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CONSTITUIÇÃO

SOMENIE UM GOVERNO LEGf TliMO CONSEGUE TRILHAR ESTE CAiMf NHO

SEM PERDER O RUMO.

GOVERNO DO ESTADO DO ESPIRITO SANTO.

LADO A LADO COM O POVO.

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tfuU Ç/f i P v EDITORIAL

0 que comemorar... 03 «0V 1994

Sskr dt Documentaçàa

Em meio às águas de março, mais uma vez as mulheres foram às ruas no dia 8 divulgar para a opinião pú-

blica suas conquistas e ao mesmo tempo de- nunciar as inúmeras discriminações de que são vítimas.

Em São Paulo, o lema foi "Pela vida e pela paz" em repúdio à guerra imperialis- ta no Golfo Pérsico e contra a guerra de fo- me do governo Collor. Esse lema esteve pre- sente de norte a sul do Brasil ao lado do pro- testo contra o ultraje à condição feminina.

Teve destaque a manifestação em Mi- nas Gerais contra a humilhação a que foram submetidas as 90 operárias da Industrial Ca- choeira de Betim, obrigadas a ficar nuas pa- ra uma revista policial a mando da direção da fábrica. Nesse rumo, também repercutiu nacionalmente a passeata realizada em Salva- dor, liderada pelas bancárias, contra a esteri- lização em massa de mulheres, que já atinge 47% das baianas entre 15 e 54 anos.

Atentas aos rumos políticos do mundo e do país, as bra- sileiras não têm como esquecer a sua opressão específica. No Dia Internacional da Mulher fizeram, como sempre, um balan- ço de suas lutas. Constataram que embora tenham a comemo- rar os avanços na Constituição e os espaços conquistados na economia, na política e na sociedade, muito têm a combater para chegar a uma condição digna, de igualdade, sem discrimi- nações.

Não se pode conviver com a aviltan- te exigência de laqueadura para as trabalhadoras, com os índices de

espancamento liderando os crimes contra a mulher, além das ameaças de morte e dos estupros crescentes. É uma afronta realida- de desnudada pelos dados da Unicef indican- do a existência de 500 mil meninas prostitu- tas entre 10 e 12 anos. Já o IBGE afirma que um milhão de adolescentes dão a luz anualmente no Brasil e sabe-se que 25% das mulheres que morrem por complicações de parto ou aborto são adolescentes.

Es

!

ssa situação brutal deve servir de aler- ta à sociedade brasileira e de impul- so à mobilização do movimento de

mulheres em prol da causa feminina. Não dá para se contentar com as conquistas le- gais, se o cotidiano das mulheres revela uma

crescente discriminação, refinada às vezes, mas no geral grotes- ca e revoltante. É um indicativo do grau de decadência da so- ciedade em que vivemos, fazendo-nos lembrar e refletir sobre a máxima do filósofo francês Fourier: "O grau de emancipa- ção da mulher é a medida da emancipação em geral".

^MA ^ 44*4- /f*Xu

I I I M S4 \ I \

1 NESTA EDIÇÃO

Rumos do feminismo O V Encontro Feminista Latino- Americano e do Caribe realizado na Argentina foi um momento de reflexão da luta das mulheres e dos caminhos descortinados para o feminismo IO

A mulher e a guerra Uma análise do conflito no Golfo Pérsico e a situação da mulher ára- be é o tema do artigo da professo- ra Amai El-Khatib 30

Dura realidade Embora tenha alcançado algumas

conquistas, a mulher brasileira tem um cotidiano de discriminações 6

Liberdade reprodutiva O encarte teórico traz o texto da norte-americana Rosalind Pet- chewsky, que faz uma abordagem inovadora sobre o direito da mu- lher ao próprio corpo e a livre esco- lha da maternidade 17

Moda em Cuba Cuba vem desenvolvendo uma in- dústria da moda tentando levar ao povo cubano o conhecimento e a prática de uma "cultura de ves- tir" 36

E mais...

