Guilherme de Ockham o Conhecimento, o Sujeito e a Linguagem

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    Guilherme de Ockham

    o conhecimento, o sujeito e a linguagem

    Rogrio Miranda de Almeida*

    Resumo

    Este texto tem como objetivo principal tentar mostrar que, j em Guilherme deOckham, se encontra colocada a questo do sujeito. No se trata de umquestionamento do sujeito nos moldes das teorias da subjetividade que carac-terizam as filosofias moderna e contempornea. No se trata tampouco do sujei-to psicanaltico, que se exprime, essencialmente, atravs da fala e, portanto, doinconsciente, do desejo, do recalque. Foroso, porm, reconhecer que a teoriada suposio, tal como Ockham a desenvolveu, teve consequncias no so-mente sobre as esferas da lgica e da metafsica, mas tambm sobre o mbito dalingustica contempornea e daquilo que se costuma designar pela expressofim do sujeito.Palavras-chave: Ockham; cincia; conhecimento; linguagem; suposio.

    William of Ockham, the knowledgement the subject and the language

    Abstract

    The main scope of this text is to try to show how, in William of Ockham, isalready possible to question the notion of subject. To be sure, it is not aquestioning in terms of the theories of subjectivity which characterize modernand contemporary philosophy. It is not either a matter of psychoanalyticalsubject, which essentially expresses itself through the speech and, therefore,through the unconscious, desire, and repression. Nonetheless, it is necessaryto admit that the supposition theory, as Ockham developed it, had consequencesnot only upon the spheres of logic and metaphysics, but also upon the domain

    of contemporary linguistics, and upon what is usually designed by the expressionend of subject.Key words: Ockham; science; knowledge; language; supposition.

    Introduo

    Da vida conturbada de Guilherme de Ockham pouco se conhececom certeza. Sabe-se, contudo, que ele foi um franciscano in-gls, nascido provavelmente em Ockham, no condado de Surrey, pr-ximo a Londres, entre 1280 e 1290. A data com a qual mais concor-

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    dam seus bigrafos a de 1285. muito provvel que ele tenha reali-zado seus estudos superiores de teologia em Oxford entre 1309 e1315, onde depois ministrou cursos sobre as Escrituras e as Senten-

    as. Na mesma universidade, obteve o grau de BaccalaureusFormatusentre 1319 e 1323. Parece tambm que se tornouMagisterTheologiaeou, mais exatamente, que havia preenchido todas as exi-gncias para a colao do grau deMagister actu regens mestreoficial de uma ctedra em teologia cuja consecuo, no entanto, nochegou a se materializar. Da ter ele ficado conhecido na histria dafilosofia pelo nome deInceptor, ttulo que, em Oxford, designava obacharel que podia lecionar, mesmo ainda no tendo obtido o ttulo ou

    as prerrogativas plenas que se outorgavam aoDoctor. Foi, portanto,graas a esse epteto que se difundiu a ideia segundo a qual Ockham o precursor inceptor: o que comea, que inicia da cincia e dafilosofia modernas. Essa ideia, embora incorreta quanto origem aca-dmica do ttulo, , no entanto, exata quando se pensa que Ockhamest, de fato, na base de muitos dos desdobramentos das cinciasmodernas e principalmente como veremos neste artigo das teoriaslingusticas do sculo XX. De resto, foi ele quem realmente operou aruptura que marcou a tica medieval tardia e preparou a transio paraa fase histrico-cultural da chamada tica moderna.

    Por volta de 1324, para defender-se contra a acusao delecionar e difundir doutrinas herticas, o filsofo teve de apresentar-sediante dos juzes eclesisticos em Avignon, ento residncia do papaJoao XXII. Como se sabe, essa cidade abrigou sete papas durante oconflito que ops o papado coroa francesa entre 1309 e 1378. Em

    Avignon, Ockham permaneceu cerca de quatro anos, durante os quaiso seu pensamento sofreu um significativo deslocamento, porquanto asua principal preocupao agora no mais a teologia nem a lgica,mas a poltica e, mais precisamente, o combate contra o poder tempo-ral do papa. Ora, tendo-se aguado a polmica e agravado as rela-es com Joo XXII, Ockham foi obrigado a buscar refgio junto aoimperador Lus da Baviera, que se achava ento na cidade de Pisa(maio de 1328), depois de haver passado por Roma, de ter instalado

    no trono um antipapa e de ele ter recebido a coroa do Imprio Roma-no. De Pisa, Ockham, juntamente com um grupo de simpatizantes,

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    seguiu o imperador para Munique, que se tornou o centro intelectualda luta contra o papado e onde ao que tudo indica ele permanece-ria at os ltimos anos de sua vida. Em Munique, ele se ocupou igual-

    mente com a elaborao de suas obras sobre a pobreza e sobre asrelaes entre a Igreja e o Estado. Depois da morte do imperador, em1347, Ockham viu desaparecer tambm seu principal apoio. Vitima-do, ao que parece, pela peste negra, o filsofo faleceu, segundo al-guns, em 1347 e, segundo outros, em 1349.

