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1 GUILHERME NANINI DA SILVA OLIVEIRA O MITO E O RITO NA HISTÓRIA NOTURNA: UMA ANÁLISE DA OBRA DE CARLO GINZBURG CURITIBA

Guilherme Nanini Silva Oliveira

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GUILHERME NANINI DA SILVA OLIVEIRA

O MITO E O RITO NA HISTÓRIA NOTURNA: UMA ANÁLISE DA OBRA DE CARLO GINZBURG

CURITIBA

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2010 GUILHERME NANINI DA SILVA OLIVEIRA

O MITO E O RITO NA HISTÓRIA NOTURNA: UMA ANÁLISE DA OBRA DE CARLO GINZBURG

Monografia apresentado à disciplina Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica, no curso de História – Bacharelado e Licenciatura, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Dr. Renato Lopes Leite Co-orientador: Dr. José Roberto Braga Portella

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Dedico a meus falecidos ancestrais Paulo, Isabel e João;

aos falecidos amigos: Carlos, Eraldo e Eros;

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a Júlio, meu falecido primo.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a todos meus ancestrais, à minha mulher, ao meu filho, ao meu orientador, aos

professores que me ajudaram nesse caminho, aos mestres que a vida oferece, à universidade e

aos amigos que compartilharam muitas e muitas horas de pátio e ogrobol.

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RESUMO

Esta monografia analisa os mecanismos teóricos e metodológicos que permitiram que Carlo

Ginzburg abordasse o mito, o rito e o êxtase xamânico como objetos de estudo em sua obra

História noturna: desvendando o sabá. O substrato cultural xamânico que se esconde por trás

do estereótipo de bruxaria que é o sabá foi levantado por Ginzburg num vastíssimo âmbito

geográfico e cultural: o âmbito cultural eurasiático. Essa heterogeneidade histórica, cultural e

geográfica revelou uma impressionante homogeneidade simbólica em cultos extáticos ou

referências em mitos e ritos a símbolos que remetem a um vastíssimo substrato cultural

referente a tais cultos. Mapeamos as influências de Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade no

pensamento de Carlo Ginzburg.

Palavras chaves: Ginzburg. História noturna. Mito. Rito. Lévi-Strauss. Eliade.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1

1. Transcrição da fonte................................................................................................................3

2. Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade em História noturna..................................................26

3. Breves considerações sobre a historiografia e a obra História noturna................................36

CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................................42

FONTES....................................................................................................................................47

REFERÊNCIAS.......................................................................................................................48

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INTRODUÇÃO

A presente monografia investiga no livro História noturna: decifrando o sabá, de Carlo Ginzburg, os objetos analisados pelo autor nos âmbitos do mito, do rito e do êxtase xamânico relatados em processos inquisitoriais. Segundo Hermann, essa obra se insere no campo da história das religiões1, mas isso está longe de definir História noturna. Esse livro traz a morfologia de Propp e o estruturalismo de Lévi-Strauss para a historiografia, analisando a reminiscência de um profundo substrato cultural xamânico que culminou no estereótipo do sabá. É um livro que leva o paradigma indiciário de Ginzburg ao limite, provando a eficácia de sua busca pelos detalhes quase imperceptíveis e anomalias que formam isomorfismos. Os isomorfismos que construíram uma longa série documental, de reminiscências de manifestações xamânicas por toda Eurásia, apresentaram uma homogeneidade impressionante em uma grande heterogeneidade nos âmbitos Geográfico e espacial.

Como o autor insere mito, do rito e do êxtase xamânico na historiografia? Essa é a pergunta que se pretende responder, tendo como objetivos específicos mapear a participação de dois autores nesse processo: Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade. A obra História noturna se situa no contexto dos livros de Ginzburg que têm como temática a cultura popular, estas obras são: Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes e História noturna. Deste modo, falar-se-á desses três livros para estabelecer um contexto, de forma que esses compõem uma série documental. As fontes utilizadas são: História noturna: decifrando o sabá, Mito e Realidade (de Eliade), Antropologia estrutural e Antropologia estrutural dois (ambos de Lévi-Strauss).

O primeiro capítulo desta monografia narra o livro História noturna a partir da perspectiva do mito, do rito e do êxtase xamânico, relevando os detalhes pertinentes e ignorando os assuntos que não se referem diretamente a esses três âmbitos. Em suma, se ressaltará a segunda e a terceira parte do livro de Ginzburg em detrimento a primeira parte, visto que essa parte revela a história do complô – carregada de elementos simbólicos e continuidades, mas com poucas, ou nenhuma, referência ao mito ou ao rito.

O segundo capítulo busca demonstrar as alusões explicitas ou implícitas no texto de Carlo Ginzburg às idéias de Lévi-Strauss e Eliade. Dessa forma, prosseguiremos a partir da comparação que podem ser feita por intermédio de citações ou no corpo do texto. As convergências ao estruturalismo são muitas. Já as convergências de pensamento entre Eliade e Ginzburg seguem um caminho tortuoso, que esbarra em diversas discrepâncias ou concordâncias. Eliade é tido por Ginzburg como um pensador arquetípico, que busca as manifestações do sagrado. Contudo, em nenhum momento o historiador italiano rechaça as idéias de Eliade a priori, existe sempre um diálogo ou uma discussão. É isso que pretendemos demonstrar neste capítulo.

O terceiro capítulo intenta fazer uma análise bibliográfica de História noturna, mas que esbarrou na falta de material relativo a esse livro em detrimento às várias referências a obra O queijo e os vermes. Contudo, a falta de bibliografia foi compensada pelas próprias palavras do autor, proferidas em entrevista à revista Estudos históricos. 1 HERMANN, Jacqueline. “História das Religiões e das Religiosidades”. In:_CARDOSO, Ciro Flamarion,

VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, pp. 343-5.

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1. Transcrição da fonte Na primeira parte do livro se desenvolve uma história, nas palavras do autor, estilo Marc Bloch em Les rois thaumaturges; na segunda parte se faz uma grande análise comparativa de fenômenos, que gradativamente se tornam mais esparsos no tempo e no espaço, mas apresentam uma coerência impressionante – o critério de classificação muda de monotético à politético, de critérios nítidos para um grupo de fenômenos que combina parte deles, mas nunca todos – devido a homogeneidade de dados esparsos no tempo e no espaço por povos culturalmente heterogêneos –; a terceira parte cruza mitos e contos de fadas isolando estruturas formais, em uma analise estrutural à metodologia de Lévi-Strauss, Propp e Wittgenstein; a conclusão se delineia entre discursos e concepções eruditas eclesiásticas, além de discussões acerca de alucinógenos, principalmente o Amanita muscaria, disponíveis aos cultos extáticos e suas utilizações para se atingir êxtases. Nas palavras de Ginzburg:

A heterogeneidade do objeto modelou a estrutura do livro. Ele compõe-se de três partes e um epílogo. Na primeira, reconstruo o emergir da imagem inquisitorial do sabá; na segunda, o profundíssimo estrato mítico e ritual do qual nasciam as crenças populares depois forçadas a confluir no sabá; na terceira, as possíveis explicações dessa dispersão de mitos e ritos; no epílogo, a afirmação do estereótipo, já cristalizado, do sabá como compromisso entre elementos de origem culta e elementos de origem popular. A primeira parte tem andamento narrativo linear: os âmbitos cronológico e geográfico examinados estão circunscritos; a rede documental é relativamente densa. O corpo central do livro, ao contrário, abandona várias vezes o fio da narração e chega a ignorar sucessões cronológicas e continuidades espaciais, na tentativa de reconstruir por meio de afinidades algumas configurações míticas e rituais, documentadas num espaço de milênios, por vezes a milhares e milhares de quilômetros de distância. Nas páginas conclusivas, história e morfologia, apresentação narrativa e exposição (idealmente) sinóptica se alternam, acavalado-se.2

A série documental levantada por Ginzburg isola cultos extáticos, batalhas pela fertilidade, encontros a deusas noturnas, vôos noturnos, os exércitos dos mortos conduzidos por divindades ou heróis e metamorfoses animalescas. Todos esses elementos se associam a mitos, ritos, festas (que contém, também, ritos) e a variadas formas de êxtase (e cultos extáticos); periodicamente realizados em datas associadas aos mortos ou previamente combinadas, dependendo do grupo observado. Testemunhos como o tribunal de Joana d’Arc e diversos outros processos, encontrados em estado fragmentário, revelam cultos a deusas noturnas espalhados por toda área que fora na antiguidade ocupada por celtas. Em diversos casos encontram-se vestígios de viagens espirituais e vôos noturnos, ocorridos em êxtase. Na maioria das vezes são as mulheres que cultuam em transe essas deusas de vários nomes (como Diana, Herodiana, Herodíade, “senhora do bom jogo”, Richella etc.), no entanto existem alguns exemplos de homens que cultuaram ou se relacionaram às divindades noturnas. A clara menção a espíritos e a viagens para além do corpo, em um estado que possibilita transpassar portas e grades, revela um êxtase, que simboliza uma morte provisória. Esse outro mundo é o mundo dos mortos. Mesmo quando não existem menções diretas, a partir de pistas pôde-se supor como hipótese o culto extático. Essas deusas diversas são conectadas por Ginzburg, a partir de uma análise morfológica, às Matronae célticas, às quais Épona – deusa gaulesa dos cavalos e da 2 GINZBURG, Carlo. História Noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 pp. 22-23.

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prosperidade, que foi incorporada ao panteão romano – era associada. As Matronae eram deusas portadoras de abundância, prosperidade (simbolizadas pela cornucópia), fertilidade, cura, proteção mágica, a maternidade e outros fenômenos. Elas são representadas geralmente como três ou cinco figuras. O núcleo folclórico do estereótipo do sabá emerge. O tema dos vôos e encontros noturnos de seitas secretas vem deste vasto tema folclórico associado a cultos extáticos, provenientes de um estrato cultural antiqüíssimo. A explicação céltica para as tradições relativas aos passeios femininos e os vôos noturnos cai por terra com a descoberta de um fenômeno similar na Sicília, que se manteve em atividade até o século XIX, denominado “mulheres de fora”. Ao tentar explicá-las um círculo se fechou. As Matronas célticas eram muito próximas das Mães transportadas de Creta à Sicília (em um passado remoto), dos mitos e cultos das deusas nutrizes de aspecto ursino de Creta, dos cultos de Ártemis Kaliste e de Ártemis Braurônia – deusa que aparece estreitamente associada à ursa como ama-de-leite e a Ártio, representada como ursa e Matrona. A partir de detalhes, a princípio, imperceptíveis o autor rastreou um estrato mais profundo e antigo desses cultos que se espalharam por todo mediterrâneo. Ginzburg salienta: apesar de serem em parte conjecturais as explicações se referem a continuidades reais. Pierina falou a respeito de uma divindade noturna chamada Oriente – na sentença milanesa registrada nas atas do inquisidor frei Bertramino de Cernusculo em 1390 –, que teria dado vida a bois que foram comidos por suas seguidoras. Através do toque de uma vareta aos ossos dos bovinos, envolvidos nos seus couros Oriente teria ressuscitado tais criaturas. São Germano d’Auxerre, na Historia Brittonum de Nênio de 826, repete o mesmo milagre na Britânia durante a conversão dos celtas. A narrativa de Nênio deriva de uma fonte mais antiga, segundo Bertolotii em “Le ossa”. Na Irlanda, ou em Flandres, ou no Brabante – áreas de catequização de monges irlandeses – o mesmo tema hagiográfico surge testemunhando a presença de um substrato cultural cético, dessa vez são cervos e patos que ressuscitam de seus ossos. Na Edda de Snorri Sturlosson, redigida na primeira metade do século XIII, Thor bate com o seu martelo nos ossos de cabras ressuscitando-as. Os exemplos do tema da ressurreição a partir dos ossos continuam principalmente rumo à pré-história, manifestam-se na faixa subártica através dos ritos realizados pelas comunidades de caçadores: do Japão, à Lapônia, até na China pré-histórica. Em suma, as tradições de rituais e mitos envolvendo ossos de animais e a intenção de ressuscitá-los perpassam as regiões habitadas outrora por celtas e germânicos. Um dos nomes da deusa noturna é Pharaildis, ela é a santa padroeira de Gand e ressuscita um pato através de seus ossos. Isso ocorre segundo uma lenda da deusa que conduz a procissão dos mortos, ou seja, Pharaldis. Ela, Pharaldis, é identificada como Herodíade, no poema latino do século XII denominado Ysengrimus. A dispersão do mito de Thor, do mito de Horagalles e do milagre de São Germano suscita teorias sobre a historicidade desse fenômeno. Dizer que o mito de Thor se espalhou por toda a faixa subártica é absurdo, assim como é afirmar a hipótese inversa: esse mito teria se difundido no âmbito europeu devido à influência dos Lapões. Thor, Horagalles, são Germano d’Auxerre, Oriente etc. Teriam suas origens em uma antiguíssima cultura de caçadores inserida no contexto geográfico eurasiático, no qual o mito de uma divindade às vezes masculina, às vezes feminina gera e ressuscita animais. Nas palavras de Ginzburg: “Nos

testemunhos sobre a deusa noturna provenientes de grande parte do continente europeu, a

presença de elementos que remetem aos mitos e rituais dos caçadores siberianos constitui um

dado desconcertante mas não isolado.”3 Essa conclusão provisória possuí muito da que se