Retrato: Mulher negra, sambista 5

Cultura: a novela Barriga de Alu- guel 29

De Norte ... a Sul 34

Dicas 38

Memória: Marie Curie 39

Literatura: poesias de Adalberto Monteiro 40

Última Página 42

PRESENÇA DA MULHER

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CARTAS

Presença da Mulher Publicação trimestral da Editora Liberdade Mulher Ltda. Diretora: Ana Maria Rocha Conselho Editorial: Ana Maria Rocha, Jõ Mora- es, Olívia Rangel, Lilian Pereira, Sara Sorrenti- no e Adelina Bracco Jornalista Responsável: Téüa Negrão Simon - MT 689 - PR Colaboradores: SP Alda Marco Antônio, Amary- Uis Schloenbach, Bete Mendes, Gilda Portugal Gouvêa, Liege Rocha de Paula, Maria Nilde Mascelani, Margareth Martha Arilha, Marina Pontual, Silvia Pimentel, Suely Carneiro, Maria Inês Nogueira de Albuquerque Pupo e Maria Cecília Martins Van Noije; RJClara Araújo, Jan- dira Feghali, Carmem Lúcia Aguiar, Carmem Lúcia Aguiar, Dilma Borba, Maria Alice Adão Antunes, Vera AguiarPR Maria de Fátima Aze- vedo Ferreira, Rosilei Vilas Boas Duarte; SCAni- ta Pires; MG Maria Amália Magalhães Fagun- des, Maria Cecília Magalhães Gomes, Myrian Gontijo, Maria de Fátima Oliveira Ferreira; RS Jussara Cony, Marlise Saueressing, Maria de Lourdes Anagnostopoulos; DF Elizabeth Alves Silva, Mara Regia di Perna, Valderez Caetano, Vera Manzollillo; GÒ Denise Carvalho, Lúcia Rincon, Odete Ghanan; BA Célia Bandeira, Lí- dice de Mata, Loreta Valadares, Dulce Aquino; PE Ana Vasconcelos, Solange Almeida de Sou- za, Tereza Costa Rego; CE Maria Daciene L. Barreto, Regine Lima Verde, Volia Maria Fonse- ca Rocha; AL Tais Bentes Normande; SE Tânia Soares, Ilka Bichara; RNf Elizabeth Nasser; PI Glória Sandes, Maria de Lourdes Carvalho Rufi- no; MA Maria Eloni Bonotto, Nádia Campeão; PA Leila Mourão, Maria Socorro Gomes, Rosa Mello; AM Lúcia Regina Antony; AC Neiva Maria Clemente; RR Zilda Montenegro. Projeto Gráfico: Marina Pontual e Pedro de Oliveira Capa: Pedro de Oliveira Ilustração capa: Equipe Mulher CEDAL - Chile Diagrainação: Maria José Lopes Leite Administração, Redação e Publicidade: Rua dos Bororós, 51 - 1? andar - Bela Vista - CEP 01320 - São Paulo - SP - Fone: (011) 278-3220 Impressão: Saga Fotolito: Editora Afa Composição: Compuarte - Rua Cruz e Souza, 60 - Aclimação - SP - Fone: (011) 285-3669 Os artigos assinados não expressam necessaria- mente a opinião dos editores. É permitida a re- produção total ou parcial desde que citada a fonte.

Sucesso na Bélgica Através do professor Demerval Corrêa

de Andrade recebi dois exemplares da revis- ta Presença da Mulher, que desconhecia e apreciei bastante. Achei-a bastante interessan- te, na medida em que aborda uma gama am- pla dos problemas da mulher. Eis um exem- plo no qual a UDEMU - União Democráti- ca de Mulheres da Guiné Bissau - deveria se inspirar, embora reconheça que a publicação de uma revista representa um investimento considerável para uma organização como a nossa.

Filomena Embalo - Conselheira de as- suntos econômicos da Embaixada da Repú- blica de Guiné-Bissau em Bruxelas - Bélgica.

Viramos adultas Achei o ótimo número da Presença

da Mulher muito mais expressivo que os ante- riores. Ao que parece, de repente, viramos "adultas", jornalisticamente falando.

Dos muitos temas tratados achei que a posição de Ana Regina Reis esta superlati- va. Não poderia ter feito melhor, estragaria.

Muita luta, alegria e sucesso!

Elvira • Canoas - RS.

Intercâmbio de materiais Conforme acordo verbal para intercâm-

bio de materiais, estamos enviando os suple- mentos "Nosostras" e "Lawray", publica- dos mensalmente na cidade de Cochabamba e La Paz, respectivamente. Ambos têm circu- lação nacional e uma tiragem de 5.000 exem- plares por edição.

Esperamos receber seus materiais, pa- ra conhecer suas experiências de trabalho e enriquecer nosso Centro de Documentação.

