. Não à toa, essecírculo vicioso costuma ser o germe de tendências autoritárias. Há exemplos para todosos gostos, de Patriot Act a Star Wars.

Insuflada pelo clima de pânico, a turba que cerca o patíbulo forense pede umapalmatória maior, mas quem garante que ela será usada com “justiça”? Considerando as“cicatrizes” que ela traz desde sua própria invenção, justificação e produção(Castoriadis), talvez o próprio tamanho dela seja um fator a considerar. Se umapalmatória pequena como uma agulha é inócua, como manejar com precisão outra com ocomprimento de um poste? Como aplicar um “corretivo” com isso, sem errar o alvo? Ousem esmagar a mão punida? É necessário – novamente – equilíbrio, que gera segurança,

Page 11: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

mas não predeterminação do resultado, que chamaremos aqui de “certeza”. Explico.Por incrível que pareça, a falta de predeterminação (i.e., a “incerteza”) faz parte do

equilíbrio. Tomemos por exemplo um jogo muito mais constrangido pelos limitesespaciais, temporais e de regras: o xadrez. O primeiro lance das brancas pode resultar em20 posições distintas: 16 com o movimento de um peão, 4 com o de um cavalo. A mesmadiversidade de posições se repete com o primeiro lance das pretas. Isso significa que,após esses dois primeiros lances, nada menos que 400 posições diferentes são possíveis.Com o segundo movimento das brancas, são possíveis 5.362 posições distintas (cf.Bonsdorff et alii). E assim por diante. Como adivinhar qual delas será jogada? Eis aincerteza. Num jogo estruturalmente equilibrado como o xadrez, não se tem certeza davitória, mas a segurança de que ela não se dará por um lance ilegal ou por injunçõesexternas – nem sequer essa segurança oferece o jogo processual. Muito pelo contrário.

Claro que, dessas 5.362 posições, boa parte delas não costuma aparecer nostabuleiros, porque resultariam de péssimas jogadas (p.ex., 1.P3TR). Ou seja, razões deordem estratégica (escolha do tipo de abertura e de defesa) e tática (combinações) criampadrões de jogo que restringem, na prática, a enorme diversidade de posições previstasna teoria – ordem no caos? Mesmo assim, continua sendo impossível adivinhar, com100% de certeza, qual será a posição intermediária (subjogo). Que dirá a posição final.Daí que cada jogo é único. Bem assim cada processo (como nota Alexandre) – e commaior razão, dada sua maior complexidade.

É claro que há momentos na partida em que um jogador se vê encurralado, obrigadonão pela busca da melhor estratégia, mas pela posição desfavorável e pelas própriasregras do jogo, a fazer apenas um movimento forçado (p.ex., após um xeque bemaplicado). Ou impedido de fazer qualquer novo movimento (xeque-mate; trânsito emjulgado). Porém, um afunilamento de opções como esse reflete um desequilíbrioposicional (estratégico) em favor do seu oponente. Permanece viva, portanto, a hipóteselançada: maior desequilíbrio, maior certeza.

E quando há desnível técnico entre os jogadores? Quanto maior ele for, maior é apossibilidade de adivinhar não a posição final, que continua insondável, mas o resultadoda partida, que é o que importa. Creio ser desnecessário explicitar o paralelo disso com ojogo processual.

Em resumo, o jogo é equilibrado na justa medida em que seu resultado não épredeterminável. Isso me faz crer que as demandas populistas por um processo penalque assegure um resultado predeterminado, seja ele condenatório ou absolutório, nãoconseguem disfarçar o fato de que são demandas de desequilíbrio, i.e., que precisamdeste para impor sua pauta, sua agenda. Essas forças políticas, muitas vezes antagônicas,não fazem seus lances no varejo. Elas jogam um meta-jogo, muito mais complexo.Enquanto isso, deixam-nos brincar no tabuleiro processual. Servimos de cobaias, presas àilusão – mimicry – do círculo mágico do jogo (Caillois). Como ratos de laboratórioprocurando a saída do labirinto – e o sistema ka iano exige essa metáfora. Quem secontenta com um fio de Ariadne para encontrar o pedacinho de queijo com que quer serrecompensado ao final do trajeto (malgrado o risco de topar com o Minotauro), faça um

Page 12: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

favor a si mesmo: feche este livro, vá buscar um manual de auto-ajuda processual e sejafeliz. Mas quem quiser olhar acima das paredes do labirinto, procurar o que estárealmente “em jogo” neste laboratório (garantismo ou populismo, democracia oueficiência, etc.), parabéns pela escolha: este é seu Guia.

L.A. Becker

Mestre em direito pela UFPR, árbitro de xadrez pela Uniandrade e gandula adhoc de futebol-de-botão.

Page 13: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Introdução

1. Perguntaram a um louco que havia perdido a sua chave na floresta, por que estavaa procurando sob a luz do poste da rua, no que ele respondeu: aqui tem mais luz.Procurar flexibilizar as garantias constitucionais na perspectiva de resolver os problemasde Segurança Pública é procurar, como o louco, a chave no mesmo lugar. Lugar caolho, asaber, dos neoliberais.

2. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho há muito denuncia a maneira pela qual odiscurso da eficiência, inclusive Princípio Constitucional (CR, art. 37), para os incautos deplantão, embrenhou-se pelo processo penal em busca da sumarização dosprocedimentos, da redução do direito de defesa, dos recursos, enfim, ao preço dademocracia (Júlio Marcellino). A razão eficiente que busca a condenação “fast-food”implicou nos últimos anos na “McDonaldização” do Direito Processual Penal: Sentençasque são proladas no estilo “peça pelo número”. A “standartização” da acusação, dainstrução e da decisão. Tudo em nome de uma “McPena-Feliz”. Nada mais cínico e fácilde ser acolhido pelos atores jurídico, de regra, “analfabetos funcionais.”

3. A primeira questão, com efeito, a ser enfrentada é a do “ator jurídico analfabetofuncional”, ou seja, ele sabe ler, escrever e fazer conta; vai até à feira sozinho, mas éincapaz de realizar uma leitura compreensiva. Defasado filosófica e hermeneuticamente,consegue ler os códigos, mas precisa que alguém – do lugar do Mestre – lhe indique oque é o certo. Sua biblioteca é composta, de regra, pela “Coleção de Resumos”, um livroultrapassado de Introdução ao Estudo de Direito – desses usados na maioria dasgraduações do país –, acompanhado da lamúria eterna de que o Direito é complexo, porisso é seduzido por Paulo Coelho. Quem sabe, com alguns comprimidos de “prozac” oualgo do gênero, para, imaginariamente, dar conta. Complementa o “kit nefelibata” – dosjuristas que andam nas nuvens – com um CD de Jurisprudência ou acesso aos “sites” depesquisa jurisprudencial, negando-se compulsivamente a pensar. O resultado disto, porbásico, é o que se vê: um deserto teórico no campo jurídico, em que cerca de 60% – sendootimista – dos atores jurídicos são incapazes de compreender o que fazem. Para além da“opacidade do direito” (Carcova) e sua atmosférica mito-lógica (Warat), existe uma geléiade “atores jurídicos analfabetos funcionais”. Esses, por certo, não sabem compreenderhermeneuticamente, porque para isso precisariam saber pelo menos do giro linguístico(Rorty), isto é, deveriam superar a Filosofia da Consciência em favor da Filosofia daLinguagem. Seria pedir muito? Talvez. Mas é preciso entender que o sentido da normajurídica (norma: regra + princípio) demanda um círculo hermenêutico (Heidegger eGadamer), incompatível com os essencialismos ainda ensinados na graduação: vontadeda norma e vontade do legislador, tão bem criticados por Lenio Streck.

4. No campo Direito e Processo Penal, a situação é patológica. É que as geraçõesantecedentes, a saber, os atuais atores jurídicos (professor, juiz, promotor, procurador,

Page 14: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

advogado, delegado, etc), em grande parte, não sabem também compreender. São, namaioria, “juristas analfabetos funcionais” que pensam que pensam juridicamente e, nãoraro, ocupam as cátedras de ensino, incapazes, porque não dominam, de repassar umacultura democrática. Estes, portanto, muitos de boa-fé – reconheço –, acreditam queensinam Direito, quando na verdade ensinam o estudante de Direito a fazer a “feira dajurisprudência”. Esse processo de fazer a “feira da jurisprudência” significa encontraruma decisão consolidada, remansosa – como gosta de dizer o “senso comum teórico dosjuristas” (Warat). É facilitada atualmente pela adoção de posturas totalitárias, como a doSupremo Tribunal Federal ao editar no seu “site” a Constituição da Repúblicainterpretada pelos Ministros! Aplaudida pelos incautos de sempre, este documento éfascista, porque sob a fachada de informação, esconde interesses inconfessáveis de“normatização”, de uma “Constituição do Conforto Hermenêutico”. Não foi à toa que aEmenda Constitucional n. 45 consagrou a Súmula Vinculante, a qual deve ter resistênciaconstitucional, como quer Lenio Streck, redundando no que aponta como a “baixaconstitucionalização do Direito”.

5. Cabe destacar, também, no campo penal, que com a queda do Muro de Berlim e ofim da guerra fria, para justificação da opressão, precisou-se de um novo inimigo, nãomais externo, mas interno. Nesse contexto, o discurso de almanaque tornou, por razoáveltempo, a droga o grande bode expiatório dos males mundiais, justificando, assim, aintervenção dos “Guardiães Mundiais”, os Estados Unidos da América – EUA – napreservação do “bem mundial” (Rosa del Omo). Entretanto, com os ataques de 11 desetembro, o foco modificou-se para os “terroristas” (Walter Russel Mead). Essa figuraoculta, de difícil compreensão, desde uma intolerância ocidental, num mundoglobalizado (Beck), autoriza, pela “necessidade” a suspensão do Estado Democrático deDireito (Agamben). O desconhecido, o estrangeiro (Julia Kristeva, com base napsicanálise, sabe que ele atua justamente em nós), o mito, o demônio com novaroupagem, materializado pelo “terrorista” que funciona como um estereótipo de tudo oque atrapalha a “paz” da nova “ordem mercadológica neoliberal mundial”.

6. Agamben aponta que o poder encontra-se na “exceção”, a saber, na possibilidadede que se exclua a regra de aplicação geral e se promova, para o caso, uma outra decisão,apartada dos Princípios da Legalidade e da Igualdade. Esse poder encontra-se indicadopela estrutura, segundo a qual existe um lugar autorizado a escolher, que se encontra, aomesmo tempo, dentro e fora de uma estrutura jurídica, conforme o pensamento de CarlSchmi , na interseção entre o jurídico e político. Esta distinção, todavia, entre jurídico epolítico precisa ser problematizada, não se podendo colocar, em absoluto,incomunicáveis, apesar de ocuparem lugares diversos (Zizek e Werneck Vianna). Nestepensar, segundo Agamben, “o estado de exceção apresenta-se como a forma legal daquilo quenão pode ter forma legal.” Desta maneira, rompendo com uma concepção platônica deVerdade e Justiça, bem assim de que a linguagem não é o meio de adequação darealidade (Heidegger e Streck), o processo ganha um lugar de limite (Fazzalari e Catoni).Um limite que cerca, mas não consegue segurar o “poder de exceção”, até porque semantido o discurso da salvação, em nome da “bondade dos bons” (Agostinho Ramalho

Page 15: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Marques Neto), vale tudo.7. Evidentemente que esta afirmação precisa ser adubada com muita empulhação

ideológica – Direito Penal do Inimigo de Günter Jakobs, ou Teoria das JanelasQuebradas – importada do aplaudido primeiro mundo. Essa postura Pangloss (Voltaire)serve, muito bem, aos interesses ideológicos que manipulam os atores jurídicos. Comestes ingredientes, facilmente instaura-se o processo penal de exceção, cujo fundamentode conter as mazelas sociais e brindar os privilegiados consumidores com segurança,encontra antecedente histórico nas ditaduras. Plenos poderes, apreensões deaveriguação, prisão provisória de regra, tortura (psicológica, física e química), tudo passaa ser justificado em nome de um argumento cínico maior: o “bem comum”, consistentena segurança de todos, inclusive de quem está sendo apreendido e, eventualmente,excluído. O Direito de Exceção, em nome do bem dos acusados, e antes da Sociedade,suspende as garantias processuais, previstas na Constituição da República e nos Tratadosde Direitos Humanos, por entender que elas são um entrave à redenção moral do infratore à Segurança Coletiva. Assim é que, seguindo Agamben, é necessário se buscar pararesta máquina, para que os acusados não se transformem – mais ainda – na figura do“musulmán” de Auschwitz retratada por Agamben. Embalados pela necessidade deconter a (criada) escalada de atos criminal, ou seja, a estrutura cria a exclusão e depoissorri propondo a exclusão novamente, via sistema penal, e os excelentes funcionáriospúblicos nefelibatas – tal qual Eichmann –, na melhor expressão Kantiana, cumprem suasfunções, sem limites. Existe uma co-responsabilidade social (Zafaroni-Pierangeli), da qualsomente se pode tangenciar – como de costume – cinicamente. Para esses, no interessedo acusado, a necessidade derruba qualquer barreira processual, pois, sabe-se comAgamben, que a necessidade não tem lei, isto é, não reconhece qualquer limitação,criando sua própria lei. A construção fomentada e artificial de um estado de risco,adubada pelo terrorismo, faz com o que o discurso se autorize, em face das ditasnecessidades, a suspender o Estado Democrático de Direito, promovendo uma incisão deemergência e total.

8. Em nome da claridade surge a explosão do controle total, lembrando GeorgeOrwell, em seu “1984”. Entretanto, a obscena pretensão de transparência total, em nomedo (dito) interesse público, bem demonstrada na tese de doutorado de Túlio LimaVianna, esconde interesses ideológicos obliterados da discussão manifesta. É no latente,no que marca o “sublime objeto da ideologia”, para usar uma expressão de Zizek, quedesponta o que tocaia. Por isto que estas considerações procuram estabelecer um diálogoa partir da Economia. A eficiência do controle é compartilhada pela questão dos custos.A Análise Econômica do Direito Penal – “AEDP” – defendida por muitos, dentre elesPosner, inclusive uns que se alastram no Brasil, defende que o “crime” precisa, ainda enecessariamente, atender o critério de custos. O cárcere é caro, custa muito. O RDD –Regime Disciplinar Diferenciado – é simbolicamente importante para o discursototalitário (e inconstitucional), mas não justifica sua universalização por aumentardespesa. Logo, a pretensão de muitos é o estabelecimento de controles em liberdade, detoda a sociedade, tornando-se esta num “panóptico digital”. Perceba-se que com isto se

Page 16: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

controla, via um simples GPS ou um fone NEXTEL, a localização, por rua, do assujeitado,por Monitoramento Eletrônico ou mesmo via cartão de crédito e telefone celular, porsuas antenas. Além disso, controla-se onde se esteve e se impede, pensam, as re-uniõescriminosas. Daí é que em nome da eficiência do controle, invoca-se “Tim Maia” e “valetudo”. O Direito que procura fazer obstáculo é tornado, em nome da segurança de todos,reflexivo. Puro embuste.

9. De qualquer forma, isto é evidente, existe um inescondível condicionanteeconômico para que a realidade, entendida como os limites simbólicos, seja manipuladana ambivalência “medo-segurança”, que toca no mais íntimo e estranho do sujeito(Freud) . Monitorar, registrar e reconhecer, diz Túlio Vianna, para o seu próprio bem,implica, necessariamente numa versão de Estado Totalitário. A banalização ideológica,em nome do discurso único do capital, apresenta sob a flâmula sedutora da Liberdadetoda sorte de justificativas para o fenecimento da solidariedade. Com o egoísmo, osmeios, tudo passa a se justificar. As pretensões éticas (bem) e morais (bom) devem seadaptar às necessidades de um Mercado sem lei, sem limite, cujo muro se avizinha. Semlimite, por básico, não há desejo. A questão parece ser que a destruição da ficção Estadoabre espaço para a Liberdade representada pelo Mercado. Nessa ironia de defender aLiberdade de todos mediante o agigantamento do controle, parece-me, num giro delinguagem, aplicável plenamente ao discurso neoliberal e suas teorias (Justiça, DireitoPenal do Inimigo, etc..). O Direito Penal, no projeto Neoliberal, possui papel fundamentalna manutenção do sistema, eis que mediante a (dita) legitimação do uso da coerção,impõe a exclusão do mundo da vida com sujeitos engajados no projeto social-jurídiconaturalizado, sem que se dêem conta de seus verdadeiros papéis sociais. Acredita-se quese é um excepcional funcionário público, tal qual Eichmann (em Jerusalém), ou seja, umsujeito cuja normalidade indicava a “Normalpatia” apontada por L.F. Barros, isto é, noseu excesso patológico. Esta a submissão alienada é vivenciada dramaticamente pelosmetidos no processo penal.

10. O discurso do ‘determinismo positivista’ é realimentado em face dascondicionantes sociais, reeditando a necessidade de ‘tutelar’ os desviantes –consumidores falhos, “lixo humano”, como se refere Bauman – mediante prevenção,repressão e terapia. O Estado Intervencionista da ‘Nova Escola Penal’ está de volta na suamissão de defender os cidadãos ‘bons e sadios’ dos ‘maus e doentes’, desenterrando odiscurso etiológico, perfeitamente conveniente para mídia e para classe dominante. Sob omote de curar ao mal, tendo a sociedade como um organismo vivo, na perspectiva deuma vida social sadia, a violência oficial se mostra mais do que justificada: é necessária àsobrevivência social, ainda mais contra o “terrorista social”.

11. Agamben deixa evidenciado que o poder soberano se apropria do poder de dizero direito, podendo o Princípio da Legalidade cercar, sem nunca segurar, por básico, osentido que advém de um processo constante de compreensão. Entre texto (fato gráfico)e norma (produto da interpretação), diz Cordero, existem opções múltiplas que somenteos iludidos de sempre conseguem acreditar, em sua fé inabalável, em sentidos unívocos,ou seja, em segurança jurídica. O Princípio da Legalidade e a Segurança Jurídica, assim,

Page 17: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

são dois presentes trazidos por “Papai Noel” aos felizes “atores jurídicos analfabetosfuncionais” em Direito e que se esgueiram, todos os dias, nos foros deste imenso país. Asensação que se apresenta, em cada processo penal, é a de que se vive numa fantasiaparanóica, a saber, imaginária: uma farsa. Algo que foi nomeado (por mim) como sendoComplexo de Truman. Muitos acreditam que o processo é a realidade, perfeitamenteconstruída para apaziguar a falta nossa de cada dia. Uma fraude para manter os atoresjurídicos artificialmente felizes. Não há mundo além do processo, do semblanteconstruído por significantes. É a posição nefelibata. No filme foi preciso arrombar aporta para se dar conta de que existe mais. Enfim, que existe um mundo para além doconstruído artificialmente. Este é o desafio. Zizek, Warat e Mellman falam do homemsem gravidade, de baixa calorias, que vive por viver, vai – talvez embalado por umadestas teorias orientais da moda – sem eira nem beira. Mas existem vítimas! Que sedanem – dizem –, não sou eu. Essa lógica “do meu umbigo” move, de regra, os enleadosno processo penal. Uma fraude encenada em que se mantém a pose de democrata, commuita maquilagem cínica e a vítima, o Homo-Sacer de Agamben, não tem pena, se aplicapena.

12. As vidas que se escondem nos processos penais, na sua grande maioria, sãoirreais para os promotores, advogados e juízes que assistem como se fosse mais um filmede mau-gosto, protagonizado por artistas que não merecem o papel. Deveriam serretirados de cena. E são!. É preciso retornar ao que Zizek aponta como o “Deserto doReal”, saindo do semblante do universo processual artificial construído para quepossamos, como jogadores do processo, esquecer que existem pessoas morrendo. Gente.Como qualquer um intervenientes do processo. Mas como não se consegue ter adimensão do que acontece, dado que o semblante da ficção e suas verdades, para algunsReal, ocupa o lugar do que se passa. Esse discernimento entre o real e o ficcional é odesafio num mundo sem perspectivas que não o “Shopping Center”.

13. Acrescente-se a isto tudo um vagaroso e eficaz processo de cooptação ideológica,na linha de Gramsci, dos atores jurídicos, pretensamente participantes da classe média edo consumo. Sedentos por segurança querem excluir, prender, matar simbolicamente, osde sempre: o diferente. A perspectiva de que querem acabar com a nossa paz social –nunca obtidade ou mesmo existente – que transforma o “furtador” – de xampu a carteiras– no “terrorista” responsável por nossa toda a infelicidade coletiva. Então, cadeia neles!.Penas mais altas. Exclusão! Mas como não funciona, porque não dá conta, mesmo, surgea compulsão por mais condenações, prisões, execuções, ideías loucas de castração,coleiras, Sex offender, apitos....

14. Esses dias, um amigo – o Zé –, pessoa do povo, perguntou-me porque quem épreso em flagrante não vai direto cumprir pena? Por que o processo? Respondi queestamos, ainda, numa democracia em que o processo como procedimento emcontraditório (Fazzalari) é o mecanismo democrático para se apurar a responsabilidadede alguém. Ele me respondeu que não precisa. Entendi a posição dele, até porque umhomem pragmático. No Brasil, essa posição de execução antecipada, embora vedada pelaConstituição, continua sendo a prática. Basta perceber que se homologa flagrante

Page 18: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

formalmente em diversas comarcas, nega-se a soltura de meros conduzidos com asjustificativas mais loucas, tudo em nome da paz da sociedade, como Bush fez para atacaro mundo, bem sabem os Iraquianos. Isto bem demonstra a estrutura Inquisitória doSistema Processual Penal brasileiro que mantém a pose democrática, mas exerce a maisviolenta forma de sequestro preliminar da liberdade. Todavia, quem respira um poucode oxigênio democrático, sabe que somente o processo pode fazer ceder, via decisãotransitada em julgado, a muralha da presunção de inocência, justamente porque é aJurisdição a única que pode assim proceder. Ferrajoli bem sabe da impossibilidade de seextinguir as prisões cautelares (Leandro Goernick). Entretanto, mostra-se intolerável queas pessoas fiquem presas sem culpa, sem processo, presas pelo que são e não pelo quefizeram, em processos decorrentes de “furtos de moinhos de ventos”. O processo precisade tempo, e tempo é dinheiro. No mundo da eficiência, todavia, quer-se condenações nomelhor estilo dos Tribunais Nazistas. Imediatamente. Sem direito de defesa etransmitidas ao vivo, com patrocinadores a peso de ouro e muita audiência: plim-plim. Afórmula é a de sempre: Juvenal dizia: Pão e Circo. E quando acontecemprisões/condenações como a de Zé Dirceu e/ou Paulo Maluf a coisa fica pior, porque aEsquerda Punitiva é caolha, bem sabe Maria Lúcia Karam, não se dá conta de querelegitima o sistema penal, indica Juarez Cirino dos Santos. “Agora até o fulano vai preso”.E se Ele vai preso, com mais razão o “ladrãozinho” de frango de Televisão de Cachorrotambém. Então, quando se fala, na EC/45 de prazo razoável para os processos, muitosaplaudem a novidade, não fosse ela já uma velha disposição Constitucional, aderida aocorpo dos direitos fundamentais por força do art. 5o, § 2o, da CR/88. Para saber disso,contudo, seria preciso conhecer os Direitos Humanos, coisa que poucos conhecem... Daíque a barbárie se instaura e dá no que dá! Mediante um giro de sentido, os nazistas deplantão passaram a dizer que o a Sociedade (e não o acusado) precisa da decisão numprazo razoável e por isso a sumarização do processo, com a restrição da defesa. Asalquimias, como fala Aury Lopes Jr, começaram. Inverte-se a lógica em nome do Bem, doJusto, lugar sempre empulhador.

15. Demora-se muito para julgar porque fora a esculhambação que são os JuizadosEspeciais Criminais, onde vale tudo e se dá um tratamento rápido e inconstitucional aquestões sociais, a saber, dificilmente um Termo Circunstanciado é crime: pode ser brigaentre parentes, vizinhos, xingamentos, latido de cachorro, direito de vizinhança. Mascomo não se têm acesso ao Judiciário no Cível, resta a “queixa” na Delegacia. Umprograma de auditório de mau-gosto, onde os pobres entram com sua ficha deantecedentes e, até, com o corpo. No juízo comum, denuncia-se falta de pagamento deimposto, furto de sabonete, calcinha e coisas do gênero. Não sobra tempo, de fato, para oque importa numa sociedade em que o Direito Penal deveria ser mínimo (Ferrajoli e Salode Carvalho). Se for mínimo, contudo, não faz o que é sua função oculta (Bara a):criminalizar a pobreza, os consumidores falhos, mantendo a “hi-Society” nas suascoberturas sociais.

16. Alguma coisa anda fora da ordem, dizia Caetano há um tempo. Hoje as coisas jáestão dentro da nova ordem neoliberal mundial, inclusive o processo penal: Sumário,

Page 19: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

eficiente. De outro lado, o Conselho Nacional da Justiça, órgão criado para ser o GrandeIrmão de Orwell. Diretamente de 1984 para 2013, começa a fazer seus estragos, apesar deseu possível papel democrático. Um “denuncismo” sem precedentes, onde não rarosurgem as vaidades afloradas, os narcisismos das pequenas diferenças, diria Freud.Números, eficiência, empulhação... Para que direito de defesa se tenho que baixar o meumapa? Para que ouvida de testemunhas se o processo vai ficar no mapa? O JuizAstrólogo: só quer saber de mapa. Ainda mais quando depende da produtividade paraconseguir promoção! A pretensão de transparência e eficiência do Judiciário tornou asituação extremamente ambígua. Por outro lado, defende-se a formação permanente dosmagistrados via Escolas da Magistratura, as quais escondem o efeito de normatização dosjuristas analfabetos funcionais e, por outro, não se quer pensamento crítico, mascumprimento das decisões do STF e STJ. Eficiência, facilidade, cursos “rápidos de comofazer uma decisão” para aprender a posição dominante, controlar as idéias e do acesso àcarreira, bem sabia Lyra Filho. Enfim, a docilização, normatização indicada por Foucault.

17. O Processo Penal Democrático, assim, parafraseando Dworkin, precisa serlevado a sério. O problema fundamental reside no fato de que a justificativa para aexceção encontra-se encoberta ideologicamente. Acredita-se, muito de boa-fé, a maioria,de que se está realizando o bem. Salvando a Sociedade de um “Terrorista Social”.Esqueceu-se de que para o uso do poder existem pelo menos dois limites: o processo e oético (Dussel). Exercer uma parcela do poder em face dos acusados é muito maistranquilo para os kantianos de sempre, fiéis cumpridores das normas jurídicas, sejam elasquais forem. Os “acusados-terroristas-sociais” passam a ser uma das faces da vida nua,isto é, “homo sacer”, a que é matável, mas não sacrificável. Assim, os rostos do poderencontram-se maleáveis, mutantes, em torno de um lugar pensado para não pensar, maspara cumprir acriticamente. Os soldados juízes estão aí para aplicar a regra, numaFilosofia de “Cruz Vermelha” (Cyro Marcos da Silva), rumo a salvação eficiente das almasdestes pobres de espírito. Até quando viverão felizes para sempre? Rever e compreendera mirada é o desafio, sempre. A tarefa, percebe-se, não é singela, mormente porque énecessário abjurar o que se acreditou com tanta fé, além de se expor à crítica virulentados iludidos de sempre, cujo véu moral cega qualquer pretensão democrática, já queacreditam – o Imaginário deslizando – estar comprando um lugar no céu, na Ilha dosAbençoados. Não se pode ter medo de resistir. É preciso resgatar a ConstituiçãoOriginária, na linha de Paulo Bonavides, exercitar o controle de constitucionalidadedifuso e deixar de fazer como todo mundo faz. Porque assistir de camarote o que se passacom as vítimas do sistema penal não exclui nossa responsabilidade ética com as mortes:somos co-autores, do nosso lugar, por omissão. Por isso que ao se defender garantiasconstitucionais, hoje, o sujeito pode ser preso em flagrante, sem liberdade provisóriadiante dos “maus antecedentes”...

18. Quando Georg Lukács foi preso, o policial perguntou se estava armado, tendoeste lhe entregue calmamente a caneta. É preciso que as canetas pesemdemocraticamente, mediante processo penal garantista (Ferrajoli) a partir da teoria dosjogos. É preciso correr-se riscos, porque preferível perecer pelas extremos do que pelas

Page 20: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

extremidades, como aponta Baudrillard.

Page 21: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 1°

Para entender o Processo Penala partir da Teoria dos Jogos

e da Guerra

1. O processo como jogo

1.1. Em texto clássico – O processo como jogo[4] – Calamandrei afirmava quedecorar as regras de xadrez não torna o sujeito um grande enxadrista[5], bem como saberas regras processuais não o capacita, por si, como grande jogador processual. É claro queentender de dogmática (crítica) se constitui como pressuposto de atuação adequada. Issoporque o jogo processual se estrutura em 3 (três) níveis: (a) o das normas processuais; (b)do discurso lançado processualmente e seus condicionantes internos/externos e, (c) dasingularidade do processo (seu julgador e seus jogadores). Ao mesmo tempo em que aestrutura é universal (pelo menos normativamente, ainda que se possa discutir aaplicabilidade de algumas disposições em face da CR), a singularidade do caso demanda,no campo penal, a especialidade: cada decisão é uma decisão, não se podendo julgar em“bloco” no crime.

1. 2. As normas processuais ainda que possam buscar a estabilização dasexpectativas de comportamento processual, na sua dinâmica temporal e singular,acabam ganhando sentidos muitas vezes impensados ou mesmo condicionados a fatoresexternos. Esses elementos podem ser vistos desde uma postura estruturalmente (a)estática e (b) dinâmica, com informação (a) completa ou (b) incompleta. Daí que acompreensão idealizada do processo penal não se sustenta porque desconsidera ascontingências de cada jogo processual e a complexidade da questão hermenêutica[6]. Épreciso ir adiante e entender o processo penal como jogo dinâmico e de informaçãoincompleta. Para além do cumprimento das normas processuais deve existir táticavinculada à estratégia de conteúdo variado[7], a saber, por mais que durante a instruçãoprocessual a tese acusatória ou defensiva esteja antecedentemente posta, no decorrer,diante dos significantes probatórios envolvidos, do contexto processual, dos jogadores,do acusado, do julgador, cabem novos desígnios[8]. Enfim, as normas processuaisaparentemente apresentam elementos de universalidade, embora se saiba que ascontingências podem alterar os sentidos por diversos fatores (internos e externos)[9]. Aimaginação enleada pela trama processual penal é de fundamental importância. O FairPlay (jogo democraticamente limpo) decorre da batalha de habilidades entrecortada nos

Page 22: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

autos, não sendo permitido, assim, trapacear[10].1. 3. Estratégia não é apenas o nível operacional do jogo processual. É mais. Cada ato

do jogo processual existe no contexto de um processo singular no qual existem diversastáticas (meios de produzir provas, selecionar perguntas, temas, etc.). A sucessão de êxitospode terminar na próxima batalha (subjogo), dado que a cada momento a partida pode sereequilibrar. Há movimento no jogo processual e a batalha não está ganha até o final:dinamicidade. Assim é que as táticas (o que os jogadores fazem no decorrer da partida) ea estratégia (o uso dos resultados no objetivo do jogo) fornecem dupla articulação,comunicando-se a todo o tempo.

2. Teoria dos Jogos

2.1. A teoria dos jogos apresenta nova dinâmica de compreensão do processopenal[11]. O pressuposto é que o sujeito racional toma (sempre) decisões que lhe sãomais favoráveis, egoísticas, ou seja, as que lhe indicam maiores benefícios. Entretanto,nem sempre as decisões aparentemente melhores individualmente o são no contexto dejogos interdependentes, como acontece no Processo Penal, sendo o Dilema doPrisioneiro o exemplo teórico de tal modelo. Para se entender a proposta é precisoestabelecer os lugares do jogo: a) julgador (juiz, desembargadores, ministros; b)jogadores (acusação, assistente de acusação, defensor e acusado); c) a estratégia de cadajogador (uso do resultado), d) tática das jogadas (movimentos de cada subjogo) e; e) ospayoffs (ganhos ou retornos) de cada jogador com a estratégia e tática.

2.2. Com efeito, a Microeconomia[12] busca indicar as expectativas decomportamento dos sujeitos (escolha racional na busca de maximização de utilidade) apartir da relação entre fins (alternativos entre si) e meios (de recursos escassos)[13].Cooter e Ulen afirmam: “O direito frequentemente se defronta com situações em que há poucostomadores de decisões e em que a ação ótima a ser executada por uma pessoa depende do que outroagente econômico escolher. Essas situações são como os jogos, pois as pessoas precisam decidir poruma estratégia. Uma estratégia é um plano de ação que responde às reações de outraspessoas. A teoria dos jogos lida com qualquer situação em que a estratégia sejaimportante.”[14] No caso no processo Penal pode ser utilizado para fundamentar tantoestratégia processual como tática específica . Aceitar ou não a suspensão condicional doprocesso, transação penal, enfim, cotejar as informações e propiciar a tomada de decisõesde maneira a mais informada possível.