    Do ponto de vista de sua produo intelectual, o pensamentoockhamiano se divide, portanto, em dois perodos principais: o pero-do dos escritos filosfico-teolgicos onde sobressaem a sua lgica e

    a teoria do conhecimento e o perodo dos escritos polticos. Nasreflexes que se seguem, tenciona-se sustentar que, de certo modo,Ockham j antecipou o que, nos dias de hoje, se designa pela expres-so fim do sujeito, dadas justamente as suas intuies nas esferas dateoria do conhecimento e da linguagem. Comecemos ento pela suaconcepo do conhecimento.

    1 Da teoria do conhecimento

    Na verdade, a teoria do conhecimento em Ockham est in-trinsecamente ligada sua concepo da cincia, porquanto seu idealcientfico se assemelha com as diferenas que toda semelhana com-porta quele que encontramos nos Analticos posteriores deAristteles. Segundo o Estagirita, toda afirmao, para ser cientifica-mente vlida, deve ser obtida por um processo silogstico de proposi-

    es evidentes, necessrias e, portanto, verdadeiras e jamais falsas.Para Ockham igualmente, s h conhecimento no sentido estrito dotermo l onde uma proposio permanecer verdadeira, independente-mente do fato de as coisas para as quais ela apontar existirem atual-mente ou no. Donde se pode afirmar que todas as verdades da lgi-ca, da matemtica, como tambm algumas proposies metafsicas ealgumas afirmaes sobre Deus entram nessa definio do conheci-mento, pois elas se exprimem como concluses derivadas de premis-

    sas evidentes e necessrias.Urge, porm, interrogar-se: se todo conhecimento cientfico

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    deve, segundo Ockham, ser o resultado de uma demonstrao rigoro-sa, necessria, evidente e, portanto, verdadeira, o que dizer ento dasrealidades reveladas, que no podem ser conhecidas pela razo natu-

    ral? Efetivamente, do ponto de vista racional, elas no preenchem orequisito bsico da definio ockhamiana do conhecimento, segundo aqual todo conhecimento, para ser verdadeiro, deve ser autoevidente.Ajunte-se a isso que, alm de ter sido, durante o seu primeiro perodo,um exmio professor de lgica talvez o maior lgico do sculo XIV Ockham combateu corajosamente, durante a sua segunda fase, a po-ltica papal e o poder temporal da Igreja. No se pode esquecer, po-rm, que este pensador foi, antes de tudo, um telogo, e como telogo

    ele permaneceu at o fim de sua vida. No causar, pois, surpresa v-lo apelar, num escrito intituladoDe corpore Christi, para a autoridadedas Escrituras e da Igreja:

    Considero um perigo e uma temeridade forar al-gum a agrilhoar a sua mente e a acreditar em algoque a sua razo lhe diz ser falso, a no ser queestealgo tenha sido haurido das Sagradas Escrituras, ou

    de alguma determinao da Igreja Romana, ou depalavras de doutores comprovados (OCKHAM,1990, p. XVIII. Itlicos meus).

    Sem embargo, h, segundo Ockham, duas maneiras de se conhece-rem as realidades no complexas, ou simples: uma maneira intuitivaeuma maneira abstrativa. A primeira diz respeito capacidade de sa-ber se uma coisa existe ou no existe. Se ela existe, o intelecto julgaimediatamenteque ela existe, pois salvo algum impedimento ouobstculo no caminho do prprio conhecimento ele sabe evidente-menteque ela existe. Destarte, todo conhecimento no complexo deum ou mais termos ou de uma ou mais coisas um conhecimento intui-tivo que nos torna capazes de conhecermos uma verdade contingente,maxime de praesenti, isto , especialmente quando se trata defa-tos atuais (OCKHAM, 1990, p. 23). Ockham sustenta ainda, na es-

    teira de Aristteles, que assim como o conhecimento dos fatos sens-veis, ou empiricamente dados, comea com os sentidos ou com um

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    sentido intuitivo (notitia intuitiva sensitiva) desses mesmos fatos ,assim tambm o conhecimento cientfico dos fatos puramente intelig-veis da experincia comea, de modo geral, com uma intuio intelectiva

    desses mesmos fatos inteligveis (OCKHAM, 1990, p. 24). Isso querdizer que, em ltima instncia, nenhum conhecimento possvel semum contato direto ou indireto com algum objeto da experincia ou,mais exatamente, com as realidades singulares, individuais, positivas.

    O conhecimento abstrativo, em contraste com o conheci-mento intuitivo, aquele pelo qual no se pode saber de forma evi-dente se um fato contingente existe ou no existe. Como j indica o seuprprio qualificativo, esse tipo de conhecimento abstraida existncia

    ou no existncia das realidades, de sorte que ele no nos capacitaafirmar se elas realmente existem ou no. Assim, caso se considere asentena, Scrates branco, tanto Scrates quanto a sua brancuraesto ausentes no momento em que a enunciamos. Ora, aps haverevocado outras verdades contingentes, o filsofo conclui, de maneiradesconcertante: Todavia, certo que essas verdades podem ser evi-dentemente conhecidas (OCKHAM, 1990). Evidentemente conhe-cidas ajunte-se mas somente do ponto de vista formal da deduoou da demonstrao racional que, como eu avancei acima, deve serrigorosa, necessria e, portanto, verdadeira.

