13
Sintoma de Ausência Nelson P Ferreira & Vitor Bruno Pereira

Guião - Sintoma de Ausência

Embed Size (px)

DESCRIPTION

guião

Citation preview

  • Sintoma de Ausncia

    Nelson P Ferreira & Vitor Bruno Pereira

  • INT.CASA DE BANHO.ENTARDECER

    Vemos uma rapariga vomitar, joelhos no cho, junto sanita.Ela regurgita, alcana uma toalha e descansa a cabea sobreos braos apoiados na borda da sanita. Limpa a boca com atoalha e deita-a no cho. Cospe para a toalha. Tosse. Decabea baixa, ergue o brao, tacteando o autoclismo. Puxa agua. Fecha o tampo e encosta l a cabea como se fosse umaalmofada. Respira sofregamente. Levanta-se. Ouvimos umatorneira a abrir e jorrar gua abundantemente. Ouvimos ochapinhar da gua na face, assim como cuspidelas e tossidas.A rapariga fecha a torneira. Silncio. Respirao trmulaentre um suspiro. Rapidamente reabre a tampa da sanita e dejoelhos vomita de novo, com mais agonia. Tem a cabeaenfiada na sanita, quase por completo.

    ISABEL(a regurgitar e tossir)

    Foda-se.

    EXT.RUA.NOITE

    Em passo firme, Isabel sobe uma rua com uma ligeirainclinao, com as mos nos bolsos e cabisbaixa. Coloca ocapuz e ajeita o hoodie para cobrir o rabo. O ritmo do passopouco oscila. Olha para o outro lado da estrada. Perde aateno de novo e concentra-se na sua frente. Tira um maodo bolso e pra para acender um cigarro. Retoma o passo.Inala vrias vezes. Entre as passas o flego comea aescassear e a rapariga comea a ofegar. Est a chegar a umafarmcia.

    INT.CASA DE BANHO.NOITE

    Isabel segura um teste de gravidez frente da cara. Osolhos esto atentos ao invlucro. Morde o lbio. Olha emfrente. Ouvem-se gotas vindas do reservatrio da sanita.Abre-o, atenta e serena, observa a tira de teste. As arestase cantos. L, com um qu de ironia, o invlucro:

    ISABEL"Confirme. Rpido, cmodo, fcil deusar."

    Retira de dentro deste o folhetim. Desdobra-o. L emsilncio durante alguns momentos. Ergue as sobrancelhas,ainda mordendo o lbio. De seguida l em voz alta:

    ISABEL"A concentrao degona-gonado-tro-pina,

    (MORE)(CONTINUED)

  • CONTINUED: 2.

    ISABEL (contd)gonadotropina, co-ri-nica humana,HCG, a hormona medida pelos testesde gravidez, na urina em qualquerdia aps a implantao, pode variarmuito de mulher para mulher." A verse acertas comigo.

    Isabel matuta naquilo que acabou de ler, apoiando o queixona mo. Sentada na sanita, com as calas em baixo, comea aurinar. Com o teste nas mos, espera, impaciente, peloresultado.

    INT.CASA DE BANHO.NOITE

    O invlucro do teste de gravidez est aberto e jogado emcima da sanita. L longe, o som da TV : o telejornal e asdesgraas do costume.

    ISABEL (V.O.)Eu sei, eu sei, deixa-me ler-te sum bocadinho. Pera, deixa tirar osom da tv.

    O som diminui at o ltimo rudo do noticirio desaparecerpor completo. Samos da casa de banho.

    INT.COZINHA.NOITE

    Atravessamos a cozinha, vazia, desarrumada, devagar, emdireco ao quarto. A voz de Isabel ouve-se mais alto.

    ISABEL (V.O.)Eu sei, eu sei! Parece umaBiografia,(risos)... "Ofilho-da-puta nunca estsatisfeito: por isso acumula, tentaacumular vantagens, por isso teminveja, tem sempre inveja, invejade tudo."

    INT.QUARTO.NOITE

    Atravessamos agora o quarto,devagar. A cama est desfeita. Avoz de Isabel ouve-se cada vez melhor.

    ISABEL (V.O.)"Por isso dorme mal, por isso tempriso de ventre, por isso temdores de cabea."

  • 3.

    Samos do quarto, em direco sala.

    INT.SALA.NOITE

    Encontramos finalmente Isabel, deitada no sof, ao telefone,coberta at cintura por uma manta. No seu colo est umlivro aberto, de onde Isabel l.