2.3. O Dilema do Prisioneiro foi criado por Merrill Flood e Melvin Dresher, em 1950,com repercussões em diversos campos do conhecimento, também no direito processual.É apresentado por Robert Nozik da seguinte forma: “Um delegado oferece a dois prisioneirosque aguardam julgamento as seguintes opões. (A situação é simétrica para os prisioneiros; elesnão podem se comunicar para coordenar as ações em resposta à proposta do delegado ou, sepuderem, ele não tem nenhum meio para forçar qualquer acordo que possam desejar). Se umprisioneiro confessar e outro não, o primeiro é liberado e o segundo recebe uma pena de 12 anos deprisão; se ambos confessarem, cada um recebe uma pena de 10 anos de prisão; se nenhum

Page 23: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

confessar, cada um recebe uma sentença de 2 anos.” Pimentel explica: “Qualquer que seja a açãodo outro, cada prisioneiro obtém um resultado melhor para si se confessar, isto é, se não cooperarcom seu parceiro. Imaginemos que o prisioneiro A confesse. O prisioneiro B pode confessar eambos pegam 10 anos de prisão, ou não confessar e pegar 12 anos de prisão: o melhor é confessar.Se A não confessar, B pode confessar e ficar livre, ou não confessar e pegar 2 anos de prisão. Maisuma vez, o melhor é confessar. O que quer que A faça, o melhor resultado individual para B éconfessar, isto é, não cooperar e entregar o companheiro. O mesmo raciocínio vale para A. O quehá de paradoxal nesta situação no entanto é que ao buscar o maior benefício individual,ambos chegam a um resultado pior do que aquele que teriam obtido se tivessem cooperado.De fato, se ambos confessarem, ambos terão uma pena de 10 anos, e se nenhum dos dois o fizer,terão uma pena de 2 anos. Há um conflito entre o cálculo do benefício individual e o melhorresultado coeltivo: se julgarmos que a decisão racional é aquela que leva o maior benefícioindividual, dois agentes que tomassem suas decisões seguindo um cálculo racional nãoconseguiriam o melhor resultado. Dito de outro modo, se ambos os jogadores confessarem, cadaum irá piorar o resultado obtido do que aquele obtido se não confessar, mas é possível atingiruma solução melhor para ambos se ambos desistirem de confessar.”[15]

2.4. A não cooperação entre os agentes leva a um resultado pior individualmente doque se houvesse a cooperação, isto é, a estratégia dominante é prejudicial. Daí que não sepode começar ou permanecer numa guerra/jogo por meio de julgamentos aparentementeracionais, desprovidos de avaliações contingentes das consequências das consequências.O Dilema do Prisioneiro demonstra que o resultado coletivo não decorrenecessariamente de escolhas individuais egoístas, mas de contingências e interaçõesinerentes ao jogo processual.[16]

2.5.. A teoria dos jogos para fins desse escrito será utilizada exclusivamente a partirda noção de “Jogos dinâmicos e de informação incompleta”. Dentre as diversasclassificações, acolhe-se a que se dá em 4 (quatro) modelos: a - jogos estáticos e deinformação completa: analisada todas as possibilidades e informações, a decisão se darápelo equilíbrio de Nash, uma vez que jogadores racionais fariam a melhor opção pessoal.Entretanto, tal situação é confrontada pelo Dilema do Prisioneiro, já que não seria umótimo de Pareto, a saber, a melhor racionalidade individual significa resultadoprejudicial para todos; b – jogos dinâmicos e de informação completa: ao contrário deuma jogada, a sucessão de estágios faz com que etapa – subjogo – exija constanteavaliação das possibilidades e antecipações de sentido, mas acabam, em cada subjogo,reiterando a opção individual do equilíbrio de Nash, ou seja estratégias não-cooperativas;c – jogos estáticos de informação incompleta; ainda que apenas um estágio de jogo, nãose sabe a avaliação dos demais jogadores, por exemplo, como acontece nos leilões em quenão sabe o valor que os demais jogadores darão ao bem leiloado. Prevalece a lógica deThomas Bayes, a saber, depende da crença nas probabilidades pessoais e morais, entãosubjetivas, não exclusivamente racionais/objetivas, e; d – jogos dinâmicos de informaçãoincompleta: é o modelo que se pretende aplicar ao processo penal, pelo qual se precisaentender que tipo de jogador se está enfrentando e qual o julgador a quem se dirige ainformação do jogo. Na fusão de horizontes de informação representando pelo processo

Page 24: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

penal, é importante (saber) antecipar as motivações (objetivas, subjetivas einconscientes) dos jogadores e julgador, especialmente no tipo de informaçãoapresentada e nas surpresas (trunfos) ainda não informados. O resultado depende dasucessão de subjogos e da informação-prova validamente trazida ao contexto do jogo.

3. O Jogo de Guerra Processual

3.1. Se o processo é uma guerra autorizada pelo Estado em que o mais forte nãonecessariamente ganha, mesmo assim, os fundamentos da Teoria da Guerra[17] podemser invocados para se buscar entender a lógica do processo penal desde que vinculadas àteoria dos jogos[18], até porque o fundamento da guerra e da pena é o mesmo (teoriaagnóstica da pena[19]). A guerra processual busca o confronto e a vitória, muitas vezessem levar em conta os custos e os recursos necessários e disponíveis, especialmentediante da escassez[20]. Daí que a existência de uma tática bem sucedida pode gerarespaço para negociação no iter processual. No decorrer da instrução, diante dassucessivas jogadas (subjogos), não raro, surge realinhamento dos objetivos possíveis.

3.2. A dinâmica do jogo processual entendido pela metáfora da guerra sustenta algoe m desequilíbrio. A questão é bem complexa e nessa versão compacta cabe sublinharque no processo penal se instaura modalidade de competição (jogo), na qual se podeinvocar o Equilíbio de Nash e entender o motivo da dificuldade de cooperação. No jogoprocessual, de regra, o julgador e os jogadores[21] tomam decisões egoístas a partir daanálise de custos e benefícios individuais (payoffs) e não levam em consideração asconsequências das consequências, a saber, as externalidades[22] e prejuízos individuais(dos demais jogadores) e à coletividade[23].

3.3. A incerteza e opacidade[24] do campo de batalha processual podem serchamados de atritos, como queria Clausewitz, ao exigirem a tomada de posiçãoestratégica e tática, antecipando os movimentos do jogador. A transformação doprocesso em jogo de guerra possibilita entender a pressão externa de personagens,especialmente do populismo penal[25]: a) mídia – vende o produto crime; b) políticos –que usam o medo como plataforma política; c) máfia, crime organizado , - lavagem dedinheiro, tráfico de drogas e pessoas, os quais podem intervir na prova (coação); d)polícia – para valorizar seu status; e) magistrados, Ministério Público, defensores. Essesnovos jogos penais viciados pelo populismo não servem para estabilizar, mas pararenovar o estado de medo e pânico. Se sabe que a pena não resolve, nem encaminha aquestão. A crença no aumento de punições e processos penais céleres, sem garantiasprocessuais, fomenta a sensação de segurança, tão imaginária quanto as históriasinfantis, ainda que vendidas pela mídia delivery e manejadas politicamente. Vende-se ocrime como o sintoma do mal a ser extirpado[26]. É preciso entender a relação entre jogoprocessual e política. Sem isso a leitura do processo penal e dos movimentos derecrudescimento é ingênua. O processo pode cooperar com o controle social. Não podeser um aliado de trincheira. Se assim se postar perde a dimensão coletiva de garantia quea razão exige. É necessária certa autonomia do processo penal. Não se pode condenar

Page 25: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

ninguém, em Democracia, em nome de fins políticos ou midiáticos. Daí a funçãocontramajoritária do processo penal: deve ser o jogo democrático pelo qual se pode, aofinal, se e somente se, cumpridas as normas, aplicar-se uma sanção estatal (Cap. 3o). Docontrário a trapaça prevalecerá[27].

3.4. Daí que o domínio das normas processuais, ainda que importante paracompreensão do fenômeno processual, depende, ainda, das noções teóricas (penais,processuais e criminológicas) do julgador e dos jogadores envolvidos, não sóformalmente, mas sim materialmente[28]. Poderão ser movidos pela vitória a qualquercusto – mesmo de provas ilícitas – em nome de um “bem” (dito) maior, por exemplo, adiminuição da criminalidade, ou pelo acolhimento de função de garantia (defesa dosdireitos individuais). Talvez a assunção alienada da noção de guerra seja verificávelquando o jogador, em nome do resultado, aceita mitigar os princípios da própria guerra,uma vez que a necessidade de vitória exclui a legalidade impeditiva do êxito. Ainda quehaja vitória, tal qual na trapaça, há mácula democrática. Se o resultado condenar sempreé o leitmov, pouco resta para impedir a fraude e a ilegalidade[29]. Essa tensão entresegurança coletiva e direitos individuais não é novidade[30]. De qualquer sorte,dependerá de escolhas antecedentes a maneira pela qual o julgador e os jogadores sepostarão diante da informação probatória trazida.

3.5. O processo judicial possui a tendência de ficar intenso e o momento deprodução probatória encontra seu ápice[31]. O atrito como a forma de dificuldades deinformação faz com que a prova seja sempre uma exceção e, como tal, inserida numalógica singular, sem universalismos. Deve-se, pois, (i) dominar a teoria processual e dedireito penal; (ii) ter-se experiência de jogo (de combate) ou treinamento e (iii) entendero caráter cambiante do jogo e das sucessivas rodadas (subjogos).

3.6. Parece inevitável que se possa compreender a ação do julgador e dos jogadoresno processo penal como o resultado de uma fusão temporal de horizontes (decisãojudicial) e perspectivas sobre o(s) mesmo(s) acontecimentos do mundo da vida(imputação). A racionalidade pública pela qual se apurará a responsabilidade penal doagente (culpabilidade) é o processo penal[32], pelo qual os jogadores (acusador edefensor) lançarão a estratégia (pretensões de validade) nos subjogos, mediados pelasnormas processuais (regulação da informação-prova), com o fim de obter a vitória(decisão favorável do julgador).

4. A teoria de processo como jogo processual

4.1. O processo penal, assim, é um jogo assimétrico de informação. Os jogadoresnão possuem, ex ante, todas as informações que comporão o acervo processual ao final dainstrução e há necessidade constante de reavaliações das táticas utilizadas. No jogosimétrico os jogadores sabem de antemão o conteúdo das informações existentes. Aqui,diferentemente, as informações são antevistas, mas somente acontecem na cenaprocessual, a saber, no decorrer dos subjogos. É certo que as provas periciais edocumentais são elaboradas de forma paralela e/ou antecedente. Mesmo assim, a

Page 26: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

valoração – atribuição de sentido – será debatida e consolidada somente no momento dadecisão judicial.

4.2. Nas situações estratégicas, nas quais o jogo não é cooperativo, a situação ficamais complexa, pois o resultado depende das decisões dos demais jogadores e oresultado é de conteúdo variável. Assim é que o enfrentamento do processo penalbrasileiro depende de posições antecedentes em relação a noções de Direito, TipoPenal[33], Constituição, Princípios, Regras, Norma Jurídica, etc., não se podendo falarem processo penal idealizado. Embora se tenha regras processuais disposta na CR e noCPP, em cada processo individualizado, com seu julgador e seus seus jogadores,acontecerá jogo único. As diversas compreensões comporão o fenômeno processualnuma verdadeira fusão de horizontes, naquilo que se chamou de bricolage designificantes[34] (Cap. 7o).

4.3. No caso do processo penal o jogador-acusador possui o dever legal de anteciparàs informações que pretende trazer ao jogo, enquanto o jogador-defensor organiza aestratégia e táticas a partir dos movimentos do jogador-acusador. Diante de uma ação daparte, no campo do discurso, abrem-se 3 (três) movimentos táticos[35]: a) silêncio/inação;b) contra-ataque; c) tangenciar/derivação. Essa dinâmica se divide em diversosmomentos probatórios e processuais, vinculadas à finalidade. No ponto de partida daação penal sabe-se que o jogador-acusador quer a vitória (expectativa de decisãofavorável: condenação), enquanto o jogador-defensor pretende também a vitória(expectativa de decisão favorável: absolvição). Diante da presunção de inocência,pressuposto do processo penal democrático, a saber, o acusado larga absolvido, a funçãodo jogador-defesa é evitar a tomada do “forte”, como nos jogos de guerra, ou seja,impedir a tomada dos domínios da presunção de inocência. Daí que ao longo da corridaprocesual os subjogos vão se sucedendo e é preciso antecipar os movimentosprocessuais[36], prevendo, ex ante, táticas críveis[37]. A quantidade e a qualidade dasinformações antes de cada rodada processual (subjogo) implicam em constantesalterações táticas[38] e de estratégia[39]. Buscar a Verdade Real “do” e “no” processopenal é uma forma ingênua e absurda de atuação. O desvelar subjetivo do jogoprocessual[40] apresenta o processo penal dentro do contexto dinâmico e sujeito àscontingências do mundo da vida[41].

4.4. No estabelecimento da dinâmica ataque-defesa a informação é assimétrica. Aacusação como primeiro ataque deve esperar a contra-ofensiva. Nas palavras de guerra a“tomada do forte” do jogador oponente é a meta. Nesse objetivo, não raro, precisa-seanalisar as possibilidades, adiar a ofensiva, alterar os meios probatórios, cotejando a todoo momento as melhores oportunidades. Não se trata de um check-list, nem de protocololinear. A instabilidade de cada rodada do jogo processual exige jogadores atentos aolance do oponente, bem assim a antecipação da antecipação das possíveis jogadas. Aincerteza aqui é inerente ao jogo processual e os cálculos permanentes. A informação ésempre parcial e vindoura. Depende das rodadas (subjogos). Ao final haverá aoportunidade de alegações finais, claro, mas isso não impede a existência de surpresas.Aliás, a surpresa, o benefício do terreno (conhecer o lugar e o julgador onde a partida se

Page 27: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

desenrola) e o ataque convergente (focado nos tipos penais objeto da ação penal) seconstituem como elementos necessários à compreensão do fenômeno processual.Antecipam, por assim dizer, as jogadas possíveis com o objetivo de vitória e a capacidadede compreensão do julgador. Esse desenrolar se dará pela “informação” incluída no jogoprocessual.

4.5. O controle da prova, dos jogadores, das cartas probatórias (informação), doconteúdo da audiência, da credibilidade, do boato, enfim, dos fatores cambiantes(significantes) da partida (guerra). A diferença no processo penal é que a acusação largana ofensiva, mostrando as cartas que pretende usar no jogo processual, enquanto adefesa se posta na espera. A acusação procura antecipar os movimentos da defesa,mitigando eventual álibi, mas mesmo assim a postura é pro-ativa. No decorrer da batalhaprobatória, eventual sucesso parcial não necessariamente conduz à vitória, justamenteporque o impacto pode ser revertido pelas jogadas posteriores. Daí que a manutençãodas vitórias parciais (subjogos) deve se dar a todo o momento, transformando a atitudede ataque em atitude defensiva. Dito de outra forma, obtidos significantes suficientespara condenação, a juízo do acusador, a postura passa a de defender o universoprobatório já alcançado. A reciprocidade de lugares (ataque e defesa) variam no decorrerdo processo. Ainda que a defesa nada tenha que provar, a assunção de postura passivaignora a lógica da guerra. Não se trata de aceitar a carga probatória da defesa na busca dacomprovação da inocência, a qual é pressuposta – o acusado larga absolvido –, dado que éa acusação que deve provar, no tempo processual, a culpa. A defesa [42] deve adotartáticas de resistência e atacar em dois campos: (i) coerência e (ii) completude. Acoerência e a completude das jogadas em face da acusação formalizada (imputação), ouseja, devem no seu todo guardar pertinência narrativa[43] e não deixar lacunassuscetíveis de inserir a dúvida (favor rei). A inserção de atrito na narrativa, instaurandolacunas, omissões, contradições, dúvidas, obscuridades, parece ser uma das táticasdefensivas, as quais não jogam com a qualidade isolada das jogadas, mas justamenteapontam as contradições de seu conjunto (CPP, art. 386, VII).

4.6. Estratégia, para acusação, é o uso do processo para objetivo da pena, enquantopara defesa é o uso do processo para objetivo da absolvição. As estratégias sãosimetricamente opostas. Superada a visão da verdade real, o processo como jogo einspirado pela guerra acolhe pretensões menos idealizadas e mais próximas da realidade.O processo penal é o uso do confronto em contraditório para garantia da Democracia. Éo palco onde acontece a guerra de informações, estratégias e táticas com o fim de vencero jogo processual. Esperar pelo momento de ação e não sofrer pela ânsia do golpe final.Ao mesmo tempo que cada jogo processual é singular (único), está inserido na dinâmicade processos repetitivos. Daí a formação de padrões táticos que podem não funcionarpela ausência de cuidado com as informações preliminares e as possibilidadesprobatórias. É o meio pelo qual o Estado sustenta o monopólio da força e justifica aaplicação de pena. Significa a estratégia para se evitar os combates reais, substituídospela metáfora de guerra: jogo processual, no qual as táticas de cada batalha (subjogos) seapresentam.

Page 28: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

4.7. A dinâmica caótica do processo impede a linearidade. A fusão de horizontesapresentada no processo judicial implica no reconhecimento de versão inventada ecorroborada. Jamais o certificado de acontecimento definitivamente comprovado. Adistinção entre Verdade Formal e Material demanda reconhecer em Kant[44] sua origem.A distinção entre duas formas de verdade forjou o mal entendido. A verdade formalvinculava proposições a leis do pensamento, falseando a realidade, enquanto a segundafundia essas percepções. A teoria da história mostra que fatos tidos como verdadeirossão controvertidos e que a versão oficial pode se distanciar no que de fato ocorreu,embora nunca se possa colocar-se uma última e definitiva versão. É claro que o processoao ser aparentemente retrospectivo[45] implica na escolha dos elementos maisinteressantes, os quais restam sublinhados. Sempre, contudo, são parciais e representaminteresses não ditos. É nos jogos de linguagem[46] que o significante probatório ganharásentido no contexto em que é invocado.

4.8. O domínio da informação nos jogos dinâmicos implica na possibilidade de setomar decisões terminativas do processo, ou seja, sem análise do mérito. Residejustamente na avaliação da prova possível (informação) a aceitação de benefíciosprocessuais (conciliação, transação penal, suspensão condicional do processo, delaçãopremiada[47], leniência, etc..). Com a informação até então apurada e as expectativas dossubjogos no horizonte, o jogador pode avaliar quais as implicações de se jogar ounão[48]. Dependendo do quantum da pena e da quantidade de processos em tramitação,bem assim da gestão da Unidade Jurisdicional, pode-se optar pelo processo e se buscaruma prescrição, como aliás, é a tónica nos processos dos Juizados EspeciaisCriminais.[49] Na estratégia manejada no caso de jogos repetitivos pode acontecer quecom a interação continuada os jogadores possam antecipar os sentidos já dados eobservar novas estratégias ou concessões. Podem transformar, com isso, o jogo em maiscooperativo ou não.

4.9. Dito de outra forma, o processo penal é um jogo mediado pelo Estado Juiz emque a fortaleza da inocência, ponto de partida do jogo, é atacada pelo jogador acusador edefendida pelo jogador defensor, sendo que no decorrer as posturas (ativa e passiva) sealternam reciprocamente, devido ao caráter dinâmico do processo, a cada rodadaprobatória (subjogos) e em face das variáveis cambiantes. O jogador-acusador pretenderomper com a fortaleza da inocência, enquanto a defesa sustenta as muralhas. Rompidoou antevisto ou rompimento, bem assim a impossibilidade, por que não negociar?Constitui-se num jogo de táticas processuais no decorrer do jogo processual guiado porestratégia dos efeitos pretendidos (pena).

4.10. Em resumo: O processo penal se estrutura como uma modalidade de jogoprocessual no qual há (a) conjunto de normas jurídicas; (b) que estabelecem expectativasde ganho/perda em momentos específicos (recebimento/rejeição da denúncia; absolviçãosumária; produção probatória (informação), condenação/absolvição – em diversasinstâncias), (c) mediante jogadas temporalmente indicadas (denúncia/queixa, defesapreliminar, alegações finais, recursos, similares), (d) para os quais o Estado Juiz emitecomandos (despachos, interlocutórias, decisões, acórdãos, similares) de vitória/derrota

Page 29: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

(total ou parcial).

Page 30: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 2°

Por uma leitura garantistado Sistema de Controle Social

1. Para introduzir o Garantismo Penal

1.1. Embora tenha sido editada uma nova Constituição em 1988 há inescondíveldéficit hermenêutico nos campos do Direito e Processo Penal no Brasil. A compreensãodo Direito Penal e Processual válido precisa de realinhamento constitucional do sentidodemocrático, uma vez que tanto o Código Penal como o Código de Processo Penal sãodocumentos editados, na matriz, sob outra ordem constitucional e ideológica, bem assimporque houve significativa modificação do desenho político criminal contemporâneo[50].Ademais, a Constituição acolheu os Direitos Humanos em patamar capaz de dar eficáciaimediata no campo de Controle Social[51]. De sorte que há a necessidade de adequaçãoda própria noção do papel e função do Direito e do Processo Penal diante daredemocratização do país. E, esse trabalho ainda está sendo realizado, basicamente porforça da (i) baixa constitucionalidade, entendida como a ausência de cultura democráticano Direito; (ii) necessária superação do aparente dilema entre sistemas acusatório versusinquisitório; (iii) herança equivocada de uma imaginária e nefasta “Teoria Geral doProcesso”, quando, na verdade, os fundamentos do processo penal democráticoassumem viés individual e não coletivo, a saber, não cabe “instrumentalidade processualpenal pro societate”[52]; (iv) difusão de modelo coletivo de “Segurança Pública” quefomenta uma certa “Cultura do Medo”; (v) expansionismo do Direito Penal erecrudescimento dos meios de controle social, a partir da lógica de diminuição dos custosestatais; (vi) prevalência de teorias totalitárias, como Direito Penal do Inimigo, atreladasao discurso da Lei e da Ordem[53].

1.2. Nesse contexto, parece que se mostra necessário repensar as coordenadassimbólicas do campo do Direito e Processo Penal adotada perspectiva crítica, mas sem sedescolar da realidadae, ou seja, da possibilidade de diálogo entre o saber produzido nocampo da Universidade e o que acontece no plano da prática forense, não na perspectivaunitária, mas sim de um diálogo proveitoso, em que o ponto de partida seja a realizaçãodo Estado Democrático de Direito[54]. Ainda assim, deve-se superar a noção idealizadade Jurisdição, Ação e Processo (Cap. 4o), partindo-se da teoria dos jogos (Cap. 1o).

2. Garantismo não é Religião: é limitação do Poder Estatal

Page 31: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

2.1. Para o fim de entender a intervenção Estatal se recorrerá ao balizamentoapresentando pelo “Garantismo Penal” de Luigi Ferrajoli[55], sem que ele se transformeem Religião[56], pois é passível de muitas criticas[57]. Partindo de sólida Teoria doDireito[58], Ferrajoli apresenta quatro frentes para compreensão de sua proposta[59]: (i)revisão da teoria da validade, diferenciando validade/material e vigência/formal das normasjurídicas; (ii) distinção entre as dimensões da Democracia entre formal e substancial,tendo os Direitos Fundamentais como índice; (iii) ratificação do lugar de garante domagistrado numa democracia mediante a sujeição do juiz à lei, não mais pela meralegalidade, mas da estrita legalidade, na qual a validade da norma (princípio e regra)devem guardar pertinência material e formal com a Constituição da República; e (iv)revisão do papel critico da ciência jurídica não mais com a missão exclusivamentedescritiva, mas acrescentando contornos críticos e de projeção ao futuro. Supera, assim, anoção meramente técnica, a saber, reconhece a responsabilidade do ator jurídico e não desingelo aplicador da norma.

2.2. Essa perspectiva teórica encontra esteio na Constituição da República dado quebaseada na dignidade da pessoa humana[60] e nos Direitos Fundamentais[61], os quaisdevem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena da deslegitimação democráticada ação. Em face da supremacia Constitucional dos direitos indicados no corpo deConstituições rígidas ou nela referidos (CR, art. 5º, § 2º), como a brasileira de 1988, e doprincípio da legalidade, a que todos os poderes estão submetidos, emerge a necessidadede garantir esses direitos a todos os sujeitos, principalmente os processadoscriminalmente, pela peculiar situação que ocupam. Há filiação à tradição de defesa dosDireitos Individuais em face do Estado, na linha Iluminista, sem se descurar dascontingências históricas[62].

2.3. Nesse pensar, Ferrajoli aponta quatro classes de direitos: (i) Direitos Humanos,os quais são os direitos primários das pessoas e concernem indistintamente a todos osseres humanos; (ii) Direitos públicos, que são os direitos primários reconhecidos somenteaos cidadãos; (iii) Direitos civis, os quais são direitos secundários adstritos a todas aspessoas humanas capazes de agir, tais como a liberdade de contratar, de negociar, deescolher e trocar de trabalho, vinculados à autonomia privada, na matriz capitalista deMercado; e (iv) Direitos políticos, os quais são direitos secundários reservadosexclusivamente aos cidadãos, no qual se baseia a representação e a democraciapolítica[63].

2.4. A partir desta matriz e aprofundando a proposta, Ferrajoli propõe quatro tesesem relação aos Direitos Fundamentais: (i) A diferença de estrutura entre DireitosFundamentais e Direitos Patrimoniais, dado que os primeiros são vinculados a todos ou auma classe de sujeitos, sem exclusão dos demais, enquanto os direitos patrimoniais, pelasua formulação, excluem todos os demais que não são titulares. Por certo o acordosemântico de Direito Subjetivo tem sido utilizado pelo Direito para ocultar ascaraterísticas antagônicas que subjazem a esta classificação aparentemente homogênea,mas que esconde uma enorme heterogeneidade. Para comprovar tal assertiva, bastaindicar: direitos inclusivos/exclusivos, universais/singulares,

Page 32: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

indisponíveis/disponíveis[64]; (ii) O respeito e implementação dos Direitos Fundamentaisrepresentam interesses e expectativas de todos e formam, assim, o parâmetro daigualdade jurídica, capaz de justificar a aferição da democracia material. Essa dimensãonão é outra coisa senão o conjunto de garantias asseguradas pelo Estado Democrático deDireito; (iii) A pretensão supranacional de grande parte dos Direitos Fundamentais , umavez que com as declarações internacionais, além do direito interno, uma ordem externaimpõe limites externos aos poderes públicos; (iv) A relação entre direitos e garantias . OsDireitos Fundamentais se constituem em expectativas negativas ou positivas, as quaiscorrespondem obrigações de prestação ou proibição de lesão – garantias primárias. Areparação ou sancionamento judicial constituem em garantias secundárias, decorrentesda violação das garantias primárias. A inexistência de garantias para efetivação dosdireitos, em suma, leva a uma lacuna que torna os direitos declarados inobservados[65].

2.5. Esse retorno à Teoria Geral do Direito se mostra absolutamente importantedesde que acolhidas as quatro teses, eis que implica revisão da estrutura do DireitoPositivo, com reflexos inafastáveis no Direito Penal e Processual Penal. Revisitada,portanto, a formulação dos Direitos Fundamentais, restam fixadas as diferençasmarcantes, consistente a primeira na circunstância de que os Direitos Fundamentais sãouniversais, enquanto os Direitos Patrimoniais são singulares, excludentes dos demais.Aqui existe um titular determinado; nos Direitos Fundamentais todos o são. Não sediferencia Direitos Fundamentais pela qualidade ou quantidade, como se procede nosDireitos Patrimoniais. Os Direitos Fundamentais são inclusivos e formam a base daigualdade jurídica, enquanto os Direitos Patrimoniais são exclusivos (se eu souproprietário da casa, o outro não é). A segunda diferença é, talvez, a mais relevante. OsDireitos Fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis,intransigíveis e personalíssimos. Ao contrário, os Direitos Patrimoniais são disponíveispor sua natureza, negociáveis e alienáveis. Estes se acumulam e aqueles permaneceminvariáveis. Os bens se adquirem, trocam se e se vendem. As liberdades não se trocamnem se acumulam. O fato de serem indisponíveis impede que interesses políticos e/oueconômicos violem os Direitos Fundamentais; não se pode vender ou trocar sualiberdade. O ser humano os possui como tal, sem que lhe seja acrescido. Resultado dissoé que se não pode alienar a vida, a liberdade pessoal ou o direito ao devido processolegal, por exemplo, mesmo que se queira. Em processo penal não é admitida a confissãodesprovida de outros elementos, como era na Inquisição. A terceira diferença,consequência da segunda, é que os Direitos Patrimoniais são disponíveis, podendo sermodificados, extintos, por atos jurídicos. Os Direitos Fundamentais, ao revés, sãoreconhecidos ex vi legis, por normas gerais, normalmente de status constitucional. Emsuma, enquanto os Direitos Fundamentais são normas, os Direitos Patrimoniais sãoregulados por normas. A quarta diferença consiste em que os Direitos Patrimoniais sãohorizontais, os Direitos Fundamentais são verticais, em um duplo sentido. Enquantoumas são civilistas, privadas, decorrentes de relações intersubjetivas da esfera privada, asde Direitos Fundamentais são publicistas, do indivíduo para com o Estado. Ademais, háque se considerar que os Direitos Patrimoniais são disposições de não lesão entre osparticulares; já no caso de Direitos Fundamentais, sua violação repercute na invalidade

Page 33: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

de leis e decisões estatais[66].2.6. A Teoria Garantista representa ao mesmo tempo o resgate e a valorização da

Constituição como documento constituinte da sociedade. Esse resgate Constitucionaldecorre justamente da necessidade da existência de um núcleo jurídicoirredutível/fundamental capaz de estruturar a sociedade, fixando a forma e a unidadepolítica das tarefas estatais, os procedimentos para resolução de conflitos emergentes,elencando os limites materiais do Estado, as garantias e direitos fundamentais e, ainda,disciplinando o processo de formação político-jurídico do Estado, aberto ao devir. AConstituição é uma disposição fundante da convivência e fonte da legitimidade estatal,não sendo vazio[67], mas uma coalizão de vontades com conteúdo, materializados pelosDireitos Fundamentais. A história do constitucionalismo é a progressiva ampliação daesfera pública de direitos, de conquistas e rupturas. Em outras palavras, a Constituição,nesta concepção garantista, deixa de ser meramente normativa (formal), buscandoresgatar o seu próprio conteúdo formador, indicativo do modelo de sociedade que sepretende e de cujas linhas as práticas jurídicas não podem se afastar, inclusive no âmbitodo Direito e do Processo Penal. Como primeira emanação normativa do Estado, apontaos limites e obrigações, sem se perder de vista que é no processo de atribuição de sentido(concretização) que se realiza.

2.7. Assim é que a Constituição da República é a norma maior, sendo o fundamentode validade material e formal do sistema. Advem disto o fato de que todos osdispositivos e interpretações possíveis, inclusive o de transformar substantivo emadjetivo – exclusivamente –, como acontece com o art. 144, § 4o, da CR, por exemplo,devem perpassar pelo seu controle formal e material, não podendo ser infringida oumodificada ao talante dos governantes públicos, mesmo em nome da maioria – esfera doindecidível –, dado que as Constituições rígidas, como a brasileira de 1988, devem sofrerprocesso específico para reforma, ciente, ainda, da existência de cláusulas pétreas. Naprática, a aplicação de qualquer norma jurídica precisa sofrer a preliminar oxigenaçãoconstitucional[68] de viés garantista, para aferição da constitucionalidade material e formalda norma jurídica. É somente assim se dá a devida força normativa à Constituição[69].

3. Garantismo Penal e Direito Penal Mínimo

3.1. No campo do Direito Penal o manejo do poder no Estado Democrático deDireito deve se dar de maneira controlada, evitando-se a arbitrariedade dos eventuaisinvestidos no exercício do poder Estatal. Desta forma, para que as sanções possam selegitimar democraticamente precisam respeitar os Direitos Fundamentais, apoiando-senuma cultura igualitária e sujeita à verificação de suas motivações, porque o poderestatal deve ser limitado, a saber, somente pode fazer algo – por seus agentes – quandoexpressamente autorizado.[70]

3.2. Assim é que no modelo ideal de Ferrajoli são indicados onze princípiosnecessários e sucessivos de legitimidade do sistema penal e, desta forma, da sanção[71].São eles: pena, delito, lei, necessidade, ofensa, ação, culpabilidade, jurisdição, acusação,

Page 34: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

prova e defesa. A ausência de um deles torna a resposta estatal, lida a partir doGarantismo, ilegítima, constituindo, cada um (dos princípios), condição daresponsabilidade penal.

São, assim, prescritivas de regras processuais ideais ao modelo garantista sem que oseu preenchimento in totum obrigue uma sanção; mas o contrário, pois somente com opreenchimento (de to)das implicações deônticas do modelo é que o sistema estáautorizado a emitir um juízo condenatório[72].

3.3. A classificação divide-se em: a) garantias penais: “delito”, “lei”, “necessidade”,“ofensa”, “ação” e “culpabilidade”; e b) garantias processuais: “jurisdição”, “acusação”,“prova” e “defesa”. Em sendo a “pena” excluída do rol de garantias, por ser apenas umapossibilidade ao cabo do processo, o modelo ideal full é composto por dez axiomas,vertidos em latim:

A1 Nulla poena sine crimine/ A2 Nullum crimen sine lege/ A3 Nulla lex (poenalis) sine necessitate/A4 Nulla necessitas sine injuria/ A5 Nulla injuria sine actione/ A6 Nulla actio sine culpa/ A7 Nullaculpa sine judicio/ A8 Nullum judicium sine accusatione/ A9 Nulla accusatio sine probatione/ A10Nulla probatio sine defensione.

Esses princípios garantistas podem ser vertidos em axiomas, respectivamente:

1) princípio da retributividade ou da consequencialidade da pena em relação aodelito; 2) princípio da legalidade, no sentido lato ou no sentido estrito; 3) princípioda necessidade ou da economia do direito penal; 4) princípio da lesividade ou daofensividade do evento; 5) princípio da materialidade ou da exterioridade da ação;6) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; 7) princípio dajurisdicionaridade, também no sentido lato e no sentido estrito; 8) princípioacusatório ou da separação entre juiz e acusação; 9) princípio do ônus da prova ouda verificação; 10) princípio do contraditório ou da defesa, ou da falseabilidade.

3.4. A par disto, cada sistema concreto poderá ser avaliado como de uma tendência ao’direito penal mínimo’ ou ao ‘direito penal máximo’, conforme satisfaça as condições antesindicadas, investindo-o de racionalidade e certeza, na melhor tradição liberal. Garantismo eracionalidade encontram-se, pois, imbricados na pretensão de construir a legitimidadedo sistema punitivo, mediante o estabelecimento de uma tecnologia apta edemocraticamente sustentada pelos Direitos Fundamentais. Essa certeza/racionalidadebuscada pelos Sistemas, divide-se, consoante cada modelo – máximo ou mínimo –, naseguinte opção segundo Ferrajoli: enquanto para o modelo máximo, a certeza deveimpedir que “nenhum culpado fique impune, à custa da incerteza de que também alguminocente possa ser punido”[73]; no caso do direito penal mínimo, a atuação se dá no sentidode que “nenhum inocente seja punido à custa da incerteza de que também algum culpado possaficar impune.”[74] Para o modelo penal mínimo, apesar da previsão em lei do tipo penal,somente se comprovada processualmente a conduta é que poderá se impor uma sanção,levando a sério a ‘presunção de inocência.’ De outra face, o modelo penal máximo golpeiaesta garantia, na ilusão de colher nas malhas do direito penal todos os culpados[75].