    No conhecimento abstrativo, Ockham distingue ainda duasmodalidades essenciais: um conhecimento que abstrai de muitas reali-dades singulares e um conhecimento que abstrai da existncia ou noexistncia das coisas. Com relao ao primeiro, ele nada mais que oconhecimento de um universalque pode ser abstrado de vrias rea-

    lidades tomadas individualmente. No entanto, pondera o filsofo, seesse universal for uma qualidade verdadeiramente existente na menteenquanto sujeito de conhecimento, segue-se que tal universal podetambm ser intuitivamente conhecido. Em outros termos, esse tipo deconhecimento se revela simultaneamente intuitivo e abstrativo. No quediz respeito segunda modalidade do conhecimento abstrativo, esteabstrai no somente da existncia e da no existncia das coisas, mastambm de todas as outras condies que, contingentemente, perten-

    cem a ou so predicadas de uma coisa. Todavia, isso no significa queaquilo que no conhecido pelo conhecimento abstrativo possa ou

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    deva s-lo pelo conhecimento intuitivo. A mesma realidade ressalta ofilsofo pode ser conhecida plenamente, e sob o mesmo aspecto,por ambos os conhecimentos (OCKHAM, 1990, p. 22-23). Melhor:

    ambos os conhecimentos supem um objeto e um intelecto, na medidaem que ambos implicam uma causalidade na qual o objeto e o intelectointeragem independentemente do fato de se encontrar o objeto fora oudentro da mente.

    2 O sujeito do conhecimento

    At o momento, tem-se falado do sujeito do conhecimento

    em Ockham, o qual nada, ou quase nada, tem a ver com a noo desubjetividade que a filosofia moderna, sobretudo a partir de Kant, ele-geu como a esfera privilegiada do conhecimento. No se trata tampoucodo sujeito da psicanlise, que o sujeito do inconsciente e, portanto,do desejo, do recalque, da falta. Todavia, como ser visto mais abai-xo, a teoria ockhamiana do conhecimento no deixa de estar relacio-nada com o sujeito psicanaltico, na medida em que ela levanta e ana-lisa a questo do signo, da significao ou, em termos ockhamianos,da suposio.

    O sujeito ockhamiano do conhecimento, ou da cincia aqueleoriundo da lgica aristotlica, que, atravs de Bocio, se transmitiupara a lgica medieval, difundindo-se e cristalizando-se em toda a l-gica ocidental. Nesse sentido, sujeito e predicado so inseparveis umdo outro, na medida em que reenviando definio clssica de PedroHispano o sujeito aquilo de quese diz alguma coisa, enquanto que

    o predicado o quese diz de outra coisa. Assim, na proposio:Scrates sbio, Scrates o sujeito e sbio o predicado. Aproposio consiste, pois, no afirmar ou no negar algo sobre algumacoisa e, por isso, ela se constitui de dois termos ou elementos essenci-ais: o sujeito, de que se afirma ou se nega algo, e o predicado, que oque se afirma ou se nega do sujeito.

    tambm nesse sentido que Ockham ir referir-se ao sujei-to da cincia, a saber, aquilo sobre o que alguma coisa conhecida.

    Mas ele se utilizar igualmente do sujeito da cincia na acepo lgi-ca e ontolgica do termo, ou seja, no sentido em que, naMetafsica,

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    lhe atribuiu Aristteles. Sabe-se, com efeito, que, no Livro Z destaobra, Aristteles define o sujeito como um dos modos essenciais dasubstncia ou, mais exatamente, como aquilo a que se atribuem ou a

    que inerem qualidades e determinaes predicveis. Nessa perspecti-va, o sujeito pode ser a matria de que se compe uma coisa, porexemplo, o bronze de uma esttua; a forma de que essa mesma coisase reveste, por exemplo, a configurao visvel que define a esttua.Mas ele pode ainda apresentar-se como uma substncia ou, mais pre-cisamente, como o composto de matria e forma, no caso, a esttuaou o todo concreto (ARISTTELES, 1941, p. 785). Ora, paraOckham, o sujeito da cincia o prprio intelecto, no qual reside a

    cincia, ou o conhecimento, como um acidente. De sorte que, consi-derando-se o prprio timo do termo subiectum: colocado sob,sotoposto , ele poder afirmar que o sujeito da cincia aquilo querecebe, sustm ou suporta o conhecimento, assim como um corpo ouuma superfcie pode ser o subiectumda brancura, e o fogo o do calor(OCKHAM, 1990, p. 9). De resto, o filsofo estabelece uma diferen-a entre o sujeitoe o objetoda cincia, na medida em que o objeto toda a proposio conhecida, enquanto que o sujeito to-somenteuma parte dessa mesma proposio ou, mais precisamente, o seu ter-mo-sujeito (terminus subiectus). Assim, na proposio: Todo ho-mem suscetvel de ser instrudo, o objeto da cincia a inteira pro-posio, e o sujeito o termo homem (OCKHAM, 1990, p. 9).