    ISABEL"O filho-da-puta sente que deviaestar permanentemente desperto,atento, sempre a zelar pelos seuslugares e pelas suas vantagens,sempre atento preocupao dosoutros e ao seu significado"...

    Gesticula com a mo livre, ajeita o cabelo, revira os olhos.Tem os ps fora da manta, tentam cobrir-se. Tem o cinzeirocheio. Enquanto fala, Isabel procura o tabaco, mortalhas efiltros entre os vincos e fissuras fundas da manta. Aoreuni-los todos, apoia o telefone entre o queixo e o ombro.Comea a enrolar um cigarro entre anures e pigarreares.Ouve com ateno o interlocutor, mas profere poucaspalavras. H um breve silncio. A rapariga suspira.

    ISABELHoje. Fiz hoje. Uma merda.Inconclusivo. Sim. Logo se v...repito daqui a uma semana ou assim.No, no atende as minhas chamadas.Ir l? Mas vens comigo? No, novou esperar tanto tempo, vou lamanh.

    INT.COZINHA.NOITE

    Vemos um frasco de vidro de gro de bico vazio e odesenroscar da sua tampa. (Msica)

    INT.CASA DE BANHO.NOITE

    A cmara est quase ao nvel do cho. O frasco aberto, nocentro do pequeno duche quadrangular. Aproximam-se pernasdespidas. Vemos urina a verter para dentro e fora do frasco,segurado pela mo de Isabel. (Msica)

  • 4.

    INT.COZINHA.NOITE

    Isabel segura uma agulha. O frasco com urina est sobre amesa da cozinha. Deixa cair a agulha para dentro do frasco.A agulha pousa no fundo do frasco. Isabel enrosca a tampa.(Msica)

    INT.QUARTO.DIA

    Isabel acorda com vagar, emaranhada no lenol e edredo,esbarrada contra a parede. O quarto est escuro, mas fustesde luz penetram entre as brechas das portas que o cercam esquerda e direita. Senta-se beira da cama. Coa osolhos. Espreguia-se. Os dedos dos ps dela roam no tapete,esticando e recolhendo, como que a massajarem a si mesmos.

    INT.COZINHA.DIA

    Isabel est sentada mesa, com o frasco frente. Tem acabea apoiada na mo. Olha no vazio.

    INT.CASA DE BANHO.DIA

    A urina despejada no lava-mos. A agulha segue junto efica no ralo. Vemos a mo hesitante de Isabel no sabendo sequer pegar na agulha.

    ISABELQue anormal.

    INT.METROPOLITANO.DIA

    O metropolitano est em movimento. Ganha velocidade. O rudo ensurdecedor. Vemos Isabel com a cabea encostada janela. O corpo vibra. Vemos os olhos dela acompanhar omovimento exterior, veloz, um repetir frente-trs. Ouve-se agravao de uma voz feminina dizer pelo intercomunicador:

    GRAVAOEstao terminal. favor abandonaro comboio.

    EXT.RUA.DIA

    Isabel caminha por uma rea residencial at aproximar-se deuma porta de um bloco de apartamentos. Toca campainharepetidamente, com intervalos de espera. Est impaciente.Algum responde.

    (CONTINUED)

  • CONTINUED: 5.

    VOZSim?

    ISABELDona Celeste? O Rui est?

    CELESTE(Silncio) No boa ideia teres cvindo. Cada um no seu canto,percebes?

    ISABELDiga-me s se ele est a, eu squero falar com ele 5 minutos. Secalhar nem a cinco se chega!

    CELESTE(Silncio) Ele no quer falarcontigo. (Corte no interlocutor)

    Isabel est cabisbaixa. H um longo silncio.

    INT.COZINHA.NOITE

    A mesa est posta de forma sbria. Os pratos de comida comrestos parecem pinturas de natureza morta. Enquanto istoouvimos um isqueiro a acender. Isabel inala profundamente ocigarro.

    ISABEL(expelindo o fumo)

    Incomoda-te?

    RITAE parares com isso?

    ISABEL(encolhendo os ombros)

    Logo se v.

    Riem-se. Vemos Rita acender um cigarro. Tem um brao apoiadonos joelhos e estes por sua vez esto altura do peito,ambos os ps em cima da cadeira. D trs passas e um pequenotrago na chvena de caf.

    RITAE ela disse que ele no te querver?

    ISABELSim.

    (CONTINUED)

  • CONTINUED: 6.

    RITAQue cabro... (Silncio)Experimentaste aquilo?

    ISABELFoi uma estupidez Rita. Mijei-metoda. Que nojo.