3.5. Acrescente-se que o Poder Legislativo encontra, ainda, a barreira material dos

Page 35: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Direitos Fundamentais em duplo sentido. Partindo-se do Direito Penal como última ratio(princípios da lesividade, necessidade e materialidade), a regulamentação de condutasdeve se ater à realização dos Princípios Constitucionais do Estado Democrático deDireito, construindo-se, dessa forma, modelo minimalista de atuação estatal quepromova, de um lado, a realização destes Princípios e, de outro, impeça suas violações,como de fato ocorre com a explosão legislativa penal contemporânea, quer pelasmotivações de manutenção do status quo, como pela ‘Esquerda Punitiva’[76]. Discute-se,no contexto, a necessidade de teoria fundamentadora/justificadora da sanção[77].Entretanto, a pena, longe de uma fundamentação jurídica, possui somente umajustificação política, de ato de força estatal. É afastada qualquer justificação, retributivaou preventiva, da medida, conforme explicita o Garantismo Jurídico, na pena tupiniquimde Carvalho[78]. Relegada a discussão abolicionista (Foucault, Mathiesen, Christie eHulsman)[79], assume-se a postura garantista-jurídico-penal, informada pelo Princípio daSecularização e da Laicização[80] do Estado, da Teoria Agnóstica da Pena . Essa teoria,percebendo a imposição como ato de poder, tal qual a guerra[81], imputa ao direito penala finalidade de redução das violências praticadas pelo Estado[82]. Existiria, portanto, umadupla funcionalidade da sanção. Primeiro impedindo a vingança privada (abusiva eespúria), eis que quem é juiz em causa própria se vinga desmesuradamente – baluarteIluminista e constante no pensamento do contratualista Locke[83]. Em segundo lugarrestringindo a manifestação do poder político estatal (pena) se dê sem limites, violandoos Direitos Fundamentais, nos exatos limites da estrita legalidade. Nada, absolutamentenada de retribuição ou prevenção (geral ou especial), consoante afirma Ferrajoli: “Oparadigma do direito penal mínimo assume como única justificação do direito penal o seu papelde lei do mais fraco em contrapartida à lei do mais forte, que vigoraria na sua ausência; portanto,não genericamente a defesa social, mas sim a defesa do mais fraco, que no momento do delito é aparte ofendida, no momento do processo é o acusado e, por fim, no momento da execução, é oréu.”[84]

3.6. Para o atendimento desta pretensão necessária a releitura efetuada do ‘Princípioda Legalidade’ não mais somente verificável pela edição formal da norma jurídica (meralegalidade, vigência), mas principalmente pelo preenchimento dos dez axiomasgarantistas (estrita legalidade, validade). O ‘Princípio da Legalidade’ precisa, então, serrelido, não bastando mais a simples previsão legal do tipo penal, dado que essalegalidade formal é fonte, em alguns casos, de um direito penal substancialista. Assim éque o Direito Penal secularizado precisa indicar tipos penais regulamentares, isto é, que sevinculem ao mundo da vida, impedindo, assim, que o processo sirva de mero simulacro.Dito de outra forma, as adjetivações ou perseguições tópicas, como no caso de ‘bruxas’,‘subversivos’, ‘hereges’, ‘inimigos do povo’[85] (ainda presentes formalmente, porexemplo, na Lei de Contravenções Penais[86]), dentre outros, estão expungidas doDireito Penal Garantista por não se vincularem a condutas possíveis, mas a elementosconstitutivos do sujeito[87]. É preciso que o tipo penal prescreva uma proibição,modalidade deôntica, sob pena de deslegitimação epistemológica do próprio tipo penal.Esses elementos decorrem da secularização do Estado (e do Direito Penal)contemporâneo, o qual deixa de lado os aspectos ditos ‘intrínsecos’ da conduta,

Page 36: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

adjetivada de imoral, anormal ou abjeta, para se resumir, no Estado Democrático deDireito, à expressa previsão legal do tipo penal, ou seja: “é aquele formalmente indicadopela lei como pressuposto necessário para a aplicação de uma pena, segundo a clássica fórmulanulla poena et nullum crimen sine lege.”[88] Agrega-se ao primeiro a impossibilidade dese analisar o interior (subjetividade do agente) – sempre arbitrária – nem o julgar porseus antecedentes ou conduta social, como fazia o ‘direito penal do autor’, restringindo-se democraticamente o objeto para “figuras empíricas e objetivas de comportamento, segundoa outra máxima clássica: nulla poena sine crimine et sine culpa.”[89] No tipo penal doautor inexiste conduta ‘regulativa’ a ser comprovada, senão situações ‘constitutivas’ dapersonalidade do acusado, independentemente da existência de ‘ação’ e ‘ofensividade’,sendo, pois, substancialista[90].

3.7. Partindo-se do Direito Penal como última ratio, ou seja, como o último recursodemocrático diante da vergonhosa história das penas[91], brevemente indicadas como demorte, privativa de liberdade e patrimonial, excluída a primeira pois desprovida de qualquerfim ou respeito ao acusado, as demais se constituem em técnicas de privação de bens, emtese, proporcional à gravidade da conduta em relação ao bem jurídico tutelado, segundocritérios estabelecidos pelo Poder Legislativo, na perspectiva de conferir caráter abstrato eigualitário ao Direito Penal. Ferrajoli sublinha: “A história das penas é, sem dúvida, maishorrenda e infamante para a humanidade do que a própria história dos delitos: porque maiscruéis e talvez mais numerosas do que as violências produzidas pelos delitos têm sido asproduzidas pelas penas e porque, enquanto o delito costuma ser uma violência ocasional e àsvezes impulsiva e necessária, a violência imposta por meio da pena é sempre programada,consciente, organizada por muitos contra um. Frente à artificial função de defesa social, não éarriscado afirmar que o conjunto das penas cominadas na história tem produzido ao gênerohumano um custo de sangue, de vidas e de padecimentos incomparavelmente superior aoproduzido pela soma de todos os delitos.”[92] Na sua proposta, Ferrajoli aponta para aconstrução de um ‘direito penal mínimo’, entregando para outros mecanismos deresolução de conflito – leia-se extra-penais – cuja necessidade de intervenção, viaaparelho repressor penal não esteja devidamente justificada. Este critério utilitaristareformado e humanitário procura garantir, também, que o sujeito não seja submetido àsimposições totalitárias de índole moralizante, uma vez que o discurso da reeducação éanti-democrático[93]. Assim é que somente nos casos em que os ‘efeitos lesivos’ dascondutas praticadas possam justificar os custos das penas e proibições, as sançõesestariam autorizadas.

3.8. Consequência direta desse princípio é a redução do número de tipos penais, adiminuição do tempo das sanções, as quais por serem longas demais, excluem o sujeitoda sociedade e são desumanas, mormente nas condições em que são executadas, bemcomo a deslegitimidade das sanções pecuniárias e dos ‘crimes de bagatela’, que nãojustificam nem mesmo a instauração do processo[94], além dos de cunho moralizante.Por isto que: “Se o direito penal responde somente ao objetivo de tutelar os cidadãos e deminimizar a violência, as únicas proibições penais justificadas por sua ‘absoluta necessidade’ são,por sua vez, as proibições mínimas necessárias, isto é, as estabelecidas para impedir condutas

Page 37: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

lesivas que, acrescentadas à reação informal que comportam, suporiam uma maior violência euma mais grave lesão de direitos do que as geradas institucionalmente pelo direito penal.”[95] Aaplicação de uma sanção exige a lesividade mensurável do resultado da ação, lida a partir dosseus efeitos. Essa é a carga do princípio da ‘lesividade’. Isto porque as palavras ‘dano’,‘lesão’ e ‘bem jurídico’ demandam uma atribuição de sentido, um preenchimentosemântico, vinculado aos fundamentos do direito de punir, ou seja, “com os benefícios quecom ela se pretendem alcançar.”[96] Resumindo a discussão sobre os equívocos da evoluçãodo conceito de ‘bem jurídico’, o qual deixou de ter como referencial o ponto de vistaexterno, na direção contrária do pensamento ‘Iluminista’, passando a tutelar situações deordem interna e autoritárias[97].

3.9. Com efeito, resta arredada a possibilidade da fixação, pelo Estado, de modeloúnico de comportamente interno, de pensamento, enfim, totalitário, abrindo-se espaçopara a construção da alteridade, dos direitos do cidadão a partir do ‘princípio da tolerância’,possibilitando o direito de pensar – liberdade de consciência – conforme as própriasconvicções morais e éticas[98], e tendo como parâmetro de atuação penal somente osefeitos da ação e jamais as potencialidades hipotéticas. Resta tutelada a liberdade daconstrução da singularidade da personalidade (ser perverso, mau, imoral, perigoso), atéporque essas ilações jamais poderiam ser objeto de um processo garantista, devido àimpossibilidade de reconstrução da conduta, ademais, inexistente. Não é sem motivo queFerrajoli anota: “Fica, pois, claro que o princípio da materialidade da ação é o coração dogarantismo penal, que dá valor político e consistência lógica e jurídica a grande parte das demaisgarantias.”[99] Embora seja fundamental a existência material da ação, desde o século XIXduas teorias solaparam esta garantia. A primeira fomentadora de um ‘delinqüentenatural’ e de uma ‘Defesa Social’, construída sobre a nefasta e insustentável noção de‘periculosidade’, a qual é aquilatada (!?) por critérios pseudo-científicos e absolutamenteinsustentáveis epistemológica e democraticamente, cujos herdeiros saudosistas aindafrequentam, diariamente, os foros. De outro lado, o ‘tipo de autor’, no qual a ação éreduzida ao analisar a personalidade do agente, livre de qualquer ação, com clarospropósitos ideológicos[100].

3.10. Atrelado à concepção de racionalidade e consciência, próprio da Modernidade, o‘princípio da culpabilidade’ é entendido como a decisão preliminar e consciente acerca davontade de agir, de intencionalmente compreender e proceder – elemento subjetivo – emface de uma regra regulativa. Essa decisão consciente contrapõe-se aos modelos queaceitam a responsabilidade penal sem culpa ou intenção: responsabilidade objetiva.Aponta como fundamentos políticos externos a ação material, seu caráter intimidatório, apossibilidade de previsão do agir social conforme as regras e as únicas (condutas) quepodem ser logicamente proibidas. Suas modalidades são o dolo e a culpa, com as diversasclassificações doutrinárias possíveis. O importante é que deva ser imputável a causa àação decorrente de ato de vontade[101], dado que há uma necessária diferença entre‘culpabilidade’ e ‘responsabilidade’, dado que esta é a sujeição à sanção comoconseqüência da conduta. O dilema metafísico do ‘determinismo’ e do ‘livre-arbítrio’resta superado, contudo, pelo Sistema Garantista (SG). Para os ‘deterministas’ a pessoa

Page 38: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

não poderia ter agido de outra forma, já que sua ação está condicionada a outros elementosque independem de sua vontade; o agente é objetificado. De outra face, os partidários do‘livre-arbítrio’ entendem que se não há um elemento externo capaz de abalar acapacidade psíquica do agente, este poderia ter agido de forma diferente. Ambas concepçõesdesconsideram o caráter material da ação, abrindo ensejo para práticas antigarantistas.Ferrajoli sublinha que “a consequência é que no primeiro caso temos um resultado sem culpa e,no segundo, uma culpa sem resultado, destituída da mediação, e, em qualquer dos casos, da açãoculpável.”[102] Corolário do ‘determinismo’ é a objetificação do sujeito e a preparação doEstado na ‘Defesa Social’ das personalidades desviadas e a construção do conceito de‘periculosidade’, o qual vem de encontro à construção histórica da culpabilidade. Já o‘livre-arbítrio’ deixa espaço para julgamento subjetivo do agente, como se fazia no‘direito penal do autor’, isto é, da culpa do homem e não de sua ação[103].

3.11. Para o ‘princípio da culpabilidade’ propugnado por Ferrajoli, são necessáriosdois requisitos: a) que o proibido decorra de uma comissão/omissão verificável numaação regulativa e não da subjetividade do agente; e b) que ex ante haja possibilidade destacomissão/omissão. Esta opção deixa de ser vista desde uma percepção ontológica,passando a ser deontológica de ‘eleição’ entre possibilidades de ‘ação’ e não de ‘ser’[104].Arredada, pois, a ideia de se imiscuir na personalidade do agente, perdem sentido asconstruções sobre a ‘capacidade criminal’, ‘reincidência’, ‘tendência para delinqüir’ eoutras preciosidades totalitárias e anti-democráticas construídas com base nasconcepções criticadas e marcantemente substancialistas e discricionárias, como severifica nos crimes de associação, por exemplo.

3.12. Nesse contexto garantista é que se pode analisar o panorama do estado da arteno Brasil, tarefa, todavia, para se continuar no cotidiano das violações diárias, palco dosdilemas de infetividade constitucional, desvelando, por um lado, a necessidade de teoriasustentadora da praxis e, de outro, que a noção de processo precisa ser lida pela teoriados jogos.

Page 39: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 3°

Sistemas e Devido Processo Legal Substancial

1. Para uma noção de Princípio

1.1. A leitura (da maioria) dos Manuais de Graduação apresenta um conjunto deprincípios que poderiam, em tese, fazer funcionar o processo penal. O contato comprocessos penais reais deixa evidenciado que: (a) ou quem opera não sabe da existênciados princípios, os quais são invocados ad hoc, ou (b), de outra face, sabia-se que não eraassim, isto é, o elenco de princípios é insuficiente, mas mesmo assim se ensina errado.Os princípios, assim postos, serve(ria)m para enganar. Pode parecer forte a afirmação.Contudo, a sensação é a de que são meras justificações retóricas para o decisionismo[105]e sua faceta de ativismo[106] punitivista, parecem evidentes. Daí que é preciso ir alémdas aparências. Talvez falte uma nova maneira de perceber os princípios.

1.2. Logo, o primeiro tema a se enfrentar é a própria noção de princípio[107].Necessário superar-se a noção diferenciadora e simplista da distinçaõ da norma jurídicaentre princípios e princípios para se demonstrar que os princípios devem fechar asregras do jogo processual, ainda que se fundamentem, todos, no “devido processo legalsubstancial”[108].

1.3. De qualquer forma, os princípios surgem da impossibilidade de dizer otodo[109]. Miranda Coutinho resgata a visão de princípio (do latim, principium) comosendo o início, origem, causa, gênese, entendido como motivo conceitual sobre o qual sefunda, por metonímia, a cadeia de significantes.[110] Ainda que este momento primevoseja impossível, porque a verdade é muito – no início era o Verbo –, tal regresso se mostraabsolutamente necessário, mesmo que seja um mito; mito necessário para o mundo davida[111]. E o mito, uma vez instalado, reproduz efeito alienante por parte dos atoresjurídicos, caso não se o desvele como tal, isto é, como uma não-realidade que sustenta arealidade. Por outras palavras, não é a causa do princípio que está ausente, mas suaexplicação que se encontra permeada pela falta, pelo inexplicável onticamente[112]. Daíem diante se estabelece uma cadeia de conceitos.

2. Princípio Acusatório versus Inquisitório: o falso dilema

2.1. Assim é que o Processo Penal estaria situado numa estrutura que possuicaracterísticas diversas e se divide, historicamente[113], nos sistemas[114] Inquisitório eAcusatório, surgindo contemporaneamente modelos que guardam características de

Page 40: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

ambos sem que, todavia, possam ser indicados, no que se refere à estrutura, comosistemas mistos[115]. São mistos ou sincréticos por acolherem características de ambosos sistemas, sendo incongruência lógica eventual denominação de terceiro gênero[116].Isto porque a compreensão de sistema decorre da existência de um princípio unificador ,capaz de derivar a cadeia de significantes dele decorrentes, não se podendo admitir acoexistência de princípios (no plural) na origem do sistema kantiano. Assim é que noSistema Inquisitório o Princípio Inquisitivo marca a cadeia de significantes, enquanto noAcusatório é o Princípio Dispositivo que lhe informa. E o critério identificador é, por suavez, o da gestão da prova. Sendo o Processo Penal atividade marcadamente recognitiva,de acertamento de significantes, a fixação de quem exercerá a gestão da prova e com quepoderes se mostra indispensável, no que já se denominou “bricolage designificantes”[117]. No Inquisitório o juiz congrega, em relação à gestão da prova,poderes de iniciativa e de produção, enquanto no Acusatório essa responsabilidade é daspartes, sem que possa promover sua produção. De outra face, no Inquisitório a liberdadedo condutor do feito na sua produção é praticamente absoluta, no tempo em que noAcusatório a regulamentação é precisa, evitando que o juiz se arvore num papel que nãoé seu[118].

2.2. Cordero[119] demonstra os motivos pelos quais o modelo Inquisitório sedesenvolveu, atendendo aos interesses da Igreja e de quem comandava a sociedade, emface da expansão econômica, exigindo que o poder repressivo fosse centralizado, comatuação ex officio , indepentendemente da manifestação do lesionado. O juiz passa deespectador para o papel de protagonista da atividade de resgatar subjetivamente averdade do investigado (objeto), desprovido de contraditório, publicidade, com marcasindeléveis (cartas marcadas) no resultado, previamente colonizado.[120] Assume, paratanto, uma ‘postura paranóica’ na gestão da prova, longe do fair play.[121]

2.3. Barreiros deixa evidenciada as características de cada um dos sistemas. Nomodelo Inquisitório: a) o julgador é permanente; b) não há igualdade de partes, já que ojuiz investiga, dirige, acusa e julga, em franca situação de superioridade sobre o acusado;c) a acusação é de ofício, admitindo a acusação secreta; d) é escrito, secreto e nãocontraditório; e) a prova é legalmente tarifada; f) a sentença não faz coisa julgada; e g) aprisão preventiva é a regra. Já no modelo Acusatório: a) o julgador é uma assembléia oucorpo de jurados; b) há igualdade das partes, sendo o juiz um árbitro sem iniciativainvestigatória; c) nos delitos públicos, a ação é popular e nos privados, de iniciativa dosofendidos; d) o processo é oral, público e contraditório; e) a análise da prova se dá combase na livre convicção; f) a sentença faz coisa julgada; e g) a liberdade do acusado é aregra[122].

2.4. Dentro dessa diferenciação e considerando a indeclinibilidade da Jurisdição,decorrência do ‘princípio da legalidade’, compete ao Estado organizar a maneira pelaqual o Processo Penal tendente à aplicação – ou não – de alguma sanção. A separação dasfunções do juiz em relação às partes se mostra como exigida pelo ‘princípio da acusação’,não podendo se confundir as figuras, sob pena de violação da garantia da igualdade departes e armas. Deve haver paridade entre defesa e acusação, violentada flagrantemente

Page 41: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

pela aceitação dessa confusão entre acusação e órgão jurisdicional, a saber, é vedadaqualquer iniciativa probatória do julgador.[123] Entendida nesse sentido, a garantia daseparação representa, de um lado, uma condição essencial do distanciamento do juiz emrelação às partes que é a primeira das garantias orgânicas que definem a figura do juiz, e,de outro, pressuposto da função da contestação e da prova atribuídos à acusação, que sãoas primeiras garantias procedimentais da Jurisdição. A assunção do modeloeminentemente acusatório, segundo Binder[124], não depende do texto constitucional –que o acolhe, em tese, no caso brasileiro, apesar de a prática o negar –, mas sim de uma“auténtica motivación” e um “compromiso interno y personal” em (re)construir a estruturaprocessual sobre alicerces democráticos, nos quais o juiz rejeita a iniciativaprobatória[125] e promove o processo entre partes (acusação e defesa)[126].

2.5. Em resumo: como sistemas históricos, atualmente os ordenamentos nacionaisguardam, por contingências diversas, características de ambos os sistemas, ou seja,inexiste sistema puro. Daí que se fala equivocadamente de sistemas mistos. Entretanto,falar-se de sistemas mistos não pode se dar na modalidade sistemática por ausência deum significante. Com essa dupla face instaure-se uma dupla legalidade e verdadeiraconfusão sob aparência de sistema. É impossível um sistema misto[127].

2.6. Se é impossível um sistema misto, qual o sentido em se continuar insistindo nodilema acusatório versus inquistório? Nenhum. Trata-se de fantasia a ser desvelada. Aconfluência de diversos fatores implica na compreensão de conteúdo variável[128] daprópria noção de sistema processual. Daí que Aroca[129] está correto ao afirmar que nãohá sentido em se invocar conceitos do passado para dar sentido ao presente, no contextodos sistemas processuais penais, justamente porque a estrutura de pensar se modificouem face do monopólio jurisdicional e constitucional. Isso implica, assim, na necessidadede realinhar a noção a partir da leitura dos documentos de Direitos Humanos(Declarações e Pactos Internacionais) e a Constituição da República. Manter-se a noçãohistórica somente ajuda a obscurecer, confundir e impedir a leitura constitucionalmenteadequada dos lugares e funções do e no processo penal, especialmente quando adotada ateoria dos jogos.

2.7. A própria noção de Constituição precisa ser revisitada. Não se trata dedocumento coeso e produto de um sujeito (coletivo) pensante. A Constituição daRepública de 1988 foi o resultado possível da confluência de fatores políticos, econômicose sociais marcado no tempo[130]. Buscar pela leitura isolada dos dispositivos a definiçãode qual sistema (acusatório ou inquisitório) teria sido acolhido é irrelevante – ainda quepossa ser útil para quem não supera o falso dilema. Há características de ambos ossistemas. O que se deve buscar, assim, é a diretriz global, cotejando os documentosinternacionais, a jurisprudência das cortes internacionais[131]. Para tanto se deve buscarguarida e pertinência formal e substancial no processo civilizatório democrático advindodas conquistas históricas, em especial com o devido processo legal substancial[132].

2.8. A Constituição da República embora se apresente como um documento único,apresenta-se como fusão de horizontes diversos. É o resultado histórico. Na Constituiçãoestão representados os direitos reciprocamente reconhecidos e os procedimentos eleitos

Page 42: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

para justificar a intervenção na esfera privada por imposição pública. Assim é que afunção do Direito de estabilizar expectativas de comportamento somente acontecemediante o devido processo legal substancial[133]. Pode-se falar em tesão entre o textoconstitucional idealizado e a realidade a partir de Habermas[134] mediante o abandonoda teoria do dois mundos (metafísica) e mediado pela linguagem, a qual irá operar, nesseescrito, a partir da teoria dos jogos e da noção de guerra.

3. Devido processo legal substancial

3.1. “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processolegal” (art. 5o, LIV, da CR/88). Essa disposição, ausente nas Constituições anteriores,trouxe o significante para o contexto brasileiro. Entretanto, longe de se buscar a vontadeda norma ou a vontade do legislador (discussão para quem desconhecehermenêutica[135]), cabe sublinhar que a história do significante é secular e já presenteno art. XI, nº1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem[136].

3.2. Discute-se sobre o conteúdo do “devido processo legal”, pelo menos, desde aInglaterra de João Sem Terra (1215)[137]. Mais: Não se trata de significante desprovidode história e tradição. Logo, parece abusivo e até ingênuo, como fazem, de regra, osmanuais de direito constitucional e processo penal, ao apontar simplesmente que o“devido processo legal é o procedimento estatal para restrição de direitos”. Essa leituradesconsidera toda a discussão histórica e por ela, quem sabe, possa se buscar uma chavede interpretação para o processo penal brasileiro[138].

3.3. É verdade que não se trata apenas trazer seus postulados. Precisa-se“tropicalizar” o instituto. Não para se adotar a mesma razão abstrata, nem muito menospara termos a construção havida na Inglaterra medieval, depois transposta o atlântico, edesenvolvida nos Estados Unidos da América. Contudo, há evidente diálogo entretradições e o Direito Continental não pode ser alheio ao que se passou no Direito Anglo-saxão, até porque influencia o direito brasileiro[139]. É preciso certa tolerância para quese perceba a dimensão da cláusula do devido processo legal, especialmente o qualificadod e substantivo, construída em mais de 800 anos (substantive due process of law). Hátrajetória de coerência na sua construção, não sendo fórmula desprovida de conteúdodemocrático, nem muito menos mera formalidade procedimental. Hoje em dia em facedos ativismos discutidos, bem como as novas formas de controle de constitucionalidade,parece alienado desconsiderar essa contribuição[140].

3.4. Ainda que rapidamente, cabe dizer que a imposição de cartas aos Reis naInglaterra – mesmo não se confundindo com a noção moderna de lei – foi o nascedourodo reconhecimento de que os direitos do soberado não eram mais absolutos, a saber, oRei também se submetia ao regime universal e seu poder não era mais plenopotenciário.A Terceira Carta Confirmatória de Henrique III preconizou: “Nenhum homem livre serádetido ou aprisionado ou despojado de seus meios de vida, de suas liberdades, nem de suasusanças livres, nem banido ou exilado, nem de modo algum molestado, e nós também não oatacaremos nem mandaremos alguém atacá-lo, exceto pelo lícito julgamento de seus pares ou

Page 43: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

pelo direito da terra.”[141] No ano de 1610, durante o reinado de Jaime I, Sir Edward Cokejá indicava a importância, na linha de Locke[142] e sua tríade, ou seja, da garantia davida, propriedade e liberdade. Aliás, o pensamento contratualista de Locke seráfundamental para se compreender que o contrato social não significou a alienação dosdireitos inerentes ao sujeito, mas o contrário[143]. Há um resto de liberdade pressupostoda intervenção estatal, a qual não foi, nem pode, ser alienada. É justamente a partir dessatríade – vida, propriedade e liberdade – que se deve buscar a matriz do significante.[144]A doutrina de Coke foi revigorada com a subscrição da Petition od Right, em 1628, porCarlos I, não se podendo mais: (a) aprisionar sem dizer-se as causas (Decorrente do casodos Five Knights), b) vedar Habeas Corpus contra atos reais; c) aplicação da lei marcial eaquartelamento em propriedades privadas. Faltavam, entretanto, instrumentos para suaefetivação.

3.5. É incerta na doutrina a recepção do devido processo legal nos EUA. De qualquersorte a supremacia da Constituição é noção que fundamenta a possibilidade de controlede constitucionalidade. A Constituição de 1791 estabeleceu na 5a Emenda: “Nenhumapessoa pode ser obrigada a responder por um crime capital ou infamante, salvo por denúncia oupronúncia de um Grande Júri, exceto em casos que surjam nas forças terrestres ou navais, ou namilícia, quando em serviço ou em tempo de guerra ou de perigo público. Nem se pode sujeitarqualquer pessoa, pelo mesmo crime, a ser submetida duas vezes a julgamento que lhe possacausar a perda da vida ou dano físico; nem será obrigada de forma alguma a depor contrasim mesma, nem será privada de sua vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processolegal; nem pode uma propriedade privada ser tomada para uso público sem justa compensação.”

3.6. Apressando o passo – para os fins desse Guia Compacto – cabe apontar que otrajeto não foi o de acolhimento do mérito do produto legislativo. A noção de lei foirevisitada pelo reconhecimento do direito dos Tribunais em controlar a razoabilidadedos atos do poder público (legislativo e executivo) quando violadores dos direitos devida, propriedade e liberdade[145], com a extensão da 5a Emenda aos Estados Membros,pela 14a Emenda: “Seção 1. Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, esujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado no qual residem. NenhumEstado deve editar ou executar qualquer lei que possa violar os privilégios e imunidades doscidadãos dos Estados Unidos. Nem pode qualquer Estado privar nenhum pessoa da vida,liberdade ou propriedade sem o devido processo legal; nem recusar a qualquer pessoa nasua jurisdição a igual proteção perante a lei. (...) Seção 5. O Congresso deve ter poderes parareforçar, por legislação apropriada, as provisões deste artigo.” Abriu-se, com isso, apossibilidade de intervenção do Judiciário Federal nas legislações Estaduais. Em 1803 nojulgamento, já nos EUA, MARBURY v. MADISON, sabe-se, o Juiz Marshall apontou anecessidade de contenção do poder Legislativo, a saber, a possibilidade democrática doJudicial Rewiew. Muito se poderia discorrer sobre o devido processo legal substancial.Entretanto, o que cabe marcar para os fins desse Guia Compacto é que a tradição expôsdiversos momentos, todos fundados na discussão da garantia da vida, propriedade eliberdade contra as ingerências do Poder Público[146].

3.7. Nesse contexto não se pode depois de 05.10.1988 permanecer-se alheio ao devido

Page 44: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

processo legal substancial, até porque há disposição expressa para seu manejo, consoantedesponta, por exemplo, do art. 282 do CPP. Na grande maioria dos Manuais e Foros acláusula é ignorada, como se fosse mero procedimento (aspecto formal). Cuida-se daampliação da tutela da vida, propriedade e liberdade modulados a partir do Garantismo(Lição 2) e vinculados à tradição democrática[147].

3.8. O Supremo Tribunal Federal manifestou-se sobre sua aplicabilidade ao campopenal: “O exame da cláusula referente ao “due process of law” permite nela identificar algunselementos essenciais à sua configuração como expressiva garantia de ordem constitucional,destacando-se, dentre eles, por sua inquestionável importância, as seguintes prerrogativas: (a)direito ao processo (garantia de acesso ao Poder Judiciário); (b) direito à citação e aoconhecimento prévio do teor da acusação; (c) direito a um julgamento público e célere, semdilações indevidas; (d) direito ao contraditório e à plenitude de defesa (direito à autodefesa eà defesa técnica); (e) direito de não ser processado e julgado com base em leis “ex postfacto”; (f) direito à igualdade entre as partes; (g) direito de não ser processado comfundamento em provas revestidas de ilicitude; (h) direito ao benefício da gratuidade; (i)direito à observância do princípio do juiz natural; (j) direito ao silêncio (privilégio contra aauto-incriminação); (l) direito à prova; e (m) direito de presença e de “participação ativa”nos atos de interrogatório judicial dos demais litisconsortes penais passivos, quandoexistentes.[148]

3.9. A ampliação das garantias contra o arbítrio do Estado[149] é decorrência dacompreensão autêntica do devido processo legal substancial[150]. Dialeticamente seanalisa, caso a caso, as consequências da ação Estatal a partir dos efeitos sobre a vida,propriedade e liberdade do sujeito, tanto na perspectiva formal como material[151].

3.10. Para operacionalizar o devido processo legal substancial se recorre ao princípioda proporcionalidade (razoabilidade)[152], o qual deve sempre ser aquilatado em face daampliação das esferas individuais da vida, propriedade e liberdade, ou seja, não se podeinvocar a proporcionalidade contra o sujeito em nome do coletivo, das intervençõesdesnecessárias e/ou excessivas. No processo penal, diante do princípio da legalidade, aaplicação deve ser favorável ao acusado e jamais em nome da coletividade, especialmenteem matéria probatória e de restrição de direitos fundamentais.

3.11. Não se pode, todavia, cair-se na armadilha da ponderação de princípios, dadoque se trata de mero recurso retórico, consoante afirma Daniel Sarmento: “E a outra faceda moeda [do uso desmesurado dos princípios] é o lado do decisiocismo e do ‘oba-oba’. Aconteceque muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de, atráves deles,buscarem justiça – ou o que entendem por justiça -, passaram a negligenciar do seu dever defundamentar a racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu umespaço muito maios para o decesionismo judicial. Um decisionismo travetido sob as vestes dopoliticamente correto, orgulhoso de seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada,mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, convertem-se emverdaderias ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador consegue fazer quase tudo o quequiser.”[153] Assim é que a utilização da proporcionalidade, na via do devido processolegal substancial, não pode acontecer contra o sujeito[154].

Page 45: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

3.12. De qualquer maneira, para aplicação do princípio da proporcionalidade exige-se: necessidade, adequação e proporcionalidade (em sentido estrito). Por necessidade, apartir da intervenção mínima do Estado na esfera privada, proibindo o excesso eprivilegiando a alternativa menos gravosa, a qual menos violará os DireitosFundamentais do afetado (especialmente liberdade[155] e intimidade[156]) e poderágerar efeitos equivalentes[157]. Já adequação significa a relação positiva (apta) entre omeio e o fim da medida , ou seja, o meio empregado deve facilitar a obtenção do fimalmejado. Não há sentido em se manter alguém preso cautelarmente se a pena a seraplicada, ao final, não significar a privação da liberdade: o meio não se relaciona com ofim. E, proporcionalidade em sentido estrito implica em juízo acerca do custo-benefícioda medida imposta, isto é, quais os princípios em jogo. Não se trata, como já visto, demera ponderação. A prevalência dos Direitos Fundamenais, no campo do processo edireito penal, impede juízos em favor da coletividade, dado que invertem a lógica doEstado Democrático de Direito. Assim, não se pode em nome da dita Segurança Coletiva,flexionar de forma excessiva e desproporcional, os Direitos Fundamentais.

3.13. Aqui também deve-se invocar, desde outra tradição, a dupla face dos DireitosFundamentais, ou seja, a possibilidade de se analisar, no contexto do devido processolegal substancial, tanto o excesso de proibição, como a proteção deficiente.[158]

4. A Presunção de Inocência

4.1. Santo Agostinho narra, em suas “Confissões”[159], algo que pode situar odiálogo a partir das desventuras de Alípio: “Alípio, pois, passeava diante do tribunal,sozinho, com as tábuas e o estilete, quando um jovem estudante, o verdadeiro ladrão, levandoescondido um machado, sem que Alípio o percebesse, entrou pelas grades que rodeiam a rua dosbanqueiros, e se pôs a cortar o seu chumbo. Ao ruído dos golpes, os banqueiros que estavamembaixo alvoraçaram-se, e chamaram gente para prender o ladrão, fosse quem fosse. Mas este,ouvindo o vozerio, fugiu depressa, abandonando o machado para não ser preso com ele. Ora,Alípio, que não o vira entrar, viu sair e fugir precipitadamente. Curioso, porém, saber a causa,entrou no lugar. Encontrou o machado e se pôs, admirado, a examiná-lo. Bem nessa hora chegamos guardas dos banqueiros, e o surpreendem sozinho, empunhando o machado, a cujos golpes,alarmados, haviam acudido. Prendem-no, levam-no, e gloriam-se diante dos inquilinos do fatopor ter apanhado o ladrão em flagrante, e já o iam entregar aos rigores da justiça .” Onde fica apresunção de inocência na prisão em flagrante? Existe, de fato, processo penal nessescasos? Tudo não passa de um jogo de cena? Enfim, até que ponto a “Inocência” pode serlevada? Como isto funciona depois de mais de 20 anos de Constituição? Articular aresposta parece ser o desafio[160].

4.2. Presumir a inocência, no registro do Código de Processo Penal em vigor, é tarefahercúlea, talvez impossível, justamente pela manutenção da mentalidade inquisitória. A“Presunção de Inocência”, embora com alguns antecedentes históricos, encontroureconhecimento na Declaração dos Direitos do Homem, em 1789, seu marco ocidental,segundo o qual se presume a inocência do acusado até prova em contrário reconhecida

Page 46: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

em sentença condenatória definitiva[161]. Nesse sentido a Constituição da Republica –CR, em seu art. 5o, inciso LVII, dispôs: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito emjulgado de sentença penal condenatória.” Mesmo que se possa exclusivamente discutir acompatibilidade deste dispositivo com a prisão cautelar, no caso, pretende-se seguiroutro caminho não excludente: o de entender qual o motivo porque, desde a matriz, opensamento está condicionado pelo modelo de pensar inquisitório, incompatível com aConstituição, lendo sua aplicabilidade via teoria dos jogos.

4.3. No que interessa para esse Guia Compacto, cabe relevar que o processo penal,como garantia, precisa ser levado a sério, sob pena de se continuar a tratar a “Inocência”como figura decorativo-retórica de uma democracia em constante construção e queaplica, ainda, processo penal do medievo, cujos efeitos nefastos se mostram todos osdias[162]. Por isso é necessário mudar as coordenadas em que se analisa a lógica doprocesso, o papel do julgador e de cada julgador, especialmente no que toca à prisãocautelar, via teoria dos jogos.