    Mas eis que com a questo do sujeito da cincia ou doconhecimento j se toca no ponto em que Ockham revela toda a suaoriginalidade, a saber, a teoria da suposio. Com efeito, para o lgi-

    co ingls, toda cincia cincia de proposio ou de proposies(complexivel complexorum). E assim como as proposies (com-plexa) so conhecidas atravs da cincia, assim tambm os termosno complexos (incomplexa) que as compem formam o sujeito deque se ocupa a cincia. Todavia, as proposies, tais como aquelasque pertencem cincia natural, consistem no em coisas sensveis ouem substncias, mas em conceitos ou em contedos mentais que seaplicam a essas mesmas coisas. Se considerarmos, por exemplo, a

    proposio: Toda substncia sensvel composta de matria e for-ma, o sujeito em questo ou uma coisa fora da mente (extra ani-

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    mam), ou um contedo mental (intentio in anima), ou ainda um signofalado (vox). Em todo caso, na perspectiva de Ockham, toda cinciaou todo conhecimento s se revela como tal na medida mesma em que

    ele significa ou supeas realidades que intenta conhecer, ou investigar.Porque declara o filsofo os termos de proposies cientifica-mente conhecidas supem as coisas (OCKHAM, 1990, p. 12). E,inversamente, as coisas so supostas, significadas, pela mente, oupela alma (anima), que conhece. Mas antes de analisarmos a teoria dasuposio propriamente dita, vejamos em que consistem os elementosconstitutivos de uma proposio que, de maneira geral, se define comoum enunciado verbal suscetvel de ser considerado verdadeiro ou

    falso.

    3 Dos termos e da proposio

    Ora, no s para Ockham, mas tambm para a tradio lgi-ca que o precedera, o termo um dos elementos essenciais que com-pem uma proposio, a saber, o sujeito e o predicado. O prprioOckham se vale da definio clssica que apresenta Aristteles nosPrimeiros Analticos, segundo a qual o termo aquilo em que umaproposio est divida, isto , o predicado e aquilo de que algo predicado quando se afirma ou quando se nega que algo ou no alguma coisa (ARISTTELES, 1941, p. 66). Todavia, embora todotermo possa constituir uma parte da proposio, nem todo termo ,segundo o filsofo, da mesma natureza. Nesse sentido, Ockham estmais prximo de Bocio que de Aristteles. Com efeito, se, noDa

    interpretao, Bocio considera a linguagem sob uma tripla modali-dade a escrita, a falada e a conceitual assim tambm Ockhamanalisa o termo nas suas manifestaes da escrita, da fala e do concei-to. Um termo escrito aquele que faz parte de uma proposio escritasobre algo material e que, portanto, percebido, ou pode ser percebi-do, com os olhos. Um termo falado (prolatus) uma parte da propo-sio proferida com a boca e que capaz de ser percebida pelo ouvi-do. Finalmente, um termo conceitual um contedo mental ou uma

    impresso da mente (intentio seu passio animae) que naturalmente

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    possui significao e que, por isso mesmo, apta a significar ou asupor (OCKHAM, 1990, p. 47).

    Mas, alm de Aristteles e Bocio, Ockham se apoia tam-

    bm noDe Trinitatede Agostinho. Ele observa como j o fizeraAgostinho que os termos conceituais, e as proposies que de-les se compem, so palavras mentaisque no pertencem a ne-nhuma lngua, porquanto eles permanecem na mente e no podem,pelo menos na sua totalidade, ser proferidos. J as palavras orais,enquanto signos subordinados quelas, podem ser pronunciadasexteriormente (OCKHAM, 1990). Curiosamente, porm, aps terafirmado que as palavras orais so signos subordinados aos con-

    ceitos, ou aos contedos mentais, o filsofo ajunta que elas soempregadas justamente para significarem as mesmas coisas que osconceitos mentais significam. Mais curioso ainda v-lo afirmarque o conceito significa primariamente e naturalmenteaquilo quea palavra (vox) significa de maneira secundria ou subordinada.No contente em assinalar esta primazia ao conceito, o filsofodeclara que, ao sustentarem que as palavras so signos ou impres-ses da mente (passiones animae), os lgicos no quiseram dizeroutra coisa seno que as palavras so signos que significam secun-dariamente aquilo que as impresses da mente significam em pri-meiro lugar. Melhor ainda: um conceito ou uma impresso mentalsignifica naturalmenteo que quer que ela esteja a significar, en-quanto que um termo falado ou escrito s significa algo porquelivre e convencionalmente(secundum voluntatem institutionem)se estabeleceu que ele assim o fizesse (OCKHAM, 1990, p. 48).

    Nessa perspectiva, a palavra oral para os conceitos, ou para oscontedos mentais, o que a palavra escrita relativamente pala-vra oral, ou seja, uma cpia; no caso da palavra escrita com rela-o aos conceitos, temos no somente uma cpia, mas uma cpiade uma cpia.

    Lendo essas definies ou redefinies do termo que ope-rou o lgico ingls no domnio da linguagem, no podemos deixarde pensar na crtica que volveu Jacques Derrida contra a hegemonia

    que exerceu o logos, enquanto pensamento, sobre a palavra e so-bre o signo escrito em particular. EmDa gramatologia, Derrida