Recebam nossa ternura.

Jael Bueno Ramirez - pelo CETM - Centro de Estudos e Trabalho da Mulher - Cochabamba - Bolívia

Amor ou arte Quero agradecer a publicação de meu

poema Amor ou Arte na página 41 da edição n? 17 de Presença da Mulher. Infelizmente não saiu a minha autoria e fiquei muito tris- te porque curto os meus trabalhos.

Adorei as matérias da revista n0 17, principalmente a página, "Retrato da Dona de Casa" e a última página que mostram bem a realidade das mulheres.

Desejo que a revista continua a bri- lhar e fazer muito sucesso!

Maria (onsuelo Aragão de Meio - Contagem - MG

O PONTOS DE VENDA

São Paulo - capital - Livrarias Brasiliense, Rua Barão de Itapetininga, 99 - Centro; Ca- pitu, Rua Pinheiros, 339 - Pinheiros; Cultu- ra, Av. Paulista, 2073 - Conjunto Nacional - Fone: (011) 285-4033; CEHAT, Bloco Histó- ria e Geografia, Cidade Universitária; Institu- to Goethe, Rua Lisboa, 974; Neon, Praça Benedito Calixto, 18 - Pinheiros; Teixeira, Rua Marconi, 40 - Centro; Vitória, Rua Con- dessa de São Joaquim, 272 - Liberdade; Soro- caba, Banca da Sé, em frente à catedral. Fo- ne: 33-7970, Banca Shopping; RJ - capital - Livraria Leonardo da Vinci, Av. Rio Bran- co, 185, subsolo; MG - Livrarias: PAX, Av. Afonso Pena, 719; Agência Zulu, terminal rodoviário - loja 223; Banca Rey (Rogério) - Av. Amazonas, Praça Sete; Agência Status - Av. Cristóvão Colombo - Savassi; Eldora-

do, Av. Augusto de Lima, 233, Loja 33 • PR - capital - Livraria Dario Vellozo, Praça Garibaldi, 7 - Centro; Banca Sergipano, Gale- ria Júlio Moreira - Centro; SC - capital - Ban- ca da Praça XV; RS - capital - Livrarias Pap- yrus. Rua dos Andradas, 1001; Palmarinca, Rua General Vitorino, 140, 1? andar, sala 14 a; Mercado Aberto, Rua Riachuelo, 1291; Terceiro Mundo Livros, Rua General Vitori- no, 129, sala 21, 2? andar; Santa Maria: Li- vraria Sulina Editora, Rua Flonano Peixoto, 1000, Conj. 63; MA - capital - Livrarias Pa- sárgada, Av. Castelo Branco, 36, loja 03 - São Francisco; Espaço Aberto, Rua do Sol, 523 A; Bancas da Praça Deodoro e Praça João Lisboa; PE - capital - Livraria Livro 7, Rua Sete de Setembro, 329; PA - capital - Rua Ó de Almeida, 1084 - Umarizal

PRESENÇA DA MULHER

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u RETRATO

A Sambista

"Mas, é carnaval, não me diga mais quem é você Amanhã tudo volta ao normal, Deixa a festa acabar, deixa o barco correr..."

Quem é essa mulher que faz o "maior espetáculo da terra"? Quem é essa mulher que com seu

gingado, com sua alegria, com sua cor de canela encanta os olhos e alegra os co- rações? A " União de Negros pela igualdade" - UNEGRO - SP - foi atrás para saber. Pes- quisou cinco das grandes escolas de sam- ba de São Paulo - Vai-Vai, Camisa Ver- de e Branco, Mocidade Alegre, Rosas de Ouro e Unidos da Peruche.

Os dados levantados pela pesquisa são supreendentes.

IDADE:

de 16 a 28 anos 62,9%

de 29 a 36 anos 20,2%

mais de 36 anos IT^o

ESCOLARIDADE:

I? grau completo 25,5%

2? grau completo 25,6%

3? grau completo 9%

ESTADO CIVIL: solteiras 72% casadas- 16,7% outros 6,4% divorciadas 5,1%

PROFISSÃO: estudantes 15,6% autônomas 13,4% doméstica 12,5% auxiliar de escritório 9,8% serviços gerais 8,3% funcionária pública 7,8% secretárias 7,2% professoras 6,7% costureira 6,2% recepcionista 6,2% bailarina 5,7%

COMO ADQUIRIU A FANTASIA: salário 33,8% grátis 12% confecção própria 37,9% empréstimo 2,6% poupança 5,2% carne 9,3%

SALÁRIO: de 0 a 5 salários mínimos 71,1% mais de 05 SM 29,5%

VISÃO DA MULHER NEGRA

NO CARNAVAL:

Símbolo sexual 32,2%

sambista 68,9%

VOCÊ SE CONSIDERA:

Símbolo sexual 14%

sambista 76,8%

símbolo sexual e sambista 20,4%

A mulher sambista é trabalhadora, mãe de família, dança pelo prazer de sam- bar.