4.4. Dito isso, de se relembrar que o direito ao devido processo legal substancial é aúnica garantia à defesa efetiva. E, conforme a nova sistemática processual determina, aprisão cautelar apenas se mantém em caso de extrema necessidade (CPP, art. 282, § 6º,CPP), de que se pode inferir a própria exigência do “periculum libertatis”. Nesse sentidovale destacar: “Trata-se de habeas corpus contra decisão proferida pelo tribunal a quo queproveu o recurso do MP, revogando o relaxamento da prisão cautelar por entender que a ausênciade advogado na lavratura do auto de prisão em flagrante não enseja nulidade do ato. Alegam osimpetrantes não haver justificativa para a mantença do paciente sob custódia, uma vez que, apósefetuada a prisão, foi-lhe negado o direito de comunicar-se com seu advogado, o que geraria simnulidade na lavratura do auto de prisão. Além disso, sustentam inexistirem os pressupostosautorizadores da prisão preventiva. A Turma, ao prosseguir o julgamento, concedeu parcialmentea ordem pelos fundamentos, entre outros, de que a jurisprudência do STF, bem como a do STJ,é reiterada no sentido de que, sem que se caracterize situação de real necessidade, não selegitima a privação cautelar da liberdade individual do indiciado ou do réu. Ausentes razõesde necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, a decretação ou a subsistência daprisão cautelar. Ressaltou-se que a privação cautelar da liberdade individual reveste-se decaráter excepcional, sendo, portanto, inadmissível que a finalidade da custódia provisória,independentemente de qual a sua modalidade, seja deturpada a ponto de configurarantecipação do cumprimento da pena. Com efeito, o princípio constitucional da presunção deinocência se, por um lado, não foi violado diante da previsão no nosso ordenamento jurídico dasprisões cautelares, por outro não permite que o Estado trate como culpado aquele que não sofreucondenação penal transitada em julgado. Dessa forma, a privação cautelar do direito delocomoção deve-se basear em fundamento concreto que justifique sua real necessidade. Dessemodo, não obstante o tribunal de origem ter agido com acerto ao declarar a legalidade da prisãoem flagrante, assim não procedeu ao manter a custódia do paciente sem apresentar qualquermotivação sobre a presença dos requisitos ensejadores da prisão preventiva, mormente quandosuas condições pessoais o favorecem, pois é primário e possui ocupação lícita. Precedentes citadosdo STF: HC 98.821-CE, DJe 16/4/2010; do STJ: HC 22.626-SP, DJ 3/2/2003.” (STJ, HC 155.665,

Page 47: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

rela. Min. Laurita Vaz,).4.5. Conta Warat que se todos acreditassem, piamente, em Papai Noel, na noite de

24 de dezembro não haveria presentes a se distribuir. Há necessidade de que pelo menosum saiba do embuste, do mito, da farsa, para que ele possa fazer sentido. Todos menosum precisa saber que há um furo na totalidade natalina. Para além do velho Noel algorateia. Na presunção de inocência inautêntica do Sistema Inquisitório também. Não sepode ficar como os mocinhos dos filmes, um segundo antes do tiro fatal, sob pena de semanter, por exemplo, a prisão cautelar do curioso Alípio, cuja versão em seuinterrogatório, por certo, seria considerada fantasiosa. A pergunta inocente é: fantasia dequem?

4.6. Daí que a presunção de inocência deve ser colocada como o significanteprimeiro, pelo qual, independemente de prisão em flagrante, o acusado inicia o jogoabsolvido. A derrubada da muralha da inocência é função do jogador acusador. Aquidescabem presunções[163] de culpabilidade. O processo, como jogo, deverá apontarpelas informações obtidas no seu decorrer, a comprovação da hipótese acusatória, obtidapor decisão judicial fundamentada.

Page 48: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 4°

Para um Processo Penal Democrático

1. Nova leitura do Processo Penal: o discurso da eficiência

1.1. O modo de produção capitalista foi o pano de fundo da Criminologia Crítica dofinal do século passado e precisa, talvez, de uma atualização decorrente da mudança deparadigma econômico, a saber, depois da proeminência do Neoliberalismo é necessário(re)pensar as coordenadas de um saber que não pode responder mais aos sistemasbinários em que Estado versus indivíduo aparecem em posições antagônicas. Nos doisextremos encontravam-se o projeto liberal de extensão de direitos e garantais individuaise, de outro, uma perspectiva coletiva em que a compreensão é coletivizada, flexionada,tudo em nome do interesse coletivo. Logo, em ambos pólos há uma tensão entre aefetivação dos direitos e garantias individuais. A novidade é o surgimento do discurso daeficiência, manipulado pelo critério do custo benefício, articulado pelo discurso daAnálise Econômica do Direito. Nesse contexto, convida-se para cena um novo e sedutorprotagonista: o Mercado[164] e sua aparente autonomia ideologicamente provida de um“pensamento único”[165]. Dito de outra forma: como a estrutura econômica promove umgiro na compreensão do Direito e Processo Penal, não mais situado na tensão Sujeito-Estado, mas garantidor da estabilidade econômica e da possível previsibilidade doSistema. O crime como componente da realidade passa a ser um mero elemento contábildo “custo país”, sem que os dilemas modernos tenham mais a relevância de antes[166]. Aeficiência, agora, é medida por meio de resultados economicamente mais vantajosos.

1.2. Desta forma, há uma tendência rumo ao Direito Penal do Inimigo[167], baseadono fomento de um “perigosismo generalizado” impregnado no imaginário coletivo quedemanda, assim, por segurança. Abre-se caminho para que Jakobs, fundamentadoretoricamente no contrato social possa defender que o ‘inimigo’ seria aquele que rompeucom as regras contraídas, justificando a visão de não-membro e, por via de consequência,a intervenção penal busca evitar os perigos que ele representa, podendo, assim, o Estadorestringir para o ‘inimigo’ as normas – garantias – conferidas ao cidadão. A Defesa Sociale o direito penal do autor retornam, sob nova fachada. Estabelecida a distinção entreentre “cidadão” e “inimigo”, para estes, na defesa dos bons cidadãos, deve-se, paraJakobs, restringir as garantias penais e processuais, por isso ‘Direito Penal do Inimigo’.Qualquer aproximação, pois, com os discursos da ‘Lei e Ordem’ não é mera coincidência,dado que reeditam a necessidade de Defesa Social redefinindo os tipos penais paradifusos bens coletivos, cuja densidade se mostra epistemologicamente impossível[168],embora sejam eficientes do ponto de vista da Análise Econômica do Direito. A distinção

Page 49: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

entre inimigo e cidadão, contudo, é dada a priori e, como tal, não se sustenta, poiscategoriza, por qualidades etiquetadas socialmente, o grau que o sujeito pode usufruir nasociedade. Apresenta-se como uma tarifação da cidadania, a qual exclui, de antemão,todos os que se apresentam, de alguma maneira, envolvidos pelo sistema de controlesocial. Desde o batizado no sistema, com novos sentidos da velha “periculosidade” daEscola Positiva, surgem tarifações onde a dignidade da pessoa humana não tolera[169].Enfim, não se mostra possível dentro de uma perspectiva democrática a adoção dediscurso que module a cidadania ou mesmo promova restrições aos DireitosFundamentais (pois Direito Penal e Processo Penal são Direitos Fundamentais)[170].

1.3. Segue-se, assim, um movimento que se pode chamar de “NeoPenalismo”. Istoporque o estabelecimento da Criminologia como campo de estudo do sujeito humanoguarda vinculação direta com o paradigma da Modernidade e do modelo de sujeito quelhe informa. De um lado se construiu uma análise baseada nas características internas dosujeito - paradigma etiológico -, no qual as causas intrínsecas eram vasculhadas epoderiam ser verificadas e tratadas, via pena. Por outro lado, diante das observaçõessociológicas, principalmente da denominada Criminologia Crítica, as condições do meioem que o sujeito se encontrava passaram a ganhar força. Surgiu, assim, a compreensãoda incidência de criminalizações (primária e secundária), pelas quais o sujeito-foco doSistema Penal é selecionado e etiquetado. Tudo isto até a última década do séculopassado guardava muito sentido. Atualmente o foco modificou-se justamente porque omodelo de sujeito e de seu vínculo social restaram alterados, fundamentalmente, pelogiro econômico operado pelo Neoliberalismo. Não se trata aqui de reiterar o que foi ditopela Criminologia Radical, nem de demonstrar que a existência de classes operaselecionando os “criminosos”. A pretensão é a de apontar a superação dessas distinçõesno mundo globalizado, de risco, em que o discurso único do Mercado transforma ossujeitos (ricos e pobres) em sujeitos descartáveis. Sujeitos Mercado-De(sa)gradáveis,simples mercadorias de consumo do Processo Penal do Espetáculo. Parece, assim, que aaplicação das categorias da Criminologia Crítica, embora possa explicar parcelasignificativa da criminalização dos tipos penais e, principalmente, como o Sistema operana proteção da propriedade privada e do contrato, com a sofisticação do discursoNeoliberal, pode procurar nova forma de compreensão.

1.4. O Proprietário do Século XXI é difuso, ou seja, não é uma categoria estabelecidapor uma classe social específica, basicamente porque (i) o “crime” passou a ser umproduto e, (ii) a propriedade que interessa não é mais de um sujeito, mas de estrututuraseconômicas. A fusão de horizontes destes condicionantes gera, no seu cúmulo, um curto-circuito nas categorias criminológicas. Ainda que se possa falar em sujeito criminoso, emprocesso de criminalização, no eterno dilema das causas, no paradigma Neoliberal,justamente pelo câmbio epistemológico operado (da relação causa-efeito para a açãoeficiente), a intervenção penal se situa na contenção dos efeitos das ações individuais aomenor custo. Não se trata de “recuperar”, nem de “punir”. A intervenção busca manteras regras do jogo formal do Mercado, pouco importando o que se passa com os sujeitos.Eles são convocados a fazer a máquina funcionar... Por isto pode ser dito que houve uma

Page 50: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

superação das categorias da Criminologia. Para se entender o que se passa, atualmente,não basta conhecer o que as Escolas preconizam; é preciso entender que o Estado,entendido desde Weber como o titular indelegável do poder de punir, passou umaprocuração aos entes privados, ou seja, foi vendido no mercado de ilusões. A prisão viroumercadoria, trocada, claro, por seu valor de face, com direito a ações na Bolsa de Valores.Ferrajoli é preciso ao dizer que: “Infelizmente, a ilusão panjudicialista ressurgiu em nossostempos por meio da concepção do direito e do processo penal como remédios ao mesmo tempoexclusivos e exaustivos para toda infração da ordem social, desde a grande criminalidade ligada adegenerações endêmicas e estruturais do tecido civil e do sistema político até as transgressõesmais minúsculas das inumeráveis leis que são cada vez mais frequentemente sancionadaspenalmente, por causa da conhecida inefetividade dos controles e das sanções não penais. Resultadisso um papel de suplência geral da função judicial em relação a todas as outras funções doEstado – das funções política e de governo às administrativas e disciplinares – e um aumentocompletamente anormal da quantidade dos assuntos penais.”[171]

1.5. Ao mesmo tempo em que houve recrudescimento do Sistema de Controle Socialpelo agigantamento do Sistema Penal[172], percebeu-se que haveria avalanche deprocessos, cujos custos eram inviáveis. Assim é que a flexibilização do processo,mediante “informalização” e “eficiência”, com a imediata redução dos custos, pode serverificada nos Juizados Especiais que são equipados com para-juízes, ou seja, muitagente de boa vontade, mas que não responde ao mínimo de garantias que o sujeitoprocessado faz jus, democraticamente. Guardadas as devidas proporções, houve aintrodução da lógica anglo-saxã do plea guilty/ not guilty, pelo acolhimento imediato dasanção, Contudo, no modelo americano, sem verdade substancializada, negocia-se sobreo enquadramento jurídico da conduta, sobre o período da prisão, bem assim sobre oscustos do julgamento[173]. Assim, tendo por fundamento lógica diversa, abre-se espaçode transação para além da pena, por envolver a própria definição jurídica dos fatos. E aintrodução disto se deu com a transação penal no âmbito dos Juizados EspeciaisCriminais[174].

1.6. Não se trata de reconhecer que a tradição Continental é melhor ou pior, dadoque esta discussão é inoperante. O que importa é que as tradições implicam em práticas emodos de pensar diferenciados. Ainda que não dito, muitas das reformas recentes noordenamento se deram pela fusão equivocada e irrefletida de tradições jurídicas,trazendo-se, não raro, institutos estranhos ao Direito Continental. Esse comércio deinstitutos do direito anglo-saxão, todavia, não acontece sem o estabelecimento de umatensão decorrente da diferença de tradições filosóficas, isto é, de matriz causa-efeito,parte-se, sem muita aproximação, ao panorama pragmático, no qual a eficiênciaprepondera. Nessa perspectiva de diálogo entre tradições diversas é que surgempossíveis justificações teóricas para, dentre outras reformas[175], a (i) sumarização eaceleração[176] de procedimentos; (ii) mitigação da obrigatoriedade da ação penal; (iii)possibilidade de negociação monetária (conciliação) e inclusão equivocada da vítima noprocesso penal[177]; (iv) suspensão condicional do processo; (v) aplicação de discursosconsequencialistas no campo do direito e processo penal; (vi) discussão sobre os custos

Page 51: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

do processo e da pena; (vii) restrição recursal.1.7. O que se precisa superar, de alguma forma, é a compreensão de que o Sistema

de Controle Social dará conta dos problemas gerados pela alteração do modo deprodução, bem como do discurso expansionista do Direito Penal e de flexibilização dasgarantias processuais. É necessário superar o que se pode chamar de “Processo Penal doEspetáculo”, movido pela junção equivocada e iludida de esforços. De um lado aEsquerda Punitiva (Karam) e de outro a Direita de sempre, defendendo cinicamente osvalores da sociedade. O resultado disto é a evidência de uma vontade de punir queprecisa, sempre, de novos protagonistas. O produto crime interessa, ainda mais quandoum “graúdo” passa a ser o acusado, pois relegitima todo o Sistema. A discussão dasegurança pública no contexto democrático precisa rever alguns conceitos que nãopassaram pela oxigenação democrática advinda da Constituição da República de 1988 eque continuam fazendo vítimas. Não se trata, como querem alguns, de enjeitar todo oDireito Penal, cuja importância simbólica de limite precisa ser reiterada, nem de oendeusar como a salvação das mazelas sociais. Cuida-se, sim, de responderadequadamente ao conclame democrático de um direito penal que respeite os DireitosFundamentais, a partir da tão falada e pouco compreendida “dignidade da pessoahumana”. Somente assim pode-se buscar reconstruir a cidadania brasileira, nesta luta demais de vinte anos de Constituição.

1.8. A compreensão do Direito em disciplinas com fronteiras bem definidas não sesustenta no contexto atual. Não há mais sentido em que estudar a Criminologiadissociada do que se passa no Direito Penal, bem assim com os influxos que istoapresenta no Processo Penal e do modo de produção Neoliberal. É preciso, assim, que oenfrentamento da questão genericamente englobada no campo penal possa se dar abertapara um diálogo que não se superponha, mas não se acredite desprovido de vínculos comos demais saberes. Essa ausência de diálogo entre os saberes compostos de disciplinasimplica hoje na ausência de coerência entre os temas debatidos nos respectivos locais.Não significa, claro, que se deva buscar a uniformização do ensino jurídico penal. O quese deve ter em consideração é que o conteúdo ministrado em Criminologia podefacilitar/complicar a compreensão do Direito e do Processo Penal e vice-versa.

1.9. Até porque a representação Simbólica compartilhada da noção de Estado perdeuseu caráter de Referência, ou seja, não se trata mais de um centro, sob o qual giram asdemais instituições[178] e pessoas, pois o centro – Estado – foi deslocado e nãosubstituído pelo Mercado, justamente porque suas características, fundadas na liberdadeextremada, sem regras, impede qualquer autoridade central[179]. Sem ela, já se sabe, nãohá limite. E sem limites, não há ilícito, nem ética que se sustente no espaço público. Poristo Boaventura de Souza Santos dirá: “A erosão da soberania do Estado acarreta consigo, nasáreas em que ocorre, a erosão do protagonismo do poder judicial na garantia do controle dalegalidade.”[180] Acrescente-se, de outro vértice, que a fusão “forçada” de tradiçõesjurídicas incrementa esta perda de referentes. A doutrina e jurisprudência de paísesestrangeiros, acompanhada dos órgãos internacionais, passam a influenciar, cada vezmais, a hermenêutica interna. Os protagonistas do processo decisório se valem de

Page 52: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

argumentos expendidos noutras tradições para decidir temas internos. A internet e asfacilidades de pesquisa atuais, acrescidas da difusão acadêmica de algumas teorias,fornecem os meios para que sejam convocadas construções de outras tradições paracompor o sentido interno. De um lado há atitude complementar e, por outro, subversãoda ordem posta pela inserção de pressupostos filosóficos distintos, como é o caso da Lawand Economics. Assim é que nesse espaço paradoxal, pois, resta apontar para o limite, dar-se conta do que se passa e, de alguma forma, resistir.

1.10. O que se pode fazer diante deste quadro, desde o ensino jurídico? Não sepossui, nem se pode, apresentar receituário pronto. O espaço da sala de aula precisa serproblematizado com os diversos matizes ideológicos, justamente para propiciar umaescolha por parte do acadêmico e não mera adesão irrefletida a posição dada. Um dosdilemas atuais do ensino do Direito é relegitimar a característica do sujeito, isto é, acapacidade de analisar, refletir e escolher, com a responsabilidade daí advinda .Especialmente no contexto atual em que houve significativa mutação em que resta poucolugar à reflexão e, principalmente, pela assunção de responsabilidades. Há sempre umsujeito implicado nas escolhas e não se pode mais aceitar puro normativismo deaplicação neutra[181] da norma jurídica, como se a aplicação aparentemente legaldesresponsabilizasse o sujeito por sua compreensão (autêntica ou não). Esse dilemacontemporâneo implica em sublinhar a necessidade de que o sujeito ao enunciar umaproposição - se há enunciação e não mero despejar de enunciados - possa lembrar-se desua categoria de sujeito e não de mero aplicador universal da norma. Esse é o desafio deum ensino jurídico que ao mesmo tempo que dialogue com a crítica não perca de vista ocaráter operacional do discurso jurídico. Enfim, a construção de uma dogmática crítica enão alienada parece ser o pressuposto da visão unitária do Direito Penal. Nesta visão,pois, os saberes de intercruzam, relacionam-se, inexistindo feudos teóricos. De qualquerforma, para o Processo Penal Eficiente desprovido de garantias, deve-se dizer: não,obrigado.

1.10. Se a Constituição, de fato, possui este papel de protagonismo, o desenho doDireito e do Processo Penal deveria guiar-se por suas disposições. Entretanto, o sensocomum teórico[182] permaneceu, no pós 88, manietado pelo discurso dos Código Penal eProcessual Penal editados anterioremente, a saber: leu-se a Constituição pelo CódigoPenal e Processual Penal, quando, na verdade deveria ser justamente o contrário.Apegados à legalidade mal-entendida, ou seja, a um legalismo pedestre, estes campos doDireito não fizeram a devida oxigenação constitucional. Cabe dizer, também, que aConstituição, como documento histórico e fruto de um acirrado processo legislativo,apresenta em seu corpo forte conteúdo punitivo[183]. Isto não pode ser desconsiderado,tanto que ela criou a denominação de crimes hediondos, restringindo direitos egarantias, mas nem por isto aceitou o Direito Penal do Inimigo. É da leitura daConstituição como unidade (contraditória) e seus reflexos no discurso infra-constitucional que se pode aquilatar o baixo grau de eficácia dos Direitos Fundamentais,desde que entendida na tradição do devido processo legal substantivo e da teoria dosjogos. Não se pretende reconstruir as discussões sobre Jurisdição, Ação e Processo. A ideia

Page 53: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

deste momento é reiterar noções absolutamente necessárias ao encadeamento dacompreensão de processo como tarefa democrática inafastável. Essa compreensão, porsua vez, não se aproxima, em nada, da rançosa visão explicada a partir de uma impossívelTeoria Geral do Processo. É preciso, pelo menos, superar Dinamarco em favor de Fazzalari,lido pela teoria dos jogos.

1.11. O lugar e a função do processo no Brasil ainda se encontra escorada emconcepção ultrapassada, solo fértil para a aceitação acrítica dos modelos totalizadores doDireito e do Processo Penal. Talvez possa o Processo Penal Democrático se constituircomo verdadeiro limite democrático. Buscando-se dialogar com a obra de Fazzalari serãotrazidos aportes de outros discursos justamente na pretensão de tornar o processo penalbrasileiro a tarefa democrática inafastável. Rompendo-se com os “escopos” hegemônicos,aponta-se para uma nova maneira de o entender, no qual o contraditório passa a ser apedra de toque. As reflexões que seguem, pois, estão por aí, abertas ao diálogo daquelesque se encontram, de certa forma, incomodados pela maneira exclusivamentemetodológica – com fundamento ideológico – do processo. O processo penal, entendidocomo jogo democrático, é o único lugar para verificação das condutas penais[184]. Porisso há necessidade de informações adequadas para que a decisão possa acontecer, atéporque superada a Verdade Real.

1.12. A denominada Verdade Real é mito sedutor, conveniente e ilusório. É a fraudepela qual os envolvidos acreditam que, mediante alguns depoimentos e provas(informações), podem reconstruir os fatos tal como se deram. O acontecimento dopassado é trazido ao presente com a força de um replay. Entretanto, nem o replayconsegue mostrar o acontecimento por vários ângulos. Ainda que se tenham váriascâmeras de televisão, por exemplo, em um jogo de futebol, algo escapa. Mas a verdadereal engana e funciona como mecanismo retórico para que se aceitem práticasinquisitórias e autoritárias. Além disso, faz com que o julgador possa dormir o “sono dosjustos”, não fosse esse o sono do iludido. Inexistem condições de se reconstruir opassado. O que há, no processo penal, no momento da decisão, é acertamento temporalde discursos (fusão de horizontes), nos quais deverão ser fundados na tradiçãodemocrática e serão sempre da ordem do parcial, do contingente.

2. Jurisdição revisitada: o lugar do julgador

2.1. As discussões sobre o conceito de Jurisdição são ainda vivas[185]. Roman Borgesfaz o histórico das querelas envolvendo o conceito, lembrando com Chiovenda que aJurisdição “é o poder de aplicar a lei aos casos concretos de forma vinculante e cogente”[186],materializada pela coisa julgada[187]. A Jurisdição, assim, está ligada indissociavelmenteao poder[188]. De qualquer forma, na perspectiva de se construir a alteridade (Dussel), aJurisdição precisa se aproximar de La Boétie e sua proposta de amizade. Lido a partir dapsicanálise, o submetimento à Jurisdição decorre do desejo de onipotência, de tirania, queaviva em cada sujeito[189]. Roman Borges sustenta que se “pode concluir com La Boétie queo poder de um só sobre os outros foi dado ao tirano por nosso desejo de sermos tiranos também.

Page 54: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Além disso, o autor acrescenta que esse desejo de ser tirano vem do desejo de ser proprietário, deter bens e riquezas e, portanto, do desprezo que temos pela liberdade.”[190] Então, o argumentode La Boétie de que não existe fundamento em se submeter incondicionalmente a umsenhor, sem garantias de que será bom ou mau[191], por não possuir limites, pode serexplicado. Não se trata de encantamento ou de feitiço, mas de desejo de ser igual(onipotente), esperando que, no futuro, detenha-se (todo) o poder[192] (Pai da Horda).Sua perplexidade diante da ‘servidão voluntária’, naturalizada – introjetada – eperseguida pela população, na lógica do poder e do senhor, impõe uma postura diversafrente ao poder da opressão, rompendo com a base de servidão[193], ou seja: “Nosreconheçamos uns aos outros como companheiros, ou antes, como irmãos. (...) Para que cada qualpudesse mirar-se e como que reconhecer-se um no outro.”[194] Miranda Coutinho lembra que:“Etienne de La Boétie tinha razão: obedecemos a vontade de um porque queremos ser que nem ele,ou seja, tiranos. Rei morto, rei posto: e viva o Rei! Bastaria, contudo, diz o próprio La Boétie, nãodar o que ele quer para a casa vir abaixo, ou seja, não dar a ele nossa razão (que é só imagens) enossa liberdade, isto é, nosso desejo de posse e poder.”[195] A partir deste reconhecimentoentre iguais, a ‘servidão voluntária’ deixaria de ter fundamento, já que ela foi construída.Ao invés de ser naturalizada[196], deve-se resgatar o fundamento de liberdade e aobrigação de a defender, precisando-se, de qualquer maneira, desalienar os sujeitos,porque “do gosto da liberdade, de como é doce, nada sabes.”[197] Roman Borges conclui: “Comisso, La Boétie quis dizer que a única forma de se derrubar a tirania é não consentir com aservidão, não dar o tirano mais do que lhe é devido.”[198] Esse conteúdo da Jurisdição comamizade (La Boétie), portanto, constitui-se como condição de possibilidade dainstrumentalização da factibilizçaão do fair play no processo penal entendido como jogo.

2.2. Além disso, pode-se dizer que a noção contratualista e civilista de Jurisdiçãocomo substituição da vontade privada, no campo do direito penal, não se sustenta. Omonopólio penal é do Estado e não pode ser delegado. Daí que não há sentido em seinvocar a noção contratualista, apontando Roman Borges que a Jurisdição no processopenal “tem como finalidade o acertamento irrevogável dos chamados casos penais, isto é, dassituações de dúvida quanto à aplicação ou não da sanção penal.”[199] Em face do monopóliodo Estado na imposição de penas, somente o Estado Juiz pode reconhecerresponsabilidade penal, impor sanções, analisar as questões, sem possibilidade de suareabertura eterna, mediante a fixação da coisa julgada. Vale dizer: julgado o caso penal,salvo na hipótese de retomada pela defesa em Revisão Criminal, a porta da acusaçãoresta fechada.

2.3.. Em resumo: A intervenção e fundamento da Juridição Penal é o mesmo daguerra, a saber, exclusivamente político, com o fim de sustentar o controle social e suaspráticas (des)nomalizadoras, acertando discursivamente, por decisão judicial, ascondutas criminalizadas[200].

2.4. Pode-se indicar, com Miranda Coutinho[201], que os princípios da Jurisdição –mesmo que genericamente – são:

(a) Princípio da Imparcialidade: o Juiz ignora os fatos, mas não é neutro, já quepossui suas conotações políticas, religiosas, ideológicas, etc.., mas deve ser imparcial:

Page 55: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

afastamento subjetivo dos jogadores e do objeto da ação penal. Os jogadores poderãoimpugnar o julgador por exceção de suspeição/impedimento (CPP, art. 95 e sgts). Paragarantir a imparcialidade (objetiva e subjetiva), o CPP indica que o julgador e oMinistério Público (CPP, art. 258, STJ, Súmula n. 234) não podem ser impedidos (CPP,art. 252-253) e/ou suspeitos (CPP, art. 254). Anote-se que a intervenção de um impedidoexclui a dos demais. Por exemplo, se o defensor atuou no APF ou no IP, ele exclui oJulgador e vice-versa. Entretanto, ainda que um dos envolvidos no processo (jogadoresou acusado) injurie ou promova qualquer ato com a finalidade de criar a suspeição, taljogada será considerada ilegal, não excluindo o julgador (CPP, art. 256). Estendem-se ashipóteses de impedimento e suspeição aos servidores e auxiliares da Justiça (CPP, art.274). Difunde-se que a autoridade policial (Delegado de Polícia), por exercer atividademeramente administrativa, não sofreria as limitações previstas no CPP. Contudo, pensarassim é desconhecer que no devido processo legal substancial a intervenção do Estadonão pode se dar de maneira pessoal por força dos princípios da administração pública(CR, art. 37), em especial o da impessoalidade. Há, pois, extensão das causas deimpedimento, por analogia, à fase pré-processual.

(b) Princípio do Juiz Natural: Conquista democrática, o Juiz Natural busca evitar oJuiz de ocasião. Ferrajoli atribui ao princípio do juiz natural três significados distintos,embora correlatos: (i) juiz pré-constituído pela lei e não concebido após o fato; (ii)impossibilidade de derrogação e indisponibilidade de competência; e, (iii) proibição dejuízes extraordinários e especiais. Assim é que não se podem criar juízos de ocasião,devendo-se analisar a competência em face dos juízos existentes no momento daimputação. Na tradição constitucional brasileira (CR, art. 5º, LIII), o princípio do juiznatural emprega dupla finalidade, proibindo tribunais de exceção e não consentindo coma transferência da competência para outro tribunal (avocação)[202]. É aquele previsto porLei em sentido estrito, antes do fato imputado, não se podendo o alterar posteriormente.Por fim, cabe sublinhar que o Princípio da Identidade Física do Juiz foi reconhecido noCPP, a saber, o que presidir a audiência de instrução e julgamento deverá proferir adecisão (CPP, art. 399, §2º).

( c ) Princípio da Indeclinibilidade: Não pode o julgador, depois de fixada a suacompetência, determinar a prorrogação e/ou a delegação da competência. O EstadoJulgador não pode declinar aos particulares o acertamento do caso penal. Isto é, a decisãode mérito, absolutória (CPP, art. 386) ou condenatória (CPP, art. 387), não pode serdelegada a terceiro[203].

(d) Princípio da Inércia da Jurisdição: Se no jogo não houver juiz, os lugares sãoindistintos. Não se pode confundir o papel do julgador com o dos jogadores. As decisõesdo julgador estão vinculadas às jogadas. Não pode ele, assim, tomar um lugar que não éseu, cabendo-lhe garantir o fair play, isto é, o jogo limpo (CPP, art. 251). A Constituiçãoda República desenha Instituições (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria eAdvocacia) com atribuições específicas. Assumir a função processual que não é sua viciao jogo. Na condução da partida processual deve o julgador evitar procrastinações ejogadas ilegais, advertindo os jogadores e declarando nulas as jogadas ilegais. Enfim,

Page 56: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

cabe-lhe garantir direitos processuais, sem participação na gestão da prova ou em nomeda ilusória Verdade Real. Diversas disposições do CPP não foram recepcionadas pelaCR/88 e disposições das reformas parciais são inconstitucionais. Exemplificativamenteindicam-se: a impossibilidade de (i) iniciar a ação penal de ofício; (ii) promoverdiligências não requeridas pelas partes; (iii) formular perguntas àstestemunhas/informantes (CPP, art. 212); (iv) condenar sem requerimento (CPP, art. 385);(v) modificar a imputação penal de ofício, salvo no limite da leitura conforme aConstituição (CPP, arts. 383-384); (vi) não aceitar o arquivamento (CPP, art. 28), (vii)decretar prisão sem requerimento do jogador acusador (CPP, art. 310); (viii) recorrer deofício (CPP, art. 574), dentre outros dispositivos.

3. Ação: nova leitura

3.1. É impossível, aqui, retomar-se o questionamento sobre a ação[204], bem comoadentrar-se no exame de sua autonomia em face do direito (dito) objetivo. Reconhece-se,contudo, sua densidade[205]. A polêmica sobre a actio (Windsheid e Muther), sobre acaráter abstrato ou concreto do direito de ação no campo penal, diante do princípio dalegalidade, perdeu grande parte da importância teórica. Isso porque o exercício da açãopenal depende da (a) denúncia/queixa apta; (b) pressupostos e condições da ação –legitimidade e interesse -, e (c) análise de sua justa causa[206] e sua tipicidade aparente.

3.2. Para o recebimento da ação penal é necessária a existência de tipicidadeaparente, a saber, a conduta descrita na denúncia deve corresponder, pelo menos emtese, ao tipo penal indicado. Isso porque não se pode acolher no campo do processopenal o excesso de acusação, bem assim a instauração de ação penal – mesmo para finsde suspensão condicional do processo – com base em provas inservíveisconstitucionalmente. Miranda Coutinho[207] já apontava a necessidade de se evitar oabuso de acusação via controle jurisdicional, por oportunidade do recebimento dadenúncia. Nunes da Silveira[208] produziu monografia na mesma linha: “A tipicidadepenal, em relação ao meritum causae, deve ser vista através da diferenciação entre atipicidade aparente (condição da ação) e a tipicidade (matéria de mérito), ou seja, aprimeira, condição da ação penal, refere-se à demonstração, pelo autor, de que os fatosimputados gozam, aparentemente, de credibilidade tal, a ponto de serem consideradostípicos, e a segunda (a tipicidade), em qualquer momento que seja perquirida – norecebimento da inicial, ou ao final da instrução processual -, ensejará uma decisão demérito, com análise profunda do material probatório.” A razão disso se mostraevidenciada: evitar a instauração de ação penal em face de condutas que embora possamser reprováveis do ponto de vista coletivo, no campo penal carecem de tipicidade oupossuem excesso de capitulação. Silva Jardim[209] sustenta que “na verdade, não são elascondições para a existência do direito de ação, que, por ser abstrato, existirá sempre, massim condições para o seu regular exercício. A falta de uma destas condições nos remete àteoria do abuso do direito de ação e não poderá, logicamente, admitir a sua existência.“Desta maneira, no momento do recebimento da ação penal é necessária a verificação daparametricidade entre a imputação da denúncia e a descrição fática analisada em face

Page 57: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

dos elementos probatórios justificadores da ocorrência de justa causa. Não se pode falargenericamente no direito ilimitado de acusar, dado que isso significaria abuso dedireito[210], especialmente no mundo de escassez de recursos, no qual se deve verificar otrade-off da ação proposta. Dito de outra forma: o Direito de Ação abstrato do Estadonão se confunde com as condições para o exercício. Pretende-se deslocar a teoria vigenteda ação para se demonstrar que o exercício da ação deve levar em conta o cenário e ocontexto em que a ação é proposta, tanto em relação ao direito penal quanto à capacidadede assimilação da unidade jurisdicional, especialmente porque se pensa a partir da teoriados jogos.

3.3. Como a Jurisdição não pode atuar de ofício, o jogador-acusador é o único quepode começar uma guerra, via ação penal. E para isso ele deve saber necessariamente oque pretende e qual a estratégia processual para obter êxito. O processo penal éatividade direcionada a um fim ! Não pode ser apenas uma lógica de reprodução dedenúncias/queixas porque atenderiam ao tipo penal. Esse juízo deve levar emconsideração a dimensão do crime, o contexto probatório, a capacidade de assimilação daunidade, enfim, não se trata de receber os documentos, Inquéritos Policiais e Autos dePrisão em Fragrante, iniciando uma guerra processual. É algo muito mais sério e nãoconsiderado na maioria dos foros. Cada processo é uma guerra distinta e quando se ageem muitas batalhas a possibilidade de se perder uma importante é maior. Guerra é algode timming, a saber, precisa ser imediata e a extinção da punibilidade (prescrição, porexemplo – CP, art. 107 c/c art. 109) é uma possibilidade que desfaz a possibilidade querde vitória, que de derrota. Assim, longe de se defender a impunidade (embora esseescrito seja manifestamente minimalista) as contingências singulares do ambienteforense devem ser consideradas pelos jogadores, sob pena de se instaurar a ineficáciajurisdicional.