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    sustenta que o suposto vnculo originrio e essencial ligando o logos voz (phon) jamais fora rompido ao longo da tradio filosfica.Citando como exemplo o que Aristteles afirma noDa interpreta-

    o os sons emitidos pela voz so smbolos dos estados daalma, e as palavras escritas so smbolos das palavras emitidas pelavoz o pensador argelino denuncia a relao de proximidade es-sencial e imediata que a voz, enquanto produtora dos primeirossmbolos, teria com a alma. Com efeito, na interpretao deAristteles, a alma se apresenta como a real habitao do pensa-mento que, enquanto logos, reenvia ao sentido que ele produz,rene, recebe e diz(DERRIDA, 1967, p. 21). Disso decorre que,

    na condio de produtora dosprimeiros smbolos, a voz no sereduz a um mero significante entre outros. Antes, ela manifesta oprprio estado da alma que, por sua vez, reflete e revela a essn-cia das coisas como que por uma espcie de semelhana natural.Assim, conclui Derrida: Entre o ser e a alma, entre as coisas e asafeces, haveria uma relao de traduo ou de significao natu-ral; j entre a alma e o logos, haveria uma relao de simbolizaoconvencional (DERRIDA, 1967, p. 22). Ora, nas convenes quese tecem na rede simblica da comunicao entre os indivduos, aprimeira que sobressai justamente por estar imediatamente vin-culada ordem da significao natural e universal aquela que seexprime como linguagem falada. J no que concerne linguagemescrita, esta teria como funo a de simplesmente fixar e ligar entresi as diferentes convenes e simbolizaes. Da que todosignificante, principalmente o significante escrito, representaria um

    papel meramente secundrio, tcnico, derivativo. Para Derrida, aprpria noo de significante nasceu dessa relao de dependncia uma dependncia de verdade ou de significado primrio vis--visdo logose do conceito que a ele est vinculado. Foi, contudo,graas a Nietzsche que se comeou a romper essa dependncia,na medida em que o autor deZaratustraintroduziu uma nova con-cepo da escritaou do texto, texto entendido como um espaode resistncia, de transgresso, de descontinuidade, de ruptura, de

    construo e reconstruo infinitas (DERRIDA, 1967, p. 31-33).De resto, essa revalorao da escrita est intimamente ligada

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    questo do signo e, consequentemente, capacidade que ele temde se significar indefinidamente.

    4 Do signo e da significao infinita...

    , com efeito, em virtude das relaes potenciais ou atuaisque o signo mantm com outros signos que ele no cessa de reenviar anovas, repetidas e diferentes significaes. Mas o que um signo? Ecomo definir aquilo que, por princpio, significa, aponta, supe? Noobstante a impossibilidade, ou a quase impossibilidade de defini-lo, foisobretudo a partir dos ltimos desenvolvimentos da lingustica que se

    passou a ver no signo uma estrutura da palavra ou uma entidade ps-quica composta de duas faces: um significante e um significado. Osignificante se manifesta sob uma dupla modalidade: para Ferdinandde Saussure, ele a imagem acstica do signo; j para a psicanlise,ele se apresenta como uma imagem inconsciente que cria uma defasa-gem de sentido entre o nome e a coisa nomeada. Quanto ao significa-do, ele tambm possui uma dupla acepo: trata-se, para Saussure, daideia, do conceito ou da imagem mental do signo; j na perspectiva dapsicanlise, o significado a representao objetiva da coisa(RESWEBER, 1995, p. 125).1A funo do signo , pois, a de repre-sentar um objeto para um sujeito, porquanto atravs da discrepnciaou do descompasso entre, de um lado, o que pedido e, de outro, oque nomeado, que se desenrola a tenso do desejo na sua inexaurvele sempre recomeada satisfaoinsatisfao.

    Antes, porm, da reinterpretao que lhe imprimiram Peirce,

    Saussure, Benveniste, Jakobson e Lacan, o signo atravessou uma lon-ga e sinuosa histria que, na verdade, remonta at as origens da filoso-fia grega. Com efeito, j nos fragmentos de Herclito, podemos leresta enigmtica e elptica sentena: O senhor, cujo orculo est emDelfos, nem fala, nem oculta, mas d sinais (HERCLITO apudKIRK; RAVEN, 1962, p. 211). , no entanto, na antiga doutrina estoicada linguagem que, pela primeira vez, vemos formulada a questo dosigno (smeion), que se apresenta como uma entidade bifacial consis-

    tente na relao de um significante (smainon) e um significado(semanomenon). O primeiro elemento se situa no plano do percep-

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    tvel (aisthton), enquanto que o segundo pertence ordem do inte-ligvel (noton). Nos escritos de Agostinho e, mais precisamente, no

    Mestree naDoutrina crist, essa concepo ser aprofundada e

    adaptada terminologia latina, que traduziusmeionpor signum,smainonpor signans, esemanomenonpor signatum. Na IdadeMdia Tardia, esse duplo carter do signo, juntamente com asconsequncias lgicas, epistemolgicas e ontolgicas que dele redun-dam, ser assimilado, desenvolvido e reinterpretado por Ockham sobo nome, justamente, de suposio (JAKOBSON, 1987, p. 413-414).

    5 A teoria da suposio e a questo do sujeito

    Com efeito, pela noo de suppositio(de suppore: colocarsob, sotopor), o lgico ingls entende a capacidade que tem um termode estar no lugar de alguma coisa distinta dele, isto , de ocupar aposio dessa coisa, de substitu-la e, portanto, de re-present-la,signific-la, indigit-la. Assim, se um termo est numa proposioem lugar de outra coisa sendo esse termo ao mesmo tempo verda-deiro com relao quela coisa pode-se dizer que ele supe aquelacoisa. Em que, pois, consiste mais precisamente a suposio? Ela con-siste numa suposio pessoal, numa suposio simples e numa suposi-o material.