3 Idem, p. 136.

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encontra no final do livro, é uma das hipóteses que delineia o caminho seguido por Carlo Ginzburg. As batalhas pela fertilidade e as metamorfoses em animais iniciam o terceiro capítulo da segunda parte do livro como temas correlatos. Um processo inquisitorial de 1692, em Jügensburg na Livônia, revelou o lobisomem confesso Thiess, um velho de oitenta anos. O velho Thiess contou aos juízes que três vezes ao ano os lobisomens vão para o inferno “no fim do mar” (depois ele corrigiu: para “debaixo da terra”) com a finalidade de lutar contra o diabo e feiticeiros em prol das colheitas. Existiam, também, mulheres lobisomens, entretanto as moças eram uma exceção. As três noites nas quais os lobisomens lutavam pela fertilidade das colheitas e dos rios (também pela abundância de peixes), eram: a noite de santa Lúcia (antes do Natal), de são João e de Pentecostes. Esses relatos surpreenderam os Juízes que esperavam outra história. Sem compreender tal narrativa eles condenaram o velho lobisomem a dez chicotadas, penalidade bem mais branda das que se identificou o estereótipo do sabá. Os juízes tinham uma imagem completamente diferente dos lobisomens, estes seriam ladrões de gado ligados ao diabo e a feitiçaria, ou feiticeiros transformados em lobos. Relatos sobre homens capazes de se transformar em lobos são muito antigos, como o de Heródoto no século V a.C., e se espalham por muitos lugares, a América, a África e a Eurásia. Esse vasto contexto no qual se encontra o mito dos lobisomens – ou dos homens que se transformam temporariamente em animais como: leopardos, hienas, tigres, lobos e jaguares – permitiu o surgimento de hipóteses arquetípicas, segundo Ginzburg, obviamente não demonstradas. Existem diversos tipos de documentação medieval acerca dos lobisomens, que em geral, principalmente os literários, representam-nos como personagens paradoxais, vítimas do destino e, às vezes, até benéficas. Apenas nos meados do século XV a imagem do lobisomem como uma criatura contraditória vai ser transformada no estereótipo da criatura devoradora de crianças e rebanhos. É interessante notar que este é quase o mesmo período no qual se cristaliza a imagem da bruxa. Nider escreve em seu Formicarius sobre feiticeiros que se transformam em lobos. O Formicarius é um dos incunábulos da literatura demonológica, escrito por Johannes Kider entre 1435 e 1437 na Basiléia, durante o concílio. Outros exemplos são os processos do início do século XV no Valais, onde os acusados confessaram ter se transformado em lobo e atacado o gado. Nos primeiros relatos a respeito do sabá feiticeiros e lobisomens aparecem como homólogos, numa imagem fortemente consolidada. O relato de Thiess permitiu, assim como outras anomalias, o conhecimento de um estrato mitológico mais profundo, visto que seu conteúdo foge aos estereótipos esperados pelos inquisidores. Comparando o relato de Thiess aos dos Benandanti aparecem poucas diferenças. As batalhas periódicas de homens e mulheres, pela fertilidade, contra bruxas e feiticeiros consistem à intersecção entre os dois tipos de relatos. A natureza dos inimigos é aproximada e cada grupo possuía armas específicas. Os lobisomens utilizavam acoites de ferro, enquanto que os benandanti utilizavam ramos de erva doce. Os dois grupos eram compostos por quem nascia envolto ao pélico e o conservava junto de si na forma de um talismã. Esse fenômeno é amplamente documentado no folclore, até na crônica do príncipe Vseslav de Polock. Uma das diferenças entre o relato de Thiess e dos benandanti é o fato do lobisomem não mencionar as viagens em espírito, segundo Ginzburg isso é uma tentativa de contar experiências extáticas entendidas como reais. Outro relato acerca dos lobisomens, também na Livônia, é o tratado Christlich Bedecken und

Erinnerung Von Zauberey, redigido em Heidelberg em 1585 por Hermann Witekind. Segundo o relato, as transformações de bruxas e magos em animais seriam ilusões do diabo. Anos antes Witekind se encontrou com um lobisomem que estava preso. Conforme a descrição, o

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lobisomem se comportava como um louco, embora estivesse preso pulava como se estivesse ao paraíso. Na noite de Páscoa ele teria se transformado em lobo e fugido da prisão em direção a um grande rio, mas tivera que retornar devido às ordens de seu mestre. Witekind acreditava que o mestre do lobisomem era, na verdade, o diabo, o que o lobisomem parecia negar. Essa conversa tem outra versão, relatada no Commentarius de praecipuis generibus

divinationum, escrito em 1550 por Peucer. O texto contém detalhes não registrados à obra de Witekind. Os lobisomens, Segundo Ginzburg:

(...) se vangloriam de manter distantes as bruxas e combatê-las quando elas se transformam em borboletas; assumem (ou melhor, crêem assumir) forma de lobos durante os doze dias compreendidos entre o Natal e a Epifânia, induzidos pela aparição de um menino manco; são empurrados aos milhares por um homem alto, armado com uma maça de ferro, rumo às margens de um rio enorme, que atravessam enxutos, pois o homem separa as águas com uma chicotada; atacam o gado, mas não podem fazer nenhum mal aos seres humanos.4

O estereótipo negativo do lobisomem está bem distante desses relatos, detentores de outro fundo de crenças, que coincidem às confissões de Thiess. É interessante notar que a capacidade de se transformar em lobo é atribuída a grupos muito diferentes, distantes no tempo, no espaço e de tipos distintos: povos, famílias, habitantes de uma determinada região, pessoas predestinadas. Todavia existem elementos comuns: a transformação é temporária e segue um tipo de ritual. Esse rito consiste em deixar as roupas em algum lugar específico – sobre um carvalho (na Arcádia, segundo Plínio), ou no chão (após deixar as roupas urina-se em volta delas) – e atravessa-se água, parada (segundo Plínio) ou corrente (na Livônia, segundo Witekind). A travessia de águas é simbólica, nela foi entendido um rito de passagem. Uma cerimônia de iniciação ou a travessia do rio infernal que separava o mundo dos vivos do mundo dos mortos. O lobo era associado, no mundo antigo, ao mundo dos mortos, Hades porta como capuz uma cabeça desse animal. O período no qual os lobisomens germânicos, bálticos e eslavos se transformavam era as doze noites entre o Natal e a Epifânia, nas quais os mortos andariam pelo mundo dos vivos. No antigo direito germânico, se consideravam mortos os que eram banidos das comunidades, o termo que os denominava era wargr ou wargus, isto é, “lobo”. Desse modo, o êxtase é uma morte simbólica, tanto para os benandanti quanto para os lobisomens. A semelhança de elementos dispersos no tempo e no espaço acerca de mitos e ritos a priori desconexos releva um conteúdo comum: “(...) a identificação simbólica, na imobilidade do

êxtase ou no frenesi do rito, com os mortos.”5 Olao Magno escreveu em 1555 a sua Historia de gentibus septentrionalibus a respeito dos assaltos realizados por lobisomens a homens e ao gado durante a noite de Natal, na Prússia, na Lituânia e na Livônia. Além desse fato, ele descreveu a pilhagem aos depósitos de cerveja. Os lobisomens tomavam todo o vinho e o hidromel empilhando os tonéis vazios no meio das adegas. Olao considerava as metamorfoses fenômenos físicos reais. Dissertações sobre esse tema, redigidas um século depois nas universidades de Liepzig e Wittenberg, sustentavam que um sono profundo ou um êxtase precediam as metamorfoses. Então, as transformações deveriam ser sempre, ou quase sempre, consideradas imaginárias, 4 Idem, p. 146. 5 Idem, p. 180.

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diabólicas ou naturais. Outra linha é associada aos teóricos modernos, esses consideravam que os lobisomens eram, na verdade, jovens que participavam de seitas. Eles seriam sujeitos mascarados de lobo ou de encantadores, participariam de rituais nos quais se identificavam ao exército dos mortos. Essa conexão deve ser feita no plano simbólico. A presença da sede insaciável dos mortos nos relatos sobre os lobisomens, os feiticeiros do Valais, os benandanti e os mortos do Ariège foi o elemento inicial para reconstruir um estrato de crenças até então cristalizadas no deformado estereótipo do sabá. Retornamos ao início, a partir das batalhas noturnas – realizadas por lobisomens e benandanti contra bruxas e feiticeiros – se revela uma versão masculina do culto extático que se caracterizou, até agora, como predominantemente feminino. A partir de um testemunho friulano, se estabelece que nessa região existiu as duas variantes do culto extático: as batalhas noturnas e o batalhão dos mortos conduzido por uma figura mítica ou divindade (ora masculina, ora feminina). Os participantes dessas duas variantes do culto extático eram designados benandanti.

Apesar das exceções e variantes, surge uma contraposição das atividades apenas masculinas (guerra e caça) às atividades que permitiam a participação feminina (jogo). Nesse caso, a descrição de Herolt, na qual Diana lidera um exército, seria uma exceção. Ele acerta em caracterizar os dois grupos de fenômenos como oriundos de um estrato cultural de crenças comuns. “Mas o culto extático das divindades femininas noturnas, na grande maioria dos

casos praticados pelas mulheres, recorta-se como um fenômeno específico e relativamente

mais circunscrito.” 6

Por trás das divergências superficiais, uma analogia profunda surge entre os lobisomens e os benandanti: a) batalhas periódicas b) travadas em êxtase c) pela fertilidade d) contra bruxos e feiticeiros. As armas empunhadas pelos dois grupos, os maços de erva-doce e os acoites de ferro, devem ser entendidas como elementos isomorfos. Um caráter formal se delineia no âmbito folclórico, ao se nascer envolto ao pélico o indivíduo seria benandanti no Friul, ou lobisomem no contexto eslavo. Outro dado que reforça historicamente os isomorfismos da documentação é a presença de sangue eslavo no Friul. Na Ístria, na Eslovênia, na Croácia e ao longo da costa dálmata até Montenegro uma série de crenças se identifica às batalhas pela fertilidade. Os kresnik (e suas variantes locais) se reúnem a vampiros e feiticeiros nas encruzilhadas, principalmente aos quatro tempos, para batalharem em prol da fertilidade das terras ou para expulsar os malefícios (Muitas vezes o inimigo é estrangeiro). Os lutadores assumem a forma de animais – barrões, cães, bois, cavalos –, em muitos casos de cores opostas e às vezes os animais são pequenos como moscas. Os animais são, na verdade, os espíritos dos lutadores. Como no Friul, bruxas e feiticeiros de carne e osso eram considerados malandanti, almas dos mortos sem paz. As personagens antagonistas são versões opostas, muitas vezes consideradas maléficas, das protagonistas, mas do mesmo tipo: identificadas aos mortos. Os táltos, do folclore húngaro, possuem os mesmos elementos dos benandanti e dos kresniki. Homens e mulheres organizados por uma hierarquia militar, que nasceram com alguma particularidade física (com dentes, com seis dedos em uma das mãos, ou com o pélico), iniciados por um tálto mais velho, enfrentam bruxas e feiticeiros sob a forma de animais, entram em êxtase e vão ao mundo dos espíritos, recebem oferendas de camponeses, prestam serviços às comunidades (relacionados à chuva), revelam feiticeiros malignos, extorquem os camponeses e abandonam suas atividades depois de um período. A coesão formal da série esbarra na heterogeneidade cultural que habita seus fenômenos, visto que os táltos húngaros não fazem parte do âmbito lingüístico indo-europeu. 6 Idem, p. 110.

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Os ossetas se incluem no âmbito indo-europeu, descendem dos citas da Idade Antiga, dos rossolanos e dos alanos da Idade Média. O orientalista Julius Klaproth viajou pelo território osseta, as montanhas do Cáucaso setentrional, durante o século XIX. Ele se interessou pela língua e, principalmente, pela religião desse povo. Mais uma vez nos deparamos com os temas das viagens periódicas em êxtase, sob o lombo dos mais variados animais e objetos, o confronto com espíritos malignos para garantir a fertilidade dos campos, no período do natal ao ano novo. Desta vez quem realizavam tal façanha eram denominados Burkudzäutä. Outras populações próximas aos ossetas possuíam crenças análogas, como constatou o geógrafo e viajante turco Evliyâ Celebi em 1666. Evliyâ se encontrava em uma aldeia circassiana na “noite dos kondjolos (vampiros)”, nessa noite ele viu, junto a umas oitenta pessoas, uma batalha entre os kondjolos (vampiros), estrangeiros, e os uyuz (bruxos), circassianos. Eles voavam sobre os mais variados objetos – os objetos dos campeões locais eram análogos aos dos burkudzäutä ossetas, enquanto que dos vampiros não –, utilizavam cabeças de animais mitológicos (ou não) como armas. Após algum tempo carcaças de montarias começaram a cair do céu. Sete vampiros e sete bruxos circasianos caíram no chão tentando um chupar o sangue do outro. A batalha durou seis horas, quando amanheceu os combatentes desapareceram. Os elementos dessa narrativa, a respeito dos uyuiz circassianos, são mais ou menos parecidos aos relatos sobre os burkudzäutä ossetas. Um processo friulano de 1591 aproxima os burkudzäutä aos benandanti: Menichino de Latisania, um jovem vaqueiro do Friul, disse que o prado para onde ele se dirigia enquanto benandanti, para lutar pelas colheitas, era o “prado de Josafá” – exatamente para onde os burkudzäutä se dirigiam em espírito. Menichino também afirmou que só é possível chegar a tal lugar em um estado de morte temporária. Assim como para os celtas, as experiências extáticas dos burkudzäutä encontram referências nas epopéias conterrâneas. A epopéia osseta dos nartos narra à ida de Soslan, um herói desse ciclo de lendas, ao mundo dos mortos. Como nos mitos celtas, o lugar é uma planície na qual crescem todos os tipos de cereais e animais existentes no mundo. Lá donzelas dançam as margens de um rio onde se encontram mesas com alimentos raros. O herói tem muita dificuldade de escapar desse paraíso, é perseguido por demônios (os mortos) que lhe atiram flechas de fogo. O único elemento que se encontra presente em todos os componentes da série é a habilidade de entrar periodicamente em êxtase, Ginzburg também o atribuiu aos relatos do velho Thiess, porque achou razoável supor uma experiência extática. Durante o século XVII essa característica foi sendo paulatinamente atribuída aos lobisomens. As batalhas pela fertilidade possuem menor importância para os táltos. Apenas os burkudzäutä não possuem alguma marca física ou circunstância especial ligada ao seu nascimento que os predestinaria ao êxtase, todos exceto esses últimos têm uma predominância masculina. Os benandanti, kresnik e Táltos iniciam as atividades entre os sete e os 28 anos. Os benandanti e táltos sabem das suas vocações por outro membro do culto que aparece em sonho sob a forma, respectivamente, de espírito ou animal. Para os benandanti e kresniki ao caírem em êxtase à alma sai do corpo sob a forma de pequenos animais (ratos e moscas); isso pode ocorrer também sob a forma de animais maiores para os kresniki (barrões, cães, bois e cavalos), para os táltos (pássaros, touros e garanhões), para os lobisomens (lobos, ou excepcionalmente, cães, asnos e cavalos). Viajam na garupa de animais: os benandanti montam cães, lebres, porcos e galos; burkudzäutä montam cães, pombas, cavalos, vacas, crianças e objetos variados (bancos, pilões, foices e vassouras). Os táltos podem se transformar em chama e os benandanti podem se transformar em fumaça. O sono extático se dá em datas marcadas, como os quatro tempos (benandanti, kresniki) ou doze dias (lobisomens, burkudzäutä), e às vezes em dias aleatórios: três vezes por ano ou uma vez a cada sete anos – como no caso dos táltos. Os kresnik e os táltos lutam contra seus iguais das aldeias vizinhas ou de outros povos pela