3.4. Nesse pensar, embora exista a Súmula n. 438 do STJ [211], sem carátervinculante, não faz sentido continuar com o processo. É necessária a aplicação daPrescrição Antecipada/Hipotética por ausência de trade-off. Verificando-se, à evidência,que a pena a se aplicar será atingida pela prescrição torna-se inviável e inócuo que seprossiga até sentença final, a qual, mesmo sendo condenatória, nenhum efeito concretoproduziria, porque já caracterizada a prescrição, da qual resultará a extinção dapunibilidade[212]. Assim, até mesmo por uma questão de política criminal, evita-se oprosseguimento de ação inútil e com custo exorbitante, além de estigmatizante.Combater o crime genericamente é afirmação ingênua. Há estreita relação entre adimensão política e a persecução penal. É preciso reconhecer que os objetivos devem serclaros e a força estatal é limitada. Não se trata de mitigar a indisponibilidade da açãopenal, como alguns apressados podem invocar. Trata-se de se demonstrar racionalmenteque o exercício da ação penal, seus custos e resultados no caso de ganho da batalha, serãoinservíveis ao fim político. A vitória aqui seria de Pirro, a saber, inútil. Cumpre, assim,reconhecer, por antecipação, a prescrição da pretensão punitiva do Estado, com base napena hipotética em concreto.

3.5. A punição da bagatela precisa ser vista na perspectiva das guerras já declaradas

Page 58: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

(ações penais em andamento e as batalhas que se avizinham). Com escassez de recursos(juizes, ministério público, dinheiro, pautas, etc) a decisão sobre iniciar mais uma guerraprocessual ou se focar nas mais relevantes depende do domínio das trocascompensatórias, ou seja, trade-off, entendido como a escolha por um das alternativasincompatíveis de se obter[213]. As condições de efetivação das alternativas são inviáveis.Daí que no ambiente forense os cenários de cada unidade devem ser levados emconsideração. Receber o IP e oferecer denúncia sem analisar o cenário é próprio dejogadores-acusadores que não entendem a dimensão da sua função e depois reclamamque as ações demoram.

3.6. Pode-se indicar, com Miranda Coutinho[214], que os princípios da Ação –mesmo que genericamente – são:

(a) Princípio da Oficialidade : Embora a tutela penal seja monopólio do Estado, oexercício do direito de ação vincula-se ao bem jurídico tutelado, o qual pode serpúblico, semi-público ou privado. No primeiro caso tendo ciência da ocorrência dapossível infração e com os demais elementos necessários, o Estado deve promovera ação penal. No segundo caso depende de manifestação expressa da vítima (e/ouseu representante), no prazo legal – de regra o prazo de decadência (perda dodireito de ação) é de seis meses (CPP, art. 38 c/c art. 10 do CP, incluindo o dia doconhecimento do fato, diferente do prazo processual). Na terceira hipótese – açãoprivada – a legitimidade para ação é do ofendido ou de quem tenha qualidade de orepresentar (CPP, art. 30). Entende-se que a representação não exige formalidades edeve conter a manifestação inequívoca da vontade em prosseguir na ação penal(CPP, art. 39). Cabe ainda sublinhar que o Ministério Público ao receber elementospara análise da ação penal possui prazo (5 dias para preso e 15 dias para solto –CPP, art. 46). Não formulando a ação penal no prazo legal, nem requerendodiligências, declinando da competência ou determinando o arquivamento, surge apossibilidade da legitimação extraordinária da vítima/representante legal (CPP, art.37), na modalidade de ação privada subsidiária da pública (CR, art. 5º, LIX e CPP,art. 29)[215]. Ocorrendo morte o direito se transfere ao cônjuge, ascendente,descendente ou irmão (CPP, art. 31 e 36). Sendo o ofendido menor de 18 anos,portador de necessidades especiais, não tiver representante ou os interesses secolidirem, será nomeado curador especial (CPP, art. 33).

(b ) Princípio da Obrigatoriedade – Legalidade: Preenchidos os requisitos legaispara o exercício da ação penal não pode o jogador-autor negar-se a iniciar a partidapor questões privadas. Decorrência do devido processo legal substancial édescabido o tratamento não isonômico, inexistindo disponibilidade sobre oconteúdo da ação penal. Claro que nesse juízo deve ser ponderada a existência dassuas condições, dentre elas a justa causa, a qual enbloga a tipicidade aparente.Abrir-se mais uma guerra processual depende do cotejo da condições depossibilidade do jogo.

(c) Princípio da Indivisibilidade: Embora previsto somente nos casos de ação penal

Page 59: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

privada (CPP, art. 48), entende-se que não pode – como decorrência do princípio daobrigatoriedade/legalidade – o Ministério Público escolher dentre os possíveisautores da infração somente alguns para figurar no processo. Pode manifestar-sepelo arquivamente em relação a alguns dos investigados e denunciar os demais. Oque é vedado é imotivadamente deixar de promover a ação penal por critériosoutros que não decorrentes da investigação preliminar. Havendo condições da açãoo processo deverá ser proposto contra todos os envolvidos.

4. Processo como procedimento em contraditório

4.1. A função do jogo denominado processo é a de acertamento do ‘caso penal’ [216]:cometida a conduta imputada, a pena somente será executada a partir de uma decisãojurisdicional, presa ao pressuposto: a reconstituição significante da conduta imputada nopresente, acolhida por decisão fundamentada, a partir de uma visão de verdadeprocessual decorrente de processo em contraditório e com julgador sem função dejogador.

4.2. Apesar de o Direito Penal ainda trabalhar, na sua visão hegemônica, sob adenominação de processo como algo mais que procedimento, grosso modo, a maneira pelaqual o processo caminha, na linha do legado de Liebman, esse escrito desloca acompreensão para a proposta de Fazzalari e, ao depois, conjuga, em certa medida, ateoria do discurso de Habermas para, então, situando o local democrático do juiz noProcesso Penal, longe de qualquer função probatória, própria dos jogadores. A concepçãode processo manejada pelo senso comum teórico dos juristas é a de entender o processo comoconjunto de atos preordenados a um fim, ou seja, a atividade exercida pelo juiz noexercício da Jurisdição, sendo o procedimento seu aspecto puramente formal, o rito a serimpresso. O processo, assim, acaba se burocratizando em formas, modelos e ritos,muitas vezes tido como acessório do Direito Penal, redundando em flagrantes equívocos.Dizer que o Processo Penal possui papel acessório, de fazer acontecer a lei, na lição deBinder[217], é insuficiente e superficial, dado que o que se denomina “tipo” possuireflexos inexoráveis na compreensão da norma processual, não se podendo falar emplena autonomia, havendo, ao contrário, uma ‘estrecha relación’ entre o “tipo” e oProcessual Penal, até porque a atribuição de sentido é realizada num ambientehermenêutico desprovido de metalinguagem salvadora (Lenio Streck). Apesar de oconhecimento das formas processuais ser importante, o isolamento formal fazdesaparecer a estrutura democrática – diferenciando julgador e jogador – do ProcessoPenal. É preciso mais, invertendo-se, por primeiro, a própria compreensão de processo.

4.3. A visão prevalecente, a la Dinamarco, demonstra o desconhecimento da atualcompreensão de processo, já apontada por Cordero[218], dado que o processo nacontemporânea configuração da relação jurídica, segundo Fazzalari[219], é o procedimentoem contraditório. Até porque existem outros procedimentos, como o tributário,administrativo, nem sempre em contraditório. O contraditório é, pois, a característica quediferencia o processo do procedimento[220]. A legitimidade na imposição de atos cogentes,

Page 60: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

decorrentes do poder de império, com consequências no âmbito dos jurisdicionados e,no caso do Processo Penal, dos acusados, precisa atender aos princípios e regras previstosno ordenamento jurídico de forma taxativa. As regras do jogo democrático devem sergarantidas de maneira crítica[221] e constitucionalizada, até porque com DireitoFundamental (e as normas processuais o são), não se transige, não se negocia, defende-se. Dito de outra forma, as regras do jogo devem ser constantemente interpretadas a partirda matriz de validade Garantista[222], não se podendo aplicar cegamente as normas doCódigo de Processo Penal, sem que se proceda antes e necessariamente, oxigenaçãoconstitucional[223]. Nesse caminhar procedimental, preparatório ao ato de império, aexistência efetiva de contraditório consiste em sua característica fundamental[224]. Assimé que a teoria do processo precisa ser revista, a partir do contraditório, implicando namodificação da compreensão de diversos institutos processuais vigorantes na práticaprocessual brasileira.

4.4. Em relação ao direito subjetivo, Fazzalari propõe que este seja entendido a partirda relação entre o sujeito e o objeto do comportamento indicado pela norma jurídica, oqual o coloca numa posição de vantagem pelo exercício de uma faculdade ou de umpoder[225]. Não se trata mais de poder sobre a conduta da parte adversa ou mesmo deprestação, senão sobre os efeitos processuais da norma[226], da jogada processual válida.Os atos processuais lícitos (jogadas) se mostram como poderes decorrentes do exercícioda vontade, regulados por normas processuais, perante as quais o sujeito possui o poderde agir (confissão judicial), a faculdade (arrolar testemunhas) e o ônus, (no caso daimposição de consequências pelo descumprimento da norma). A faculdade e o poderpodem, também, gerar circunstâncias desfavoráveis ao sujeito caso não exercidas atempo e modo. O procedimento – jogo processual – desenvolve-se a partir de atosjurídicos lícitos, componentes do desenrolar procedimental até a decisão final, mas nãonuma compreensão de oposição aos atos ilícitos[227]. Destarte, até a decisão final, oprocedimento, apesar de guardar unidade, deve ser visto como uma sucessão de atosjurídicos – subjogos – determinados por normas processuais que regulamentam amaneira pela qual se dará a sequência de atos e posições jurídicas: “O procedimento não éatividade que se esgota no cumprimento de um único ato, mas requer toda uma série de atos euma série de normas que os disciplinam, em conexão entre elas, regendo a sequência de seudesenvolvimento. Por isso se fala em procedimento como sequência de normas, de atos e deposições subjetivas.”[228]. É a perfeita vinculação das etapas antecedentes que legitima oprocedimento[229] como condição preparatória ao provimento final[230], consoanteaponta Cordero: “El antecedente inválido contamina a los siguientes.”[231] A posição subjetivaé o vínculo do sujeito para com a norma, a qual lhe valora suas manifestações de vontadecomo lícitas, facultadas ou devidas, com as consequências daí advindas[232], verificando-se a ocorrência de preclusão das decisões interlocutórias, salvo nulidade, passível de serdiscutida, inclusive em sede de Habeas Corpus. Desta feita, a legitimidade do provimentojudicial dependerá do desenrolar correto dos atos e posições subjetivas previstos em lei,do fair play. E a perfeita observância dos atos e posições subjetivas dos atos antecedentesé condição de possibilidade à validade dos subsequentes. Logo, a mácula procedimentalocorrida no início do processo – subjogo – contamina os demais, os quais para sua

Page 61: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

validade precisam guardar referência com os anteriores[233]. O ato praticado emdesconformidade com a estrutura do procedimento é inservível à finalidade a que sedestina[234]. A decisão final, preparada pelo procedimento, também se constitui comoparte deste, ou melhor, sua parte final, o resultado.[235]

4.5. Então, invertendo-se a lógica do senso comum teórico dos juristas, o processo éprocedimento realizado por meio do contraditório e, especificamente no Processo Penal,entre os jogadores Ministério Público[236] e/ou querelante, e efetiva presença doacusado com defesa técnica, mediados pelo julgador. Por isso a necessidade de seentender o exercício da Jurisdição a partir da estrutura do processo como procedimento emcontraditório, com significativas modificações na maneira pela qual ele se instaura e sedesenrola, especialmente no tocante ao princípio do contraditório e o papel do juiz nacondução do feito[237]. Nesse pensar, o contraditório precisa ser revisitado, uma vez quenão significa apenas ouvir as alegações das partes, mas a efetiva participação, comparidade de armas, sem a existência de privilégios, estabelecendo-se comunicação entreos jogadores, mediada pelo Estado julgador[238]. Rompe-se, outrossim, com a visão deque a simples participação dos sujeitos (juiz, auxiliares, ministério público, acusado,defensor) do processo possa conferir ao ato o status de contraditório. É preciso mais. Épreciso a efetiva participação daqueles que sofrerão os efeitos do provimento final,apurando-se o melhor argumento em face do Direito e do ‘caso penal’, na viaintersubjetiva.

4.6. A figura do juiz, desde o ponto de vista de sujeito do processo entendido comojogo, demonstra que sua participação não é de mero autômato, mas está vinculada àsdecisões proferidas no curso do procedimento (subjogos) e no seu final, no exercício desua função jurisdicional[239], sem olvidar os princípios informadores de sua atuação.Assim é que apesar dessa participação – sujeito do processo –, não se pode confundir afunção do julgador com a dos jogadores, eis que não assume a condição de contraditor-jogador, a qual é exercida pelos interessados, mas de terceiro-julgador, responsável, todavia,pela sua regularidade na produção dos significantes probatórios. Sua função é também ade expedir, em nome do Estado, o provimento com força imperativa, atendido o devidoprocesso legal substancial, levando em consideração os argumentos construídos noprocedimento, em decisão motivada, mesmo[240].

4.7. A exteriorização do princípio do contraditório, na proposta de Fazzalari, se dáem dois momentos. Primeiro com a informazione, consistente no dever de informaçãopara que possam ser exercidas as posições jurídicas em face das normas processuais e, numsegundo momento, a reazione, manifestada pela possibilidade de movimento processual,sem que se constitua, todavia, em obrigação[241]. Logo, no caso do Processo Penal, ocontraditório precisa guardar igualdade de oportunidades, exigindo, assim, a revisão dediversas regras do Código de Processo Penal brasileiro, mormente no tocante à gestão daprova e ao (dito) objeto do processo, deixando-se evidenciada qual a conduta a serverificada, via denúncia/queixa apta, os meios para sua configuração e as posiçõesprocessuais de cada envolvido, no que a epistemologia garantista se associa.

4.8. Acrescente-se, de outro lado, que o senso comum teórico dos juristas pretende a

Page 62: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

adequação do processo às finalidades do Estado do Bem Estar Social. Para tanto,Dinamarco revisita a teoria processual para a adaptar aos resultados exigidos pelapopulação, mediante a otimização do sistema rumo à efetividade do processo[242]. Partindoda autonomia do Direito Processual, Dinamarco indica a necessidade de, pela razão, ter-se a consciência da instrumentalidade do processo em face da conjuntura social e políticado seu tempo, demandando um “aspecto ético do processo, sua conotação deontológica.”[243]Esse chamado exige que o juiz tenha os predicados de homem do seu tempo, imbuídoem reduzir as desigualdades sociais e cumprir os postulados processuais constitucionais,vinculando-se aos valores constitucionais, em especial o valor Justiça. A proposta estábaseada nas modificações do Estado Liberal rumo ao Estado Social[244], mas vinculada àposição especial do juiz no contexto democrático, dando-lhe poderes sobre-humanos[245], na linha de realização dos ‘escopos processuais’, com forte influência dasuperada Filosofia da Consciência , deslizando no Imaginário e facilitando o surgimento deJuízes Justiceiros da Sociedade. Entretanto, este paradigma, informado pelo modelo doBem-Estar Social e da jurisprudência de valores não mais se sustenta, como bem afirmaCattoni[246], mormente em face do paradigma habermasiano, acolhido de forma parcialneste escrito. Não se trata mais de realizar os valores sociais, quer via escopos (Dinamarco)ou essencialismos dicotômicos, que em certa medida concedem um conforto Metafísico,mas acolher no campo das práticas jurídicas a viragem linguística, cujos efeitos retiramqualquer carga axiológica do processo. O processo precisa de nova postura. A pretensão deDinamarco de que o juiz deve aspirar os anseios sociais ou mesmo o espírito das leis,tendo em vista uma vinculação axiológica, moralizante do jurídico, com o objetivo derealizar o sentimento de justiça do seu tempo, não mais pode ser acolhidademocraticamente[247], sob pena de se abrir espaço para julgamentos sem provas,atendendo anseios de linchamento e/ou midiáticos.

4.9. Advirta-se, por fim, que a atuação do juiz, no procedimento, não pode ser a derealizar os anseios sociais, devendo se postar de maneira imparcial, garantindo oequilíbrio contraditório, ou seja, a verdadeira democracia processual[248]. Todavia, no atodecisório, a pretensão habermasiana não pode ser acolhida como se mostra. Evidente queos argumentos formulados pelas partes devem ser levados em consideração no momentoda decisão, fundamentando-se as pretensões de validade, mas não se pode negar, pelaconstrução até aqui realizada, que o um-julgador esteja informado por fatores externos,condicionantes ideológicos, criminológicos, midiáticos, inconscientes, enfim, subjetivos quesempre são co-produtores da decisão, mesmo que obliterados retoricamente. Oimportante é que sua atuação do juiz no decorrer do processo como procedimento emcontraditório não deve pender para a realização antecipada de suas opções ideológicas,criminológicas, sob pena de macular a legitimidade de sua decisão. É somente na decisãoque elas devem aparecer de maneira fundamentada.

4.10. No recorte desse escrito, a imensa obra de Habermas é acolhida de maneirapontual, especificamente no tocante ao discurso a ser instado intra-processualmente.Como já se afirmou anteriormente, o Direito Processual possui balizas democráticas, nãose podendo mais aceitar a decisão isolada e sem fundamentação do Juiz, devendo este,

Page 63: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

necessariamente, considerar as pretensões de validade enunciadas pelas partes nodiscurso comunicativo instaurado. Neste paradigma não há espaço paradiscricionariedade judicial (Hart[249]), como a interpretação não atende a uma moldurade possibilidades (Kelsen[250]). Pelo contrário, a decisão judicial, naquilo que Habermasevidencia como tensão entre faticidade e validade[251], exige uma nova postura dos atoresjurídicos embrenhados no processo (sempre) constitucional e intersubjetivo deatribuição de sentido[252]. A autonomia do Direito Processual não pode significar oestabelecimento de feudos decisórios dos magistrados[253], inseridos desde sempre nocampo comunicacional e regulados, no caso do Processo Penal, pelas respectivas normas.

4.11. Consequência disso é a assunção de nova postura por parte do juiz (julgador enão jogador), ganhando relevo, por conseguinte, a teoria da decisão judicial. Para tanto, oponto de partida deve se constituir na crítica à maneira pela qual o senso comum teórico avende e a massa histérica pelo gozo dos atores jurídicos compra a verdade fundanteprometida apocalipticamente, e entregue sob a tutela de uma nova dinastia, ou‘Monastério de Sábios’ – Warat –, os guardiães das promessas da modernidade – Garapon[254]–, em especial a figura do Juiz, do Super-Juiz, sujeito cheio de predicados (serenidade,sabedoria, sapiência, moralidade, hombridade, etc), um Juiz Hércules, como diriaDworkin. A discussão, portanto, sobre o instituto da decisão judicial é fundamental.Conquanto não se acolha o procedimentalismo habermansiano no que se refere à posturado Poder Judiciário[255], a razão comunicativa mostra-se, no âmbito processual,importante. Para Habermas, o poder da razão se fundamenta no processo de reflexão, aorevés da ciência positivista e a postura cognitivista, sendo necessário o abandono daobjetividade do pensamento monológico. Essa teoria implica redefinição do caráteruniversal da verdade. Assim é que Habermas pretende que a teoria crítica cumpra osobjetivos de uma sociedade, consistente no fim da coerção e da injustiça peloestabelecimento de autonomia através da razão e harmonia consensual de interesses poruma administração racional da Justiça. Partindo da Teoria da Opinião Pública deHabermas, a linguagem é concebida como a garantia da democracia, tendente a conseguiracordos consensuais das decisões coletivas. Com efeito, o Estado Democrático de Direito,na visão procedimentalista, seria um projeto constante de acordos sobre os melhoresargumentos, historicamente escolhidos pelos concernidos, em situação ideal da fala[256].Destaca Leal que: “Nesse ponto, a teoria do processo como procedimento em contraditório(Fazzalari) é que nos habilitou saltar de uma subjetividade apofântica milenar para umaconcepção processual expressa numa relação espácio-temporal internormativa como estruturantejurídica do agir em simétrica paridade e instaladora do juízo discursivo preparatório doprovimento (decisão).”[257]

4.12. A Teoria da Ação Comunicativa parte da estrutura de que quem argumentapresume que ela pode ser justificada em quatro níveis: (a) o que é dito é inteligível, porregras semânticas compartilhadas; (b) o conteúdo do que é dito é verdadeiro; (c) oemissor justifica-se por certos direitos sociais ou normas que são invocadas no uso doidioma; (d) o emissor é sincero no que diz, não tentando enganar o receptor. Em suma,não pode ser uma comunicação distorcida. O princípio ‘D’ confere à proposta

Page 64: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

habermasiana a possibilidade de verificação da validade dos argumentos, desde que sejamsuscetíveis de serem justificados e obtenham o livre assentimento de todos os concernidosna condição de participantes – atuais ou potenciais – de discurso público real,desenvolvido conforme as normas de uma comunidade ideal de comunicação ou situaçãoideal da fala, entendido este último como princípio ‘U’[258]. Na teoria da democraciahabermasiana não se trata da escolha promovida pelo juiz[259], em seu feudo soberano,alheio e descomprometido com o debate processual argumentativo efetuado emcontraditório, com ampla defesa e isonomia, mas o contrário, acolhendo, ademais, o ‘girolinguístico’, ou seja, é pós-metafísica. As metodologias, pois, não concedem mais acerteza de antes. Com isto, as rançosas percepções da ‘Filosofia da Consciência’ (do sujeitouno) são expungidas do campo processual, abrindo-se espaço para a democraciaprocessual discursiva, abjurando-se, dentre outras, a legitimidade formal kelseniana dojuiz.

4.13. Com efeito, esse processo democrático precisa garantir a isonomia, publicidade,ampla defesa e contraditório, princípios fundamentais sem os quais a suadeslegitimidade aflora e macula a decisão. No decorrer do processo os DireitosFundamentais serão invocados e debatidos argumentativamente (discurso proposicionale não autoritário). O processo é quem mediará, pelo discurso, a decisão, não maissolitária do juiz[260], mas co-produzida democraticamente. Enfim, diante das pretensõesde validade trazidas pelas partes no procedimento em contraditório, que o um-juiz selegitima a emitir o provimento estatal, fundamentando tanto no acolhimento quanto narejeição das alegações, não podendo buscar a legitimação apenas por sua condiçãoformal de emissor reconhecido. As partes possuem o direito de enunciar seusargumentos, produzirem provas e os verem devidamente analisados pelo Estado-Juiz[261].

4.14. Quanto ao Processo Penal, relativamente aos direitos dos acusados, a postura aser adotada é aquela professada pelos mais ferrenhos legalistas: respeito às regras do jogode maneira transparente[262]. Nada mais do que isso. Todavia, quando as regras do jogopassam a ser o entrave para a turba sedenta pelo gozo sádico – mormente em temposneoliberais de encarceramento total da pobreza –, os argumentos jurídicos transcendentesda condenação em nome da paz social, da segurança jurídica, do interesse social em formataro apenado subvertem a lógica de garantias e se constituem no fundamento retórico edeslegitimado da condenação[263]. Não se trata, assim, de aplicar uma pena no interessedo apenado, consoante o senso de Justiça[264] do julgador, porque esta visão é totalitária.As regras do jogo são esquecidas por discurso empolado, bonito, valorativo, emitido pelosimaginariamente ‘bons’, por aqueles que sabem o que é melhor para a sociedade eacusados[265], afinal, exercem as funções de juízes na sociedade em nome da limpezasocial. O princípio da legalidade é desterrado e as concepções criminológicas e infracionaisarraigadas no inconsciente do um-julgador afloram. O problema é que, como diz MirandaCoutinho: “O enunciado da ‘bondade da escolha’ provoca arrepios em qualquer operador dodireito que frequenta o foro e convive com as decisões. Afinal, com uma base de sustentação tãodébil, é sintomático prevalecer a ‘bondade’ do órgão julgador. O problema é saber, simplesmente,

Page 65: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

qual é o seu critério, ou seja, o que é a ‘bondade’ para ele. Um nazista tinha por decisão boaordenar a morte de inocentes; e neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tãovago, por outro lado, aparecem facilmente os conhecidos ‘justiceiros’, sempre lotados de ‘bondade’,em geral querendo o ‘bem’ dos condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, há aí puronarcisismo; gente lutando contra seus próprios fantasmas. Nada garante, então, que a ‘suabondade’ responda à exigência de legitimidade que deva fluir do interesse da maioria. Nestemomento, por elementar, é possível indagar, também aqui, dependendo da hipótese, ‘quem nossalva da bondade dos bons?’, na feliz conclusão, algures, de Agostinho Ramalho MarquesNeto.[266] Ocupam, em uma palavra, o lugar do impostor.

4.15. Não obstante as críticas que se possa fazer ao paradigma procedimentalista –cuja proposta é inviável ser realizada na prática, abaixo do Equador, mormente numarealidade de exclusão[267], e, também, por desconsiderar que o inconsciente opera –, suaacolhida pode ocorrer de forma mitigada, sem o universalismo que pretende. Nocaminho aqui defendido, a razão comunicativa pode ser situada para se fixar o lugar dojuiz no processo em contraditório (Fazzalari) como sendo aquele que no decorrer dele irágarantir as regras do jogo[268], sem prejuízo de seu papel específico no ato decisório, oqual deve se fundamentar no critério material proposto por Dussel.

4.16. O devido processo democrático proposto por Habermas, entretanto, é paradoxal.Ao mesmo tempo em que rejeita o solipsismo do julgador, agora envolvido pelo mediumlinguístico, considera que o discurso consciente é seu fundamento. Para ele, a legitimidadedo Direito e da decisão estariam jungidas à aceitação pelos concernidos das normas e dasdecisões, como se isso pudesse ocorrer no plano consciente do sujeito único. A críticapoderia ser formulada a partir de Heidegger ou mesmo de Dussel, como já se pontuou,mas para o fim deste escrito, contudo, é Lacan que será trazido à baila. Para além doassentimento sincero, existem mecanismos inconscientes que roubam a cena, conformedeixa evidenciada a psicanálise. Por isso procedem as críticas de Prado Jr. acerca doprojeto habermasiano, no sentido de que a leitura da psicanálise a partir da psicologia do euefetuada por Habermas, renegou o silêncio e o inconsciente na formulação do consensointersubjetivo[269]. De maneira que o inasfastável buraco é de ser apontado com MarquesNeto: “Há essa dimensão que ultrapassa tudo aquilo que o sujeito pode pôr de intencionalidadeno seu discurso. O inconsciente é uma referência a esse ultrapassamento, a isso que está paraalém do discurso. Toda a fala é acompanhada de um cortejo de silêncios, que tem uma enormeeloquência. O que não se diz é frequentemente mais significativo do que o que se diz.”[270]

Dews[271], contrapondo a ‘verdade do sujeito’ em Lacan e Habermas, afirma quepara Lacan a cadeia de significantes impede o encontro definitivo com o Real, por serimpossível, sendo que, rompendo com as concepções racionalistas, a (possível)representação pelo significante não é a coisa; o que há é linguagem semmetalinguagem.[272] A crítica formulada por Lacan, portanto, detona com a pretensão deque o ‘entendimento semântico’ possa ocorrer de forma plena, fraturando, de vez, com o‘Círculo de Viena’ – não obstante a parcial importância deste –, impedindo, de outra face,a identidade do sujeito consciente, entre suas asserções conscientes e o inconsciente[273].De sorte que a ‘rede de significantes’ reage historicamente e não é possível manter a

Page 66: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

universalidade das pretensões de validade do discurso habermasiano diante da ‘verdade dosujeito’ imbricada com o inconsciente, e garantidas pelo Outro[274]. Repita-se que aproposta habermasiana, principalmente no âmbito processual, é acolhida no contextodeste escrito, especialmente nas quatro pressuposições mais importantes, destacadas porHabermas, consistentes no: “a) carácter público e inclusión: no puede excluirse a nadie que, enrelación con la pretensión de validez controvertida, pueda hacer una aportación relevante; b)igualdad en el ejercício de las faculdades de comunicación: a todos se les conceden las mismasoportunidades para expresarse sobre la materia; c) exclusión del engaño y la ilusión: losparticipantes deben creer lo que dicen; y d) carencia de coacciones: la comunicación debe estar librede restricciones, ya que éstas evitan que el mejor argumento pueda salir a la luz y predeterminanel resultado de la discusión.”[275] E, ademais, não se perca de vista, que o ‘sujeito’ dapsicanálise, por ser clivado e construído pelos significantes que se inscreveram durante otempo, passa sua vida questionando o sentido de sua própria existência[276].

4.17. Portanto, conquanto sua proposta de democracia processual – no qual aspretensões de validade são acolhidas ‘in the long run’, por mecanismos de consenso discursivo–, possa representar uma tentativa de continuidade do projeto do sujeito da Modernidade,sua perspectiva de destranscendelizar o sujeito navega sem a dimensão do desejo, aoarrepio da fenomenologia heideggeriana e a barra imposta pelo sujeito clivado da psicanálise(Lacan), deixando à descoberto os mecanismos de ligação da proposta ao sujeito, dadoque: “Lacan não nega, evidentemente, que esse questionamento será formulado em função dorepertório simbólico de uma cultura determinada, mas suas formulações deixam implícito que oque está em jogo – ao menos em parte – é a relação entre o sujeito e qualquer repositóriosimbólico em geral, e portanto o problema da finitude de sua realização de si enquantosujeito.”[277] Por isto, neste escrito, o acolhimento da proposta habermasiana écontingente, como horizonte possível de assentimento dos concernidos, sem que,todavia, constitua-se em algo plenamente factível diante dos obstáculos apontados. Semdúvida que os pressupostos do discurso indicados por Habermas podem e devem norteara atuação processual num Estado Democrático de Direito, desde que ciente de que aracionalidade proposta é suscetível de críticas intransponíveis. Possui, ademais, o méritode rejeitar o solipsismo do julgador decisionista, o qual não se sustenta maisdemocraticamente. No entanto, nem por isso o processo como eixo democrático podetamponar o que salta do insconsciente das partes nas suas argumentações e do ser-aí-julgador[278]. De qualquer forma, aproveita-se sua proposta para o encadeamentoprocedimental necessário à legitimidade da decisão a ser proferida, eis queantecedentemente já se agregou ao projeto em construção a ‘viragem linguística’, com aconsequente rejeição da Filosofia da Consciência . De outra parte, é impossível que aproposta seja ultimada consoante Habermas pretende por desconsiderar fatoresintervenientes na prolação da decisão e nos próprios argumentos lançados no processointersubjetivo[279]. É que a pretensão de sinceridade consciente dos argumentos é vazadapelo inconsciente que atravessa no Simbólico. Enfim, a psicanálise, com o desvelar doinconsciente deixa à céu aberto a sinceridade pressuposta por Habermas. A sinceridade,então, no máximo pode ser vista como objetivo a ser alcançado na corrida, e cujaverificabilidade se mostra impossível de ser aferida, ou seja, é pressuposta a sinceridade,

Page 67: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

mas impossível de a controlar. Esses obstáculos tornam o discurso habermasiano, na suaversão ideal, irrealizável no plano fático, onde o inconsciente – repita-se mais uma vez –surge. Por isso a necessidade do reconhecimento parcial do paradigma habermasiano, comFazzalari, na construção da proposta do processo como tarefa democrática inafastável,justificando-se o aproximar deste juiz (in)consciente, ou do inconsciente do um-juiz.

4.18. Resta evidente, portanto, que o processo penal possui destacado lugar e funçãona democracia, a saber, é o espaço de diálogo em que o contraditório deve ser garantido.É a partir do contraditório que se estabelece a legitimidade do provimento judicial. Claroque o conteúdo da decisão estará vinculado a outros fatores, dado que inexiste decisãoneutra. Há sempre a aderência – mesmo alienada – a um modelo ideológico. O queimporta é (re)estabelecer um espaço democrático no processo penal brasileiro,superando a visão prevalecente, na qual o ritual e a postura inquisitória ceifam qualquerpossibilidade de democracia processual, no que Fazzalari pode ser um sendero[280]. Poristo a importância de seu estudo, acompanhado de reflexões sobre a linguagem e a opçãoética que subjaz a decisão judicial, quer consciente ou inconscientemente.

Page 68: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 5°

Subjogos Pré-Processuais e Incidentais (Cautelares, Prisão eLiberdade, Inquérito Policial, Flagrante)

1. Aspectos Preliminares (Denúncia Anônima, Testemunha

Protegida, Investigação e Legalidade)

1.1. No pré-jogo processual podem ser realizadas jogadas táticas importantes,vinculadas à estratégia. Nesse Guia Compacto se irá demonstrar o lugar (pré-jogoprocessual) e a função (elementos de materialidade e autoria) do Inquérito Policial emface da normatividade brasileira, bem assim das questões preliminares. Depois, tambémna fase pré-jogo, será indicada a função do Auto de Prisão em Flagrante, da prisãopreventiva, e das medidas cautelares, especificando a Busca e Apreensão, a InterceptaçãoTelefônica e a Quebra de Sigilo.

1.2. Não há poder geral de cautela no CPP. A função do Poder Judiciário é o degarantir os Direitos Fundamentais do sujeito em face do Estado, a saber, as intervençõesna esfera privada somente se justificam se houver relevância coletiva e, no caso deinvestigações criminais, os fundamentos precisam ser firmes nos exatos limitesnormativos. Assim é que, vigorando o princípio da legalidade, não pode o juiz invocar opoder geral de cautela e inventar novas modalidades. O poder geral de cautela é estranhoao processo penal, até porque coloca o juiz no lugar de jogador. Os limites da intervençãocautelar são as previstas no CPP e na legislação extravagante, lendo-as a partir da noçãode devido processo legal substancial e da teoria dos jogos.

1.3. Necessário Inquérito Policial instaurado: Não existe investigação no “ar”. AAutoridade Policial, ao tomar conhecimento de um fato criminoso, nos termos dos arts.5º e 6º do Código de Processo Penal, deve instaurar o Inquérito Policial. Sempre. Não háexceção. Constitui-se em prática reprovável e ilegal a investigação sem formalização dosatos. É requisito obrigatório à análise dos pedidos cautelares a formalização doprocedimento administrativo – Inquérito Policial, não mero Boletim de Ocorrência -, como indiciamento, se possível. Isso é da democracia. É indispensável a prévia instauraçãoda investigação.