    H suposio pessoal toda vez que um termo, convencional-mente institudo, estiver no lugar das realidades singulares que ele sig-nifica. Pode-se tambm dizer que sempre que um sujeito ou um

    predicado de uma proposio supuserou representar um objeto, tem-se uma suposio pessoal. Tome-se como exemplo o enunciado: Todohomem um animal, ou o homem corre. O termo homem, nessescasos, supe ou aponta para indivduos concretos, singulares, e nopara algo universal, ou comum a todos eles (OCKHAM, 1990, p. 65-66).

    Quanto suposio simples, ela acontece quando um termoest no lugar de um conceito ou de um contedo mental. Nesse caso,

    ela no aponta diretamente para uma realidade concreta, singular, indi-vidual. Considere-se o exemplo: O homem uma espcie. Nessa

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    proposio, o termo homem supe um contedo da mente, na medi-da em que esse contedo uma espcie e, consequentemente, umarealidade universal, comum a todos os homens (OCKHAM, 1990, p.

    66). D-se o nome de suposio material quela cujo termo estno lugar de seus constitutivos materiais, como os signos orais ou escri-tos. O termo no est, pois, no lugar daquilo que ele significa, mas nolugar de um signo oral ou grfico (pro voce vel pro scripto). Pense-se, por exemplo, na proposio: Homem um nome. A palavrahomem aqui no est supondo a humanidade ou um homem na suarealidade concreta, especfica, particular, mas simplesmente o nome

    homem. Outro exemplo: Homem se escreve assim; trata-se tam-bm de uma suposio material, porquanto o termo homem est nolugar de: se escreve assim (OCKHAM, 1990, p. 67).

    Existem, pois, trs formas pelas quais o termo supe: ele podesupor de maneira realmente significativa, isto , quando ocupa o lu-gar do objeto concreto, individual, singular, de que ele signo (suposi-o pessoal); ele pode tambm supor-se a si mesmo, isto , quando setorna seu prprio substituto (suposio simples); finalmente, ele podesupor seus equivalentes ou correspondentes materiais, na medida emque ocupa o lugar de um signo oral, escrito ou grfico (suposio ma-terial). Note-se tambm como se viu mais acima que o conceito, diferena da voz e da escrita que significam os objetos de maneiraconvencional est a supor esses mesmos objetos, mas naturalmen-te, ou seja, em virtude de uma inteno da alma (intentio animae) oude uma espcie de linguagem mental que, por isso mesmo, se impe

    como signo da realidade (signum rei). Para Ockham, portanto, o con-ceito no uma ideia, mas um signo que remete a uma realidade aoreportar-se aos outros signos da proposio. nesse sentido, comoeu tambm mostrei mais acima no contexto da crtica que volveuDerrida contra o logocentrismo da tradio filosfica ocidental que apalavra falada e, notadamente, a palavra escrita se revela como umsigno degradado, derivado e, portanto, como uma traduo convenci-onal dessa pretensa linguagem primeira, ou primria, que o conceito

    representaria. Por conseguinte, o conceito no uma realidade con-creta, singular, individual, nem tampouco uma realidade abstrata; ele

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    simplesmente o termo em posio de representao na proposioou, mais exatamente, em posio de suposio.

    Mas se o prprio Ockham se acha tambm includo na tradi-

    o que assinalou ao logosuma primazia sobre o signo falado e,precipuamente, sobre o signo escrito, em que medida se poderia aindaafirmar que nele se encontra tambm colocada a questo do sujeito? bem verdade que no se trata como eu avancei na seo 2destasreflexes do sujeito no sentido cartesiano ou kantiano do termo.No se trata tampouco do sujeito psicanaltico, se por essa expressose entende a dinmica do desejo, do inconsciente e, portanto, doscontedos recalcados da psique. Na esteira de Aristteles, o lgico

    ingls tambm dotar o sujeito de um estatuto ontolgico eepistemolgico, na medida em que ele se apresenta como um dos modosessenciais da substncia ou como aquilo a que inerem ou sobre o qualse predicam qualidades e determinaes. nessa acepo que elepoder tambm referir-se ao sujeito da cincia, que o prprio inte-lecto, ou mente, na qual reside a cincia ou o conhecimento como umacidente. Todavia e aqui onde reside a essncia da questo , aointroduzir ou reelaborar a teoria da suposio, Ockham assinala igual-mente ao sujeito no somente a capacidade de reproduzir, pelo pensa-mento, os objetos da experincia mas tambm, e principalmente, a desup-los, de indigit-los, de represent-los. Em outros termos, a teo-ria ockhamiana da suposio veio mostrar que o que realmente estem jogo na construo do conhecimento a questo da linguagem e,em ltima instncia, a questo do sujeito que, ao embater-se continua-mente contra as resistncias que oferece o realou a letra no sentido

    lacaniano do termo no cessa, por isso mesmo, de nomear, de de-signar, de significar, de simbolizar, ou de supor. que nenhum nome,nenhum significante ou nenhuma suposio seriam aptos a refrear aderiva do desejo, ou do sujeito, que se elide e se eclipsa na tentativamesma de colmatar a lacuna que o simblico do real paradoxalmentesuscita.