A pesquisa realizada com o objeti- vo de estudar a situação sócio-econômi co-política e cultural da mulher negra contraria as bases da visão preconceituo sa que a sociedade lança sobre a sambista

O seu resultado indica que articula se no espaço das Escola de Samba um no vo perfil da mulher negra, que é sambis ta e não "Mulata do Sargentelli", que vai para a avenida por amor e para man- ter uma das tradições culturais do negro no Brasil.

PRESENÇA DA MULHER

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VIDA

Entre o sonho e a realidade Sara Sorrentíno

"O Wiskk é pra mim e o suco de laranja é pra de!" Diz ao garçon a mulher glamourosa no comercial de TV da revista feita para as "novas mulheres". Você não percebeu que as mulheres mudaram? Sim, elas muda- ram. Agora tomam wiskie, andam sozinhas, pilotam avião, fazem planos econômicos catastróficos, que não deixam nada a dever aos piores planos de ministros homens e trabalham fora e dentro de casa. E como trabalham!

As mulheres mudaram e muito! Quase mais nada existe daquela frá- gil figura feminina romântica, que só falava baixinho, se movimentava dis- cretamente e se continha apenas nos assuntos domésticos. Mas, de que mu- danças falamos, de que mulher, em que condição?

Mudou a participação feminina no mercado de trabalho brasileiro (15* da PEA em 1940,18% em 1979 e 38% em 1989), mudaram as rou- pas (calcinhas, anáguas, sutiãs, calça comprida, biquíni, bolero), mudaram os hábitos (fumar na rua, parar em balcão de bar, ir ao cinema sozinha, ficar noiva, andar do lado de fora da calçada, beijo na mão, convidar pra dançar, pedir em namoro...), mudou a vida (filhos na creche, casar, se se- parar, supermercado, fábrica, ônibus cheio, morar sozinha, ter filho sozi- nha, tomar pílula, fazer aborto, dar queixa na delegacia...). Ao lado des- sas, outras mudanças culturais, econômicas, éticas e morais das últimas dé- cadas que não atingiram somente a mulher, mas a sociedade em seu conjun- to, das grandes metrópoles ao povoado mais remoto da África ou do nor- deste brasileiro, as transformações que atingiram a mulher nesse período, são marcadamente mais profundas e estruturais. A legislação, o mercado

de trabalho, a vida, o cotidiano da mulher e da família tem conotação mais marcante de mudança do que nas muitas décadas passadas. No Brasil, a queda de fecundidade de 6 filhos por mulher em 1940 para 3 a 4 em 1980, a já referida entrada no mercado de trabalho e o grau de igualdade jurídi- ca alcançados na Constituição de 1986, são alguns marcos que nos dão a idéia do porte dessas mudanças.

Trabalhar fora, ter menos filhos, ter igualdade legal na família com o fim do pátrio poder, regulamentação do divórcio, etc, tudo faz parte de uma grande oficina social que vai forjando, de fato, uma nova mulher mais consciente, ativa, reívíndícadora, politizada e inserida no mundo so- cial. Mas, que mundo social é este em que a mulher se insere? Um mundo de crise profunda, de um capitalismo decrépito que vai sobrevivendo sem- pre às custas de mais vítimas, miséria, guerra e exploração. O Brasil, que já vinha esmagado pela crise estrutural de um modelo dependente, latifun- diário e monopolista, com o Governo Collor, vem vivendo um aprofunda- mento acelerado das dificuldades do povo. O desemprego, só em São Pau- lo, nos meses de janeiro e fevereiro de 1991 já atingiu 63.000 trabalhadores, a produtividade da indústria está a níveis mais baixos que de 1981, p PIB decresce, sem sinais de recuperação e o salário mínimo tem o menor poder aquisitivo de toda sua história. A fome atinge adultos e crianças e a subali- mentação é uma realidade para mais de 1/3 dos brasileiros, doenças já ex- tintas como a malária, dengue e cólera, voltam e se juntam às outras ende- mias como a tuberculose, hansemase, chagas e esquistossomose o analfa-

Prostituição e Lenocínio

A prostituição não é um problema mo- JLM demo, pois já existia entre os povos

-A A. antigos, cujos legisladores também se preocuparam em estabelecer medidas destina- das a dar combate a um tipo bem definido de elemento nocivo ejá considerado como despre- zível, o explorador de mulheres.