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fertilidade dos campos; os inimigos dos benandanti, dos kresnik e dos lobisomens são as bruxas e os feiticeiros; os dos burkudzäutä são os mortos. Às informações citadas acima vêm, em quase todos os casos, de membros desses cultos extáticos que se enxergavam como figuras benéficas cumprindo funções necessárias a sociedade, contudo para as comunidades às quais esses indivíduos se inseriam esse poder era paradoxal. Ao identificar feiticeiros na comunidade os benandanti estabeleciam ressentimentos e hostilidades, os burkudzäutä poderiam trazer prosperidade ou doenças e os táltos chantageavam os camponeses. Alguns elementos circundam a série delineada, possuindo apenas algumas das características. Os mazzeri da Córsega batalhavam periodicamente à noite (entre os dias 31 de julho e 1º de agosto) contra mazzeri de outra aldeia. Os perdedores teriam maior número de mortos em suas comunidades. Também tinham o poder de prever as próximas pessoas a morrer, em experiências extáticas nas quais, impulsionados por uma força irresistível, caçavam animais que quando mortos revelavam em seus rostos o próximo indivíduo da comunidade a morrer. A disputa pelo menor número de finados em sua comunidade pode ser considerada uma variante formal das lutas pela fertilidade, dessa forma Ginzburg insere os mazzeri na série delineada até então. Mesmo os casos que não fazem referência ao êxtase e às lutas pela fertilidade não são automaticamente excluídos da série. No folclore do Peloponeso os kallikantzaroi são monstros, ora gigantescos ora diminutos, que cavalgam galos ou cavalinhos, têm membros monstruosos e são peludos, se transformam em todo tipo de animal, devoram comida (ou urinam nela) nas casas das pessoas, são guiados por um chefe manco. Essas figuras são muitas vezes associadas aos centauros de todos os tipos, criaturas que tem a capacidade de se metamorfosear em animais – inclusive em lobos. Primeiramente, Ginzburg delineou uma série baseada no êxtase e nas batalhas pela fertilidade, todavia encontrou outro material que não se encaixa nessa série monotética. Uma série que agrupa fenômenos classificados por contornos nítidos. No entanto, uma organização politética poderia revelar fenômenos com pouco ou nenhum traço documental, a partir de conexões formais. O critério adotado pela pesquisa ampliou bastante, no tempo e espaço, o âmbito cultural no qual o sabá se cristalizara e, também, de uma maneira imprevista: pela heterogeneidade dos contextos e a homogeneidade dos dados. Para resolver esse problema Ginzburg vai buscar as conexões históricas que levaram a essas convergências formais. Deste modo, os fenômenos que desencadearam o estereótipo do sabá se encontram no folclore, projetados em uma continuidade de longuíssima duração. Esses são os resultados da análise morfológica da série documental. A investigação acerca da historicidade dessas convergências formais revelou sua plausibilidade no contexto eurasiático. A lingüística prova as ligações culturais entre povos de línguas indo-européias e, também, prova contatos entre povos vizinhos, de línguas urálicas, por exemplo: húngaros e ossetas. Essa seria a ponte de transmissão dos mitos, ritos e cultos extáticos dos gregos aos celtas, através dos citas. Os “citas” não dominavam a escrita, são conhecidos por nós apenas mediante escavações arqueológicas e por relatos gregos, dos quais Heródoto produziu o mais antigo. Estas populações eram nômades e seminômades, entraram em contato com os gregos na região do mar morto. Vários objetos manufaturados por gregos foram encontrados em tumbas citas. A convergência entre Heródoto e uma documentação arqueológica sensacional encontrada em alguns túmulos nas montanhas do Altai oriental é esclarecedora. Mais precisamente em Pazyryk, alguns túmulos de 200 a 300 a.C. foram conservados quase intactos pelo frio e pelo gelo. Nesses túmulos foi encontrada uma bacia de bronze com as asas envoltas em casca de bétula, na qual sementes de cânhamo – de Cannabis sativa e Cannabis ruderalis janisch – estavam queimadas, e um estojo de couro contendo os mesmos tipos de sementes.

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Heródoto escreveu, após o enterro dos mortos os citas armavam uma espécie de tenda e queimavam, lá dentro, sementes de cânhamo em bacias para se purificar. Além disso, foram encontrados na mesma tumba: um instrumento de corda e um tambor, similares aos utilizados pelos xamãs siberianos dois milênios depois. Há um paralelo entre a arte animalista (ou arte das estepes) – objetos ornados com decorações zoomorfas, oriundos de uma região entre a China e a península escandinava, nos séculos 1000 a.C. a 1000 d.C. – e a dispersão das crenças ou práticas xamânicas. Isso nos possibilita outra via para datar e para legitimar a hipótese da dispersão do substrato cultural xamânico estudado por Ginzburg. Através de uma mediação cita, os elementos da arte das estepes se difundiram para as artes dos sármatas, escandinavos e celtas. Essa é uma hipótese controversa, mas que possuí verossimilhança, segundo o historiador italiano. Para tanto, a ligação entre a cultura trácia e a celta é representativa. A hipótese de Ginzburg, especificamente nesse caso, é: os citas mantinham contato com populações das estepes da Ásia central, que possuíam sangue mongol e carregavam consigo tradições xamânicas. Seriam eles os responsáveis por difundir mitos, ritos e cultos extáticos entre os gregos do Mar Morto. Os burkudzäutä ossetas caiam em êxtase periodicamente, quando se dirigiam ao mundo dos mortos. Os ossetas eram descendentes longínquos dos citas. Os citas chegaram aos Bálcãs no século VI a.C. após derrotar os trácios. Os celtas, em um impulso expansionista, dominaram a região no século IV a.C., fundando colônias gálatas na Ásia menor. Esse contato seria o elo histórico que uniria a homogênea série morfológica. A correspondência das deusas noturnas e a presença dos cultos extáticos se tornam historicamente documentados. “A presença de variantes ou reelaborações ligadas a contextos

culturais específicos não contradiz a hipótese de um esquema comum: a viagem extática pelo

mundo dos mortos, de modo geral realizada sob a forma animal.” 7 A presença de elementos xamânicos em sagas celtas, lendas irlandesas sobre lobisomens e as convergências entre os romances arthurianos e a epopéia osseta parecem menos inexplicáveis se considerarmos os contatos entre celtas e citas na Europa central e na região do baixo Danúbio. Assim sendo, as batalhas travadas em êxtase pela fertilidade, realizadas pelos burkudzäutä ossetas e pelos lobisomens livonianos, podem começar a serem entendidas como fenômenos de uma mesma natureza xamânica. Até agora foi delineada uma “(...) hipótese de um continuum eurasiático que compreende, ao

lado de xamãs tungueses, no ‘aidi lapões e táltos húngaros, também personagens

provenientes do âmbito cultural indo-europeu, como kresniki, benandanti, mulheres

seguidora da deusa noturna e outros.” 8 Carlo Ginzburg construiu a série a partir de um

itinerário morfológico, comparando características dentro de um conjunto pertinente; sendo muitas vezes parcial. As convergências propostas pelo autor, de uma homogeneidade encontrada no âmbito cultural, distribuídas por toda Eurásia – em povos de culturas e línguas distintas – poderiam, em teoria, ter três explicações possíveis: a) difusão, b) derivação de uma fonte comum, c) presente em características estruturais da mente humana. Até agora se apresentou explicações pertinentes a categoria a, Ginzburg se pergunta se esta resposta é aceitável. Foi delineada, até agora, uma explicação que segue as linhas (a) e (b), uma difusão histórica de um substrato cultural oriundo de algum lugar das estepes asiáticas rumo a Europa. Contudo, a existência de convergências de temas de fundo extático – do êxtase como uma morte temporária – nos ritos, mitos, lendas e crenças não é uma explicação. Isso foi observado pelo próprio Ginzburg. Uma explicação com base nas estruturas mentais do homem está para ser combinada com as hipóteses anteriores. 7 Idem, p. 193. 8 Idem, p. 194.

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O segundo capítulo da terceira parte inicia-se com a narrativa da descoberta de um tema mítico quase imperceptível por Lévi-Strauss em sua tetralogia denominada mitológicas. Esse detalhe foi chamado manqueadura mítica e é encontrado em mitos e, principalmente, em ritos distribuídos pelas Américas, China, pela Europa continental e pelo Mediterrâneo. Esse tema mítico foi encontrado nos ritos que buscam abreviar uma estação do ano em detrimento à outra, segundo Lévi-Strauss, oferecendo o diagrama perfeito do desequilíbrio pretendido. Esse fenômeno remonta à dança claudicante do paleolítico, utilizada, também, para abreviar uma estação. Carlo Ginzburg levanta o que está para se tornar à convergência que guiará todo o capítulo, apesar de não ser o único objeto analisado no capítulo. Édipo é uma figura manca, o que o antropólogo francês já notara na obra Antropologia estrutural, mas não relembra nas Mitológicas. Ele teria sido ferroado aos tornozelos quando fora abandonado, logo após nascer. O nome Édipo significa “pé inchado” em grego arcaico e tem relação às figuras ctônicas e às divindades subterrâneas. O mito de Édipo faz parte de um enredo fabular no qual o herói realiza uma tarefa difícil e se casa com a princesa. No entanto há uma variação: o herói realiza a tarefa difícil, mata o rei e casa-se à princesa. É relevante ressaltar que os dois autores relatados, nessa parte do texto, rechaçam interpretações históricas que buscam a versão original dos mitos. Outro ponto importante é a comparação do mito edípico a um rito iniciático possível e remoto. O rapaz seria submetido a feridas simbólicas e ao exílio. Apesar de não restarem na Grécia muitos traços de algum costume desse tipo, existem muitos traços desse em outras culturas. Os ritos iniciáticos deixaram muitas marcas nas fábulas de magia, nas quais se decifrou a ida do herói ao reino dos mortos (essa é a metáfora que no mito se refere à iniciação) e o seu, posterior, casamento com a rainha. A viagem rumo ao além estaria presente no mito de Édipo na referência a sua presença às alturas selvagens do Cíteron e na luta contra a esfinge (depois atenuada como o enigma). O mito de Édipo segue um enredo fabular antigo, a estrutura familiar seria, nesse caso, um elemento adicionado posteriormente e teria modificado profundamente o enredo fabular mais antigo. Esse mito estaria, então, imerso em um grupo de mitos e sagas dispersos por uma área muito ampla – do Sudeste asiático à Europa, no norte da África e ramificações do mar Ártico a Madagascar – fundada em uma mesma estrutura: um rei fica sabendo, por um oráculo, que um príncipe (seu filho, neto, sobrinho, enteado ou genro) lhe matará e, em seguida, lhe sucederá, o rapaz é exilado, passa por várias provas, volta, mata o rei e assume o seu lugar – casando com sua filha ou sua mulher. Estes são os tipos de mitos gregos de estruturas análogas à descrita: 1) Parricídio voluntário ou involuntário; 2) morte voluntária ou involuntária do tio; 3) morte voluntária ou involuntária do avô; 4) morte do futuro sogro. Essa série se baseia nas atenuações, radicadas numa versão hipotética que o parricídio e o incesto seriam voluntários. Segundo Carlo Ginzburg:

De fato, a castração ou a perda do poder de divindades celestes (por definição, imortais), bem como as alternativas indicadas, podem ser consideras variantes atenuadas do parricídio voluntário. De maneira análoga, Édipo, que se une involuntariamente a Jocasta; Télefo, que evita no último momento consumar o matrimônio com Augéia; e Telégono, filho de Circe, que desposa a madrinha Penélope (enquanto seu duplo, Telêmaco, filho de Penélope, casa com Circe), constituem versões cada vez mais diluídas do incesto voluntário com a mãe. Portanto, esses mitos

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parecem ligados por uma trama muito densa de semelhanças estruturais, às vezes reforçadas por convergências de caráter mais específico.9

Essas atenuações revelam as convergências no âmbito estrutural desse tipo de história, caracterizado por Ginzburg como pertencente conjunto das fábulas de magia. Outro elemento que entra no âmbito das atenuações é a manqueadura mítica (ou deambulação mítica). As atenuações desse fenômeno se referem a desequilíbrios relacionados aos membros locomotores: Jasão são se apresenta ao tio usurpador com apenas uma sandália; Perseu recebe de Hermes uma de suas sandálias antes de combater a Górgona; Télefo é ferido na perna esquerda por Aquiles após matar seus primos, filhos de Aleo; Teseu encontra sob uma rocha a espada e as sandálias douradas de Egeu, assim será reconhecido em sua pátria; Zeus que teve seus tendões cortados por Tifeu. Assim sendo, a deambulação mítica é simbolizada nos mitos gregos por: a) feridas ou deformações nos pés e nas pernas, b) um pé de sandália, c) dois pés de sandálias. Podendo a primeira característica ser substituída por outros defeitos físicos: um só olho, baixa estatura ou gagueira. Outro mito grego ligado a essa temática fabular é o mito de Aquiles. Esse herói faria parte do mesmo núcleo fabular, mas como uma criança fatal que falha. Aquiles seria filho de Tétis – que possuí características eqüinas e teve seus pés substituídos por similares de prata devido a uma tentativa de estupro que sofreu de Hefesto, o deus ferreiro dos pés tortos –; foi imerso no rio dos mortos para se tornar invulnerável, mas seu calcanhar permaneceu vulnerável – ou foi exposto ao fogo e assim ficou com seu calcanhar queimado, substituído por o de um gigante “hiperveloz” –; é conhecido como “pé-veloz”; em um poema de Alceu, do final do século VII a.C., Aquiles é definido como “senhor dos citas” – os citas são conhecidos por ser um povo de cavaleiros nômades das estepes –; Aquiles teria sido treinado por Quiron, um centauro; e teria sido enterrado em Leuca, uma ilha ocupada por citas. Os citas eram ligados a imagem mítica dos centauros, porque o termo kentauros, segundo Ginzburg, talvez tenha a sua origem no idioma falado pelos citas. O autor propõe os centauros como uma reelaboração da imagem dos nômades das estepes a cavalo. Na ilha de Quios, outrora habitada por citas, praticava-se um ritual, documentado pelo erudito Leone Allaci, no qual eram queimados os pés das crianças nascidas entre o Natal e a Epifania para que as mesmas não se tornassem kallikantzaroi – espíritos monstruosos que nesses mesmos dias surgiam do mundo subterrâneo e vagavam pela terra. Esse rito se associa ao mito da imersão de Aquiles ao fogo, pois desse modo ele se tornaria invulnerável. Os kallikantzaroi são associados aos centauros, como já foi dito. Aquiles é filho de Tétis, uma deusa com características eqüinas, e foi treinado por Quiron um centauro, sendo que o herói foi algumas vezes identificado aos citas, povos que possuíam elementos xamânicos e eram associados aos centauros. Ginzburg identifica deformações ou desequilíbrios no andar em deuses, homens e espíritos nos limites entre o mundo dos vivos e dos mortos. O fato de Jasão e Aquiles terem sido treinados pelo centauro Quiron não pode ser considerado uma coincidência. O primeiro tem várias simetrias com Filotete. Esse último participara da expedição dos argonautas, dirigida por Jasão. Logo após o término da expedição, Filotete aportou na ilha de Lemnos, onde Jasão outrora erguera um altar dedicado a deusa Crise. Ao se aproximar do altar, uma serpente o picou no pé. Em alguns mitos – Medéia, Dido e Dionísio – o monossandalismo seria um símbolo, que através dum contato mais direto com o solo, busca estabelecer um contato ou uma conexão às potências subterrâneas. Analisando de maneira mais abrangente, o monossandalismo ou a manqueadura mítica estão ligados simbolicamente a uma iniciação e, portanto, a uma morte. Filotete é abandonado por Jasão e seus companheiros nessa ilha deserta, na tragédia de Sófocles, devido ao fedor emanado de seu pé 9 Idem, p. 204.