    Com efeito, se a lgica ockhamiana uma lgica essencial-mente da suposio, ou da significao, as indagaes epistemolgicas

    que lhe so fundamentalmente inerentes dizem respeito ao estatutomesmo do conceito e, portanto, maneira prpria de o sujeito do

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    conhecimento apreender e entender a realidade. Mas uma realidade repita-se que se supe ou que se significa. Destarte, a questo quelevanta o filsofo a partir de uma tradio que, passando por Toms

    de Aquino, Abelardo, Guilherme de Champeaux, Roscelino, Bocio ePorfrio, remonta at Aristteles a de saber se os conceitos, e ostermos que os manifestam, so ou no so aptos a exprimirem os serese a estrutura da realidade nas suas singularidades e/ou na sua universa-lidade. Tome-se como exemplo o conceito homem: existe o homemem geral ou existem somente homens particulares, individuais? Me-lhor: a palavra homem, quando aplicada a vrios indivduos, so-mente uma palavra, ou teria ela tambm uma consistncia ontolgica,

    uma essncia que a determinaria enquanto tal? Em resumo: os univer-sais existem somente como conceitos da mente, ou existem tambm narealidade? este o debate que se tornou conhecido na histria dafilosofia pela expresso querela dos universais, ou disputa dos uni-versais, e que teve seu ponto de partida numa passagem doIsagogeem que o autor, Porfrio, faz uma anlise das Categoriasde Aristtelese introduz a seguinte ressalva: J de incio te advirto que no tratareido problema dos gneros e das espcies, isto , se eles subsistem ouse so simples conceitos mentais; e, caso subsistam, se so corpreosou incorpreos; e, enfim, se so separados ou se se encontram nascoisas sensveis, delas exprimindo as caractersticas comuns(PORFRIO, 1995, p. 57).

    Foi, portanto, em torno do comentrio de Porfrio, e daque-les que lhe ajuntou Bocio, que duas tendncias principais se forma-ram ao longo dessa disputa: uma tendncia realista e uma tendncia

    nominalista. Estas, por sua vez, se subdividiram em duas correntes:uma extrema e outra moderada. O realismo extremo, que se reclamada tradio platnico-agostiniana, tem como principal representante ofundador da Escola de So Vctor, em Paris, Guilherme de Champeaux(c. 10701122). Segundo seu discpulo, Pedro Abelardo, Guilhermede Champeaux teria hipostasiado os universais como substncias re-aisque, enquanto ideias perfeitas ou modelos eternos na mente doCriador, existem primria e independentemente das coisas que eles

    exprimem. Assim, por exemplo, o conceito universal de humanidadepermaneceria essencialmente uno e idntico em todos os homens,

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    do mesmo modo que a essncia espcie seria comum a todos osindivduos, aos quais se acrescentariam qualidades acidentais que osdistinguiriam uns dos outros. Mrio e Pedro, por exemplo, so indiv-

    duos pertencentes a uma mesma espcie e, enquanto indivduos, elesse mostram diferentes graas aos respectivos acidentes que os distin-guem um do outro: a altura, a cor do cabelo, a cor da pele, etc. Aomesmo tempo, porm, eles se revelam no diferentes entre si, na me-dida em que ambos so homens. Esta no diferena, ou indiferena,seria, portanto, o que viria constituir o conceito espcie ou humani-dade na sua universalidade.

    Quanto ao realismo moderado, de inspirao aristotlica e

    representado principalmente por Bocio e Toms de Aquino, este de-clara que os universais existem, sim, nos indivduos, mas to somentecomoformasintrnsecas ou inerentes aos prprios indivduos. De sor-te que, na viso de Toms de Aquino, o universal est in re(na coisa)como sua forma ou substncia,post rem(aps a coisa) como concei-to no intelecto, e ante rem(antes da coisa) como ideia ou modelo, namente divina, daquilo que j foi ou ser criado. Na verdade, esses trsuniversais se reduzem a um s, na medida em que se identificam com asessncias ou as formas das coisas que eternamente existem na mente doCriador. Cabe, porm, ao intelecto humano diz o Aquinata na Suma deteologia extrair ou abstrair a essncia das coisas nas e das prpriascoisas (TOMS DE AQUINO, 1941, p. 511-526).

    Quanto ao nominalismo, a tese fundamental que nele sobres-sai aquela que considera a realidade rigorosamente constituda deseres singulares, particulares, individuais. A ala extrema dessa tendn-

    cia, que habitualmente se faz remontar at Roscelino de Compigne(c. 1050c. 1120), sustenta que os universais no existem nem nascoisas nem tampouco na mente humana. Embora no se possa inteira-mente confiar nas declaraes atribudas a Roscelino na medida emque essas fontes nos so fornecidas pelos seus adversrios costuma-se adjudicar-lhe a expresso segundo a qual um conceito universal to-somente umflatus vocis, vale dizer, uma pura emisso da voz semnenhuma correspondncia ou base concreta na realidade. Por seu tur-

    no, o nominalismo moderado, tambm conhecido pelo nome deconceptualismo, nega a existncia dos universais nas coisas, embora

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    admita que eles existem na mente enquanto funes lgicas dapredicabilidade. Foi esta interpretao que abraou Pedro Abelardo,para quem os universais so sermones, isto , palavras ou discursos

    que significam, indicam, apontam. Foi esta tambm, mas a partir deoutra perspectiva e com outras implicaes, a posio a que aderiuGuilherme de Ockham.