A prostituição pode ser conceituada co- mo sendo a atividade de mulheres permitindo a posse carnal a indeterminado número de ho- mens, mediante pagamento. Não é afirmativa ousada dizer-se que, na maioria dos casos, as mulheres que chegam a dedicar-se à prostituição o fazem por falta de habilitação para outras ati- vidades ou porque ibaoriamente acham que i mais suave a vida de meretriz do que a de quem se entrega a trabalhos normais, árduos e pesados.

Sem a mínima sombra de dúvida pode- mos afirmar que a "causa das causas" da pros- tituição í o estalo de miséria que atinge gran- de parte do povo brasileiro. A recessão econô- mica, o desemprego, o subemprego e os salários baixos são fatores que levam à prostituição.

Elaine Matozinhos R. Gonçalves De um modo geral é de se ver nas prosti-

tutas umas infelizes, porque com raras exceções, são de classe de pessoas que não têm a natural ambição de mudar de vida, sendo, o pior peca- do da prostituta, a cegueira do seu estado de escravidão - o não querer ver.

As meretrizes, enquanto novas, enquan- to seus encantos físicos atraem a sexualidade dos homens, acham tudo relativamente bem. Porém se não acontece que motivos quaisquer determinem súbita ou rápida diminuição na atra- ção que podem exercer, a ação inexorável do tempo, ajudada pela irregularidade do viver, se encarregará de determinar uma progressiva deca- dência, em correspondência ao progressivo de- créscimo na atração, até a miséria física, finan- ceira e moral, tudo isto sem contar as doenças sexuais e, notadamente a Aids, que estão soltas, fazendo como principais vítimas, as prostitutas. Então, sem família, sem amigos e sem amparo, restam-lhes o hospital ou o asilo ou então a an- tecipação da morte, através do suicídio. E tu- do isto com o desprezo ou indiferença da socie-

mUNÇA DA MULHER

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betismo e a evasão escolar são regra na área da educação. Qual é o impacto desse quadro sobre essa nova mulher? Seu empo-

brecimento é ainda maior que o dos homens. A instabilidade das relações conjugais leva um grande número de mulheres a ficarem sozinhas cora seus filhos, sendo chefes de família, ou até sustentando companheiros desempre- gados; a realidade do subemprego e dos empregos temporários, principal- mente na área de serviços, lhe dão piores condições de trabalho e ela não conta com a carteira assinada, estabilidade ou qualquer seguridade social; a comida pouca, é dada aos filhos e ao marido e as gravidezes e abortos depauperam-na ainda mais; a administração da miséria, educação dos fi- lhos, falta de assistência, atingem também sua saúde mental, num clima de angústia permanente. Ela, sem dúvida, paga uma taxa adicional dessa dívida.

Em outubro de 90, os jornais denunciavam que 500.000 meninas adolescentes se prostituíam no Brasil, segundo dados da CBIA (Centro Bra- sileiro para a Infância e Adolescência), jovens bonitas são praticamente rap- tadas e levadas para o Japão em busca de "sucesso na vida"; o prefeito de uma cidadezinha no interior da Paraíba,"denuncia que pais vendem suas filhas de 10 a 12 anos, a CrJ 200.000,00 e o destino dessas meninas é a pros- tituição; crimes violentos são noticiados freqüentemente nos jornais, atin- gindo mulheres de classe média alta, aliados ou não a drogas, roubos, estu- pro e, muitas vezes, relações familiares conturbadas; mais de um milhão de jovens, menores de 19 anos, são mães e 800.000 meninas perambulam pelas ruas, potencialmente prostituídas, como única saída de sobreviver ao abandono e à miséria.