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ferido. O jovem filho de Aquiles, Neoptólemo, desembarcou nessa mesma ilha com Ulisses para juntos roubarem o arco de Filotete, que traria a vitória na guerra de Tróia. A condição juvenil, pré-iniciática, de Neoptólemo é comparável a de Filotete, enquanto um busca a condição adulta, o outro busca a reintegração à vida civil. Voltando a correspondência de Jasão e Filotete, o primeiro foi dado como morto pelos pais para escapar à violência do tio. Foi criado às escondidas pelo centauro Quíron. Após sair da água do rio Anauros com o pé esquerdo descalçado o jovem Jasão transcende uma morte fictícia, uma infância e adolescência passadas num território selvagem, juntamente ao centauro Quíron, meio homem, meio animal e seu mestre. Simbolicamente, o pé calçado de Jasão e o pé ferido de Filotete se referem à iniciação e à morte. As convergências nas narrativas sobre a infância dos mais variados heróis, alguns já foram citados por Ginzburg outros vão formar uma série maior, estão presentes num esquema narrativo muito difundido entre o Mediterrâneo e o altiplano iraniano. Nesse esquema encontramos muitos fundadores de impérios, religiões e cidades, como: Rômulo, Caeculus, Ciro, Moisés e até Jesus. Desta forma Ginzburg descreve essa série:

As semelhanças entre esses relatos foram analisadas muitas vezes, de pontos de vista diversos, no geral não comunicantes: psicanalítico, mitológico, histórico e, nos últimos tempos, narratológico. Dentre os elementos mais recorrentes nessas biografias, encontramos: a profecia sobre o nascimento, apresentada como uma desgraça para o soberano reinante, com o qual, às vezes, o herói tem relações de parentesco; a segregação preventiva, em locais fechados ou até consagrados, da mãe indicada na profecia (assim o nascimento, que ocorre a despeito de tudo, é muitas vezes atribuído a um deus); a exposição ou a tentativa de matar o recém nascido, abandonado em lugares selvagens e inóspitos; a intervenção protetora de animais, de pastores ou de ambos, que nutrem e educam a criança; o retorno à pátria, acompanhado de provas extraordinárias; o triunfo, a manifestação de um destino adverso e, enfim, a morte, em alguns casos seguida pelo desaparecimento do cadáver do herói. Mitos como os de Édipo, Teseu e Télefo repetem em parte esse esquema.10

Desse modo, Carlo Ginzburg isola três conjuntos de mitos: a) sobre o filho, sobrinho, neto, ou genro fatal; b) mitos e ritos ligados a deambulação; c) mitos e lendas sobre o nascimento do herói. Esses conjuntos se unem pela iniciação entendida como morte simbólica. O roubo de gado, juntamente aos conterrâneos, faz parte da biografia lendária do jovem herói por todo âmbito cultural indo-europeu. Essas histórias se inserem no modelo mítico, presente no mesmo âmbito cultural, do roubo do gado de um ser monstruoso no além. O historiador italiano aproxima esses mitos às viagens extáticas xamânicas realizadas para conseguir caça para a comunidade. Como as batalhas pela fertilidade dos benandanti, dos lobisomens e dos burkudzäutä. Essa estrutura mítica, aponta Ginzburg, talvez fosse inicialmente de sociedades de caçadores e posteriormente adaptadas em sociedades de pastores e de agricultores. Hércules que seria uma divindade do tipo “senhora dos animais” é associados aos citas. Teutares, seu mestre, é às vezes representado com roupas citas. Édipo, Tirésias e Melampo são equivalentes na mitologia grega, três figuras ligadas ao estrato cultural xamânico isolado até aqui. Melampo e Tirésias têm o ouvido aguçado, enquanto Édipo e Melampo têm deformidades deambulantes, Tirésias e Édipo são cegos (Édipo cega a 10 Idem, p. 210-11.

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si mesmo após descobrir o incesto que cometeu). Essas três figuras resolvem seus conflitos pela inteligência e adivinhação. Melampo introduz o culto a Dionísio, o qual era associado, segundo Ginzburg, de maneira especial ao desequilíbrio no caminhar. Dionísio nasceu da coxa de Zeus. Dionísio Sphaleotas, “que faz vacilar”, venerado no santuário de Delfos, era relacionado às grous, quando essas se mantêm sob apenas uma perna. O jogo askoliasmos era realizado nas festas de Dionísio Leneu, que se pulava sob uma perna só. Askoliazein é o termo que os antigos gregos utilizavam para denominar o costume das grous de se apoiarem sob uma perna só. Télefo era o soberano da Mísia. A frota dos gregos, em que Aquiles se encontrava, aportou por engano na Mísia. Houve uma batalha e Aquiles perseguiu Télefo. Esse caiu por trama de Dionísio, porque na Mísia não se pagava homenagens suficiente para essa divindade. Dessa forma, Aquiles feriu Télefo na perna. O mesmo traço simbólico esta presente no mito de três modos diferentes e também no rito. Na China antiga, no século IV .C., havia o passo de Yu que era uma dança assimétrica saltitante. Essa dança era associada a pássaros míticos de uma perna só e a mulheres xamãs que executavam tal dança até cair em transe. Yu era um herói semiparalítico, fundador e ministro de uma dinastia, possuía poderes xamânicos (podia se transformar em urso e controlar as inundações). As festividades de ano novo correspondiam na China, Japão, Europa e Balcãs. Na China o já falado passo de Yu era associado a roupas bicolores, negras e vermelhas, e era utilizado para expulsar os Doze Animais que representavam as doenças e os demônios. Os kallikantzaroi gregos eram liderados pelo “grande kallikantzaros”, um coxo, e os lobisomens livônios por um menino manco. A coxeadura mítico-ritual, aparentemente superficial, se revelou um fenômeno profundo e complexo. Carlo Ginzburg sugere a assimetria deambulatória como um símbolo transcultural embasado na imagem corpórea bípede do ser humano, o que altera essa imagem no plano simbólico expressa uma experiência além dos limites humanos (simétricos). Segundo o historiador italiano:

A investigação que levamos a cabo mostrou que o elemento universal não é representado pelas unidades singulares (os coxos, os homens divididos ao meio, os portadores de uma só sandália), mas pela série (por definição, aberta) que os incluí. Mais precisamente: não pela concretude do símbolo, mas pela atividade categorial que, como veremos, reelabora de forma simbólica as experiências concretas (corpóreas). 11

Ginzburg busca, assim, uma alternativa para as explicações arquetípicas, as convergências não são universais e nem uma explicação em si, mas devem ser analisadas caso a caso. O autor afirma que o erro dos pesquisadores arquétipos é isolar símbolos mais ou menos difusos e considerá-los “universais culturais”. Em contrapartida, as semelhanças entre as fábulas de todo o mundo é uma questão decisiva e não resolvida. A fábula da Cinderela se espalha por todo o globo, muitas versões desse conto apresentam elementos xamânicos: o monossandalismo, a viagem ao mundo dos mortos (o castelo do príncipe), o confronto com os antagonistas (as irmãs) e animais que ressuscitam dos ossos. Ginzburg considera todas as versões dessa fábula como partes de um corpo que seria a fábula. O principal elemento isolado por Ginzburg no conto da Cinderela é a ressurreição de animais a partir de seus próprios ossos, esse tema insere a Cinderela no conjunto de divindades denominado, até aqui, como “senhora dos animais”. As versões nas quais se encontram a 11 Idem, p. 219.

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coleta dos ossos foram encontradas na China, Vietnã, Índia, Rússia, Bulgária, Chipre, Sérvia, Dalmácia, Sicília, Sardenha, Provença, Bretanha, Lorena, Escócia e Finlândia. A esse tema é associado ao mito do osso que falta, mito no qual a ressurreição é incompleta. O osso perdido é substituído por um objeto semelhante, um graveto ou o osso de outro animal. Esse tema se refere diretamente à deambulação mítica, o herói que vai ao mundo dos mortos volta com uma marca assimétrica, ou volta sem algo. As representações de tensões familiares é um tema presente na fábula da Cinderela como no mito de Édipo, Ginzburg propõe que esse tema se desenvolveu em épocas muito antigas no tronco narrativo da fábula de magia. O conto de Pele-de-asno é muito próximo ao de Cinderela, sendo considerado pelo autor como um Édipo invertido. No mito de Édipo há uma união involuntária entre o filho e a mãe, o pai de Pele-de-asno se une voluntariamente a filha (a própria Pele-de-asno). O homem dividido ou a coleta de ossos para a ressurreição de animais existem na Eurásia, América Setentrional e África continental. A variante do osso que falta não existe na África continental, assim como a fábula da Cinderela. Existe uma correspondência entre a fábula de Cinderela, o mito do osso que falta e o rito da escapulomancia, rito no qual se advinha o futuro a partir da omoplata de animais sacrificados. A escapulomancia existe numa região onde as fronteiras são: a leste o estreito de Bering, a oeste as ilhas britânicas, ao sul a África setentrional. Em suma, a ausência desses três fenômenos na África continental é relacionada, por Ginzburg, a ausência do xamânismo nessa mesma área. Na África continental existem os fenômenos de possessão ao invés dos xamânicos. A convergência entre os mitos e ritos da coleta dos ossos e o sapato ausente se dá justamente no ir e voltar do além. O xamã é feito em pedaços vai e volta do além, onde perde algo. O mito de Pélope é uma associação grega à escapulomancia e à ressurreição a partir dos ossos. O pai de Pélope mata e ferve seu filho em pedaços, com o intuito de ludibriar a onisciência dos deuses. Apenas Deméter caiu na arapuca. Os deuses devolvem a vida para Pélope após perceberem a enganação, no entanto faltava um osso do ombro de Pélope que foi substituído por um pedaço de marfim. Pélope faz parte do núcleo fabular em que o herói mata o futuro sogro. Pélope não se torna manco após voltar do mundo dos mortos, contudo uma atenuação o aproxima do carneiro: esse caprino o representa no rito. Para um animal quadrúpede a falta da espádua significa coxear. No mito Dionísio é fervido e assado – em algumas variantes ele é devorado e ressuscitado, tendo seu coração reconstruído. No ritual de sacrifício grego se comia as vísceras assadas no espeto e as carnes cozidas, sendo essa ordem necessária. Assim, no sacrifício tradicional grego se comia a carne cozida – Prometeu deu o fogo para o homem –, já no sacrifício dionisíaco se recusava o fogo – a carne era consumida crua, quase viva, após um sangrento ritual – e os pitagóricos renegavam o consumo da carne por essa ser um obstáculo a perfeição divina. Ólbia era uma ilha habitada por citas, lá existia um templo de Dionísio. A religião de Dionísio possuía elemento xamânicos, contudo os citas estranhavam os ritos dessa religião. O culto a Dionísio possuia, também, elementos possessivos. Segundo Carlo Ginzburg, os elementos xamânicos são sempre reelaborados na civilização grega e devem ser buscados nos detalhes, como a assimetria deambulatória no mito e no ritual. É justamente essa assimetria que marca os protagonistas dos mitos gregos centrados na instituição do sacrifício sangrento: Dionísio, o deus que vacila, e Pitágoras, o filósofo mago da coxa de ouro. Outra personagem da mitologia grega associada à assimetria deambulatória é Prometeu, através da sua correlação à Hefesto – o deus fabril das pernas tortas. Amirani, o Prometeu do Cáucaso, rouba o fogo de nove Dev, demônios, sendo um deles manco. Na fábula de Sbadilon, uma fábula montuana, o herói vai para o inferno e volta com a ajuda de uma águia

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que devora seu calcanhar, essa fábula é muito parecida com o mito de Amirani, que por sua vez lembra prometeu. O autor propõe uma mudança de abordagem: das convergências de detalhes que remetem a um profundo substrato cultural xamânico, para uma abordagem em que um isomorfismo no âmbito do mito se refere a estruturas diferentes. Nas palavras do autor:

Guiados por esse detalhe, mais uma vez deparamos, ao longo de uma via transversal, com a figura da deusa noturna ressuscitadora de animais (parte 2, capítulos 1 e 2). Um percurso igualmente periférico nos permitirá ver, numa perspectiva diferente, fenômenos como as batalhas noturnas e as mascaradas rituais (parte 2, capítulo 3 e 4). Até agora, analisamos um traço mítico e ritual em contextos extremamente heterogêneos, mostrando que à persistência da forma correspondia substancial constância do significado. Agora, examinamos a situação oposta, em que a ema forma quase idêntica correspondem conteúdos diversos. Porque a mesma fora se manteve?12

A forma idêntica que Carlo Ginzburg menciona é uma estrutura mitológica similar, a divisão dualista. Essa divisão faz referência a estruturas sociais completamente diferentes, em povos completamente diferentes: os vogule-ostíacos e os romanos. Os vogules-ostíacos dividem a sociedade, os animais e os vegetais em duas metades, eles são um povo dualista. Os romanos realizavam periodicamente o ritual denominado Lupercália. Nesse rito se divide os participantes em dois grupos que disputam uma corrida nudista em prol da fertilidade. É interessante notar que os mitos relacionados aos dois fenômenos dualistas são muito parecidos. O historiador italiano discute o que é humano, fala do simbólico e do desenvolvimento desse simbólico na infância, a partir de Piaget e Freud. Então, semióforos são objetos portadores de significado, comunicam o visível com o invisível, eventos e pessoas distantes no espaço e no tempo – inclusive seres e coisas que se encontram além dessas dimensões, como: mortos, ancestrais e divindades. O ritual de recolher os ossos dos animais mortos para ressuscitá-los comunica o visível e o invisível. Para os povos caçadores o mundo do homem (da experiência sensível) é dominado pela carestia, já o mundo que se encontra além do horizonte é cheio de animais, pois se identifica com mundo dos mortos. O rito da coleta de ossos funciona na medida em que os animais ressuscitados surgem no horizonte. Em todos os casos nos quais a sociedade se divide em dois foi reconhecido a expressão da oposição suprema: entre mortos e vivos. Ginzburg concluiu a mesma coisa a partir dos cultos extáticos europeus. Nas batalhas extáticas foi percebida uma afinidade entre os protagonistas e os mortos. As Lupercálias seriam equivalentes às batalhas extáticas, elas ocorriam em um período consagrado aos mortos. Nesse ritual disputava-se uma corrida entre dois grupos iniciáticos correspondentes, mas assimétricos, com a finalidade de promover a fertilidade. Para os vógules-ostíacos a carne crua é destinada a metade superior da sociedade, já os deuses gregos se alimentam dos ossos. Os alimentos menos apetitosos, ou não comestíveis, são hierarquicamente superiores. Em quase todos os grupos estudados por Ginzburg nesse livro está presente a analogia entre animais e mortos, os animais que ressuscitam surgem no horizonte e vêm do mundo dos mortos. Lembrando que Carlo Ginzburg caracterizou a estadia de Édipo, e outros heróis, nas florestas selvagens como viagens de xamãs aos mundos mortos. Assim, aproximar os mortos e os animais remete às divindades caracterizadas como “senhoras dos animais”, lembrando 12 Idem, p. 238.