    Efetivamente, conquanto o lgico ingls retenha de Abelardoa ideia de uma presena potencial do universal nas prprias palavras,ele diferir tanto do filsofo francs quanto de Toms de Aquino aorecusar a tese da abstrao e ao substitu-la, como j vimos, por aque-la da suposio, ou da significao. E, de fato, no que tange questo

    dos universais, Ockham afirmar peremptoriamente: Um universal um ato do intelecto (OCKHAM, 1990, p. 43). Mais curioso ainda v-lo, baseando-se naMetafsicade Avicena, fazer a assero para-doxal segundo a qual todo universal uma coisa singular (quodlibetuniversale est una res singularis). Portanto, nada universal senopor significao, isto , por ser um sinal (signum) de vrias coisas(OCKHAM, 1990, p. 33). H, contudo, precisa o filsofo, duas es-pcies de universal: um que naturalmenteuniversal como a fuma-a que significa fogo, o gemido de dor que significa doena e a garga-lhada que significa alegria interior e um que convencionalmenteuniversal, tal como uma palavra proferida (vox prolata). Em ambosos casos, acentua Ockham, trata-se de um contedo da mente, por-quanto nem uma substncia nem um acidente fora da mente podem seruniversais (OCKHAM, 1990, p. 34). Consequentemente, cada ser um ser na sua singularidade, na sua unicidade, na sua descontinuidade.

    O prprio Deus um ens singularissimum. Certo, o filsofo no negao princpio aristotlico da causalidade, mas ele nega a possibilidade dedetectarmos nos seres uma espcie de potncia ativa que reenviaria aoutro ser diferente daquele ao qual nos referimos. Em outros termos,cada ser se termina e se determina nele e por ele prprio. De sorte quea questo, ao deslocar-se, passa agora a ser formulada do seguintemodo: em que finalmente consiste a verdade?

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    6 O ser da verdade e a verdade dos seres

    De fato, o problema que realmente preocupou tanto os rea-

    listas quanto os nominalistas foi o problema da verdade e, mais preci-samente, a reinterpretao da noo de verdade no que diz respeito correspondnciaentre o intelecto e a coisa. Essa concepo, queremonta tradio pr-socrtica, encontra-se formulada, embora dediferentes modos, nos dilogos da maturidade de Plato Crtilo,Sofista, Filebo e naMetafsicade Aristteles. Foi, no entanto, To-ms de Aquino inspirado no pensador judeu Isaac Israeli Ben Solomon(c. 832 c. 932) que, na Suma de teologia, a enunciou desta ma-

    neira: A verdade definida como sendo a conformidade do intelectoe da coisa. Portanto, conhecer esta conformidade conhecer a verda-de (Toms de Aquino, 1941, p. 115).2

    Ao colocar todo o peso da teoria do conhecimento na esferado intelecto e da linguagem que o acompanha embora, necessaria-mente, de maneira fragmentria, incompleta, lacunar Ockham ir tam-bm introduzir uma total reviravolta no modo de conceber e de conhe-cer a verdadedos seres. Ora, sendo a linguagem essencialmente arbi-trria ou convencional e manifestando-se, pela voz e pela escrita,como um prolongamento subordinado aos contedos da mente comopoder ela ento corresponder s coisas, ou s verdades que se su-pem exprimir essas coisas? Ademais, se, para o lgico ingls, verda-deiro aquilo que a linguagem desvela, ao sup-lo, e dado que arealidade se apresenta, na sua descontinuidade radical, composta deseres particulares, nicos e individuais, foroso concluir que desmo-

    rona no somente a pretensa correspondncia que necessariamenteexistiria entre o intelecto e as coisas, mas tambm, e consequentemente,a referncia a uma incondicional garantia fosse tal garantia de origemdivina que levaria ao conhecimento dos seres, ou do Ser enquantotal. Na perspectiva de Ockham, a verdade no mais se impe comoum caminho que conduz a Deus, pois essa verdade que era baseadanuma relao de analogia que articulava os seres criados e, portanto,contingentes, ao nico Ser necessrio (Deus) cede agora o lugar a

    uma lgica de expresso simblica que, antes de tudo, significa ousupe. Desaba, desse modo, a viso de um mundo hierarquicamente

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    ordenado segundo um modelo de unio substancial que assinalava umafuno determinada a cada ser. Desmorona igualmente o sujeito doconhecimento como uma instncia garantidora da verdade e, ao mes-

    mo tempo, explicita-se a hincia que a incompletude do simblico doreal no cessa de colmatar e de ampliar...

    Notas

    * Professor no programa de ps-graduao de filosofia da PUCPR. Doutor emfilosofia pela Universidade de Metz (Frana) e em teologia pela Universida-de de Estrasburgo (Frana). E-mail: [email protected]

    1 Para uma anlise mais detalhada da natureza do signo, veja Saussure (1986,p. 97-113).

    2 No original, temos: Et propter hoc per conformitatem intellectus et reiveritas definitur. Unde conformitatem istam cognoscere, est cognoscere

    veritatem. Na Suma contra os gentios, Toms de Aquino j havia afirmadoque a verdade do intelecto a adequao do intelecto e da coisa. Todavia,ao que parece, a fonte desta definio se encontra no em Isaac Israeli, masem Avicena, atravs de Guilherme de Auvergne. Cf. Toms de Aquino (1975,vol. I, p. 202, n. 2).

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