1.4. Denúncia anônima: Para se investigar alguém, numa democracia, não se podeiniciar com o “denuncismo anônimo” contemporâneo em que a polícia recebe a denúnciaanônima e se dá por satisfeita. Tanto assim que agora se fomentam programas ilegaiscomo o do “Informante Cidadão”[281]. É preciso que as investigações aconteçam no

Page 69: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

limite da legalidade. O processo da Inquisição acontecia com testemunhas sem rosto,sem face, sem nome, num denuncismo sem limites. Para isso a Constituição daRepública, em vigor há mais de vinte anos, estabeleceu claramente no art. 5º, IV: “é livre amanifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato.” Paulo Rangel, sem aceitarinvestigar a qualquer preço, pontua: “Pensamos que autoridade que determinar a instauraçãodo procedimento criminal ou administrativo, tendo como base a denúncia anônima, ficariasujeita, em tese, à responsabilidade criminal, nos exatos limites do art. 339 do CP. O denuncianteanônimo se esconde atrás das vestes da impunidade, pois, se sua denúncia for falsa, ele não seráresponsabilizado. (...) O ‘denunciado’ tem o direito de demonstrar os motivos pelos quais quem odenuncia o faz: vingança, perseguição política, inveja, despeito, falta do que fazer etc. Sendoanônima a denúncia, não há como reagir contra o denunciante. Ele fica refém.”[282] TourinhoFilho sustenta: “se o nosso CP erigiu à categoria de crime a conduta de todo aquele que dá causaà instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhecrime de que o sabe inocente, como poderiam os ‘denunciados’ chamar à responsabilidade o autorda delatio criminis, se esta pudesse ser anônima? A vingar entendimento diverso, será muitocômodo para os salteadores da honra alheia vomitarem, na calada da noite, à porta dasDelegacias, seus informes pérfidos e ignominiosos, de maneira atrevida, seguros, absolutamenteseguros da impunidade. Se se admitisse a delatio anônima, à semelhança do que ocorria emVeneza, ao tempo da inquisitio extraordinem, quando se permitia ao povo jogasse nas famosas‘Bocas dos Leões’ suas denúncias anônimas, seus escritos apócrifos, a sociedade viveria emconstante sobressalto, uma vez que qualquer do povo poderia sofrer o vexame de uma injusta,absurda e inverídica delação, por mero capricho, ódio, vingança ou qualquer outro sentimentosubalterno.”[283] Assim é que a denúncia anônima não pode ser tida, a priori, comofundamento suficiente, nem justifica qualquer medida direta pela autoridade policial quenão a investigação preliminar e o requerimento ao Judiciário das medidas cautelares quese fizerem necessárias, apresentando as investigações realizadas[284].

1.5. Um dos grandes desafios é o de se garantir o processo como procedimento emcontraditório, no qual as restrições ao direito ao confronto, materializador do devidoprocesso legal substantivo, seja baseada em fundamentos legais e compatíveis com aConstituição. Especificamente sobre o “Direito ao Confronto” Rudge Malan é explícito:“é direito fundamental indissociável de qualquer noção civilizada de devido processopenal, motivo pelo qual ele deve ser levado a sério pelo Estado.”[285] E isto não impedeque, em situações específicas, como no caso de temor, violência, desde quejustificadamente motivada, possa o acusado ser retirado da sala de audiências.Entretanto, no exercício de seu pleno direito de defesa, especialmente o de impugnar avalidade do testemunho, não se pode impedir que tenha conhecimento de quem é atestemunha, até para poder a contraditar, aponta Antônio Scarance Fernandes: “Apresença do acusado no momento da produção da prova testemunhal é essencial, sendoexigência decorrente do princípio constitucional da ampla defesa. Estando na audiência,pode ele auxiliar o advogado nas reperguntas a serem dirigidas à testemunhaouvida.”[286]. Exceção há no caso de testemunha sob a égide da Lei. nº. 9.807/99, situaçãodiversa da produção normtiva ilegal produzida pelos Tribunais, sob o nome genérico de“testemunha protegida”. Para que a vítima e/ou testemunha seja colocada sob o pálio da

Page 70: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

proteção é necessário que o Conselho Deliberativo (art. 4º) tenha aceito o pleito (art. 5º),com as medidas previstas no art. 7º, dentre elas “IV – preservação da identidade, imageme dados pessoais.” No caso, a testemunha “X” não se encontra sob o regime de proteçãopreconizado legalmente! De qualquer sorte, mesmo nessa hipótese, a Lei de Proteção aTestemunhas não estabelece o procedimento específico para a testemunha com reservade identidade prestar depoimento em Juízo, lacuna legislativa essa que, como bemaponta Rudge Malan, impede tal produção probatória, à míngua de procedimentotipificado em lei. Lembre-se mais uma vez que em processo penal incide o princípio dalegalidade. Para preencher esta lacuna legislativa, entretanto, os Tribunais, semautorização constitucional para tanto, uma vez que a competência legislativa paradisciplinar atos processuais penais é da União (CR, art. 22, I), produziram atosnormativos. Não podem os Tribunais, por Regimento ou mesmo Provimento, modificar,completar, regulamentar, lacunas legislativas, por violação ao Devido ProcessoLegislativo[287]. Assim, inconstitucionais todos os depoimentos tomados comtestemunhas sem nome, rosto ou identificação. Por fim, ainda com Diogo Rudge Malandeve ser marcado que: “Prepondera nos paises da família jurídica do common lawtendência no sentido de se repudiar a admissão do anonimato testemunhal em juízo, àluz do right of confrontation. Por exemplo, a Suprema Corte norte-americana temjurisprudência consolidada nesse sentido, desde a década de 1930 (v.G. Casos Alford v.United States e Smith v Ilinois).”[288] Ainda que válido, como acontece na legislaçãoColombiana, com expressa disposição legal para sua realização, não pode ser o únicoelemento probatório, como bem aponta Choukr “Sensível a tal entendimento, a CorteConstitucional colombiana, ao analisar a validade dos depoimentos dessas testemunhas,decidiu que: Admitir que se pueda condena com fundamento únicamente comtestimonios de personas de identidad reservada, seria desconocer la ConstituciónPolítica, cuyo artículo 29 reconoce el derecho fundamental de toda persona a um debidoproceso, tanto em las actuaciones administrativas como judiciales. Se vulneraria eldebido proceso, toda vez que, se desconocería el derecho de toda persona a controvertirlas pruebas que se presenten em su contra, em atención a que sin conocer al declaranteque lo inculpa y consecuencialmente las circunstancias de tiempo, modo y lugar em quepercibió los hechos, no puede contradecir la respectiva declaración. Los testimoniossecretos no constituyen fundamento único com base em el cual se pueda dictar sentenciacondenatória, sino que esta modalidad de la llamada por algunos justicia secreta, essimplesmente, um instrumento o guia técnica para adelantar la investigación criminal ypara proteger la vida e integridad de los testigos dentro del proceso penal. Las normassobre reserva de la identidad de los intervinientes em el proceso penal, son expresionesnormativas fundadas em la idea de rodear de garantias y seguridades a los jueces,funcionarios empleados de la rama judicial, familiares, miembros de la fuerza públicaque colaboran en el ejercicio de lãs funciones de policía judicial, ,testigos y colaboradoreseficaces de la administración de justicia (Corte Constitucional, Sala Plena deConstitucionalidad, C-275-93, Barrera Carbonell Antonio, Processo de 16/7/1993).”[289]

Page 71: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

2. Inquérito Policial (CPP, art. 4o – 23)

2.1. A partir da notícia de possível crime, o Estado precisa realizar a apuraçãopreliminar com o fim de levantar elementos mínimos de materialidade e indícios deautoria. Do contrário, corre-se o risco de se iniciar a ação penal sem elementos mínimos.Não se irá aqui discorrer sobre as diversas modalidades de investigação existentes nomundo, ou seja, se quem deve investigar é o Ministério Público, o Magistrado ou aPolícia[290]. Nesse Guia Compacto se irá demonstrar o lugar (pré-jogo processual) e afunção (elementos de materialidade e autoria) do Inquérito Policial em face danormatividade brasileira.

2.2. A função do IP é levantar elementos de materialidade e autoria da condutacriminosa (meios probatórios, informantes, testemunhas, perícias, documentos, etc),justificando democraticamente a instauração de ação penal (CPP, art. 12), ou seja, paraque o jogo processual possa ser iniciado a partir da autorização do Estado-Juiz(recebimento motivado da denúncia e/ou queixa crime)[291]. Para instauração de açãopenal é necessária a existência de justa causa (elementos de materialidade e autoria) a seraferida por investigação e/ou documentos preliminares. De regra, realiza-se porInquérito Policial (CPP, art. 4o, sgts.), o qual é procedimento administrativo, nãojurisdicional, a cargo da Polícia Judiciária – Estadual ou Federal (art. 144, § 4º, CR),submetido aos princípios da administração pública (legalidade, publicidade,impessoalidade, moralidade e eficiência – CR, art. 37[292]). Evita-se que a ação penalpossa ser instaurada como aventura processual, dado que o simples fato de ser acusadojá “etiqueta”[293] o sujeito para todo o sempre, mesmo que absolvido ao final. De sorteque é necessário o controle, por parte do Judiciário, dos requisitos para o exercício daação penal.

2.3. O Ministério Público (não) pode investigar. Controversa é a possibilidade de oMinistério Público investigar, dado que não previsto na Constituição. Há posições deambos os lados. Os argumentos que defendem a possibilidade de investição não sesustentam por um princípio básico: o Ministério Público não pode escolher em que casosirá investigar, dada a existência dos princípios da impessoalidade e da legalidade (CR,art. 37), até porque o art. 129, VI e VII, da CR, art. 8º, LC 75/93 e art. 26 da Lei 8.625/93,indicam ao Ministério Público o lugar de jogador titular da ação penal e não dainvestigação. Não se pode transformar substantivo em adjetivo – exclusivamente –, comoacontece com o art. 144, § 4o, da CR, por exemplo[294]. O lugar do Ministério Público é dejogador da partida processual penal. A fase pré-jogo não lhe compete.

2.4. A Polícia Militar é órgão da segurança pública e compete a polícia ostensiva epreservação da ordem pública, sem qualquer competência para instaurar ou conduzirinvestigações policiais, salvo nos crimes militares, mesmo no âmbito dos JuizadosEspeciais (CR, art. 144, § 5º). Assim também a Polícia Rodoviária Federal (CR, art. 144, §2º) e a Polícia Ferroviária Federal (CR, art. 144, § 3º). Decorre disto que não podemrequerer medidas cautelares (interceptação telefônica, mandado de busca e apreensão,etc...).

Page 72: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

2.5. A Guarda Municipal é órgão criado para o fim de proteção dos bens, serviços einstalações dos Municípios e não como substituto da Polícia Militar ou Civil (CR, art. 144,§ 8º). Não pode realizar atos próprios de investigação, nem de policiamento ostensivo,nem apurar denúncias anônimas ou perseguir para investigação. Como qualquer dopovo, pode prender em flagrante delito posto, não pressuposto. Toda atuação emdesconformidade com a sua competência levará à ilicitude da prova (CR, art. 5º, LVI).

2.6. A instauração do Inquérito Policial se dá por Portaria lavrada pela autoridadepolicial, de ofício ou a requerimento da parte interessada (CPP, art. 5o, II e art. 27, nãotendo sido recepcionado o art. 26 do CPP). Para tanto deve existir “tipicidade aparente”,isto é, as informações devem indicar a violação de tipo penal, sob pena de arquivamento,do qual cabe recurso (CPP, art. 5º, § 2º). A presidência do IP não se confunde comarbitrariedade. A autoridade policial pode eleger as linhas de investigação. Deve, todavia,estar vinculado ao disposto no art. 6o (comunicação do crime, preservação de local decrime, oitiva de pessoas, requisição de perícias, realização de acareação, reconstituição,identificação criminal, indiciamento e interrogatório), bem assim impedido de realizarmedidas restritivas de direitos fundamentais (prisão preventiva ou temporária,interceptação telefônica, quebra de sigilo fiscal/bancário, busca e apreensão, sequestro,etc...), dada a reserva de Jurisdição. Podem ser requeridas diligências e produção deelementos preliminares tanto pela vítima, como pelo indiciado, suspeito e peloMinistério Público, mas o Delegado tem a prerrogativa de não as acatar (CPP, art. 14)desde que motivadamente.. Pode inclusive ser sigiloso, se a autoridade policial justificara necessidade (art. 20), mas vinculada ao interesse público, não se podendo excluir osadvogados dos indiciados (EOAB, art. 7º, XIV), conforme a Súmula Vinculante n. 14: “Édireito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos deprova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão comcompetência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”. Aexposição dos conduzidos à imprensa, longe de ser forma de publicidade, sem o prévioconsentimento expresso do agente, configura abuso de autoridade da autoridade policialresponsável (Lei n. 4.898/65, art. 4o, “b” – submeter pessoa sob sua guarda ou custódia avexame ou a constrangimento não autorizado em lei”). A imagem e intimidade sãoatributos do sujeito conduzido e somente podem ser flexibilizadas na hipótese declaradapor escrito e nos autos, nos termos do art. 20 do Código Civil (Art. 20. Salvo seautorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordempública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposiçãoou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento esem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou arespeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.). A exposição do preso como sefosse “caça” ou produto comercial é abusivo e ilegal. A justificativa democrática para queseja exposto se dá no âmbito da investigação criminal, ou seja, se a imagem ou dadospessoais forem necessárias para elucidação do crime ou de outros fatos criminosos. Avítima também pode requerer ao juiz a garantia dos seus direitos fundamentais (CPP,art. 201, § 6o)[295]. O direito à informação é o de saber que alguém foi preso por tal fatosem precisar dos dados pessoais. A exposição de seus dados, sem justificativas, é

Page 73: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

perversão democrática e crime.2.7. O suspeito ou indiciado possui o direito de não produzir prova contra si

mesmo[296]. Logo, não poderá ser obrigado a participar de reconstituição, fornecerpadrões vocais (STF, HC 83.096), padrões gráficos de próprio punho (STF, HC 77.135),sangue, esperma, etc... Essa negativa não impede que a autoridade policial possainvestigar por outros meios lícitos (p.ex. o lixo do investigado, requisição de documentosem repartições públicas, colégios, etc..). Além disso o conduzido deve sernecessariamente advertido do direito ao silêncio. A famosa advertência de Miranda foireconhecida pela Corte Suprema dos Estados Unidos, em 1966, no caso Miranda xArizona, reconheceu que é pressuposto à validade das declarações que o acusado tenha apossibilidade anterior de se consultar com um defensor (daí a inconstitucionalidade doart. 21 do CPP) e tenha sido advertido do seu direito de não se autoincriminar.[297]

2.8. O indiciamento é ato formal pelo qual o sujeito passa a ocupar o lugar deindicado, isto é, a declaração pelo Estado de que há indicativos convergentes sobre suaresponsabilidade penal, com os ônus daí decorrentes. A presunção de inocência veda oindiciamento arbitrário. Não pode ser considerado como mero ato automático. Pressupõea apuração da materialidade da infração e informação suficiente de autoria. Diferencia-seo averiguado/suspeito do indiciado. Diante da legalidade, havendo indicativos, oindiciamento é obrigatório e traz como consequência o interrogatório, pregressamento,identificação criminal, acesso às informações já coletadas, via defesa técnica, dando-lheum lugar na investigação preliminar[298]. A nomeação de curador (CPP, art. 15) perdeu osentido em face da maioridade civil (Código Civil, art. 5o).

2.9. O prazo para encerramento das investigações regido pelo CPP é o de 10 (dez)dias se estiver o investigado preso e 30 (trinta) dias se estiver solto, podendo serprorrogado, desde que justificada a necessidade. Diante da duração razoável daintervenção estatal, mesmo na hipótese de investigação por fato de difícil elucidação(CPP, art. 10, § 3o), não é possível estender-se por diversos anos (STJ, HC 96.666). APolícia Federal, por sua vez, possui o prazo de 15 (quinze) dias, prorrogável por igualprazo (Lei n. 5.010/66, art. 66). Nos crimes da Lei de Drogas, o prazo é de 30 (trinta) diaspara preso e 90 (noventa) para solto (Lei n. 11.343/06, art. 51). A demora na finalização doauto de prisão não pode se dar por ausência de condições materiais, mas sim eexclusivamente pela pendência justificada de alguma diligência policial.

2.10. Não pode a autoridade policial arquivar o inquérito por si mesma (CPP, art.17). Os autos serão remetidos ao titular da ação penal para que este se manifeste (CPP,art. 19). O MP poderá determinar a devolução dos autos à autoridade policial pararealização de diligências extras, se imprescindíveis (CPP, art. 16). Se assim não ocorrer,ou após cumpridas as diligências requeridas, deverá decidir o MP pelo oferecimento dedenúncia ou pelo arquivamento, que não fará coisa julgada, podendo ser reaberto oprocedimento se apurados novos elementos (art. 18). O desarquivamento pressupõeprova materialmente nova, isto é, a não existente nos autos (STF, Súmula n. 524). A provajá existente nos autos e não considerada é formalmente nova e impede a reabertura.Também impede a nova compreensão dos fatos por outro órgão do Ministério Público.

Page 74: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

2.11. Ao julgador descabe contrariar a jogada do acusador, isto é, se requeridomotivamente o arquivamento, a postergação do jogo diante das informações que possui,descabe qualquer função do juiz. Adotada postura antidemocrática, poderá o julgador sevaler da regra do art. 28 do CPP para o fim de recorrer ao Chefe do Ministério Público.

2.12. Em relação à validade dos elementos colhidos no Inquérito Policial, diante desuas peculiaridades (sem garantia da Jurisdição, do Contraditório, da Ampla Defesa, daMotivação dos Atos), cabe distinção: a) em relação às provas periciais o contraditório serádiferido, a saber, no decorrer da instrução processual as partes poderão impugnar oslaudos, pareceres, perícias, inclusive requerendo esclarecimentos e sua renovação; b) notocante aos depoimentos testemunhais a renovação é obrigatória. Cuida-se de mero atode investigação[299], sem que o indiciado tenha participado da produção dasinformações, nem mesmo controlada pelo Estado Juiz. A validade, portanto, é somentepara análise da justa causa e cautelares pré-jogo, como explica Lopes Jr: “O inquéritopolicial somente pode gerar o que anteriormente classificamos como atos de investigaçãoe essa limitação de eficácia está justificada pela forma mediante a qual são praticados, emuma estrutura tipicamente inquisitiva, representada pelo segredo, a forma escrita e aausência ou excessiva limitação do contraditório. Destarte, por não observar os incisosLIII, LIV, LV e LVI do art. 5o e o inciso IX do art. 93, da nossa Constituição, bem como oart. 8o da CADH, o inquérito policial jamais poderá gerar elementos de convicçãovaloráveis na sentença para justificar uma condenação.”[300]. Anote-se, por fim, que anão realização de provas periciais por deficiência do aparato de investigação não é culpado indiciado. Nos crimes que deixam vestígios (CPP, art. 158), é indispensável. Ausente,não pode ser suprida por prova indireta (STJ, HC 131.655).

3. Prisão em Flagrante

3.1. A prisão em flagrante é a exceção à necessidade de ordem escrita efundamentada da autoridade judiciária (CR, art. 5º, LXI, CPP, art. 283). Pode ser realizadapor qualquer do povo (facultativa) e por autoridade policial e seus agentes (obrigatória),nos termos do art. 301 do CPP. É prisão realizada antes do inicio da partida processual enão prende por si, demandando controle jurisdicional. Logo, vinculada expressamente àshipóteses legais. Com fundamento em Carnelluti, Lopes Jr. invoca a metáfora dafogueira para que se possa entender o flagrante: “Essa chama, que denota com certeza aexistência de uma combustão, coincide com a possibilidade para uma pessoa decomprová-lo de mediante a prova direta. Como sintetiza o mestre italiano: a flagrâncianão é outra coisa que a visibilidade do delito.”[301]

3.2. Nos termos do art. 302 do CPP, considera-se em flagrante delito quem: a) estácometendo a infração penal; b) acaba de cometê-la; c) é perseguido (CPP, art. 290, § 1º),logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que façapresumir ser autor da infração. Se a perseguição (sem interrupção, mesmo perdendo devista ou por informações aptas) transpassar os limites territoriais da comarca, efetivada aprisão, deve ser o conduzido apresentado à autoridade policial do local da prisão (CPP,

Page 75: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

art. 290 e § 1º); d) é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéisque façam presumir ser ele autor da infração. Embora seja controversa a classificação dadoutrina, pode-se distinguir flagrante; a) próprio (incisos I e II); b) impróprio (incisosIII) e, c) presumido (inciso IV). A Lei n. 9.034/95 (Lei das Organizações Criminosas), noseu art. 2º, II, bem assim o art. 53, II, da Lei n. 11.343/06, estipulam o denominadoflagrante postergado (diferido, prorrogado), o qual somente poderá ser realizado noâmbito de organizações criminosas ou tráfico, mediante prévia autorização, sob ajustificativa de que auxiliará na obtenção de provas sobre a organização criminosa.Constitui-se em prática ilegal a iniciativa isolada da autoridade policial na postergação doflagrante sem a respectiva autorização legal, especialmente quando ausente sequerreferência à organização criminosa, via IP instaurado.

3.3. O flagrante preparado ou provocado é o induzido/instigado pela autoridadepolicial, portanto, ilícito. (STF, Súmula n. 145: Não há crime, quando a preparação doflagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.) Diferencia-se do esperadopelo qual a autoridade possui informações de que o crime pode acontecer e o aguarda,sendo lícito. Já no forjado a situação é criada pelos agentes realizadores da prisão, assim,ilícita.

3.4. Nos crimes permanentes há confusão lógica na interpretação prevalente. Defato, o art. 303 do CPP, autoriza a prisão em flagrante nos crimes permanentes enquantonão cessar a permanência. Entretanto, a permanência deve ser anterior à violação dedireitos. Dito diretamente: deve ser posta e não pressuposta/imaginada. Não basta, porexemplo, que o agente estatal afirme ter recebido uma ligação anônima, sem que indiquequem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegadodroga, na casa “x”, bem como que “acharam” que havia droga porque era um traficanteconhecido, muito menos que pelo comportamento do agente “parecia” que havia droga.É preciso que hajam evidências ex ante. Assim é que a atuação policial será abusiva einconstitucional por violação do domicílio do agente quando movida pelo imaginário.Embora seja uma prática rotineira a violação da casa de pessoas pobres, porque a polícianão entra assim em moradores das classes ditas altas, não se pode continuar tolerando aarbitrariedade. Desde há muito se sabe – e os policiais não podem desconhecer a lei –que não se pode entrar na casa de ninguém (CPP, art. 293)– pobre ou rico – sem mandadojudicial, salvo na hipótese de flagrante próprio, o qual não existe com denúncia anônima.Nem se diga que depois se verificou o flagrante porque quando ele se deu já haviacontaminação pela entrada inconstitucional no domicílio. Castanho de Carvalho aponta: “Em conclusão, só é possível o ingresso em domicílio alheio nas circunstânciasseguintes: à noite ou de dia, sem mandado judicial, em caso de flagrante próprio (CPP,art. 302, I e II), desastre ou prestação de socorro; e durante o dia, com mandado judicial,em todas as outras hipóteses de flagrante (CPP, art. 302, III e IV). Reconheço que a faltade estrutura do sistema investigatório brasileiro, tornando inviável o contato próximo e atempo com a autoridade judiciária, possa fazer com que o entendimento exposto setransforme em mais um entrave burocrático à persecução penal. Não é essa a intenção,mas não se pode aceitar que a doutrina fique à mercê da boa-vontade dos governantes

Page 76: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

para dotarem a polícia dos recursos técnicos e humanos necessários para o desempenhoda função.”[302] Assim é que não se pode tolerar violações de Direitos Fundamentaisem nome do resultado, pois pelo mesmo argumento seria legítima a “tortura”, a qual, nofundo não é tão diferente da ação iniciada exclusivamente por “denúncia anônima”, àmargem da legalidade e com franca violação dos Direitos Fundamentais. Claro que oargumento seguinte é: mas o proprietário autorizou a entrada! Será que alguém acreditamesmo que o conduzido autorizou? Não há verossimilhança, ainda mais com a constanteacolhimento jurisdicional dessa prática, mormente em se tratando de crime permanente,como de tráfico. A prevalecer essa lógica, a garantia do cidadão resta fenecida. Tôrres sustenta: “Ora, sabendo que alguém tem em depósito drogas, vende droga, ou outrassituações de permanência é que pode, conforme a Constituição, penetrar em domicíliosem o consentimento do morador. Sabe, logo tem indícios que permitam solicitar ao juizo mandado, imprescindível contra o abuso. Não basta a mera desconfiança, pois corre orisco de responder por descumprimento da lei, logo, impossível considerar válida aapreensão nesses casos, sem ordem judicial. Seria, como o é de fato, fazer vista grossaaos abusos policiais (..) Como entender urgente o que se protrai no tempo? É possível,graças à presença diuturna do judiciário guardião da lei, requerer e ser atendido empouco tempo, o direito constitucionalmente previsto de entrar em domicílio. Afacilidade do arguir-se urgência é forma espúria de desconhecer direitos, é subterfúgiopara o exercício de força, é descumprimento do dever de acatar as diretrizes políticasassumidas pelo Estado. Impossível legalizar o ilícito. Deve, nestes crimes chamadospermanentes, especificamente por durarem, não se reconhecer a urgência do flagrantepróprio, pois nem se evita sua consumação, nem se impede maiores consequências, e,sobretudo, arrisca-se sequer determinar a autoria, interesse maior nesses casos. Oargumento de urgência deve fundamentar pedido à autoridade judiciária, inclusive,modos legais de realização. Nada impede o respeito à intimidade nessa hipótese. (...) Nocaso do flagrante em crime permanente, vê-se com muita frequência não só odescumprimento da lei, mais que isto, um caminho perigoso a permitir retornem as másautoridade o modelo inquisitorial, buscando provar a qualquer custo, não sepreocupando com mais nada, senão com a punição pela punição.”[303] Cabe destacarjulgado relatado pelo Des. Geraldo Prado, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro(Apelação Criminal n. 2009.050.07372, verdadeira aula de como se deve proceder nagarantia de Direitos Fundamentais:“APELAÇÃO. PENAL, PROCESSO PENAL ECONSTITUCIONAL. ARTIGOS 171, § 2.º, INCISO V, NA FORMA DO ARTIGO 14,INCISO II, 299 E 340, TODOS DO CÓDIGO PENAL. CONDENAÇÃO. PROVA ILÍCITA.INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO, INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E DIREITO AOSILÊNCIO. CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO. Apelantes condenadas pela prática doscrimes definidos nos artigos 171, § 2.º, inciso V, na forma do artigo 14, inciso II, 299 e 340,todos do Código Penal. Prova ilícita. Ingresso indevido no quarto de hospedagem dasacusadas. Inviolabilidade de domicílio, da intimidade e da vida privada (artigo 5.º, incisosX e XI, da Constituição da República). Rés que não foram informadas de seu direito aosilêncio (artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da República). Apreensão dos bensfalsamente furtados, portanto, ilícita. Prova oral que, decorrente exclusivamente dessa

Page 77: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

apreensão, também se revela ilícita. Desaparecimento da materialidade do crime.Absolvição.” Consta do voto: “O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo doagente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fiquedemonstrada a fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime estejasendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenhajustamente o propósito de evitar que esse crime se consume. Se assim não fosse, seriapermitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático,consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimentoinvestigatório criminal. Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assimfizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade,“encontrasse” à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.” Portais razões, diante das condições em que a materialidade continua sendo apreendidaneste país, em franca violação dos direitos fundamentais, a prova deve ser declaradailícita, especialmente nos casos de ilegal denúncia anônima, bem assim quando a atuaçãodos policiais acontece sem mandado judicial, implicando, pois, na ilegalidade daapreensão da droga e, por via de consequência, da ausência de materialidade. Agora nãose pode é se acovardar em nome do resultado. A função do Judiciário é de garantia!

3.5. Nos Juizados Especiais Criminais não será imposto flagrante, masencaminhamento para audiência (Lei nº. 9099/95, art. 69), especialmente pelo montantedas penas a se aplicar.

3.6. O uso da força (CPP, art. 284) deve ser a necessária para manutenção do ato(resistência à prisão ou receio justificado de fuga), inclusive contra terceiros (CPP, art.292), salvo se precisar adentrar em residência, diante da inviolabilidade (CR, art. 5º, XI),atendido o disposto no art. 293 do CPP. O excesso é punível. A utilização de algemas érestrito, nos termos da Súmula Vinculante n. 11: “Só é lícito o uso de algemas em casosde resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria oualheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sobpena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e denulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo daresponsabilidade civil do Estado.”

3.7. No aspecto formal o Auto de Prisão em Flagrante, deve ser escrito, com a oitivado condutor, das testemunhas e do conduzido, verificação da hipótese de prisão emflagrante (CPP, art. 302 ou 303), lavratura do auto, com deliberação sobre a prisão ou asoltura (CPP, art. 309). Deverá avaliar a possibilidade de fiança, a qual recolhida, implicana liberação do conduzido. Anote-se que diante das condições pessoais do conduzido, oCPP estipula prisão especial (CPP, art. 295 e 296). Os presos cautelares, ademais, devemficar separados dos definitivos (CPP, art. 300).

3.8. Lavrado o APF, nos termos do art. 306, do CPP, no prazo de 24 (vinte e quatro)horas, deverá ser comunicado o juiz competente, o Ministério Público, a família doconduzido (CR, art. 5º, LXII), seu advogado e, na falta desse, da Defensoria Pública (CPP,art. 306, § 1º), bem assim entregue nota de culpa. Diante da função de julgador e não dejogador, descabe a prisão de ofício, ou seja, o juiz não pode se antecipar na jogada que

Page 78: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

compete ao acusador, até porque o art. 311 do CPP impede a prisão – para aqueles queentendem ser possível de ofício – na fase de investigação, mas somente na ação penal,inexistente, por óbvio. Assim é que no prazo de 24 horas deverá ser requerida, peloacusador (Ministério Público/querelante) as razões da decretação da prisão preventiva ouda aplicação de alguma medida cautelar (CPP, arts. 312 c/c art. 319), analisando-se aliberdade provisória, com ou sem fiança (CPP, art. 321 e sgts.) ou medidas cautelares(CPP, art. 319 E sgts).

4. Prisão Cautelar como Tática (de Guerra) no Jogo Processual

4.1. A partir da teoria dos jogos as medidas cautelares podem se configurar comomecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento (simbólico e real,dadas as condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão cautelar. A prisãodo indiciado/acusado é modalidade de guerra com “tática de aniquilação”, uma vez queos movimentos da defesa estarão vinculados à soltura. Clausewitz deixou herdeiros noprocesso penal ao apontar que a pressão pela liberdade ou por finalizar o processo ajudana estratégia, uma vez que atua no centro de gravidade: a liberdade. Além disso, afacilidade probatória (testemunhas e informantes com memória mais próxima daconduta, mídia acompanhando, etc..) e redução da condição do acusado a objeto(subjugação psicológica do acusado, defensor, familiares etc...)[304] podem ser úteis àacusação, como já apontava o Manual dos Inquisidores[305].

4.2. Isso porque a tradição ‘Inquisitória’ herdada solapa a Presunção de Inocência,partindo da prévia contenção do agente que é ainda mero investigado/acusado, namelhor perspectiva da ‘Criminologia Positiva’, segundo a qual o desviante, dada suapericulosidade, deve ser objeto de atenção estatal, para evitar hipotética violação(imaginária) da sociedade, tudo em nome da ‘Defesa Social’. Apesar da impossibilidadefática da extinção das ‘prisões cautelares’[306], é possível se defender que para suadecretação ou manutenção devem concorrer os requisitos legais para tanto, não sendobastante a mera referência à capitulação, em tese, da conduta, havendo necessidadeinafastável da demonstração, fundamentada, de sua excepcionalidade, a partir da noçãod e devido processo legal substancial, ou seja, necessidade, adequação eproporcionalidade em sentido estrito. Não serve, portanto, a mera transcrição dos termoslegais, devendo-se comprovar argumentativamente as condições fáticas de tal medida,sendo imprestáveis, também a mera gravidade da infração imputada[307], o clamorpúblico[308] e os antecedentes[309]. A garantia da ‘presunção de inocência’ precisa serlevada a sério, evitando-se prisões anteriores ao julgamento definitivo, sob pena de setransformar – diz Ferrajoli – a “presunção de inocência a um inútil engodo, demonstrando queo uso deste instituto, antes ainda de um abuso, é radicalmente ilegítimo e além disso apto aprovocar, como a experiência ensina, o esvaecimento de todas as outras garantias penais eprocessuais.”[310]

4.3. A tentação ‘criminológica’ de ‘Defesa Social’ [311], ou seja, de julgar o acusado enão a hipotética conduta, escorrega – via (in)consciente – na cadeia de significantes

Page 79: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

previstos na lei, até poque a legislação utiliza-se de termos claramente ‘vagos’ e‘ambíguos’ para acomodar matreiramente em seu universo semântico qualquer um,articulando-se singelos requisitos retóricos, valendo, por todos, a anemia semântica do art.312 do CPP: ordem pública, ordem econômica, conveniência da instrução criminal,assegurar a aplicação da lei penal. De fato, àquele que conhece um pouquinho daestrutura linguística pode construir artificialmente tais pseudo requisitos, cuja falsificação– pressuposto –, diante da contenção, será inverificável. Em outras palavras, se deferida aprisão, os argumentos se desfazem. Afinal, o acusado estará preso e não se poderãoverificar os ditos motivos da prisão[312]. De outro lado, as ‘prisões obrigatórias’, ‘nostermos da lei’[313], violam expressamente a garantia da ‘presunção de inocência’[314].Anote-se que se o magistrado assume a postura de julgador e não jogador, jamais poderádecretar a prisão de ofício. Somente assim há respeito ao processo penal democrático,nos termos propugnados pela Constituição da República, dado que foram delineadoslugares próprios, como visto: a) julgador: magistrado; b) jogador-acusador: MinistérioPúblico ou querelante e assistente de acusação; c) Jogador-defensor: acusado (defesadireta) e Defensor (defesa indireta).