Estes dados revelam condições comuns em que grande parcela das mulheres é obrigada a enfrentar esse novo quadro de mudanças. Engravi- dando muito cedo, ainda adolescentes, sem uma relação conjugai estável, ironicamente livres daquele pai que levava o noivo na delegacia com um re- vólver nas costas e forçava o casamento; sozinhas nas ruas, desde peque- nas, pela ausência de creches e escolas que as acolham, enquanto a mãe tra- balha, iludidas pelos modelos de vida fácil e erótica das jovenzinhas da

TV e das revistas das "galinhas", as jovens se vêem sós e mães em cidades grandes que as atraem e as rejeitam. Grande número de mulheres adultas arca sozinha com os filhos. Estes, sem perspectivas de emprego e estudo, são muitas vezes sustentados por elas até a velhice, quando não trazem pra casa, também os netos, fruto precoce de um romance passageiro.

A mulher avançou muito. De fato, mudou bastante. Essa mudança é sem volta. Ela deixou longe a desigualdade e a submissão jurídica, o fal- so moralismo que tolhia e trancafiava seu corpo em normas rígidas de com- portamento, aprendeu muito sobre seus direitos e suas esperanças para o futuro, tomaram-se mais complexas e ricas a sua realidade e aspirações. Ela se encontra mais preparada e fortalecida para enfrentar o mundo. Mu- dou o carrasco, mudou o castigo, mas ainda recai sobre a mulher o ônus da opressão e discriminação de uma sociedade calcada em modelos de desi- gualdade e dominação. Mas, não é a liberdade de vender o corpo já aos 12 anos, nem de engravidar como um susto aos 15 anos, ou ficar sozinha trabalhando e sustentando os filhos, a liberdade buscada pela mulher. Mui- to menos, se busca a volta ao passado, passando da cadeia do pai para a cadeia do marido, reprimindo a sexualidade e o potencial de ser humano, condenadas ao único papel de ser mãe e esposa. A mulher aspira sim, o tra- balho em condição de igualdade com o homem, perspectivas profissionali- zantes, uma maternidade segura, consciente e voluntária, numa sociedade de seres livres e de mulheres livres, sem a dupla cilada de uma vida mora- lista e castradora de um lado, ou a prostituição do outro e isto, o capitalis- mo com sua máscara desbotada de prosperidade e liberdade, já demonstrou que não pode fornecer a ninguém. Pois, quando a moça do anúncio, pedin- do seu wiskie tira a máscara, surge uma jovem perdida na rua, sem escola, se vendendo para poder comer e sobreviver mais um dia.

* Sara Sorrentino é Diretora de Saúde da União Brasileira de Mulheres e integra a Coordenadoria da Mulher do Município de São Paulo.

dade, que só vê na prostituta elemento classificável na última escala social e para a qual dificilmente, admitirá a reabertura de por- tas que permitam o retorno ao convívio social. E pior que isto, com o desprezo e desconheci- mento daquele indivíduo que a explorou e conse- guiu enriquecer-se ilicitamente às suas custas.

Em meio de tanta infelicidade, de tanta miséria e desgraça social, não faltam outros se- res humanos, que vêem na prostituição uma fon- te de exploração, um manancial donde extrair recursos financeiros e fazer fortunas. Vemos, assim, mais um motivo para piorar ainda mais a vida das meretrizes.

Como não podia deixar de ser, contra a exploração da prostituição, contra aqueles que, moralmente falando descem ainda mais que as mercadoras do prazer sexual, surge a Lei Penal Brasileira, procurando combater o mal e preven- do medidas punitivas para os exploradores da prostituição. O lenocínio encontra-se inserido no Código Penal Brasileiro, Capítulo V, defini- do nos artigos 227 a 230, caracterizando os cri- mes de mediação para satisfazer a lascívia de outrem, favorecimento da prostituição, casa de prostituição, com penas de2a 5 anos e o rufia- nismo, com pena de2a8 anos.

Em Belo Horizonte/MG, segundo pes- quisa elaborada pela Pastoral da Mulher Margi- nalizada, a prostituição se dá em índice muito elevado. Existem dezenas de hotéis no centro da cidade, que sob a fachada de hotéis familia- res, são de "alta rotatividade" servindo de lo- cais para encontros para fins libidinosos.

Os dados obtidos apontaram o seguinte: - foram levantados a existência de 918

(novecentos e dezoito) quartos. Segundo infor- mações, as mulheres "batalham" em dois tur- nos e algumas fazem os dois turnos (em menor número).