    RITAE a agulha?

    ISABELA agulha ficou igual. No ts bema ver o cheiro a mijo quando abri ofrasco.

    RITA(Risos) Estpida. No custou nadatentar. Funcionou com a minha me.

    ISABELComeo a ficar angustiada comesta situao. (Rita sorri). Notem graa nenhuma.

    RITADesculpa. (Silncio). Marcasteconsulta?

    ISABELVou s urgncias.

    RITAPagas tambm.

    ISABELMenos.

    RITAEsperas mais.

    INT.SALA.NOITE

    As duas amigas esto aconchegadas debaixo de uma manta. Soiluminadas pela luz das velas. Fumam. Isabel tem o seutelefone na mo. Acende um pau de incenso com uma vela.Ouvimos msica de fundo.

    RITASe te aflige, liga. (Afaga o cabelode Isabel)

    (CONTINUED)

  • CONTINUED: 7.

    Isabel procura o nmero na agenda do telefone e marca onmero. Ouvimos o tom de marcao. Vrias vezes.

    VOZTou?

    ISABELOi, sou eu. Liguei privado porqueachei que no ias atender.

    Do outro lado desligam o telefone. Isabel afasta-olentamente do rosto. Rita encosta a cabea da amiga no seuombro. Afaga-lhe o cabelo.

    INT.QUARTO.DIA

    As raparigas dormem em concha. Vemos o brao de Rita sobre olado descoberto de edredo. Rita ergue a cabea e revela orosto sonolento. Est desorientada. Deita de novo a cabea evoltamos a ver apenas o seu brao sobre Isabel. Esta, porsua vez, tem o rosto semi-coberto pelo brao. A sua caracontorce-se em dor. Leva o brao que cobria o rosto at aoventre descoberto e massaja-o. Desperta lentamente. Descobreo corpo at abaixo dos joelhos. Tem sangue nas cuecas.Senta-se na cama enquanto Rita desperta. Reage com um temorsilencioso ao sangue nos lenis.

    RITACalma. (coloca o brao sobre oombro da rapariga)

    INT.CASA DE BANHO.DIA

    Isabel est sentada na sanita. Abre uma embalagem de tampescom os dentes. Coloca-o, fora de campo.

    INT.COZINHA.DIA

    A luz do sol ilumina a cozinha. As raparigas esto sentadas,uma de cada lado da mesa. Fumam. Ouvimos os vizinhos do ladonuma discusso acesa.

    RITAEsts contente?(Silncio) Veio-te operodo.

    ISABELSim. Est tudo bem.

    (CONTINUED)

  • CONTINUED: 8.

    RITAFicou quanto tempo sem vir?

    ISABELUns dois meses. No sei bem.

    RITAE agora? O qu que acontece? Vaistentar falar com ele?

    ISABELNo sei. Tenho coisas dele. No asquero pra nada. (Ouvimos osvizinhos aos gritos)

    VOZ (V.O.)Odeio-te! Cabro! Odeio-te!(Ouvimos um copo a partir)

    EXT.ESPLANADA.MADRUGADA

    Isabel est sentada sentada. Sobre a mesa est uma imitaode moleskine e uma caneta, um cinzeiro, um pires e chvena.Fuma e bebe caf. Por ela passam pessoas desfocadas. Elaacompanha cada uma delas com um olhar atento. As primeirasduas fazem-na tirar um pequeno apontamento no caderno. Dalgumas passas no cigarro. Comea a escrever. Passa um homempor ela, tambm ele desfocado, passo rpido. Desperta-lheuma curiosida sbita, instantes depois de passar. Isabelergue a cabea na direco do rapaz. Levanta-se, e a tirartroco da carteira vai, muito apressadamente, pagar oconsumido a dentro do caf. No demora nada. Segue na mesmadireco do rapaz. O rapaz desce as escadas do metro. Isabelcorre em direco entrada.

    INT.EST METROPOLITANO.MADRUGADA

    Vemo-la a descer as escadas e dirigir-se para o cais, mas ocomboio est a fechar as portas e a arrancar. A raparigapra, ofegante, e v todas as carruagens serem consumidaspelo tnel abaixo dela.

    (msica)

    INT.QUARTO.NOITE

    Isabel est sentada na cama, coberta pelo edredo at aopeito. Veste roupa de dormir de aspecto velho. Rita est emp, de braos cruzados, a um canto.

    (CONTINUED)

  • CONTINUED: 9.

    ISABELNo pra de sangrar...j estou hduas semanas assim.