4.4. Até a edição da Lei n. 12.043/11, o julgador possuía apenas duas opções: prisãoou liberdade provisória. Salvo no regime da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/06), a qualdispunha de medidas cautelares específicas[315], por ausência de previsão legal eimpossibilidade de aplicação de cautelares atípicas (isto é, não previstas expressamenteem lei), não havia modulação: ou preso ou solto[316]. Prado demonstra a importância dasdecisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por seu Informe n. 35/2007, peloqual, pelo menos desde o julgamento López Álvarez x Honduras, destacou: “... no item 59da citada sentença, que há obrigação do Estado membro consistente em não restringir aliberdade do preso mais além dos limites necessários para assegurar que, em liberdade, oimputado não prejudicará a colheita da prova ou embaraçará a ação da Justiça. E a Corteconcluiu que esta mesma obrigação exclui a possibilidade de se considerar suficientes,para a decretação da prisão, as características pessoais do imputado e a gravidade, emtese, do crime que se lhe atribui. Reafirma a Corte que ‘la prisión preventiva es unamedida cautelar y no punitiva’.[317] Por decorrência do Informe 35/2007 e, diante daconsequência da política criminal de recrudescimento das penas, isto é, Sistema Penallotado, sem capacidade de assimilação, cultura inquisitória[318], o projeto de lei dascautelares foi resgatado e aprovado. Como bem apontam Barros e Machado[319], oprojeto sofreu emendas e perdeu sua (possível) organicidade. Há paradoxosintransponíveis no projeto, como por exemplo, ao determinar no art. 282 (As medidascautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas, observando-se: I – necessidadepara aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casosexpressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais), deixar a redação doart. 312 inalterada. Assim é que a redação proposta do art. 312 do CPP (A prisãopreventiva poderá ser decretada quando verificados a existência de crime e indicíossuficientes de autora e ocorrerem fundadas razões de que o indiciado ou acusado venha acrias obstáculos à instrução do proceso ou à execução de sentença ou venha a praticarinfrações penais relativas ao crime organizado, à probidade administrativa ou à ordem

Page 80: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

econômica ou financeira consideradas graves, ou mediante violência ou grave ameaça àpessoa) foi vetada e se manteve redação atual. Ausente lei que explicite as imputaçõesque ensejam a prisão cautelar por ordem pública, mostra-se ilegal qualquer prisão nelafundamentada. Mesmo assim, com muito contorcionismo[320], baseados emcompreensões que simplemente ignoram o disposto no art. 282, I, do CPP e o art. 5o daCR/88, continua-se decretando prisão cautelar pela ordem pública. Somente se podeprender cautelarmente para garantia da instrução criminal e aplicação da lei penal.Anote-se que a prisão cautelar deverá ser justificada também na decisão judicial, dadoque a presença dos requisitos para condenação em nada se vinculam à antecipação dapena.

4.5. Por isto a importância da manifestação do Supremo Tribunal Federal (STF), nojulgamento do HC 91.232. relator Ministro Eros Grau, no qual, até que enfim, deu-sesentido democrático ao processo penal e à presunção de inocência: “HABEAS CORPUS.INCONSTITUCIONALIDADE DA CHAMADA “EXECUÇÃO ANTECIPADA DAPENA”. ART. 5º, LVII, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. O art. 637 do CPP estabeleceque “[o] recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelorecorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância para a execuçãoda sentença”. A Lei de Execução Penal condicionou a execução da pena privativa deliberdade ao trânsito em julgado da sentença condenatória. A Constituição do Brasil de1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até otrânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 2. Daí a conclusão de que ospreceitos veiculados pela Lei n. 7.210/84, além de adequados à ordem constitucionalvigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP. 3.Disso resulta que a prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode serdecretada a título cautelar. 4. A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito.Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Porisso a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também,restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal deaplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão. 5. A antecipação daexecução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderiaser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. Aprestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serãoinundados por recursos especiais e extraordinários, e subseqüentes agravos e embargos,além do que “ninguém mais será preso”. Eis o que poderia ser apontado como incitação à“jurisprudência defensiva”, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputagarantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamentodo STF não pode ser lograda a esse preço. 6. Nas democracias mesmo os criminosos sãosujeitos de direitos. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetosprocessuais. São pessoas, inseridas entre aquelas beneficiadas pela afirmaçãoconstitucional da sua dignidade. É inadmissível a sua exclusão social, sem que sejamconsideradas, em quaisquer circunstâncias, as singularidades de cada infração penal, oque somente se pode apurar plenamente quando transitada em julgado a condenação decada qual Ordem concedida.” Pode-se discorrer sobre muita coisa deste voto, o qual, fala

Page 81: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

por si mesmo. Cabe relevar que o processo penal, como garantia, precisa ser levado asério, sob pena de se continuar a tratar a “Inocência” como figura decorativo-retórica deuma democracia em constante construção e que aplica, ainda, processo penal domedievo, cujos efeitos nefastos se mostram todos os dias[321]. Por isto a necessáriasuperação da farsa da mentalidade inquisitória!

4.6. Nesse sentido, Lopes Jr. Indica: “A conversão da prisão em flagrante empreventiva não é automática e tampouco despida de fundamentação. E mais, afundamentação deverá apontar – além do fumus commissi delicti e o periculum libertatis– os motivos pelos quais o juiz entendeu inadequadas e insuficientes as medidascautelares diversas do art. 319, cuja aplicação poder ser isolada ou cumulativa (...)Qualquer que seja o fundamento da prisão, é imprescindível a existência de provarazoável do alegado periculum libertatis, ou seja, não bastam presunções ou ilações paraa decretação da prisão preventiva. O perigo gerado pelo estado de liberdade do imputadodeve ser real, com um suporte fático e probatório suficiente para legitimar tão gravosamedida. Sem periculum libertatis, a prisão não poderá ser decretada (ainda que se tenhaa fumaça do crime). Mas, mesmo que se tenha situação de perigo a ser cautelarmentetutelada, é imprescindível que o juiz a analise à luz dos princípios da necessidade,excepcionalidade e proporcionalidade, anteriormente explicados, se não existe medidacautelar diversa, que aplicada de forma isolada ou cumulativa, se revele adequada esuficiente para tutelar a situação de perigo. não se trata de crime cometido com violênciaou grave ameaça e o deve ser levado em conta o estado constitucional de inocência.”[322]A previsão do artigo 282, § 6º, dispõe expressamente que a prisão preventiva serádeterminada quando não cabível sua substituição por outra medida cautelar. (TJSC,Habeas Corpus n. 2012.073724-5, da Capital, rel. Des. Roberto Lucas Pacheco; STJ, HC155.665). Demonstrado, pois, que, a despeito de haver indícios de autoria e prova damaterialidade, o periculum libertatis não está configurado, deve ser concedida liberdade,com ou sem medidas cautelares ou fiança[323]. Lembre-se da hipótese em que houverdúvida fundada sobre a identificação criminal do acusado (CPP, art. 313, parágrafo únicoc/c Leis n. 12.037/09 e 12.654/12).

4.7. Reconheça-se, a questão aqui é ideológica! Parcela majoritária da magistraturaentende que a prisão cautelar torna as cidades seguras, o acusado deve permanecer presoantecipadamente, quem sabe cumprir toda a pena, até que se confirme a decisão. Pensamconforme a matriz inquistória. Uma outra parcela compreende que a presunção deinocência prepondera, o acusado deve aguardar a definição de sua culpa até o trânsito emjulgado para somente depois iniciar-se o cumprimento da pena (STF, Habeas Corpus nº100.430, Min. Celso de Mello). Imputações sem violência nem grave ameaça, frases feitasde medo, terror, pânico, escalada de criminalidade não deveriam seduzir. A pertinênciade cada prisão deve ser demonstrada argumentativamente na hipótese singular. Tambémnão serve, pois, a vedação genérica da liberdade provisória, como na lei de drogas ou dearmas, pois isto é flagrantemente inconstitucional. A lei não pode restringir o acesso àjustiça, ou seja, o art. 5º, XXXV, da CR, preconiza que o pedido de liberdade, pressupostoda democracia, deve ser analisado. Sempre. A restrição genérica vincula-se a uma

Page 82: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

compreensão inquisitória de processo, da qual se deve passar longe[324].4.8. O fato de ser imputada, eventualmente, conduta apenada com reclusão, por si,

não pode ser óbice para o deferimento do pedido, em nome de uma difusa ordempública, até porque, como bem aponta Lopes Jr: “Muitas vezes a prisão preventiva vemfundada na cláusula genérica ‘garantia da ordem pública’, mas tendo como recheio umaargumentação sobre a necessidade de segregação para o ‘reestabelecimento dacredibilidade das instituições’. É uma falácia. Nem as instituições são tão frágeis a pontode se verem ameaçadas por um delito, nem a prisão é um instrumento apto para essefim, em caso de eventual necessidade de proteção. (...) Noutra dimensão, é preocupante –sob o ponto de vista das conquistas democráticas obtidas – que a crença nas instituiçõesjurídicas dependa da prisão de pessoas. Quando os poderes públicos precisam lançarmão da prisão para legitimar-se, a doença é grave, e anuncia um grave retrocesso para oestado policialesco e autoritário, incompatível com o nível de civilidade alcançado. Namais das vezes, esse discurso é sintoma de que estamos diante de um juiz‘comprometido com a verdade’, ou seja, alguém que, julgando-se do bem (e não sediscutem as boas intenções), emprega uma cruzada contra os hereges, abandonado o quehá de mais digno da magistratura, que é o papel de garantidor dos direitos fundamentaisdo imputado. Como muito bem destacou o Min. Eros Grau (HC 95.009-4) ‘o combate àcriminalidade é missão típica e privativa da Administração (não do Judiciário). (...) Noque tange à prisão preventiva para em nome da ordem pública sob o argumento de riscode reiteração de delitos, está se atendendo não ao processo penal, mas sim a uma funçãode polícia do Estado, completamente alheia ao objeto e fundamento do processo penal.Além de ser um diagnóstico absolutamente impossível de ser feito (salvo para os casosde vidência e bola de cristal), é flagrantemente inconstitucional, pois a única presunçãoque a Constituição permite é a de inocência e ela permanece intacta em relação a fatosfuturos. (...) A prisão para garantia da ordem pública sob o argumento de ‘perigo dereiteração’ bem reflete o anseio mítico por um direito penal do futuro, que nos proteja doque pode (ou não) vir a ocorrer. Nem o direito penal, menos ainda o processo, estálegitimado à pseudotutela do futuro (que é aberto, indeterminado, imprevisível). Alémde inexistir um periculosômetro (tomando emprestada a expressão de ZAFFARONI), éum argumento inquisitório, pois irrefutável. Como provar que amanhã, se permancersolto, não cometerei um crime? Uma prova impossível de ser feita, tão impossível como aafirmação de que amanhã eu o praticarei. Trata-se de recusar o papel de juízes videntes,pois ainda não equiparam os foros brasileiros com bolas de cristal...”[325]

4.9. Anote-se, no contexto, que a comprovação de ocupação lícita é herançatotalitária, a saber, quando o CPP foi editado, na sua versão original, era vedada aconcessão de liberdade provisória para o acusado considerado “vadio”, exigindo-se, paratanto, o então denominado atestado de ocupação lícita. Entretanto, sendo o trabalhodireito e não dever (CR, art. 7º), tal exigência é incompatível com a democracia, semcontar que, diante da quantidade de pessoas desempregadas, estes seriam penalizadospor não terem emprego![326]

4.10. A imposição de medidas cautelares (CPP, art. 319), vincula-se ao resultado do

Page 83: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

processo, não sendo aplicação antecipada da pena. Para Pacelli, a prisão preventiva buscasua justificativa e fundamentação “na tutela da persecução penal, objetivando impedirque eventuais condutas praticadas pelo alegado autor e/ou por terceiros possam colocarem risco a efetividade do processo”.[327] A presunção de inocência (o forte a ser tomadopela acusação) milita em favor da defesa. Daí que a jogador acusador pode utilizar ajogada da prisão cautelar como mecanismo de pressão e também, embora não devesseser possível, como pena antecipada. Parece que ninguém aceitaria reconhecer que dianteda Constituição da República há prisão sem trânsito em julgado. Entretanto, com os maisvariados fundamentos, as pessoas continuam presas cautelarmente no Brasil sem análisedo devido processo legal substantivo[328].

4.11. Cabe sublinhar, também, que as medidas cautelares (CPP, art. 319 -comparecimento periódico em juízo; proibição de acesso ou frequência a determinadoslugares; proibição de matner contato com pessoa determinada; proibição de ausentar-seda comarca; recolhimento domiciliar; suspensão do exercício de função pública ouatividade econômica ou financeira; internação provisória; fiança e monitoramentoeletrônico[329]) e a prisão domiciliar (CPP, art. 320), devem guardar pertinência com aimputação formalizada, isto é, descabe a aplicação genérica como prevenção geral.

4.12. Embora o Brasil não tenha adotado o prazo máximo de duração do processo,diante da cláusula do julgamento sem demoras (prazo razoável), antes da reforma de2008, apontava-se o prazo máximo de 81 (oitenta e um) dias o limite da prisão cautelar. OSTJ editou as Súmulas n° 52 (Encerrada a instrução criminal, fica superada a alegação deconstrangimento por excesso de prazo.) e n° 64 (Não constitui constrangimento ilegal oexcesso de prazo na instrução, provocado pela defesa.), rejeitando o excesso de prazodepois de finalizada a instrução ou por ação defensiva. Entretanto, com a novaconformação dos procedimentos (CPP, art. 394, §§ 2º e 5º, art. 400 c/c art. 403), medianteaudiência única e julgamento oral no próprio ato, a Súmula n. 52 perdeu o sentido (se éque um dia teve). Computando os prazos do novo procedimento, o Conselho Nacional deJustiça editou o Plano de Gestão para o Funcionamento de Varas Criminais e deExecução Penal e, depois, o Manual Prático de Rotinas das Varas Criminais e deExecução Penal, pelos quais, “ultrapassado o prazo estimado para a duração razoável doprocesso”, fixado em 105 (cento e cinco) dias[330], prorrogados por mais 26 dias, no casode aplicação do § 3º do art. 403, do CPP, desde que justificada a necessidade[331],cotejadas com as cláusulas indicadas pela Corte Européia dos Direitos do Homem,analisáveis no caso de demora - a) complexidade do assunto; b) comportamento daacusação e da defesa; e c) a atuação do órgão jurisdicional[332] – diz o CNJ “a prisãopreventiva, em tese, passa a ser considerada ilegal, devendo ser providenciado o seurelaxamento.” Os critérios devem ser justificados, não bastando a alegação, dado que, dizChoukr: “conseguir um limite claro a partir do qual não há mais como se falar emrazoabilidade da dilação”[333], passa a ser elemento do devido processo legalsubstancial[334]. Lopes Jr. e Badaró, parafraseando Daniel Pastor, sustentam que “se,inteligentemente, não confiamos nos juízes a ponto de delegar-lhes o poder dedeterminar o conteúdo das condutas puníveis, nem o tipo de pena a aplicar, ou sua

Page 84: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

duração sem limites mínimos e máximos, nem as regras de natureza procedimental, nãohá motivo algum para confiar a eles a determinação do prazo máximo razoável deduração do processo penal.” [335]

4.13. A prisão temporária, convertida que foi da Medida Provisória nº 111/89,regulada pela Lei nº7.960/89, é manifestamente inconstitucional. O Supremo TribunalFederal analisando (ou melhor, tergiversando) a questão, entendeu (Medida Cautelar nº162, julg. 14.12.89) que a prisão não era obrigatória, devendo, de qualquer sorte, serfundamentada. Entende-se diversamente, dado que nem no período do Regime Militartamanha petulância ocorreu, uma vez que o Decreto Lei não podia suplantar acompetência legislativa originária. Não há lavagem-da-legalidade depois por ter sidovalidada pelo processo legislativo, pois há vício de origem. Dito de outra forma: nem sediga que pela catarse da conversão em lei estaria legitimando a Medida Provisória. Oprocesso legislativo está viciado por sua origem. Por isso remanesce a irresignação. FauziHassan Choukr afirma, com razão: “No julgamento anunciado, a Corte Suprematangenciou os temas fundamentais da matéria, e corroborou uma vez mais a inequívocavocação legislativa do Poder Executivo, desta vez acobertando-a com o manto da nãoobrigatoriedade da aplicação da medida pelo magistrado no caso concreto, que apenastomaria a medida com a devida fundamentação. Verdadeiramente não é este o pontocentral do descumprimento da cláusula constitucional que determina ser a medidaprovisória empregada apenas em casos de extrema urgência e relevância.”[336] AuryLopes Jr indica que: “nasce logo após a promulgação da Constituição de 1988, atendendoa imensa pressão da polícia judiciária brasileira, que teria ficado ‘enfraquecida’ no novocontexto constitucional diante da perda de alguns importantes poderes, entre eles o deprender para ‘averiguações’ ou ‘identificação’ dos supeitos. Há que se considerar que acultura policial vigente naquele momento, onde prisões policiais e até a busca eapreensão eram feitas sem a intervenção jurisdicional, não concebia uma investigaçãopolicial sem que o suspeito estivesse complemente à disposição da polícia. (...) Então nãose pode perder de vista que se trata de uma prisão cautelar para satisfazer o interesse dapolícia, pois, sob o manto da ‘imprescindibilidade para as investigações do inquérito’, oque se faz é permitir que a polícia disponha, como bem entender, do imputado. (...) Aprisão temporária cria todas as condições necessárias para se transformar em uma prisãopara tortura psicológica, pois o preso fica à disposição do inquisidor. A prisão temporáriaé um importantíssimo instrumento na cultura inquisitória que ainda norteia a atividadepolicial, em que a confissão e a ‘colaboração’ são incessantemente buscadas. Não se podeesquecer que a ‘verdade’ esconde-se na alma do herege, sendo ele o principal ‘objeto’ dainvestigação.”[337] Nesse contexto, até porque se assume postura democrática, deve-sedeclarar inconstitucional a Lei (sic) n. 7.960/89, deixando-se bem claro que se elementospara preventiva se fizerem presentes, que se a requeira. Temporária não se decreto. Istoporque a mentalidade inquisitória da prisão para averiguações, para esclarecimentos, nãose compadece com o processo democrático. Deveria ter acabado o tempo em que aspessoas eram presas para se investigar, embora, reconheça-se, seja a mentalidade demuita gente que opera no direito penal, em regra, porque foram formados – ou seduzidos– pelos discursos fáceis da lei-e-da-ordem, para os quais a tolerância deve ser zero!

Page 85: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

5. Medidas Cautelares Assecuratórias

5.1. No subjogo das medidas cautelares assecuratórias, as quais servirão paraincidentalmente garantir o efeito útil do processo em relação às provas, interesseeconômico da vítima e do Estado, a confusão de finalidades é evidente. Anote-se que aBusca e Apreensão é regulada em local diverso, no campo das provas (CPP, art. 240).Acolhendo-se a divisão do CPP pode-se indicar: a) sequestro de bens móveis e/ouimóveis; b) hipoteca legal de bens imóveis, e; c) arresto prévio de bens móveis e/ouimóveis.

5.2. Somente podem ser deferidas pelo magistrado (reserva de Jurisdição),diferenciando-se das cautelares do âmbito do Processo Civil. Não podem ser nominadascomo ações cautelares, dada a diferença marcante entre crime e cível, constituindo-se emmedidas cautelares[338]. Equivocada a compreensão de que é a mesma cautelar cível(condições e requisitos) a ser julgada pelo juiz criminal. É necessária, no campo penal, aconcorrência de elementos relativos à autoria, materialidade e urgência no tocante aoefeito útil do processo. Não basta a mera acusação para que se defira as medidasassecuratórias, nem deslizar no imaginário, dada a presunção de inocência. Demanda-se,também, a comprovação de que os demais meios são inaplicáveis, como por exemplo,ações cautelares em improbidade (Lei n. 8.429/92). Logo, devem ser excepcionais,provisórias e atender ao comando da proporcionalidade (adequação, necessidade,proporcionalidade em sentido estrito).

5.3. A partir da teoria dos jogos as medidas de indisponibilidade servem naestratégia de aniquilamento midiático e patrimonial[339]. Desestabilizam a possibilidadede defesa direta mediante o massacre nos meios de comunicação e, por outro lado,bloqueiam o patrimônio do acusado o qual resta imobilizado na sua disposiçãopatrimonial, inclusive com o eventual defensor. Daí que devem sempre de exceção,devendo-se demonstrar os requisitos legais, partindo da presunção de inocência,conforme Aury Lopes Jr: “Incumbe ao acusador demonstrarm efetivamente, o risco dedilapidação do patrimônio do imputado, com a intenção de fraudar o pagamento da indenizaçãodecorrente de eventual sentença condenatória”[340]. O procedimento é o previsto nos arts.125-144.

6. Busca e Apreensão

6.1. A busca e apreensão (CPP, art. 240) é restrição à direito fundamental(inviolabilidade do domicílio, dignidade da pessoa humana, intimidade e a vida privada,incolumidade física e moral do sujeito) e, como tal, deve ser deferida somente no limitede sua autorização legal, a saber, em que os requisitos legais estejam cumpridamentedemonstrados[341]. Embora denominada de Busca e Apreensão conjuntamente,diferencia-se a busca da apreensão. A busca possui a função de obter a prova mediante alocalização de pessoas ou coisas, enquanto a apreensão tenciona garantir a prova ourestituição do patrimônio. Pode ser deferida tanto na fase pré-processual como na

Page 86: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

processual, exigindo, todavia, a instauração de Investigação Criminal. Para sua concessãodevem concorrer elementos de urgência e necessidade, vinculados ao devido processolegal substancial, não bastando mera suspeita ou ilações desprovidas de elementosprobatórios, mesmo que preliminares.

6.2. Pitombo aponta que: “O direito fundamental só pode sofrer diminuição dentroda estrita legalidade. A hipótese de restrição há que estar prevista, modelada, em leiordinária, consoante a Constituição; ainda, ter fins legítimos e possuir justificativasocialmente relevante. Devem ser considerados, também, os concretos meios, colocadosà disposição, da justiça pública, para se atingir o fim desejado.”[342] Luciano Dutrasustenta: “A autoridade judicial quando determinar a realização de busca domiciliardeve, efetivamente, motivar a imprescindível necessidade da diligência, demonstrandode forma cabal os motivos justificadores que autorizam a violação daquilo que a própriaConstituição Federal chama de ‘asilo inviolável’”[343]. Em cada hipótese deverá serdemonstrada a necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito dasmedidas requeridas.

6.3. Em relação ao controvertido conceito de casa, pode-se indicar que abrange a)habitação definitiva (própria ou alugada); b) moradia ou ocupação de caráter provisório(de temporada, hotel, motel, hostel, barraca de camping e similares – STF, RHC 90.376-RJ);c) dependências da casa; d) estabelecimentos comerciais, industriais e condomònios deacesso restrito ao público; e) meios de transporte providos ou transformados em “casa”,ou seja, quando parados - barco, trailer, cabine de caminhão.

6.4. No caso de Busca Domiciliar o consentimento fornecido por morador somentepoderá ser válido quando se der pelo responsável pela casa, desprovido de pressãopolicial, observado o disposto no art. 293, do CPP. Assim, estando os policiais fardados,fortemente armados, acreditar-se em consentimento é cinismo, como também doacusado já preso, lembrando Lopes Jr a decisão do Tribunal Supremo da Espanha, datadade 1992: “O problema radica em saber se um detido ou preso, está em condições deexpressar sua vontade favoravelmente a busca e apreensão, em razão precisamente daprivaão de liberdade a que está submetido, o que conduziria a afirmar que se trata de deuma vontade viciada por uma intimidação sui generis... e dizesos sui generis porque otemor racional e fundando de sofrer um mal iminente e grave em sua pessoa e bens, oupessoa e bens de seu cônjuge, descententes ou ascententes, não nasce de umcomportamento de quem formula o convite ou pedido de autorização para realizar abusca com o consentimento do agente, senão da situação mesma de preso, isto é, de umaintimidação ambiental.” Logo, salvo em hipoteses de ausência de pressão, exceção, cabereconhecer a regularidade da ação. Aliás, em crimes permanentes, consoante se viuanteriormente, segue-se o mesmo raciocínio.

7. Interceptação Telefônica

7.1. A função do Poder Judiciário é o de garantir Direitos Fundamentais do sujeitoem face do Estado, a saber, as intervenções na esfera privada somente se justificam se

Page 87: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

houver relevância coletiva e, no caso de investigações criminais, os fundamentosprecisam ser firmes. A restrição a direitos fundamentais, avivada pela interceptaçãotelefônica[344], demanda o preenchimento dos requisitos do art. 2º da Lei n.9.296/96[345], demonstrando-se, minudentemente, a necessidade, adequação eproporcionalidade em sentido estrito.[346] A Constituição da República, precisamenteem seu art. 5º, XII, assegura a todos a inviolabilidade do “sigilo da correspondência e dascomunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e naforma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processualpenal”. Estabeleceu, pois, com tal previsão, o sigilo das comunicações telefônicas comodireito fundamental, compreendido na cláusula de inviolabilidade da intimidade, vidaprivada, honra e imagem das pessoas, sob pena de indenização material ou moraldecorrente de sua violação. Por evidente, tal inviolabilidade comporta excepcionalintervenção, segundo a própria previsão literal da CRFB, para fins de instruçãoprocessual penal ou investigação criminal. A Lei nº 9.296/96, que regula o inciso XII,parte final, do artigo 5º, da CR, trata da “interceptação de comunicações telefônicas, dequalquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal,observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da açãoprincipal, sob segredo de justiça”, e vem permitir, em casos como estes, a quebra dosigilo das comunicações telefônicas.

7.2. Para demonstração da necessidade, imprescindível Inquérito Policial, nãobastando mero Boletim de Ocorrência. Isso porque o deferimento da interceptaçãodepende da comprovação da inexistência de outros meios de investigação. Se ela nãoestá instaurada, como se pode a justificar? O Conselho Nacional de Justiça editou aResolução n. 59, complementada pela Resolução n. 84, exigindo o seu deferimento emprocedimento policial regular, a saber, Inquérito Policial, inexistente na espécie. Épreciso acabar-se com a investigação sem IP ou no semblant de “procedimentoadministrativo”. Sem Inquérito Policial é inviável sequer analisar-se o pleito.

7.3. Do apurado deve-se apontar o liame lógico entre os terminaris que se querinterceptar, seus titulares – os quais devem necessariamente ser indicados no pedido(CNJ, Res. 59, art. 10) -, bem como de onde surgiram. Dito diretamente: é necessário oesclarecimento, por elementos probatórios, das condições em que os indigitados agentesestariam vinculados.

7.4. Ainda que exista controvérsia, o prazo para deferimento é o de 15 dias,prorrogáveis, justificadamente, por mais 15 dias (STJ, HC n. 76.686). Não cabe odeferimento de 30 dias. Qualquer restrição feita em desconformidade é ilegal. Cabelembrar que para garantia do contraditório diferido, as interceptações devem ser juntadapelas partes aos autos, na via em apenso e em sigilo, nos termos do art. 8o, da Lei n.9.296/96. Podem ser transcritas (STF, AP n. 508). No caso de arquivamento seminstauração de ação penal, deve-se dar ciência aos que tiveram o direito restringido. Nocaso de compartilhamento, modalidade de prova emprestada, via encontro fortuito,necessária a verificação do liame probatório e da posssibilidade excepcional de suavalidação democrática, quase sempre impossível.

Page 88: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

8. Quebra de Sigilo Fiscal e Bancário

8.1. O direito a intimidade é garantia constitucional prevista no art. 5º, inciso X, daConstituição da República. Sua desobediência representa severo ilícito contra garantiaconstitucional, constituindo-se, portanto, em uma impossibilidade. Entretanto, a LC n.105/2001 dispõe sobre as hipóteses em que a quebra de sigilo bancário pode serdecretada, mais especificamente no caput do § 4º, de seu art. 1º, que assim dispõe: “§ 4º Aquebra de sigilo poderá ser decretada, quando necessária para apuração de ocorrência dequalquer ilícito, em qualquer fase do inquérito ou do processo judicial, e especialmentenos seguintes crimes: I – de terrorismo; II – de tráfico ilícito de substânciasentorpecentes ou drogas afins; III – de contrabando ou tráfico de armas, munições oumaterial destinado a sua produção; IV – de extorsão mediante seqüestro; V – contra osistema financeiro nacional; VI – contra a Administração Pública; VII – contra a ordemtributária e a previdência social; VIII – lavagem de dinheiro ou ocultação de bens,direitos e valores; IX – praticado por organização criminosa.”

8.2. Belloque[347] acerca dos limites da medida correspondente à quebra de sigilobancário: “Consubstancia-se a quebra de sigilo financeiro em medida de coação porqueimporta em restrição a direito fundamental. Como todas as medidas desta natureza, serálícita – e, então processualmente admissível e valorável – quando a sua realizaçãoobedecer aos pressupostos e requisitos exigidos pela Constituição e pela lei. De outraforma, representará ilícito penal, civil, e, eventualmente, administrativo – sendoabsolutamente imprestável à persecução penal, por força do comando constitucionalinserto no art. 5.°, LVI, irredutível quando se tratar de prova para fundamentar umacondenação.” Entretanto, para o seu deferimento, deve-se demonstrar aimprescindibilidade da produção, especialmente a ausência de outros meios[348].

Page 89: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 6°

O Jogo Processual: Lugar, Procedimentos e Nulidades

i. Lugar do Jogo: Competência

1.1. A Jurisdição será exercida por Tribunal ou Juiz com competência, ex ante àconduta imputada, ou seja, em atendimento ao Juiz Natural. Uma vez fixado o JuizNatural descabe manipulação de competência. O que se garante não é a pessoa física dojulgador, mas do órgão. Assim, eventual transferência, opção, aposentadoria, promoção,do magistrado, não impede o julgamento pelo substituto. O que importa é a fixação porlei do procedimento para se chegar ao Juiz Natural. Dito de outra forma, distingue-se,equivocadamente, a competência absoluta (pessoa e matéria) da relativa (lugar). Adota-se abusivamente modelo civil de fixação de competência, próprio de direito disponíveis,no campo do processo penal (indisponível). Se o Juiz Natural é garantia do devidoprocesso legal substancial, não podem os jogadores eleger outro, nem mesmo a desídiaou má-fé de algum destes, implicar na alteração/manutenção do julgador. Normalmentese fala em convalidação ou mesmo prorrogação pela ausência de invocação oportuna deexceção de incompetência. Entretanto, essa compreensão desconsidera o processo comodireito fundamental. Os jogadores não podem ter disponibilidade quanto ao órgãojulgador.

1.2. A partir da leitura do devido processo legal substancial descabe a manutenção,no pós CR/88 (arts. 102, 105, 109, 118, 121 e 125), da distinção entre competência absolutae relativa. A competência será sempre absoluta e deve ser declarada de ofício oumediante exceção (CPP, art. 95, II c/c art. 113 e segts). A fixação da competência se daráem face da (i) pessoa; (ii) matéria, e; (iii) lugar. As possíveis Justiças Competentes são: (a)Justiça Militar (Federal e Estadual); (b) Justiça Eleitoral; (c) Justiça Comum - Federal ouEstadual; (d) Juizados Especiais Criminais – Federal ou Estadual.

1.3. A competência será fixada em face do lugar, domicílio ou residência do acusado,natureza da infração, distribuição, conexão ou continência, prevenção ou prerrogativa dafunção (CPP, art. 69). Ainda que não haja hierarquia, conforme Lopes Jr [349], pode-sefazer 3 (três) perguntas em série: a) Qual é a Justiça e o órgão competente? a1) JustiçasEspeciais: Militar (Federal ou Estadual) ou Eleitoral; a2) Justiça Comuns: Federal ouEstadual. b) Qual é o foro competente? (CPP, arts. 70, 71, 88 a 90); c) Qual é a Vara ouJuízo? (nas hipóteses de mais de um juiz compentente, normalmente por prevenção oudistribuição). Diante da imputação apresentada cabe perfilhar o seguinte trajeto: a) Écrime militar? Se sim: a1) Federal ou Estadual? Se sim: a2) Qual órgão competente? (STM,

Page 90: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Tribunais Militares ou Auditorias Militares). Se não: b) É crime Eleitoral? Se sim: b1)Qual o órgão competente? (TSE, TRE ou Zona Eleitoral). Se não: c) Justiça Comum: c1)Justiça Federal (TRF, Júri, Vara ou Juizado Especial); c2) Justiça Estadual (TRF, Júri, Varaou Juizado Especial)[350].

1.4. As controvérsias são grandes e para o fim desse Guia Compacto, o que importaé superar a visão exclusivamente civilista, isto é, superar-se a disponibilidade do JuizNatural.

2. Regras da Partida: Procedimentos (ordinário, sumário,

sumaríssimo, júri, especiais)

2.1. O devido processo legal substancial se manifesta pelos procedimentosespecíficos, atendido o processo como procedimento em contraditório. A partida se iniciacom o movimento do jogador acusador (denúncia ou queixa[351]), pelo qual o jogadordefensor é convocado (citação – CPP, art. 351-369 [352]), para que a partida probatória(significantes), mediante subjogos, possa se estabelecer a partir do contraditório e do fairplay, tendentes à decisão final.

2.2. A lógica dos procedimentos é da superação dos subjogos em etapas. Daí que amácula ocorrida num subjogo contamina os posteriores. Desde 2008, com a reforma noart. 394 do CPP, a distinção se dará entre procedimento: a) comum (ordinário, sumário esumaríssimo), ou b) especial (júri, honra, propriedade imaterial, falimentares, lavagemde dinheiro, eleitorais, competência originária, drogas). A competência em decorrênciada pessoa acusada pode alterar o rito (Lei n. 8.038). No caso do procedimento comum, afixação do rito entre ordinário, sumário ou sumaríssimo, decorre do quantum da pena aser imposta, conforme a denúncia/queixa (CPP, art. 394, § 1o). Será ordinário se a sançãomáxima for igual ou superior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade (CPP, arts.395-405), sumário quanto inferior a 4 (quatro) anos de pena privativa de liberdade (CPP,arts. 531-538) e sumaríssimo nas infrações de menor potencial ofensivo (Lei n. 9.099/95).No regime do CPP, o Júri possui procedimento específico (CPP, arts. 406-497), assimcomo o crime contra honra (CPP, arts. 519-523), servidor público (CPP, arts. 513-518) epropriedade imaterial (CPP, arts. 524-530).

2.3. Por força do art. 394, §§ 2º, 4º e 5º, do CPP, as disposições do procedimentoordinário são aplicáveis em todos os processos, salvo disposição em contrário,compatibilizando com as regras dos arts. 395-398, do CPP, de observância cogente,servindo supletivamente aos procedimentos sumário e sumaríssimo. Dai que oprocedimento comum ordinário será descrito em maior extensão. Anote-se, desde já, quea reforma parcial é sempre problemática, tanto assim que determina a aplicaçãouniversal dos art. 395-398, mas esse último foi revogado pela própria lei! Enfim, com asemendas parlamentares, a confusão chegou ao ponto de indicar dois momentos para orecebimento da denúncia (CPP, art. 395 e 399). Isso porque no projeto orignário foiprevisto o estabelecimento de contraditório preliminar ao recebimento da denúncia,superado pela alteração parlamentar havida. Manteve-se, pois, o recebimento da

Page 91: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

denúncia e posterior contraditório.2.4. O procedimento ordinário inicia-se com: (a) apresentação de denúncia ou queixa

apta (CPP, art. 41), podendo-se arrolar, no máximo, 8 (oito) testemunhas (CPP, art. 401),já que os informantes não entram no cômputo, baseado no Inquérito Policial, Auto dePrisão em Flagrante ou documentos respectivos; (b). uma vez reconhecida como apta, aacusação é recebida ou rejeitada (total ou parcialmente) por decisão do julgador, fixandoos limites da acusação[353], determinando-se, ainda, a citação do acusado para queapresente resposta, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias (CPP, art. 396); (c) no prazo deresposta o acusado poderá apresentar as exceções (CPP, art. 95), as quais serãoprocessadas em apartado), bem assim terá a oportunidade de articular a tática defensiva,momento em que poderá suscitar preliminares, arrolar testemunhas (máximo de oito),juntar documentos, requerer perícias, etc.... A defesa preliminar é ato obrigatório, sobpena de nulidade. É a manifestação da tática defensiva, sem que se possa exigirantecipação da respectiva estratégia. Daí que, por ser obrigatória, se o acusado citado nãoapresentar resposta, o juiz nomeará defensor. (d) Apresentada a defesa preliminar, emdecisão fundamentada, o julgador poderá finalizar o jogo pelo reconhecimento de causaexcludente da ilicitude, existência manifesta de causa de excludente de culpabilidade,salvo inimputabilidade, atipicidade e extinção da punibilidade (CPP, art. 397). Nãoreconhecida a absolvição sumária, o julgador designará audiência de instrução ejulgamento, no prazo de 60 (sessenta) dias, ocasião em que será coletada a prova oral(CPP, art. 400), na seguinte ordem, se houver: 1) ofendido; 2) testemunhas/informantesacusação; 3) testemunhas/informantes defesa; 4) esclarecimento dos peritos (CPP, art.400, § 2o e art. 159, § 5º, I); 5) interrogatório. Lembre-se que as testemunhas/informantes,se residentes fora da comarca, serão ouvidas por carta precatória (CPP, art. 222) ourogatória (CPP, art. 223), não se suspendendo o processo, salvo se disponível sistema devídeo-conferência. (CPP, art. 222, § 3º); (e) encerrada a produção de informaçõesprobatórias, é possível que os jogadores requeiram diligências, as quais devem sevincular ao que se produziu em audiência (CPP, art. 402), não se prestando a reabrirpossibilidades probatórias que poderiam ser requeridas anteriormente[354]; (f) seguem-se alegações finais orais ou por memorais (CPP, art. 403); (g) proferindo-se sentença.