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que elas ressuscitavam animais a partir dos ossos, eram portadoras da fertilidade e da abundância. A bolsa amniótica, ou pélico, é outra referência simbólica à morte, vários ritos e mitos possuem elementos que a representam. No trecho a seguir Ginzburg estabelece vários paralelos a essa referência simbólica:

Vemos aflorar duas séries de equivalências simbólicas: a) bolsa amniótica ou pélico / pele de animal / manto ou gorro que cobre o rosto; b) benandanti ou kresnik / lobisomens / xamãs / mortos. “Hás de vir comigo, pois tens uma de minhas coisas”, havia intimado “certa coisa invisível, [...] a qual tinha parecença com homem”, surgindo “em sonho” ao benandante Battista Moduco, “Uma de minhas coisas” era a “camiseta” dentro da qual Battista nascera e que trazia em volta do pescoço. O pélico é objeto que pertence ao mundo dos mortos – ou aquele dos não nascidos. Objeto ambíguo, liminar, que caracteriza personagens liminares.13

Os mitos e ritos cuja temática é a morte possuem também a idéia de ressurreição, envolver ou esconder são metáforas do útero materno. O útero como uma metáfora para a morte está, como a coxeadura, se referindo a uma experiência comum a todos os seres humanos, independente da cultura. Todos os homens e mulheres nascem, tem por referência o andar sobre duas pernas e morrem, estaria aí o porquê da transculturalidade desses símbolos. A transmissão das estruturas profundas do mito e do rito é inconsciente, a das estruturas da linguagem também o é. Isso não quer dizer que exista um inconsciente coletivo. Segundo Carlo Ginzburg, a metáfora seria a principal categoria inconsciente reguladora da atividade simbólica, presente em mitos e ritos. Segundo Ginzburg: “A documentação que acumulamos prova, superando qualquer dúvida

razoável, a existência uma subterrânea unidade mitológica eurasiática, fruto de relações

culturais sedimentares durante milênios.”14 O autor cita Lévi-Strauss, na nota 257, página 370, que afirmou a impossibilidade de negar contatos entre culturas apenas pela falta de provas da existência do contato. Ginzburg aproxima o antiguíssimo substrato cultural xamânico à peste negra e ao complô, os bacilos da peste chegaram à Europa no final do século XIV e algumas décadas depois as velhas crenças já assumiam um sentido diabólico nos processos inquisitoriais. Por volta de 1440, o papa Eugênio IV prega contra o antipapa, mencionando crenças oriundas do arco alpino ligadas ao substrato cultural xamânico. O estereótipo do sabá começa a se espalhar pela Europa juntamente a perseguição. O complô, o estereótipo do sabá e a perseguição (a bruxas e feiticeiros) só tiveram essa repercussão devido à afinidade desses elementos na cultura erudita e na cultura popular. O medo para com os que não se encontram perfeitamente inseridos na sociedade, que resultou no complô e na perseguição, tem o seu eco num tema muito antigo: a antipatia dos recém mortos aos vivos. Antes da cristalização do estereótipo bruxas e pássaros – que sugavam sangue ou leite materno, matavam ou roubavam lactantes – eram associados a pássaros ou insetos que representavam (ou eram) as almas dos mortos. Após tal cristalização, as bruxas não eram mais pássaros ou insetos, eram mulheres de carne e osso – instrumentos do demônio. O autor concebe a sepultura como um rito contra os mortos, dessa forma, queimar bruxas e feiticeiros teria um valor simbólico de purificação. 13 Idem, p. 246. 14 Idem, p. 248.

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Existiram casos documentados nos quais o estereótipo simplesmente não se cristalizou, o Oulx, localizado no Val do Chisone no Piemonte ocidental, é um desses lugares. Carlo Ginzburg relembra que para haver a materialização do sabá deveria existir uma disponibilidade do acusado em relatar tais coisas, mesmo sob tortura, e dos juízes em obter confissões de bruxaria. No final do livro o historiador italiano acaba por discutir a possível participação de alucinógenos nessa temática. As drogas não poderiam convergir em tais elementos por si só, por trás dos cultos extáticos deveria haver necessariamente o substrato cultural xamânico. De qualquer maneira, não nenhum indício que prove a utilização necessária de alucinógenos para se atingir experiências extáticas, muito menos nos casos estudados por Carlo Ginzburg. Enfatizando mais uma vez: todos os mitos que confluíram no estereótipo do sabá reelaboraram o ir e voltar do além. As palavras finas do autor são reveladoras: “O que se

pretendeu analisar aqui não foi um conto entre tantos, mas a matriz de todos os contos

possíveis.”15

15 Idem, p. 265.

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2. Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade em História noturna

Neste capítulo buscamos demonstrar as convergências de pensamento de Claude

Lévi-Strauss e Mircea Eliade na obra História noturna. O primeiro autor é de longe mais

importante porque ele está presente no método de análise de Carlo Ginzburg, ora de forma

explícita, ora de forma implícita. O segundo autor é utilizado por Ginzburg, principalmente,

para a caracterização do substrato folclórico xamânico que permeia a argumentação final e

decisiva do livro. Existem divergências de método entre os dois autores, que os levam a

conclusões diferentes. Contudo, as idéias de Eliade e de Ginzburg parecem convergir em

alguns pontos e se distanciar em outros. O objetivo desse capítulo seria, então, revelar as

convergências da obra estudada com o pensamento do antropólogo Claude Lévi-Strauss –

tanto o que está explícito, quanto o que está implícito no texto – e o desenvolvimento das

críticas e das utilizações que Carlo Ginzburg faz das idéias de Mircea Eliade.

A maneira como Ginzburg constrói a história foi teorizada no ensaio “Sinais”

presente à obra Mitos, emblemas e sinais. A busca pelos detalhes parece transformar a

pesquisa historiográfica em uma investigação policial de Sherlock Holmes, digo isso porque

essa personagem foi citada nesse ensaio, assim como Freud e Morelli, com a intenção de

revelar algo que esses exemplos teriam em comum com o historiador. Para Carlo Ginzburg, a

intuição, a busca por indícios que revelam outras coisas (como histórias), seria a base na qual

se fundaria a história e até a medicina. Essa estrutura de pensamento foi chamada por

Ginzburg de “paradigma indiciário”, todavia ela já estaria com a humanidade há muito tempo.

Ogawa me mostrou a fonte da qual Ginzburg retirou esse paradigma. Segundo Ogawa16, o

pensamento de Lévi-Strauss serve de base para formar o que seria o paradigma indiciário de

Ginzburg, o antropólogo francês defende a existência de dois tipos de ciência: a ciência do

homem primitivo baseada na intuição e a ciência do homem moderno. Essas duas ciências

constituiriam dois caminhos diferentes de se resolver problemas. Em suma, Claude Lévi-

Strauss já faria parte do invisível que sustenta o visível no pensamento do historiador italiano.

Não seria esse o único autor que, segundo Ogawa, embasa o pensamento de Ginzburg,

Wladimir Propp e Wittgenstein estão presentes nessa lista, mas são autores que extrapolam os

objetivos desta monografia e a capacidade de quem vos escreve – poderiam ser abordados em

pesquisas futuras.

16 OGAWA, Carlos Eduardo de Almeida. História, retórica, poética e prova: a leitura de Carlo Ginzburg da retórica de Aristóteles. Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo São Paulo, 2010, P. 46.

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Ogawa escreve que Carlo Ginzburg teria substituído, em História noturna, o

conceito de mentalidade pelo de estrutura, de Lévi-Strauss. No prefácio de 1972 de

Andarilhos do bem o conceito de mentalidade é criticado pelo historiador italiano por não

possibilitar a explicação dos cultos agrários do Friul. Lévi-Strauss, desde os anos 40,

negligenciava a história. Paulatinamente, ao longo do século XX, sua consideração para com

essa disciplina foi aumentando, mas ele não realizou nenhuma pesquisa que levasse em conta

a diacronia. Recentemente, em 1983, Claude Lévi-Strauss publicou um ensaio no qual a

historia e a antropologia são convidadas a convergir quando a historiografia capta fenômenos

profundos. Em suma, trazer à tona a unidade de fenômenos até então considerados

heterogêneos. As noções estruturalistas são repensadas por Ginzburg, principalmente no que

toca à diacronia, nas palavras do autor:

As convergências entre o programa de pesquisa delineado por Lévi-Strauss e o livro que escrevi parecem bastante fortes. Mas as divergências são igualmente importantes. A primeira consiste na recusa da função, circunscrita e marginal, que Lévi-Strauss atribui a historiografia: a de responder, mediante a verificação de uma série de dados de fato, às questões propostas pela antropologia. Para quem, ao contrário de Lévi-Strauss, trabalha com documentos datados ou datáveis, pode ocorrer também o inverso – e não só quando (como na pesquisa aqui apresentada) morfologia e história, descoberta de homologias formais e reconstrução de contextos espaço-temporais constituem aspectos da pesquisa realizada por um único indivíduo. Desse entrelaçamento também nasce outra diferença. As séries isomorfas analisadas na segunda e na terceira parte do livro pertencem a um âmbito situado entre a profundidade abstrata da estrutura (privilegiada por Lévi-Strauss) e a concretude superficial do evento. Nessa faixa intermediária, provavelmente se joga, em meio a convergências e contrastes, a verdadeira partida entre antropologia e história.17

A análise estrutural de Carlo Ginzburg tem muito da análise formal de Wladimir

Propp. Separar os métodos de Lévi-Strauss e Propp é muitas vezes impossível para mim,

contudo as estruturas dialéticas e as correspondências entre mitos, ritos e a dispersão desses

em diversos povos têm muito do estruturalismo. Assim como a comparação do enredo fabular

das fábulas de magia aos mitos gregos de Édipo e seus correspondentes – Melampo, Dionísio,

Aquiles, Teseu, Jasão, Télefo, Pélope, Zeus, Hércules etc. – se baseia, principalmente, no

formalismo de Propp.

Parte da análise dialética de Lévi-Strauss, adaptada da lingüística, é utilizada por

Ginzburg sem notas ou aviso ao leitor, por exemplo:

17 GINZURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 35.

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(...) na Geórgia encontramos também as mesultane (de suli, alma): mulheres ou meninas com idade superior aos Nove anos, que têm a faculdade de dirigir-se em espírito até o além. Após caírem numa letargia interrompida por balbucios, elas despertam descrevendo a viagem realizada e comunicando as exigências feitas pelos mortos aos indivíduos ou à comunidade; por isso recebem honras e prestígio. De modo paralelo (e inverso) entre os ossetas, os pschvi e os cevsuri, grupos de pedintes, sempre com o rosto coberto por máscaras de pano, circulam pelas casas no começo de janeiro, ameaçando arrombar a porta de quem não der os presentes exigidos; de noite, penetram às escondidas, bebem um pouco de licor, mordiscam pedaços de carne.18

Esse pequeno detalhe: “(...) de modo paralelo (e inverso) (...)” nos mostra que

Ginzburg achou o isomorfismo nas inversões dos valores. De um lado os mortos extorquem

os vivos, de outro os vivos; de um lado um grupo delimitado se comunica em êxtase com os

mortos, de outro um grupo não delimitado de vivos pede à comunidade em um ritual. Outras

oposições talvez possam ser levantadas, mas isso já basta para justificar o exemplo.

Ao estudar as tradições Mandan e Hidatsa, indígenas da America do Norte, Lévi-

Strauss estabelece uma relação de simetria entre os ritos e os mitos desses povos, que são

vizinhos. Neste artigo, “Relações de simetria entre ritos e mitos de povos vizinhos”, o

antropólogo estuda essas analogias presentes no título do artigo como correlações inversas.

Outra particularidade desse artigo é a relação entre a história e as análises formais, é o que

Ginzburg faz. Tratando dessa história: Os Mandan teriam se estabelecido nos territórios

contíguos que são hoje os estados South Dakota e North Dakota no século VII ou VIII,

enquanto os Hidatsa teriam chego ao século XVIII. Essa história, arqueologicamente

comprovada, se conservava na memória dos dois grupos quando a pesquisa foi feita, de 1929

a 1933, de maneira que as diferenças eram ressaltadas nos modos de vida, nos ritos e nos

mitos. O seguinte trecho busca demonstrar como Ginzburg utiliza as correspondências

inversas à maneira de Lévi-Strauss:

Deste modo, os caracteres antitéticos marcavam os trabalhos de verão: vida sedentária nas aldeias protegidas, e corridas nômades em territórios expostos; agricultura de um lado, caça e guerra de outro lado. Estas duas últimas se ligam por contigüidade espacial e por afinidade oral, pois se trata de tipos de atividade violenta, cheia de perigos, acompanhada de derramamento de sangue, e que, deste ponto de vista, diferem sobretudo em grau.19

18 Idem, p. 179. 19 LÉVI-STRAUSS, Claude. Relações de simetria entre ritos e mitos de povos vizinhos. In:_Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, pp. 246-7.