    Rita aproxima-se e senta-se junto a ela.ISABEL

    Tenho clicas que juro, apetece-memorrer.

    Rita pega-lhe numa mo e aperta levemente. Ficam assim umbocado.

    RITATens comido?

    ISABEL(bruscamente)

    No tenho fome.

    RITA...posso ir buscar-te uma sopa.

    ISABELJ pareces a minha me...

    Rita levanta-se e caminha pelo quarto.

    ISABEL(enquanto passa a mo pelabarriga)

    ...mal entra pela boca estou avomitar tudo.

    Rita est de costas para ela, com as mos apoiadas numpequeno mvel que faz a vez de cmoda. Respira fundo,decabea baixa.

    ISABEL(ainda a afagar a barriga)

    A minha me nem sonha com estahistria... e s me deposita amesada daqui a uma semana.

    Rita mexe na pequena caixa de joias da amiga. Est quasevazia.

    RITAQue tem isso?

    ISABELEstou sempre a pedir-lhe guita, eagora peo adiantado. Ela vai

    (MORE)(CONTINUED)

  • CONTINUED: 10.

    ISABEL (contd)comear a perguntar mil e umamerdas.

    Rita fecha a caixa.

    RITAPosso emprestar-te...

    ISABEL(irritada, bruscamente)

    Pra!

    INT.CASA DE BANHO.DIA

    Isabel vomita,prostrada na sanita, de forma mais agressivado que na abertura do filme. Tem sempre uma mo no ventre.De perto, vemos os seus ps e joelhos afastados. Entre elesgoteja sangue.

    INT.COZINHA.DIA

    A porta da mquina de lavar roupa est aberta. Isabel colocaos lenis ensanguentados no tambor da mquina.

    INT.SALA.NOITE

    Isabel est esttica, mais plida e olheirenta que antes, aolhar para o televisor aceso. A imagem projectada gro. Osilncio absoluto at se ouvir a porta do rs do choabrir. Ouvem-se passos vagarosos a subir as escadas. Isabellevanta-se e escuta junto porta de entrada, que est junto televiso. Quando os passos cessam, destranca a porta eabre-a, tentando ser discreta sem o ser em pleno. Olha emdireco ao piso superior e no v nada. Retrai-se de novopara dentro de casa. Despe-se e veste-se no quarto, portaentreaberta.

    EXT.RUA.NOITE

    Isabel caminha pelas ruas de uma Lisboa abandonada nas horasda madrugada. Vemo-la caminhar com passo incessante, junto alinhas frreas onde passa o ltimo comboio da noite.

  • 11.

    EXT.RUA.NOITE

    Isabel caminha por ruas vazias onde rudos longnquos decarros ecoam.

    EXT.RUA.NOITE

    Isabel deambula por estradas onde apenas txis e autocarrosda madrugada circulam, onde se vem padarias com portasentreabertas e chamins de onde esvoaa um rasto de fumo.

    EXT.RUA.NOITE

    A jovem caminha agora na placa central de uma avenidadeserta. Est doente e com ar perdido. Senta-se na berma daestrada e esmurra o ventre repetidamente. (Msica)

    INT.SALA.NOITE

    Isabel, plida e enferma, est sentada no sof. O cigarroaceso entre os dedos est pela metade em cinza, por fumar. Ofumo esvoaa ora em espiral, ora recto, incessante. Olha novazio, raramente piscando os olhos. Ouve-se um bater porta. Isabel desperta do transe. Ao levantar-se, a cinza docigarro cai. Vemo-la com o ouvido encostado porta.

    ISABELQuem ?

    RITASou eu. Abre.

    A porta abre-se. Abraam-se. Isabel cerra os olhos comfora. Rita aproxima a boca ao ouvido dela.

    RITA (...CONT.)Desculpa.

    ISABELPorqu?

    RITAEle quer que lhe devolvas ascoisas.

    A rapariga esconde o rosto no ombro de Rita. Esta afaga-lheo cabelo.

  • 12.

    EXT.PORTES DO HOSPITAL SANTA MARIA.MADRUGADA

    Isabel est encostada a um pequeno muro. Atrs dela, umimponente hospital. A manh ilumina-se ao minuto. Um aviocruza os cus. O rudo deste dominante. Isabel acompanhaos carros que passam com o olhar e acende um cigarro. Dtrs passas. Est serena. Olha para o cigarro. Exala paracima dele. Joga-o para o cho e pisa-o. Caminha at aoporto de entrada e passa-o. J no a vemos. O rudo deLisboa envolve-nos.