2.5. O procedimento sumário (CPP, art. 531-538) diferencia-se do ordináriobasicamente pelo prazo da audiência, 30 dias; bem assim o número menor detestemunhas a se ouvir: 5 (cinco).

2.6. No sumaríssimo, no âmbito dos Juizados Especiais Criminais (crime com a penamáxima de dois anos; STF, Súmula n. 723 e STJ, Súmula n. 243), o procedimento,regulado pela Lei n. 9.099/95, inicia-se pela audiência de conciliação, com a posibilidadede composição dos danos civis (arts. 74 e 75), seguida, se for o caso, de transação penal(art. 76) e suspensão condicional do processo (art. 89, STF, Súmula n. 723 e STJ, Súmula n.243). Necessária a instrução, será ofertada denúncia (art. 77), sendo o autor citado (art.78), desgignando-se audiência de instrução e julgamento, na qual sera oferecida defesapreliminar que, rejeitada, implica na efetivação da instrução (oitiva da vitima,testemunhas de acusação, defesa e interrogatório.) O número de testemunhas será o de 5

Page 92: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

(cinco), na forma do art. 394, §§ 2o, 4o e 5º, do CPP[355].2.7. O procedimento do Júri (crimes dolosos contra a vida, CPP, art. 74) se orienta

pelos princípios previstos no art. 5o, XXXVII, da CR (plenitude de defesa, sigilo dasvotações e soberania dos veredictos). A regulamentação normativa (CPP, art. 406-497) sedá por duas fases (instrução preliminar e julgamento em plenário). Na primeira fase, dacompetência do juiz de direito, será apresentada denúncia, citação, defesa preliminar,vista ao Ministério Público, audiência e decisão (pronúncia, impronúncia, absolviçãosumária ou desclassificação). Sem recurso pendente, abre-se a possibilidade de se arrolartestemunhas ao plenário, no máximo 5 (cinco), ocasião em que acontece o julgamentopelo corpo de 7 (sete) jurados, presidido pelo julgador.

2.8. No caso de crimes contra a honra (calúnia, injúria ou difamação, CP, art. 138-140), salvo se aplicável o procedimento sumaríssimo, deverá ser designada audiênciaprévia de conciliação (CPP, art. 520). Nos crimes contra servidores públicos, embora aprevisão do art. 514, do CPP, bem assim da Súmula n. 330, do STJ, diante da redação doart. 394, § 4º, do CPP, desnecessária a providência. No procedimento da lei de drogas (Lein. 11.343/06), há fase de defesa preliminar, via notificação (art. 55)[356].

3. Subjogo de Nulidades

3.1. A legitimidade do provimento judicial dependerá do desenrolar correto dos atose posições subjetivas previstos em lei, do fair play. E a perfeita observância dos atos eposições subjetivas dos atos antecedentes (subjogos) é condição de possibilidade àvalidade dos subsequentes. Logo, a mácula procedimental ocorrida no início do processo– partida – contamina os demais, os quais para sua validade precisam guardar referênciacom os anteriores[357]. O ato praticado em desconformidade com a estrutura doprocedimento é inservível à finalidade a que se destina[358]. A decisão final, preparadapelo procedimento, também se constitui como parte desse, ou melhor, sua parte final, ocorolário.[359]

3.2. A doutrina diferencia a mera irregularidade (sem violação do conteúdo do ato),d a inexistência (por ausência de requisito de sua validade – alegações finais por nãoadvogado ou sentença por não juiz), nulidade relativa e nulidade absoluta. Em relação aessa distinção, também com Lopes Jr, pode-se afirmar a insuficiência das categorias e, apartir do processo como procedimento em contraditório, bem assim da reserva dejurisdição, só há nulidade por decisão judicial. Entretanto, o regime de nulidades do CPP(arts. 563-573), além de ultrapassado, é confuso[360]. Adota a compreensão da verdadesubstancial (CPP, art. 566), possui dispositivos revogados noutros locais do próprio CPP(art. 564, III, “a”, “b”, “c”, III), bem como indica compreensão civilista, incompatível como devido processo legal substancial, da ausêcia de prejuízo – pas nullité sans grief (CPP,art. 563)[361]. Assim é que, superada a distinção arbitrária e sem sentido, todas ashipóteses de violação ao devido processo legal substancial, serão declaradas nulas.

3.3. Nesse Guia Compacto, para fins exemplificativo, ainda que o art. 212 do CPPexclua o juiz da gestão da prova, ou seja, descabe o papel de jogador[362] (art. 212. As

Page 93: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo ojuiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ouimportarem na repetição de outra já respondida. Parágrafo único. Sobre os pontos nãoesclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.), parte significativa dosjulgadores permanece atrelada ao modelo presidencialista e inquisidor. A atual redaçãonão deixa dúvida acerca do papel do juiz no desenrolar da colheita da prova testemunhal,colocando-o no papel de mero espectador, sendo atribuída aos jogadores a formulaçãodireta das perguntas à testemunha (nos moldes do cross-examination[363] norte-americano ou do esame incrociato[364] italiano). Tal mudança, pois, é decorrente da buscade adequação da norma processual penal à Constituição da República[365], eis que, aoabandonar o modelo presidencialista de condução da colheita da prova testemunhal,situa o magistrado no lugar de garantidor da forma da informação oral[366]. Naestratégia processual a tática das perguntas é dos jogadores, inclusive quando sepretende inserir a dúvida[367]. Daí que não há sentido sequer na alegada produção daprova em favor da defesa, uma vez que o esclarecimento só acontece no caso de dúvida e,por evidente, a dúvida absolve (CPP, art. 386, VII). De sorte que evidenciada a mácula aodevido processo legal substancial, é de se reconhecer a nulidade pretendida pela defesa.Até mesmo porque, não obstante a Teoria do Prejuízo (pas nullitè sans grief e encampadapelo CPP, art. 563), como hoje posta, encontra-se ultrapassada (neste sentido tambémLopes Jr., Tovo Loureiro[368], Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[369], dentre outros),e a desconsideração do lugar de julgador é a manifestação inequívoca de dano à parte,porquanto a condução do processo por juiz imparcial e equidistante restou atingida.

Page 94: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 7°

Prova e Decisão: o Resultado do Jogo

1. Subjogo Probatório

1.1. A produção das informações relevantes, para efeito da decisão, é função dosjogadores, descabendo qualquer atribuição ao julgador. O regime da prova, desta forma,não pode ser lido conforme as disposições equivocadas do CPP (art. 155 e segts), dadoque precisa de leitura constitucionalizada. O processo precisa ser entendido como omecanismo apto à inserção da informação no campo da decisão judicial. É o regime peloqual o Estado estipula quais as modalidades e a forma de produção da informação.

1.2. O resultado da produção válida de significantes será composta pela decisãojudicial, a qual não se assemelha, nem de longe, ao mito ultrapassado da verdade real. Averdade real é empulhação ideológica que serve para “acalmar” a consciência deacusadores e julgadores. A ilusão da informação perfeita no processo penal recebe onome de Verdade Real. Para que se possa tomar a melhor decisão no processo penaldeveria ser possível obter-se toda a informação da conduta imputada. Entretanto, deregra, os jogadores (Ministério Público, Querelante e Defensores), além do julgador que,por definição, é ignorante em relação à conduta – imparcialidade objetiva –, possuemtempo e normas processuais para obtenção da informação. Daí que a informação nocampo do processo penal adentra por meio da prova, cujo regime possui quatromomentos (requerimento, deferimento, produção e valoração). Em todos essesmomentos há possibilidade de perda (gaps). A testemunha pode não comparecer,morrer, a filmagem não funcionar, o laudo não ter sido feito, etc..., enfim, toda aspossibilidades processuais atinentes à prova, por definição, impedem a informaçãoperfeita[370]. Além disso o processo penal trabalha com a prova testemunhal a qual éextremamentente falível e sugestionável[371]. Contudo, para o fim ideológico demanutenção da crença na melhor qualidade na decisão penal, por herança do modeloinquisitório, ao julgador se atribui a função de gestor da prova em nome da VerdadeVerdadeira. Para além do grau imaginário de se acreditar que processo penal possa porsuas testemunhas, laudos, material probatório, reproduzir o passado (a conduta semprese deu ontem...), o discurso filosófico e hermenêutico superou as verdades fundantes nametade do século passado. Sublinhe-se, também, a aposta ultraracional na provaprocessual, a qual desconsidera o que Martins denomina de ponto cego: “Diz-se evidenteo que dispensa a prova. Simulacro de auto-referencialidade, pretensão de umajustificação centrada em si mesmo, a evidência corresponde a uma satisfação demasiadorápida perante indicadores de mera plausibilidade. De alguma maneira, a evidência

Page 95: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

instara um desamor do contraditório.”[372]1 . 3 . Há contingência inerente ao jogo processual dinâmico e de informação

incompleta, o qual, mesmo ao final, não consegue promover a inserção de todas asinformações[373]. Em cada subjogo probatório as coordenadas estratégicas precisam derevisão, até porque as finalidades probatórias estarão mais ou menos próximas dacomprovação do julgador[374]. Mas o paradoxo é que o jogador não deveria saber deantemão, até o final do jogo, se o julgador está ou não convencido da comprovação. Paratanto, como se mostrou, há intrincada antecipação de sentido e apuração antecedente dossentidos já dados pelos julgadores. É preciso saber qual a tradição em que o julgador seinsere, quais suas opções ideológicas e trajetória individual[375]. Continuar acreditandoem decisões universais é se abraçar com seres mitológicos e conceber que todos osjulgadores decidiriam igualmente em qualquer situação. O julgamento em colegiadobem demonstra que diante de cada acervo probatório os resultados são diversos[376]. Avitória no jogo processual depende da manifestação do Estado Juiz. Embora a teoria dadecisão judicial aparentemente se guie pela aplicação da lógica, sabe-se que essacompreensão é ingênua. Cardozo, Juiz da Corte Suprema Americana, em escrito de 1960,já alertava que: “O trabalho de decidir causas se faz diariamente em centenas de tribunas detodo o planeta. Seria de imaginar que qualquer juiz descrevesse com facilidade procedimentos quejá aplicou mais de milheres de vezes. Nada poderia ser mais longe da verdade.”[377].

1.4. Destaque-se, por básico, que a pseudo-prova produzida no “Inquérito Policial”somente pode servir para análise da condição da ação[378], ou seja, dos elementosnecessários para o juízo de admissibilidade positivo da ação penal. No mais, não háqualquer possibilidade de valoração democrática, no Processo Penal constitucionalizado,por ser ela desprovida das garantias processuais. A recente reforma do Código deProcesso Penal, dando nova redação ao art. 155, do CPP, ao indicar a possibilidade de seuuso, é flagrantemente inconstitucional[379]. É que quando de sua produção ainda nãoexistia acusação formalizada, despreza o defensor – além de alguns ainda negarem apublicidade dos atos, embora sumulada a situação – e, ademais, viola a garantia de queseja produzida em face de juiz imparcial, sob contraditório[380]. Decorrência direta doprincípio da publicidade é a conclusão de somente as provas produzidas (informações) emface do contraditório é que podem ser levadas em consideração nos debates e também nadecisão judicial. Os elementos indiciários não devem adentrar validamente no debateporque, por evidente, não havia acusação quando colhida, violando, dentre outros, oprincípio da publicidade. Logo, as declarações prestadas naquele momento são – para seutilizar o estatuto probatório italiano, perfeitamente aplicável ao brasileiro –,absolutamente inutilizáveis, conforme lição de Paolo Tonini[381]: “O termoinutilizabilidade descreve dois aspectos do mesmo fenômeno. Por um lado, indica o ‘vício’ quepode conter um ato ou um documento; por outro lado, ilustra o ‘regime jurídico’ ao qual o atoviciado é submetido, ou seja, a não possibilidade de ser utilizado como fundamento de umadecisão do juiz. A inutilizabilidade é um tipo de invalidade que tem a característica de atingirnão o ato em si mas o seu ‘valor probatório’. O ato pode ser válido do ponto de vista formal (porexemplo, não é eivado de nulidade), mas é atingido em seu aspecto substancial, pois a

Page 96: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

inutilizabilidade o impede de produzir o seu efeito principal, qual seja, servir de fundamento paraa decisão do juiz”. No Processo Penal democrático, o conteúdo do Inquérito Policial estámaculado pela ausência de contraditório, sendo utilizável exclusivamente para análisedas questões prévias (condições da ação e pressupostos processuais aplicáveis[382]).Enfim, é absolutamente antidemocrática a utilização dos elementos do Inquérito Policialpara efeito de condenar o acusado, salvo as irrepetíveis, cujo contraditório será diferido.

1.5. A proibição de prova ilícita decorre do devido processo legal substancial.Distingue-se: a) Ilegítima a que viola norma processual (p.ex. CPP, arts. 207; 210, 212); eb) Ilícita a que viola a norma material (p. ex. Interceptação Telefônica ilegal). Entretanto,a distinção não deve operar para salvar a prova, dado que a nulidade contamina ainformação, nos termos do Art. 5º, LVI, da CR: são inadmissíveis, no processo, as provasobtidas por meios ilícitos. O CPP indica como ilícitas as derivadas, ressalvando as semnexo de causalidade ou de fonte independente (art. 157).

1.6. Existem diversas classificações da prova (direta x indireta; plena x indiciária; realx pessoal; etc.), de duvidosa serventia. De qualquer forma, pode-se indicar a existência deprovas: testemunhal (CPP, art. 202 e sgtes); (ii) documental (CPP, arts. 231 e segts), e (iii)material (CPP, art. 158 e sgts). O interrogatório possui regime especial (CPP, art. 185 esegts.), bem como o estatuto do ofendido (CPP, art. 201), o reconhecimento depessoas/coisas (CPP, art. 226) e a acareação (CPP, art. 229 e segts). Para sua produção evaloração democrática devem ser atendidos os requisitos legais (STJ, HCn. 191.378).

1.7. Exemplificativamente, há exigência expressa de laudo nos casos de furto (Códigode Processo Penal, art. 171), sendo que o exame, de regra, não é juntando por ausência decondições de produção, isto é, não há polícia técnica. Logo, culpa do Estado. Choukrassevera: “Deve ficar claro que a impossibilidade de realização do exame há de ser compreendidaapenas pela inexistência de base material para a realização direta, a dizer, quando o exame não érealizado no momento oportuno pela desídia do Estado, ou sua realização é imprestável pelafalta de aptidão técnica dos operadores encarregados de fazê-lo, não há que onerar o réu com umaprova indireta em vez daquela que poderia ter sido imediatamente realizada”[383]. Busca-secomprovação indireta (CPP, art. 167) não porque inexiste base material, massimplesmente porque a carga probatória da acusação não foi cumprida. Nesse casos, dizLopes Jr: “Sem que se efetive a respectiva perícia no lugar do crime para comprovação daqualificadora, não poderá o réu ser condenado por esta figura típica, mas apenas pelotipo simples, previsto no caput do art. 155 (considerando que o crime foi furto)”[384]. Seo Estado estipula as regras dde processo e a descumpre, a culpa não pode ser do acusado.Acolher-se a condenação é modalidade de “jeitinho” no processo penal.

2. Decisão Penal como bricolage

2.1. A decisão no processo penal não é ato de conhecimento, mas sim decompreensão, em que os jogadores da partida, no evento semântico denominadosentença, realizam uma fusão de horizontes (Gadamer). Nesse contexto, diante daapresentação de uma hipótese fático-descritiva pelo jogador-acusador, procede-se a

Page 97: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

debate em contraditório, entre partes, nos quais as cargas probatórias sãocompartilhadas em processo como procedimento em contraditório (Fazzalari). O queexiste é a produção de significantes – informações – e uma decisão no tempo e espaço .As únicas garantias existentes são: a) o processo como procedimento em contraditório,munido de garantias legais; b) jogo processual dos jogadores, mediados pelo julgador(sem atividade probatória); c) decisão fundamentada por parte dos órgãos julgadores. Alegitimidade dessa decisão decorre, também e fundamentalmente, da sua conformidadecom a Constituição da República.

2.2. A verdade processual, pois, não é espelho da realidade e a atividade recognitivaavivada no Processo é um mecanismo de “bricolage singular”, entendido, como emfrancês, como fazer o possível, mesmo que o resultado não seja perfeito. E nunca o é, porimpossível. A dita verdade processual trata de outra coisa, possui estrutura de ficção. Ecomo o julgador precisa dar uma resposta, acertar os fatos, com os instrumentos que selhe apresentam, vertido inexoravelmente na e pela linguagem, desprovido da verdadeverdadeira. Uma instrução processual, por seus significantes, sempre autoriza diversascompreensões. É do encadeamento de significantes, ou seja, da forma como serãodispostos os significantes que se poderá verificar a legitimidade (democrática) dadecisão. Alterando-se a disposição, a relação, os sentidos migram (Barthes). O princípioescolhido para o estabelecimento da cadeia de significantes altera o resultado. A decisão“man made” sempre terá a pitada pessoal, ainda que vinculada às pretensões devalidade, já que “o bricoler sempre coloca nela alguma coisa de si.” (Strauss) Permutandosignificantes e julgando com aquilo que se apresenta, o um-juiz pode articular decisõesmais democráticas porque demonstra sua concepção ideológica (mesmo que para aderira o status quo), sem chicanas, a qual certamente influencia no ato decisório mesmoquando se acredita ilusoriamente neutro (Jacinto Coutinho). Um significante desliza emrelação a outro e assim se constrói a decisão, podendo, nessa trama, colocar em evidênciadeterminadas partes, relegando outras, mas fundamentando sua decisão, ao contrário doque se verifica, de regra, na prática contemporânea.

2.3. Os protagonistas/jogadores do processo de bricolage jurídico, por certo, são aspartes, que lançarão as pretensões de validade no decorrer processual, bem como ojulgador que proferirá a decisão. Mas esses não são mais os sujeitos conscientes daepistemologia da modernidade. Pode-se dizer que a união, reunião, desfazimento,ordenação dos significantes se dá pelo processo de ligação destes sem que o controlesemântico possa conferir a segurança ilusoriamente prometida, mas somente uma tramacom coerência discursiva. O “coágulo de verdade” deve levar em conta ovelamento/desvelamento (Heidegger) do discurso jurídico, a recusa e a dissimulação daatividade decisória. Destruído o mundo das essências, uma nova maneira de ver as coisasse descortina, não mais fechada na lógica formal, mas somente deslizamentos fundadosna linguagem (Marrafon).

2.4. Um novo plano para análise da construção de decisões jurídicas demandaperceber as condições extra-discursivas que co-determinam o discurso jurídico, comoefeitos da política, ideologia e pré-conceitos pessoais (in)conscientes, ou seja, os

Page 98: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

determinantes conotativos que estão na origem semântica, colmatadas a partir do sensocomum teórico em cotejo com a singularidade do um-julgador. Desse jogo processualdados surge a decisão. A decisão equipara-se ao que Veyne indica como um “eventosemântico”, um acontecer no tempo, espaço e lugar, no qual ocorre um acertamento designificantes, sendo preciso uma certa congruência narrativa (José Calvo), movida porcondicionantes (in)conscientes materializados no ato decisório, seu limite temporal.Submete-se a um descortínio literário em que as narrativas rivais, em face do materialsignificante heterogênos, com sentidos contraditórios apontados pelos litigantes, precisade organização coerente da trama discursiva (Aroso Linhares). Ainda que existamcaminhos narrativos diversos, cabe ao julgador a compreensão adequada (Streck), na suafunção catalisadora de tradutor jurídico, sem que possa organizar a trama discursiva demaneira não aderente.

2.5. Essa atividade artística interpretativa pressupõe a possibilidade de estilo eprodução de “efeitos mágicos”, desde e na linguagem. A língua é uma das facetas dopoder espraiado pelo espaço social, servindo tanto a discursos revolucionários quanto àreprodução de discursos totalitários, deslocando-se ao gosto dos atores jurídicossabedores de sua maleabilidade e limites. Sub-repticiamente faz aparecer significaçõessuspensas, internas, pessoais, detonadas com o devido estímulo linguístico. Essapossibilidade/recurso é uma poderosa ferramenta de poder. Esses instrumentos dedominação/emancipação astutamente explorados constróem e naturalizam o discurso e,no caso das classes dominantes, servem para escamotear a sociedade díspar/desigual,sob o pálio de discursos de igualdade perante a lei (Hayek), sem discutir o que significa alei em si. A lei é a forma de tudo o que é (in)justo. Perdem-se os referenciais reais nograu zero da linguagem (Barthes). Dito de outra forma, só através da visão literária(Carcova, José Calvo, André Karam Trindade, Lenio Streck) é possível enganar a língua,readequando os significantes, trabalho típico de “bricoler”, e, aliando, por assim dizer,dramaticamente, o saber a um certo sabor, encontrar a realização do critério éticomaterial (Dussel): vida. Esse desvio se faz pelo jogo de palavras em que a língua é oteatro, exercitando-se, com saber e sabor, o trabalho de deslocamento de significantes; desuspensão de significância, de deslizamentos, isto é, bricolagem. Portanto, não é assimtão importante, na busca da realidade com estrutura de ficção engendrada pela decisãojudicial, a exatidão: pois realidade (pluridimensional) e linguagem (unidimensional) sãocorpos que jamais se encontram. Lacan já deixou evidenciado que o Real não érepresentável, somente demonstrável: é o indizível, o inefável, da ordem do não-todo. E éjustamente através da busca desse alvo impossível que a literatura, irredutível, acabaencontrando sua vocação e, no uso de seus subterfúgios, irradia um saber mais livre (emque a própria ciência é jogada num discurso menos a serviço de uma estrutura e mais aserviço do homem), e se aproxima, num bordado de correlações não-impositivas, viabricolagem de significantes, de alguma forma de verdade não ontológica (metafísica),como quer a Filosofia da Linguagem[385].

2.6. Do ponto de vista formal, todavia, a decisão deve guardar congruência entre aacusação e a decisão[386]. Embora entenda-se possível uma leitura conforme à

Page 99: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Constituição do art. 383 do Código de Processo Penal, sua amplitude não pode se dar naextensão de alterar as elementares do tipo imputado, a qual exigiriam a providência doart 384 do CPP. Logo, se as elementares do tipo forem diversas, não se pode afirmar-se aequivalência de condutas em face de denúncia por verbo diverso. Lopes Jr. explica:” Acostumeiramente tratada como ‘mera correção da tipificação legal’ não é tão inofensivaassim, pois modifica o fato penal e, por conseguinte, o fato processual. (...) O processopenal brasileiro não pode mais tolerar a aplicação acrítica do reducionismo contido nosaxiomas jura novit curia e narra factum dabo tibi ius, pois o fato processual abrange aqualificação jurídica e o réu não se defende apenas dos fatos, mas também da tipificaçãoatribuída pelo acusador. A garantia do contraditório, art. 5º, LV, da Constituição, impõe avedação da surpresa, pois incompatível com o direito a informação clara e determinadado caso penal em julgamento. No que tange ao reducionista argumento de que se tratade ‘mera correção da tipificação’, adverte GERALDO PRADO que supor que o MinistérioPúblico não saiba qualificar juridicamente os fatos apurados na investigação preliminar éestar em rota de colisão com a realidade. Ora, não se está lidando com um meroburocrata, tecnólogo de ensino médio. Todo o oposto. Ou então teremos de afirmar queali estão profissionais incompetentes para a função, o que, obviamente, não é o caso.Eventuais pontos de vista (desde uma perspectiva fática e/ou jurídica) diferentes sãoinevitáveis, mas para isso, deverá o juiz alterar a qualificação jurídica, ouvidos o acusadore o réu.” [387]Com efeito, a conduta descrita na acusação baliza os limites do casopenal[388], cabendo a cada um dos jogadores a carga probatória da comprovação, emdecorrência do processo acusatório[389].

2.7. Do ponto de vista formal, a decisão deve conter relatório, fundamentação edispositivo (CPP, art. 381 e 387), mantida a correlação (CPP, arts. 383 e 384) entre aacusação e o dispositivo. Anote-se que o art. 385 do CPP não é compatível com o processoentre jogadores. Logo, se o jogador acusador requerer a absolvição, não pode o julgadorcondenar. Em caso de absolvição, deve-se indicar o inciso da absolvição (CPP, art. 386),dadas as repercussões civis (CPP, art. 63 e segts). Com o trânsito em julgado aosjogadores, opera-se a coisa julgada.

2.8. Com o equivocado movimento de aproximação da vítima ao processo penal,houve a inserção do art. 387, IV, CPP, pelo qual o juiz ao proferir a sentença condenatóriadeverá fixar o valor mínimo da indenização. Há nítida inserção de questão civil no âmbitodas informações necessárias à decisão, ou seja, para que seja garantido o devido processolegal, o acusado poderá arrolar testemunhas e requerer perícia sobre o valor a extensãodos danos e valores a se indenizar? Evidentemente que a vítima deve ser resgatada, tantoassim que se defende a Justiça Restaurativa. Colocar-se um montante surpresa, sempedido, nem contraditório, fere o devido processo legal. De qualquer forma, caso hajapedido expresso na denúncia/queixa, produção probatória, contraditório, a decisãopoderia analisar tal questão. Sem pedido na inicial, nem produção probatória, nemcontraditório, é vedado ao juiz arbitrar o valor, por ausente devido processo legal.

2.9. A eficácia civil da decisão penal é tema tormentoso justamente porque parte dapremissa de que a qualidade da decisão proferida no processo penal é melhor do que a

Page 100: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

do civil. Sem prejuízo dessa crítica, até porque não se fala em Verdade Real nesse Guia: a)reconhecida a responsabilidade penal; b) a sentença penal condenatória poderá serexecutada no civel pelo legitimado (ofendido, representante legal e herdeiros); c)apurando-se o valor da obrigação e se executa. (CPP, arts. 63-67 e CPC, art. 475-N). Anote-se que somente o acusado poderá figurar no pólo passivo da execução e não eventualresponsável civil, ou seja, se o acusado for condenado por acidente de trânsito, a empresaproprietária do automotor não poderá ser executada, exigindo ação de conhecimentocontra si para apuração de sua responsabilidade. O Ministério Público somente poderiapropor a execução (CPP, art. 68) nos Estados onde não existisse Defensoria Público (STF,AI 48.2332). Com a instalação das Defensorias, o artigo não foi recepcionado. Houve anão repecção decrescente.

Page 101: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

Capítulo 8°

Prorrogação: Recursos e Açõesde Impugnação autônomas

1. Recursos

1.1. Ao final da partida é proferida uma decisão (condenatória, extintiva ouabsolutória). Dessa decisão, de regra, cabe recurso ao órgão com competência desegundo grau, em atenção ao princípio do duplo grau de jurisdição.[390] (Juízo Comum:Tribunais; Juizados Especiais: Turma Recursal. Processo com competência Originária nosTribunais regime diferenciado)[391]. O pleito recursal pode buscar o reconhecimento denulidade ou a reforma (parcial ou total) da decisão. É o meio para se buscar, noutrainstância, a reavaliação das informações probatórias e/ou o reconhecimento de nulidades.Além do recurso em sentido estrito (CPP, art. 581) e da apelação (CPP, art. 593), tambémpodem ser manejados recursos aos Tribunais Superiores (STJ – Recurso Epecial, CR/88,art. 105 - e STF – Recurso Extraordinário, CR/88, art. 102), os quais possuem amplitude erequisitos de admissibilidade reduzidos. Pode também buscar a complementação dojulgado, na via dos Embargos de Declaração (CPP, art. 382 e 619-620). Há, também,recurso exclusivo da defesa, como os Embargos Infringentes (CPP, art. 609, parágrafoúnico), cabíveis quando a decisão de segundo grau for por maioria (não cabe em favor daacusação).

1.2. A extensão do recurso deverá constar em suas razões. No regime do CPP asfases recursais se dividem em: a) interposição, e; b) razões. No primeiro momentoapresenta-se manifestação no sentido do interesse recursal. Recebida a manifestação,abre-se oportunidade para apresentação das razões. Não há nulidade de apresentaçãoconjunta de recurso com razões. Pode acontecer que manejado o recurso, não sejamapresentadas as razões. No caso do Ministério Público não deve o recurso ser conhecido.Já na hipótese defensiva, mesmo sem as razões, os Tribunais, em nome da amplitude dadefesa, devem conhecer toda a matéria (a extensão é ampla).

2. Ações Impugnativas Autônomas

2.1. Mandado de Segurança: Com o sistema recursal caótico e ausente hipótese decabimento expresso, não raro, surge a necessidade de utilização “atravessada” doMandado de Segurança (CR, art. 5o, LXIX e Lei n. 12.016/09). A configuração do direitolíquido e certo, bem assim a ilegalidade ou abuso de poder do ato impugnado não são

Page 102: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

uniformes. Utiliza-se, por exemplo, no caso de negativa de acesso dos autos (IP, APF,Investigações) por parte da autoridade policial[392].

2.2. O Habeas Corpus (CR, art. 5o, LXVIII) vincula-se à liberdade de locomoção (ir,vir e ficar), tendo alargada sua hipótese recursal diante do caótico e demorado sistemarecursal (CPP, art. 654). As hipóteses de cabimento de recurso em sentido estrito, aindaprocessado em primeiro grau, demoram a ascender aos Tribunais. Daí que se foiampliando as hipóteses de cabimento. De qualquer maneira, o CPP, no art. 648,estabelece aas hipóteses : quando não houver justa causa; prisão além do prazo legal(sendo que as Súmulas n. 21 e 52, do STJ, perderam o efeito depois da reforma de 2008);autoridade sem competência, cessado o motivo da coação, cabimento fiança, processomanifestamente nulo e extinta a punibilidade. Entretanto, diante da quantidade de HCsinterpostos nos Tribunais Superiores, nos últimos tempos, como mecanismo atuarial desobrevivência, os Ministros do STJ (especialmente) e do STF, apontaram para restriçãodas hipóteses de cabimento do HC, exclusivamente aos casos em que houver ameaça ourestrição à liberdade[393], impondo, ainda, requisitos à sua admissibilidade. Emborapossa ser interposto por qualquer um do povo, inclusive o Ministério Público,normalmente é o defensor (impetrante) em nome do acusado (paciente) em face daautoridade coatora (juiz ou colegiado). O Órgão Julgador será o que possui competênciarecursal (STF, Súmula 690 – Juizados Especiais Criminais). O julgador poderá, também,conceder HC de ofício (CPP, art. 654). É jogada processual arriscada e depende decuidadosa análise dos custos e benefícios da medida. Isso porque alguns juízes soltam aofinal da instrução e, de qualquer forma, finalizada essa, pelo menos o motivo da garantiada instrução processual (CPP, art. 312), desfaz-se. Como previne a Câmara parajulgamento dos recursos posteriores, pode ser mecanismo para, com essa informação eas perspectivas do processo, estabelecer as táticas. Preventa câmara mais progressita aatuação deverá ser diferenciada de uma mais conservadora. Daí que a interposição deHC, mesmo para se desistir, pode ser interessante do ponto de vista do jogo processual.Pode ser preventivo (sem restrição realizada) ou liberatório (com restrição já realizada).No primeiro se busca impedir e no segundo reparar o ato ilegal ou abusivo.

2.3.A Revisão criminal (CPP, art. 621 e seguintes) cabe somente no caso decondenação em favor do condenado. Não cabe reabrir-se o caso na hipótese de absolvição(por qualquer dos fundamentos do art. 386). Pode ser requerida a qualquer tempo,mesmo depois de extinta a punibilidade ou morto o condenado. Deve fundar-se na (i)contrariedade ao texto expresso da lei ou à evidência dos autos; (ii) falsidade dedepoimentos, exames e/ou documentos, e (iii) descoberta posterior de novas provas emfavor da inocência ou redução da pena. Das hipóteses de cabimento, a discussão sobreerro na interpretação dos fatos e adequação legal, é a mais controversa e demanda táticaargumentativa sofisticada. Não adianta ficar transcrevendo doutrina e jurisprudência. Épreciso ir direto ao fato e demonstrar o erro de modo direto e com poucas citações,embora qualificadas. Invocar-se um julgado isolado e Tribunal não reconhecido poucoajuda. Por outro lado, não há dilação probatória, devendo o autor produzir, se for o caso,mediante Justificação Judicial, a nulidade ou a prova substancialmente nova. Anote-se

Page 103: Guia Compacto do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogosarquimedes.adv.br/livros100/Teoria dos Jogos -compacto-Alexandre... · Editores João de Almeida João Luiz da Silva Almeida

que o pedido para aplicação retroativa de lei mais benigna é da competência do Juiz daExecução Penal (LEP, art. 66 e STF, Súmula 611). Cabível também na hipótese deabsolvição imprópria, na qual é aplicada medida de segurança. O condenado foragidopode entrar sem recolhimento preliminar à prisão (STF, Súmula n. 393). O Tribunalprofere julgamento em dois tempos: a) reconhece o cabimento, e; b) renova ou anula ojulgamento. No caso de anulação pode determinar seja novamente julgado pelo juiz deinstância inferior. Entretanto, vigora o princípio da reformatio in pejus (direta eindireta)[394]. O Pós jogo da Revisão Criminal possui o condão de reabrir a partida emodificar o resultado. Como não possui prazo para propositura, deve ser bem estudada eaparelhada com provas pré-constituídas. Se for necessária prova testemunhal, deverá serproduzida antecipadamente, mediante contraditório. Como não se pode renovar pelomesmo fundamento, trata-se de jogada arriscada e que deve estudar a composição