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As oposições vão ficando mais complexas conforme o artigo vai progredindo, as

relações simbólicas entre as diversas atividades realizadas pelos indígenas se entrelaçam,

desta forma:

Conseqüentemente, os gêneros de vida contrastantes que a economia estival justapunha, sem os confundir, adquiriam, durante o inverno, uma unidade sintética; dependiam da caça como no verão, mas esta caça hibernal se opunha à outra porque sedentária, não nômade; e neste sentido, ela se aparentava mais à agricultura, a qual se opunha à caça no período o verão. Não é tudo: a caça de verão afastava os homens da aldeia e os conduzia longe, em direção oeste, à procura do bisão. No inverno, todas estas relações se invertiam. Em vez de serem os índios os que se afastavam dos vales e se aventuravam nas planícies, o objeto caçado se afastava das planícies e se arriscava nos vales. Em vez de atrair os índios fora das aldeias, a caça se desenrola às vezes em plena aldeia ou bem perto, quando os animais se aproximavam. E como a caça se assemelhava a guerra, tudo se passava no inverno como se fosse preciso, para não morrer de fome, que a aldeia se abrisse aos bisões, os quais o pensamento indígena compara a inimigos no verão, mas que o inverno transforma em aliados. Limitando-nos, no momento, aos dois tipos de caça, não parece forçado dizer que eles se opõem à maneira do que se poderia chamar uma “exo-caça” no verão, e uma “endo-caça” no inverno.20

A mesma ferramenta metodológica é utilizada pelo antropólogo francês nos

âmbitos do mito e do rito, que se aproxima da análise de Carlo Ginzburg que permeia a

interação entre esses dois âmbitos, interação esta de caráter formal. Nas palavras de Lévi-

Strauss:

De um ponto de vista formal, pode-se ver outras relações entre os mitos e os ritos conforme se relacionam com a caça de verão ou com a caça de inverno. Quanto ao rito e igualmente quanto ao mito, o ciclo da Mulher-Bisão branca era comum aos Mandan e aos Hidatsa, sendo que o teriam adquirido daqueles, ao que parece (Bowers 1965, p. 205). Não se pode dizer o mesmo do ciclo do Bastão vermelho, comum somente quanto ao rito, mas cujos mitos fundadores, - já dissemos –, diferem de tribo para tribo a tal ponto que cada mito oferece a imagem invertida do outro. A mesma relação prevalece entre os ciclos do Bastão vermelhos e da Mulher-Bisão branca, mas, desta vez, no plano do ritual: as mulheres jovens e desejáveis ofereciam a matéria num caso, enquanto que no outro, velhas tendo passado a idade da menopausa, elas eram os agentes. Além do mais, quando se compara a disposição dos oficiantes na cabana cerimonial no momento de cada rito (Bowers 1950, p. 317, 327), notam-se muitos contrastes. Os participantes do rito da Mulher-Bisão branca, eram do sexo feminino, os do Bastão vermelho incluíam homens e mulheres. A esta oposição bi-sexuada correspondia, no outro rito, uma divisão dos membros do grupo mono-sexuado em sacerdotisas e assistentes, estas passivas, aquelas ativas. Nos dois casos, o proprietário

20 Idem, p. 247.

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da cabana e sua mulher representavam um papel, mas o lugar que lhes era reservado se encontrava no círculo dos oficiantes, ou fora dele.21

Como prometido demonstrar-se-á a convergência entre os dois autores no texto de

Carlo Ginzburg. A esta altura cremos que isso já esteja provado, mas um dos objetivos

específicos dessa monografia é demonstrar sistematicamente as correspondências, apontadas

no primeiro capítulo ou não. Segundo Ginzburg:

Mas a situação inicial de Pele de asno reproduz, de forma invertida, a de Édipo: em vez de um filho que inadvertidamente casa com a mãe, há um pai que procura casar com a filha por vontade própria. Esse último tema retorna, de modo atenuado, em outro enredo, morfologicamente conexo tanto a Pele de

asno quanto a Cinderela: o pai impõe às filhas uma corrida para saber qual delas mais o ama (é o núcleo fabular de Rei Lear).22

Os isomorfismos presentes em mitos e ritos levantados por Ginzburg no capítulo

4, “Disfarçar-se de animais”, delineiam “(...) um conteúdo comum: a identificação simbólica,

na imobilidade do êxtase ou no frenesi do rito, com os mortos.”23

Um costume radicado em Frankfurt, no século XVI, poderia ser relevante para

demonstrar a correspondência entre mitos e ritos no livro História noturna. Jovens conduziam

a noite uma carroça com ramos que, anualmente, passava de casa em casa. Os jovens eram

pagos para entoar vaticínios aprendidos com especialistas. Essa procissão era associada pelo

povo à memória do exército mítico de Eckhart, identificado à procissão dos mortos. Assim,

segue-se a explicação da interação mítico-ritual na obra estudada:

Todo ano, a cerimônia se repetia em Frankfurt; que ela ocorresse no período dos doze dias é apenas uma hipótese. Mas o testemunho, embora sumário, é precioso. As reações do povo nos oferecem um pretexto para reconstruir os ritos correspondentes aos mitos explorados até aqui. Contudo, mitos e ritos referem-se a níveis de realidade diferentes; sua relação, apesar de estreita, jamais é especular. Podemos considerá-los linguagens heterogêneas que se traduzem reciprocamente, sem sobrepor-se de maneira completa. Em vez de coincidências, falaremos de isomorfismos, mais ou menos parciais.24

Agora, justificar-se-á todas as convergências entre os dois autores apontadas no

primeiro capítulo dessa monografia. Anteriormente encontramos uma explicação da

possibilidade da transmissão do substrato folclórico xamânico dos povos siberianos para os

21 Idem, p. 251. 22 GINZURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 226. 23 Idem, p. 180. 24 Idem, p. 168.

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povos gregos e celtas através dos povos citas. Os empréstimos no âmbito lingüístico – entre

línguas indo-européias e urálicas – justificam essa possibilidade. Em suma, mitos, ritos,

divindades e cultos extáticos poderiam se difundir como as estruturas das línguas. Nas

palavras de Ginzburg:

Talvez indícios lingüísticos possam fornecer uma base mais sólida também à tentativa de reconstruir crenças de tipo xamânico. Como vimos, estas eram partilhadas por populações que falavam línguas tanto indo-européias quanto urálicas. O exemplo do húngaro e do osseta indica que isso não excluía trocas lingüísticas. Junto com as palavras, podiam circular também crenças, ritos costumes. E, naturalmente, coisas.25

A base dessa colocação está em um dos princípios da antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss, no qual os métodos da lingüística se aplicariam a objetos que estabelecem comunicações ou trocas culturais. A partir de Antropologia estrutural:

Comparo, isto sim, um certo número de estruturas que procuro apenas onde é possível encontrá-las, e não alhures: no sistema de parentesco, na ideologia política, na mitologia, no ritual, na arte, no “código” de cortesia e – por que não? – na cozinha. Procuro a existência de propriedades comuns nestas estruturas que são expressões parciais – mas privilegiadas para o estudo científico – desta totalidade que chamamos de sociedade francesa, inglesa ou outra.26

É interessante que Lévi-Strauss está se defendendo de críticas, acredito que isso

torne a passagem esclarecedora. A difusão de mitos é analisada pelo antropólogo francês no

artigo “Como morrem os mitos”. O mito de Lynx se espalha do Canadá ao Brasil e o Peru,

sendo um mito importante em alguns lugares e apenas uma lenda sem sentido em outros.

Lévi-Strauss compara a difusão do mito com a luz que passa por lentes. Dessa forma, o mito

às vezes se inverte, às vezes assume outras funções e às vezes ressalta outras estruturas dentro

de sua narrativa. Ginzburg retrata o substrato mítico xamânico da mesma maneira, mas de

modo, talvez, menos completo. As fontes do historiador italiano são distorcidas e

fragmentadas, de segunda, ou até de quarta, mão. O antropólogo Frances teve um material

bem menos distorcido para analisar seu mito nos âmbitos espacial e temporal, que é a

proposta do artigo. O trecho seguinte remonta os detalhes dessa análise:

Todas as versões comportam a seqüência hibernal, mas enquanto que, nas dos Salish do interior, aos aldeães falta lenha e fogo, na versão chilcotin, eles não tem água, pois o herói impede as mulheres de apanhá-la, divertindo-se a quebrar-lhes os potes. É certo que a madeira tem também um papel nesta última versão, mas a título de matéria-prima para a confecção (“bois d’oeuvre”), portanto, em antinomia com a outra função que pode exercer para alimentar o

25 Idem, p. 195. 26 LÉVI-STRAUSS, Claude Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996, p. 106.

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fogo/lar. Esta oposição se desdobra, aliás, segundo as diferentes maneiras pelas quais o herói consegue multiplicar uma pequena quantidade de madeira: sacudindo-a à meia-altura da escada ou lançando-a diretamente do alto até em baixo. Este último método, o único adotado pelas versões salish, se aproxima tanto mais do processo empregado pelo personagem chamado Lynx, de que falamos no início deste capítulo, para fecundar a filha do chefe (escarrando ou urinando, do alto da escada sob a moça adormecida aos seus pés) quanto, em algumas dessas versões, o menino raptado pelo mocho é filho de Lynx e que, no mito chilcotin em que ele não o é, reveste entretanto uma pele de lodo que o torna fraco e doente, em analogia com Lynx revestido da pele saniosa de um velho e com o filho de Lynx que, mal liberto do cativeiro junto ao mocho, adota a mesma vestimenta. Lembremo-nos que esta pele subtilizada ao herói e queimada, dá origem ao nevoeiro, em perfeita simetria com o lodo que torna a água opaca como o nevoeiro faz com o ar, e cuja finalidade aquática se inscreve em contrapartida com aquela que os mitos salish concebem entre o nevoeiro, a fumaça e o fogo.27

Essa análise de Lévi-Strauss tem como ponto de partida um mito, ou lenda,

homogêneo do ponto de vista formal, o que nele se estabelece é a forma, ou formas, de

difusão de um mito que se modifica completamente. O mito se transforma, em alguns lugares,

em uma lenda sem muito sentido, em outro lugar – na parte final do artigo – ele se torna uma

história tida pelos indígenas como real que justifica a aliança desse grupo aos brancos,

enquanto outras comunidades da mesma etnia permaneceram distantes.

Essa reconstrução histórica da dispersão de um mito é diferente, como já foi dito,

da executada por Ginzburg em história noturna. O historiador italiano faz dois tipos de

análises: uma morfológica que busca isomorfismo e desconsidera os âmbitos espacial e

temporal; outra histórica que busca explicações possíveis para as convergências formais.

Esses dois tipos de análise, morfológica ou histórica, se entrelaçam muitas vezes, mas no

segundo capítulo da ultima parte Ginzburg tenta explicar a partir de uma natureza humana

essas confluências formais. Mais uma vez, análises morfológicas e históricas se misturam,

dessa vez, junto a uma explicação arquetípica embasada em estruturas do corpo humano,

como a imagem corporal bípede e o dualismo entre os vivos e os mortos.

O mito de Édipo é um bom exemplo da mistura dos dois tipos de análise com o

modelo de explicação arquetípico, também se parece com o exemplo levantado na citação do

artigo de Lévi-Strauss. Esse mito carrega consigo elementos xamânicos oriundos das estepes

asiáticas presentes, segundo Ginzburg, em todas as fábulas de magia. A deambulação mítica é

uma metáfora que se refere a uma morte simbólica, o ir e voltar ao além que é, também, o

êxtase xamânico. A deambulação mítica é um símbolo universal, segundo Ginzburg, porque

altera a imagem corporal bípede do ser humano. Os elementos xamânicos só se encontram

27 Idem, p. 269.

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presentes nesse mito pela mediação dos citas, povos nômades das estepes que tiveram um

amplo e duradouro contato cultural com os gregos. Esses povos tinham uma cultura xamânica

muito viva, com a presença de cultos extáticos, das deusas noturnas, metamorfoses em

animais, batalhas noturnas e muitas outras confluências mitológicas e rituais. Carlo Ginzburg

rastreou essa confluência também em celtas, germanos, gregos, siberianos, chineses, eslavos e

até nos japoneses. Esse substrato cultural xamânico confluiu no estereótipo do sabá, na idade

média, e pode ser encontrado até hoje em alguns lugares. Toda fábula de magia contém esses

elementos, algumas têm elementos familiares – com Édipo, Cinderela e Pele-de-asno –, esse

núcleo fabular se dispersa por quase o mundo inteiro.

A fábula de Cinderela levanta, mais uma vez, uma correspondência entre um mito

e um rito, contudo adicionando a fábula a esta lista. A fábula de Cinderela, o mito do osso

que falta e o rito da escapulomancia estão ligados de forma intrínseca, sendo esses três

inexistentes na África continental e relacionados a fenômenos xamânicos. Esses fenômenos,

também, não são encontrados na África continental, onde existe apenas a possessão. O trecho

a seguir remonta essas convergências:

Do aleijão no pé de Édipo ao sapato de Cinderela: um itinerário tortuoso e cheio de vaivéns, guiado por uma analogia formal. Reconstruindo a afinidade profunda que liga entre si mitos e ritos provenientes dos contextos mais diversos, conseguimos dar sentido a detalhes aparentemente inexplicáveis ou marginais que encontramos no decurso da pesquisa: o menino coxo que conduz o grupo de lobisomens livônios, os animais ressuscitados por oriente. Mas, se nesse complexo de mitos e ritos começamos a introduzir algumas distinções geográficas, mesmo que apenas em linhas gerais, vemos surgir uma contraposição. Temas como o homem dividido ao meio ou a coleta dos ossos para conseguir a ressurreição dos animais mortos aparecem na Eurásia, na América setentrional e na África continental. Por outro lado, a variante constituída do osso que falta – eventualmente substituída por pedaços de madeira ou por outros ossos – parece, na África continental, de todo ausente. Uma análise da distribuição de Cinderela leva às mesmas conclusões. As inúmeras variantes do conto cobrem uma área compreendida entre as ilhas britânicas e a China, com significativo apêndice ao longo das costas meridionais do Mediterrâneo, no Egito e no Marrocos (Marrakesh); talvez atinjam a América setentrional; não tocam a África continental, onde raríssimas exceções são atribuíveis, com muita probabilidade, a contatos recentes com a cultura européia. A exclusão da África continental também caracteriza outro fenômeno, do qual ainda não falamos: a escapulomancia, ou seja, a adivinhação baseada na omoplata dos animais sacrificados (sobretudo carneiros). Essa prática está presente numa área delimitada pelo estreito de Bering, a leste; pelas ilhas britânicas, a oeste; pela África setentrional, ao sul.28

28 GINZURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 227.

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Mais uma vez um paralelo entre mitos e ritos parece inspirado nos caminhos

percorridos por Lévi-Strauss ao analisar a dispersão dos mitos. Nesse caso comparamos às

mudanças sofridas pelo mito de Lynx, acima citado. As correspondências entre os dois

autores parecem ter chegado num limite, visto que começaram a se repetir. A proposta dessa

monografia exige, ainda, a investigação da interação de outro autor com o pensamento de

Carlo Ginzburg na obra História noturna.

Mircea Eliade confirmou no ensaio “some observations” a conexão proposta por

Ginzburg, de que os benandanti realizavam funções sociais típicas dos xamãs. Em

contrapartida a esse diálogo – que talvez tenha algo de uma busca por legitimações –

Ginzburg critica o método dos pesquisadores que ele diz buscarem intuitivamente os

“símbolos imutáveis”, ou arquétipos. Segundo Ginzburg, Eliade está entre esses

pesquisadores, ele buscaria manifestações primordiais do sagrado. Na nota 67 da introdução,

escondida no final do livro: “Da noção junguiana de arquétipo M. Eliade se dissociou

somente no prefácio da tradução inglesa de seu Le mythe de l’eternel retour (cosmos and

history, Nova York, 1959, pp. VII-IX). Antes, a ela recorrera amplamente: cf., por exemplo,

Trattato di storia delle religioni, trad. It., Turim, 1954, pp. 39, 41, 408, 422 etc. (vide também

as observações críticas de E. De Martino, introdução, p. IX).”29 Um misto de crítica e busca

por explicações faz do paradoxo a noção, talvez, chave para descrever o arquétipo e, o

pensamento de M. Eliade, nessa obra de C. Ginzburg. Explicações arquetípicas estruturais,

históricas difusionistas e morfológicas se entrelaçam na parte final do livro, entretanto a

noção de arquétipo de Ginzburg difere da de Eliade. Seria mais próximo de: estruturas de

natureza biológica ou psicológica comuns a todo ser humano – como a estrutura bípede, a

morte, o útero materno e os semióforos.

Quando Ginzburg fala de xamanismo na Romênia considera Eliade uma

autoridade, apesar de esse último refutar a existência de fenômenos xamânicos na Romênia

em “Chamanisme chez lês Roumains?”.30 O que para Ginzburg não é verdade. O seguinte

trecho, encontrado na nota 66 do quanto capítulo da segunda parte, resgata o panorama

complexo das obras de Eliade a respeito do xamanismo sob um eixo temporal:

In “ ‘Chamanisme’ chez lês Roumains?’ ” (cit., 1968), Eliade limitou-se, a propósito dos calusari, a rápida referência. In “Notes on the Calusari” (cit., 1973), discutiu-os amplamente, definindo suas danças como “paraxamânicas” e excluindo-os, dada a falta de referências ao êxtase, do “xamanismo” propriamente dito. In “Some observations on European witchcraft” (cit., 1975),

29 Idem, p. 272. 30 Idem, p. 328.

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associou os calusari aos benandanti, aceitando para esses últimos a analogia com o êxtase xamânico por mim proposta. No decorrer dos anos, Eliade continuou a ver no êxtase o traço distintivo do xamanismo; mas a identificação de características extáticas nos strigoi romenos (ibid., p. 159) modificou implicitamente o panorama traçado no ensaio de 1968.31

A periodicidade das batalhas pela fertilidade ou encontros noturnos nos âmbitos

da vivência do mito através do êxtase ou do rito se refere de certa forma ao “mito do eterno

retorno” defendido por Eliade no livro O mito do eterno retorno. O “retorno à origem” é, para

Eliade, reviver através do ritual o tempo em que as coisas se manifestaram pela primeira vez.

Isso é muito importante para as sociedades tradicionais, renova toda a comunidade pelo

contato com suas “fontes” – revive suas “origens”. A idéia de uma renovação do mundo

através da reatualização da cosmogonia é encontrada em muitas sociedades arcaicas. A

renovação mítico-ritual periódica do Mundo pode ser uma das principais funções do mito nas

culturas arcaicas e nas primeiras civilizações do Oriente.32 O seguinte trecho de História

noturna demonstra onde as idéias de Ginzburg confluem às idéias de Eliade:

As procissões com máscaras que simbolizam as almas dos mortos, as batalhas rituais e a expulsão dos demônios foram associadas a outros comportamentos (iniciações, orgias sexuais) que, nas sociedades tradicionais, acompanhavam o início do ano, solar ou lunar. Do oriente próximo ao Japão, esses ritos, modelados sobre arquétipos metaistóricos, simbolizaram, com a ruptura da ordem costumeira, a periódica irrupção de um caos primordial, seguida de regeneração temporal ou refundação cósmica.33

Além de concordar com Eliade nesse Trecho, Ginzburg dialoga a respeito do

xamanismo e de lobisomens, lembrando que o autor romeno inseriu em sua série xamânica os

benandanti – que foram descobertos por Ginzburg em Andarilhos do bem. A ligação com

Lévi-Strauss é bem mais constante, pois Ginzburg utiliza-o teoricamente e

metodologicamente; Eliade se encontra como uma referência específica com a qual é

estabelecida uma discussão, como muitos outros.

31 Idem, p. 331. 32 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 36. 33 GINZURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 182.

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3. Breves considerações sobre a historiografia e a obra História noturna

A obra História noturna se situa no contexto dos livros de Ginzburg que têm como temática a cultura popular, estas obras são: Os andarilhos do bem, O queijo e os vermes e História noturna. Deste modo, falar-se-á desses três livros para estabelecer um contexto, de forma que esses compõem uma série documental.

Antes de continuar, gostaríamos de salientar a falta de bibliografia acerca de História noturna, ao contrário de Andarilhos do bem e, principalmente, O queijo e os vermes.

Os andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII é o primeiro livro de Carlo Ginzburg, publicado na Itália em 1966 e no Brasil em 198834. As fontes utilizadas foram processos da inquisição, que revelaram as crenças de integrantes de uma sociedade acusada de bruxaria35. Os réus alegavam ser benandanti, defensores das colheitas e da população contra a atuação dos verdadeiros bruxos e feiticeiros. Esses depoimentos mostraram uma mitologia viva36 muito diferente do que os inquisidores esperavam, o que era considerado como bruxaria ou feitiçaria aos moldes dos tratados demonológicos. A partir de uma perspectiva de história das mentalidades37, Ginzburg busca provar como o culto agrário italiano é paulatinamente modificado na consciência coletiva dos camponeses através das pressões exercidas pela cultura erudita dominante às classes subalternas. Segundo Lima, esse foi um livro inovador pela temática e por buscar o ponto de vista dos feiticeiros e das bruxas, além disso, Andarilhos do bem foi muito bem aceito pela crítica.38 Ginzburg corrobora com essa afirmação, trazendo dados interessante, em sua entrevista a revista Estudos históricos:

Acho que esta é uma pergunta importante porque tem implicações que vão muito além do meu caso pessoal. Publiquei Os andarilhos do bem em 1966, e tive uma resenha anônima no Times Literary Supplement - era o texto de Hobsbawm, que não o assinou. Alguns anos mais tarde, saiu outra resenha bastante elogiosa na Bibliothèque de I'Humanisme et Renaissance. Era um texto de Bill Monter, um historiador americano que trabalhou com feitiçaria, história espanhola, Inquisição etc. Fiquei muito contente. Havia um outro historiador americano chamado Jerry Siegel, que conheci em Florença. Ele escreveu um livro sobre Marx e depois começou a trabalhar com os humanistas italianos. Voltou para os Estados Unidos, e enviei-lhe um texto que eu havia escrito sobre a história religiosa da Itália, chamado “Folclore, magia e religião”. Era parte de uma história da Itália em vários volumes que foi publicada pela Einaudi. Jerry Siegel escreveu-me de volta, dizendo que o Davis Center for Historical Studies de Princeton, dirigido por Lawrence Stone, ia lançar

34 GINZBURG, Carlo. Andarilhos do bem: feitiçaria e cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. 35 No livro Historia noturna, publicado na Itália em 1988, essa sociedade é definida como um culto extático, sendo apenas um entre muitos outros analisados. 36 A mitologia é viva quando as pessoas acreditam e vivenciam o mito através do rito, segundo Mircea Eliade no livro Mito e realidade. 37 Esta é a perspectiva de Francisco Falcon, impressa no livro História cultural: uma nova visão sobre a

sociedade e a cultura. 38 LIMA, José A. B. de. Das mentalidades à micro-história: a trajetória de Ginzburg. Monografia (Bacharelado e Licenciatura em História). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008, p. 25.

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um programa sobre religiões populares e que eu deveria me candidatar a dar um curso lá. Fui aceito e em 1973 fui para Princeton.39

Através dessa entrevista podemos compreender aspectos sobre a produção historiográfica de Ginzburg que outras bibliografias não ajudaram a entender: a recepção de Andarilhos do bem pelos historiadores e como, na perspectiva do autor, ela se tornou importante.

Ginzburg escreve à edição de 1972 um pós-escrito criticando a sua própria abordagem que contrapõe os conceitos: “mentalidade coletiva” e “atitudes individuais”. Outra falta foi cometida na obra, segundo o próprio autor: o tratamento homogêneo dado aos pensamentos das classes envolvidas. Ginzburg analisou da mesma maneira às diferentes atitudes dos camponeses (e da população em geral) frente o grupo dos benandanti. O livro Os

andarilhos do bem a investigação acerca de crenças, práticas, e testemunhos de cunho mitológico e ritual na historiografia de uma forma que não se fazia até então40, buscado revelar as crenças das pessoas acusadas de bruxaria em detrimento as dos inquisidores. Problemas levantados na produção do primeiro livro motivaram o terceiro livro da série estabelecida41.

Em entrevista a revista Estudos históricos, Ginzburg explica as motivações que o levaram a estudar feitiçaria, a entrevista descontraída é interessante pois revela motivos, às vezes, não perceptíveis através da mera leitura de seus livros. Respondendo tal pergunta:

Certamente pesou nessa escolha a idéia de que os fenômenos religiosos são importantes. Mas havia outra coisa também, que na época me escapou de uma maneira surpreendente: a idéia de trabalhar com marginais, com hereges, podia estar ligada ao fato de eu ser judeu. Reprimi completamente essa associação, e foi um amigo que me alertou para ela numa conversa, como algo evidente. Havia ainda outro elemento muito profundo em meu interesse pelas feiticeiras: a fascinação pelos contos de fadas que minha mãe lia quando eu era criança. Isso foi uma coisa que retornou e teve um papel muito importante, por exemplo, no livro que acabo de publicar na Itália, Storia noturna. É um livro sobre o sabá que será traduzido aqui pela Companhia das Letras. Essa ligação entre as feiticeiras e os contos de fadas também teve um papel fundamental.42

É interessante observar as justificativas do autor para alguns aspectos da obra. A ascendência judaica, nesse caso, explica muitos porquês: já que as três grandes obras do autor estão relacionadas à perseguição. Lembrando que o próprio autor sofreu com a perseguição aos judeus durante o regime fascista.

Na obra O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido

pela inquisição o conceito de “mentalidade coletiva” é abandonado, substituído pelo conceito de “cultura popular”. Esse é um livro de micro-história, segundo Ronaldo Vainfas no capítulo 39 GINZBURG, Carlo. História e Cultura: Conversa com Carlo Ginzburg. In:_ Estudos Históricos: Rio de

Janeiro, vol. 3, n.6, 1990, p. 264. 40 Basta ler a introdução de História noturna para perceber que a historiografia produzida até 1988 ainda estava muito presa às idéias dos inquisidores e da cultura erudita sobre bruxaria e feitiçaria, pouca coisa havia sido feita no sentido de revelar as crenças dos acusados de bruxaria. 41 GINZURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 10. 42 GINZBURG, Carlo. História e Cultura: Conversa com Carlo Ginzburg. In:_Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 3, n.6,1990, p. 258.

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de Domínios da história denominado “História das Mentalidades e História Cultural”43. Segundo Lima, essa seria a obra que traria maior prestígio e reconhecimento ao historiador italiano, foi muito bem recebida pela crítica e marca o fim da História das Mentalidades e o início da Nova História Cultural44. Este trecho da introdução de O queijo e os vermes explica bem o caráter micro-histórico da obra:

(...) uma investigação que, no início, girava em torno de um indivíduo, sobretudo de um indivíduo aparentemente fora do comum, acabou desembocando numa hipótese geral sobre a cultura popular – e, mais precisamente, sobre a cultura camponesa – da Europa pré-industrial, numa era marcada pela difusão da imprensa e a Reforma Protestante, bem como pela repressão a esta última nos países católicos.45

Desta forma, o estudo de apenas um indivíduo, seu processo e suas opiniões

revelaram relações entre a cultura popular e a erudita, estabelecendo o conceito de “circularidade” de Mikhail Bakhtin. Esse conceito é interessante porque nos mostra as interações entre cultura popular e erudita, que para muitos autores permaneceram separadas. Para Ginzburg elas têm interações intensas que, como no caso de história noturna, possibilitaram a cristalização do estereótipo do sabá. Não haveria estereótipo se os tratados demonológicos e outros saberes correlatos não interagissem em algum plano ao folclore, simplesmente não faria sentido para a população. Além do mais, as imagens de feiticeiros e bruxas do estereótipo do sabá se baseavam num antiqüíssimo substrato mitológico.

Para Ronaldo Vainfas, no capítulo de Domínios da história intitulado “História das Mentalidades e História Cultural”, a micro-história é outro refúgio da história das mentalidades, sendo O queijo e os vermes um dos exemplos citados.46

Ginzburg publicou História noturna: decifrando o sabá na Itália em 1989 e no Brasil em 1991, esse é seu último livro a respeito da cultura popular. Na busca das raízes folclóricas do sabá o autor estudou, mais uma vez, feitiçaria e cultos agrários, contudo o objeto foi expandido para muito além das fronteiras do Friul – região que se desenrolam os processos contra os benandanti no primeiro livro da série estabelecida. O autor afirmou à revista Estudos Históricos que trabalhou quinze anos nesse livro, apesar de longos intervalos. Essa é uma obra que apresentou grandes dificuldades para o autor, expandiu ainda mais os objetos e as fontes utilizadas. Nas palavras de Ginzburg:

É o livro mais longo que escrevi, e no qual trabalhei mais de 15 anos, com longos intervalos - houve um intervalo, por exemplo, quando comecei a escrever o livro sobre Piero della Francesca. Storia noturna foi um livro muito difícil de escrever, embora eu estivesse muito apaixonado pela pesquisa. Durante muito tempo achei que não seria

43 VAINFAS, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural” In:_CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.), Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 148. 44 LIMA, José A. B. de. Das mentalidades à micro-história: a trajetória de Ginzburg. Monografia (Bacharelado e Licenciatura em História). Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de História, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2008, p. 25-6. 45 GIZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Companhia da Letras, 2006, p. 10. 46 VAINFAS, Ronaldo. “História das Mentalidades e História Cultural” In:_CARDOSO, Ciro Flamarion;

VAINFAS, Ronaldo (orgs.), Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, p. 147.

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capaz de terminá-lo. Publiquei-o em abril de 1989, mas mesmo agora tenho a impressão de que foi escrito por alguém que não eu.47

O último livro da série levou ao limite a proposta de história defendida por Ginzburg no famoso ensaio Sinais.

História noturna aborda o Sabá como um estereótipo sob perspectivas históricas e morfológicas, Ginzburg problematiza um complô e um largo substrato folclórico para entender de onde veio a idéia de uma sociedade de bruxas e feiticeiros hostil à cristandade. Em entrevista a revista Estudos históricos:

Storia noturna aborda o problema do sabá numa perspectiva ao mesmo tempo histórica e morfológica. A primeira parte é histórica, a segunda é morfológica, e há ainda uma terceira parte em que faço uma comparação entre as duas perspectivas e tento operar uma convergência. Há uma conclusão e uma introdução teórica bastante longa. Na primeira parte, começo com o sabá, ou seja, a reunião das feiticeiras, vista pelos inquisidores, pelos juízes. Analiso a idéia de complô, que é algo muito importante. Há um pequeno trecho na introdução em que falo do papel do terrorismo, porque penso que há uma relação entre a percepção que tive dessa idéia do complô e o terrorismo na Itália a partir de 1969. Procuro colocar esse problema do complô numa perspectiva histórica para tentar compreender como surgiu a idéia de uma sociedade de feiticeiras hostil à sociedade mais ampla. Esta é a primeira parte, um histórico muito detalhado, ligado a uma série de documentos muito densa, seja no tempo, seja no espaço.48

O complô, mais uma vez, revela a perseguição aos judeus como um tema

recorrente, mas dessa vez direto. Na primeira parte de História noturna o complô dirigido a figuras marginais à sociedade resultou na perseguição e extermínio de leprosos, judeus e acusados de feitiçaria. No final do livro, Ginzburg associa as figuras marginais ao antiqüíssimo mito da hostilidade dos recém mortos para com os vivos.

Segundo Lima-Filho, esse livro não é um trabalho de micro-história, deveria ser pensado sobre o caráter “indiciário”49 da história50. As anomalias e os detalhes encadeados em uma longa série, construída primeiramente com um caráter experimental, mas que assume sentido em um longuíssimo arco temporal e geográfico.51

Segundo Ogawa o rótulo de micro-historiador, dado a Carlo Ginzburg, não é satisfatório52. Esse autor ainda afirma em sua dissertação que História noturna segue o paradigma indiciário – que também é um paradigma semiótico – a partir de um diálogo coma a crítica literária russa e a antropologia estrutural. Ginzburg atesta essa afirmação de Ogawa na entrevista a revista Estudos históricos: 47 GINZBURG, Carlo. História e Cultura: Conversa com Carlo Ginzburg. In:_ Estudos Históricos: Rio de Janeiro, vol. 3, n.6, 1990, p. 261. 48 Idem. 49 Lima-Filho está se referindo ao paradigma indiciário proposto por Ginzburg no ensaio “Sinais”, presente em Mitos, emblemas e sinais. 50 LIMA-FILHO, Henrique E. R. Microhistoria: Escalas, indícios e singularidades. Tese (Doutorado em História). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 1999, p. 377. 51 Idem, p. 376. 52 OGAWA, Carlos Eduardo de Almeida. História, retórica, poética e prova: a leitura de Carlo Ginzburg da retórica de Aristóteles. Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010, p. 24.

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Na segunda parte, tento compreender aquilo que considero ser o núcleo folclórico do sabá, ou seja, o vôo mágico e a metamorfose em animais. Coloquei-me o problema do núcleo folclórico e procurei recolher fenômenos com uma preocupação puramente formal, alheia a qualquer consideração de ordem histórica, cronológica ou geográfica. Reconstituí séries de fenômenos ligados entre si do ponto de vista estrutural, no nível da morfologia profunda, dispersos pelo continente eurasiano.53

Assim, as semelhanças formais – que Ginzburg denomina: análise morfológica –

fariam parte desse paradigma antiqüíssimo que é a ciência dos homens primitivos, postulada por Lévi-Strauss. Mais uma vez confirmando as postulações de Ogawa:

Na terceira parte, há um capítulo que se chama justamente “Conjecturas eurasiáticas”, em que tento propor uma série histórica, apresentar relações históricas documentadas que poderiam explicar essa dispersão de dados. Nesse momento, porém, achei que isso não era suficiente e utilizei Lévi-Strauss, que é o interlocutor mais importante do livro. Lévi-Strauss tem um artigo publicado em 1944-45 sobre os desdobramentos da representação na China e nas culturas do noroeste da América em que se pergunta se teria havido uma difusão. O contato explicaria a difusão, mas não explica o fato de que esses fenômenos continuaram a existir, de que houve permanência. Descobri que havia um trecho semelhante, porém independente, em Marc Bloch, e essa convergência me impressionou. Mas o que mais me impressionou foi a discussão de Lévi-Strauss, ao dizer que a explicação histórica não bastava. E o que tentei fazer nesse terceiro capítulo, que é o mais longo e talvez o mais audacioso do livro, foi combinar as duas abordagens.

Essa entrevista foi um dos grandes guias dessa monografia, o que levou a leitura de Lévi-Strauss – mas, não ao artigo sobre a difusão de culturas – e esclareceu a relação morfologia e história.

A hipótese de trabalho defendida por Ogawa tem um caráter fortalecedor desse contexto, traçado a partir das três obras escolhidas. Ogawa defende que Ginzburg se dedicaria hoje a produção de ensaios, em detrimento a publicação de livros – os três livros que compõe o contexto historiográfico.

Jacqueline Hermann, em Domínios da História, insere História noturna no contexto da história cultural, salienta a relação entre cultura popular e erudita, a busca pela crença dos perseguidos e apenas menciona vagamente a importância do estruturalismo de Lévi-Strauss54. Não chega nem a mencionar a morfologia de Propp, nisso deixa a desejar frente a análise de Ogawa.

Foi difícil achar meras menções ou citações à obra História noturna, ao contrário das menções ao livro Os queijos e os vermes. Talvez isso aconteça por causa da densidade teórica, metodológica e documental da obra, que demorou muito tempo para ser escrita e desafiou, e ajudou a criar, a noção de história de Carlo Ginzburg. Talvez por isso, também, o 53 Idem. 54 HERMANN, Jacqueline. “História das Religiões e das Religiosidades”. In:_CARDOSO, Ciro Flamarion, VAINFAS, Ronaldo. Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997, pp. 343-5.

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paradigma indiciário faça alusão aos paradigmas científicos de Kuhn – Ogawa menciona essa relação, mas não a aprofunda.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomaremos de maneira breve nessas considerações finais os principais assuntos investigados nessa monografia. Delineando o caminho traçado até aqui, buscamos ressaltar o que consideramos as principais idéias de Carlo Ginzburg que possibilitaram inserir o mito e o rito, objetos tradicionais da antropologia, no âmbito historiográfico.

O livro contém na sua primeira parte um levantamento histórico muito minucioso; na segunda parte a pesquisa se delineia através de uma série documental morfologicamente homogênea, mas heterogênea nos âmbitos geográfico, cultural e cronológico; a terceira parte faz um levantamento de estruturas simbólicas, através de análises morfológicas, que representam elementos xamânicos dispersos por toda Eurásia; na conclusão, uma análise histórica mais ou menos linear revela os principais acontecimentos para a cristalização do sabá, lugares e condições que o sabá não se consolidou e uma discussão sobre alucinógenos e êxtases religiosos. Tudo isso para explicar o núcleo folclórico do estereótipo do sabá, que se cristalizou entre os séculos XIV e XV.

A série documental levantada na obra apresenta uma homogeneidade impressionante, a partir da correlação morfológica de fenômenos Ginzburg delineia uma série de elementos que se encontram presentes em cultos extáticos

Os âmbitos geográfico, cultural e cronológico foram momentaneamente deixados de lado por Ginzburg, na busca das raízes dos antiqüíssimos substratos culturais que posteriormente se cristalizaram no estereótipo do sabá. Desta forma, o contexto cultural dos antigos celtas é transpassado ao investigar as raízes dos cultos extáticos às deusas noturnas. Esses cultos presentes em toda região mediterrânea: nos povos gregos, nos romanos, germânicos e em Creta (sem falar nos já mencionados celtas, que povoavam grande parte da Europa). As deusas noturnas se revelam presentes em uma categoria muito mais ampla: “senhores dos animais”, uma divindade ora feminina, ora masculina que ressuscita e gera animais presente no contexto geográfico-cultural eurasiático. Por exemplo: As deusas noturnas, Horagalles, Thor, são Germano d’Auxerre, entre outros. Deste modo, os exemplos se estendem temporalmente até a pré-história e geograficamente pela faixa subártica – da China pré-histórica, ao Japão e a Lapônia – em ritos praticados por comunidades de caçadores.

O capítulo “Combater em êxtase” aumenta os horizontes da pesquisa ao mapear as batalhas noturnas como estrutura em mitos e ritos distribuídos pelo mesmo contexto geográfico-cultural. Essa estrutura extrapola os mitos e ritos no âmbito cultural e lingüístico indo-ariano rumo ao urálico, âmbito dos povos dos famosos xamãs siberianos, dos ossetas e dos circassianos.

Vários elementos simbolizam o êxtase segundo Ginzburg: o espírito sair do corpo (pela boca na forma de pequenos animais ou moscas); vôos noturnos; cavalgadas noturnas, em animais (voadores ou não), ou objetos voadores (como vassouras, bancos, carcaças de animais mortos, seres mitológicos etc.); metamorfoses animalescas (em lobos, asnos, cavalos etc.); ou sob a forma de passeios, caçadas ou batalhas noturnas guiadas por uma divindade ou figura lendária (que pode remeter, ou não, à separação do corpo e do espírito). O êxtase é sempre uma morte simbólica, representa e pode ser representado por e como um rito de iniciação. A travessia de um grande rio, o mar ou o rio do mundo dos mortos pode se relacionar no âmbito das representações a morte simbólica. Em suma, esses elementos podem estar presentes em mitos, ritos e nas experiências extáticas, de modo intercambiável. Não é a toa que Ginzburg se utiliza de muitos aspectos teóricos e metodológicos de Lévi-Strauss, nesse caso a análise de

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estruturas dialéticas encontradas em mitos e ritos (em festas ou cerimônias periódicas). Estruturas que, muitas vezes, formam paralelismos antitéticos, pares de opostos. Nesse mesmo sentido vai a análise de Ogawa, mas ele não menciona a análise dialética. 55

A periodicidade das duas variantes dos encontros noturnos variava caso a caso, todavia grande parte dos encontros noturnos acontecia em datas ligadas aos mortos – principalmente os doze dias entre a véspera de natal e a epifania – mas há casos em que são apenas datas pré-estabelecidas. Os benandanti e os kresnik se encontravam durante os quatro tempos, os lobisomens e os burkudzäutä durante os doze dias.

Nesse ponto é importante salientar que Ginzburg cita a tese do “eterno retorno” de Mircea Eliade, na qual o mundo é recriado periodicamente através de ritos que, dessa forma, garantem a renovação do cosmos que pode garantir, entre outras coisas, a fertilidade da terra. Neste caso, os ritos e batalhas periódicas pela fertilidade seriam uma corroboração do historiador italiano a essa tese, mas dentro de um âmbito circunscrito – pois Eliade considera essa estrutura pertinente a todo o pensamento mítico.

Ginzburg se utiliza de Eliade, assim como outros autores, para identificar as características xamânicas nos elementos simbólicos pertinentes não só ao êxtase, mas a mitos e ritos. Foram encontrados elementos xamânicos até na mitologia grega.

Édipo, Melampo e Tirésias são três personagens da mitologia grega carregadas de referências xamânicas. A primeira, e principal, delas é a coxeadura mítica, Édipo fora ferroado no pé antes de ser abandonado e Melampo possuí o pé preto; Édipo fica cego após saber o que fizera. Tirésias era cego e andava apoiado em um cajado.

Na verdade, a deambulação mítica e suas atenuantes – como o monossandalismo – se encontram presentes em personagens que são ligadas a iniciação. Em termos simbólicos a iniciação é uma morte e um renascimento. Ginzburg vê uma referência à iniciação no exílio seguido de uma ferida nos pés. Essa estrutura faz parte da fábula de magia, na qual existe um subtipo que se remete ao parricídio seguido de incesto. Esse tipo de história é encontrada em todo o globo, mas podem haver atenuações: o assassinato do tio, do avô, ou do futuro sogro, voluntário ou involuntário. As referências as deambulações míticas se encontram associadas a muitas histórias que fazem referências a mortes momentâneas, como a iniciação ou êxtase: o mito de Dionísio, de Aquiles (considerado uma antiga divindade mortuária cita), de Jasão (nesse caso é o monossandalismo), de Teseu, de Pitágoras (da coxa de ouro), de Zeus (que tivera seus tendões arrancados por um inimigo), entre outros. Para o autor esse simbolismo transcultural inerente a assimetria deambulatória se deve a uma estrutura biológica, a imagem corpórea bípede do ser humano.

Outros símbolos podem representar a viagem ao mundo dos mortos: os homens divididos ao meio (pela mesma razão dos coxos), manetas, caolhos, gagos, se envolver em peles de animais e cobertores, cobrir o rosto com cobertores.

Existe outro elemento transcultural inerente ao xamânismo presente na mitologia grega, em diversas versões da fábula da Cinderela, em rituais espalhados por todo o mundo e nas divindades caracterizadas como “senhora dos animais”: a ressurreição a partir dos ossos. Esse elemento se encontra no mito de prometeu – fazendo referência ao sacrifício grego, no qual os ossos e as vísceras são destinados aos deuses –, no mito de Dionísio – existe um mito que ele é morto e devorado por titãs, mas é ressuscitado a partir dos ossos –, o mito de Pélope – ele é morto e fervido por seu pai que intenta enganar os deuses, ele acaba sendo ressuscitado mas um de seus ossos tem de ser substituído; ele se liga, também, a série do herói que mata o futuro sogro. Em muitas variantes os osso são ensacados à pele ou estômago do animal, herói 55 OGAWA, Carlos Eduardo de Almeida. História, retórica, poética e prova: a leitura de Carlo Ginzburg da retórica de Aristóteles. Dissertação (Mestrado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo São Paulo, 2010, P. 42.

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ou divindade sacrificada, isso é uma referência direta ao útero materno e a se cobrir com a pele de animais ou cobertores.

A coleta dos ossos se liga à deambulação mítica em algumas variantes dos mitos ou fábulas em questão. Um osso perdido deve ser substituído por um graveto ou um osso de outro animal. Quando Dionísio é devorado pelos titãs um dos seus ossos se perde, a escápula. Esse osso se liga a manqueadura mítica na medida em que o cordeiro sacrificado é representa Dionísio.

Quem descobre a manqueadura mítica e sua difusão, principalmente, entre ritos pelas Américas, pela Europa continental, pela China e pelo Mediterrâneo é o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, na sua tetralogia denominada Mitológicas. Lévi-Strauss permeia História noturna como orientação teórica e metodológica na pesquisa. Ogawa articulou o paradigma indiciário a uma idéia defendida na obra O pensamento selvagem, de Lévi-Strauss, e o modelo de convergência morfológica a Propp, a Wittgenstein e ao mesmo antropólogo francês. 56 A análise das metáforas (ou elementos) que permeiam os mitos, ritos e testemunhos pertinentes aos cultos extáticos é uma análise estrutural aos moldes das feitas pelo falecido antropólogo francês. Isomorfismos no âmbito do mito e do rito, com termos opostos, dispersos por uma região. 57 O último capítulo de História noturna, “Ossos e peles”, é todo pautado na análise estrutural de mitos, ritos. Entre os vogules-ostíacos e os romanos existem mitos estruturalmente homogêneos mas que remetem a fenômenos diferentes: organização dual da sociedade, de animais e de vegetais entre os vogules-ostíacos; ritos divididos em duas metades, nos rituais dos Fastos e das Lupercálias.

A noção de arquétipo permeia essa obra quase como um fantasma, é rechaçada por Carlo Ginzburg incessantemente, apesar de não ser excluída a priori. Dessa forma, o historiador italiano critica Mircea Eliade e Jung, apesar de ter arranjado uma saída quase que arquetípica para a transculturalidade da deambulação mítica. 58 A deambulação mítica, o útero como metáfora para a morte e a identificação do mundo além da comunidade como o mundo dos mortos têm por base estruturas biológicas do ser humano – são experiências primárias de caráter corpóreo.

A explicação da origem xamânica do profundo substrato cultural que permeia o estereótipo do sabá é analisado sob um escopo estruturalista. A explicação histórica da difusão do substrato xamânico – e do ir e voltar ao além – se concretizou, em História noturna, da mesma maneira que se difundem as estruturas lingüísticas, de parentesco, culturais, artísticas e mitológicas nas obras de Claude Lévi-Strauss. Contudo, não podemos negar a influência de Propp no processo de reunir os elementos formais do núcleo folclórico do sabá.

56 Idem, P. 42. 57 LÉVI-STRAUSS, Claude. “Os quatro mitos winnebago”. In:_Antropologia Estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, p. 206. 58 Ogawa vai em uma linha parecida em sua tese, na página 48.

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FONTES

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010. GINZBURG, Carlo. História noturna: decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991 LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996. _____________________. Antropologia estrutural dois. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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