- levando-se em conta os dois turnos, ca- da um dos 918 quartos são usados por duas mu- lheres, o que indica, somente em 23 hotéis, a existência de 1826 (um mil e oitocentos e vinte e seis) mulheres.

Considerando que cada uma das mulhe- res atende uma média de dez a trinta homens por dia, se pegarmos o índice menor 10 (dez) para uma sexta ou sábado, quando é maior o movimento, vamos chegar a um número alar- mante de homens que passam pelos hotéis: 18.260 (dezoito mil duzentos e sessenta) homens em dia de sexta ou sábado. Há mulheres que no final de semana, atendem de 20 a 30 homens.

o que aumentaria ainda mais o número de homens. A Delegacia Especializada de Crimes

Contra a Mulher de Belo Horizonte e o Juiza- do de Menores dessa Capital realizaram conjun- tamente um trabalho de combate ao lenocínio, aos exploradores da prostituição, onde consta- tou-se que nos locais, além de mulheres meno- res, encontravam-se também armas, drogas e até mesmo pessoas condenadas e foragidas da justiça. Constatou-se, também, que os explora- dores da prostituição auferem com esta "ativida- de" verdadeiras fortunas, sendo os proprietá- rios desses prostíbulos possuidores de latifún- dios e até aviões, às custas, obviamente da infe- licidade alheia.

Apesar do trabalho desenvolvido em Be- lo Horizonte sabemos que o grande culpado da prostituição é o sistema. A maior parte das auto- ridades é omissa - Sabem da ilegalidade do leno' c/mo, mas prefere fechar os olhos.

Elaine Matozinhos Gonçalves é delegada de polícia, classe especial, em Belo Horizonte - MG

PRESENÇA DA MULHER

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CAPA

O Feminismo dos anos 90 desafios e propostas

Cerca de 2.500 mulheres participaram entre 18 e 23 de novembro em San Bernardo, Argentina, do V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe. O documento que publicamos foi fruto do debate entre cem mulheres de um grupo, encarregadas de levantar os desafios e propostas que se colocam para o movimento feminista nesta década. Por condensar novas opiniões sobre o feminismo é que resolvemos publicá-lo na íntegra.

Z ENCUBTOO FEMNSI* LAriKOAMERICANO

Y Da CAMBE

O movimento feminista cresceu visível e vertiginosamente em todo o continente ao longo destes últimos dez anos.

É um crescimento desencadeado nas mais diversas situações, de transi- ção democrática, de democracias restritas, em situações de guerra e de violên- cia, em propostas de construção socialista, em situações de profunda crise econômica.

É um crescimento que tocou diversidades sociais, que incorporou a nosso horizonte e a nossa reflexão, de forma lenta porém indiscutível, a rea- lidade das mulheres pobres, populares, das mulheres indígenas, das mulheres negras, tingindo cada vez mais o movimento com as caracteristicas multicultu- rais e pluralmente étnicas do continente.

É um crescimento que permitiu acumulação de muitas experiências de vida e de novas rebeldias.

É um crescimento que permitiu, dentro das características nacionais, uma legitimação social e política do movimento em seu conjunto e de sua proposta de transformação.

É um crescimento que nos enriqueceu com diferentes enfoques, com novos temas.

É um crescimento que nos dá força, que potência nossa rebeldia cole- tiva, que alimenta nossa audácia.

Mas é um crescimento que nem sempre encontrou canais desobstruí- dos para sua expressão.

Que foi mais quantitativo do que qualitativo. Que diluiu em alguns momentos nosso caráter subversivo ao diluir-se,

por sua vez, em outros movimentos e reivindicações. Que está colocando para nós problemas de democracia interna, de li-

derança, de estruturas do movimento, de construção de novos conhecimen- tos, de melhores canais de comunicação, de propostas de continuidade, e que nos apresenta o desafio de pensar nosso movimento para transformar a rique- za quantitativa em qualidade política e vital.

Por isso, entrando na década de 90, o movimento necessita recuperar algumas pistas de reflexão e ação que nos permitam expor nossa proposta

frente às novas exigências e necessidades das mulhe- res de nossos países e de nosso continente. E que nos ajudem a consolidar um movimento fe- minista democrático, efetivo, eficaz, acolhedor, au- daz, no qual todas nos sintamos representadas.

I - A diversidade

Reconhecemos e buscamos a diversidade, em relação a uma perspectiva feminista assumida e comprometida com seu desenvolvimento e consoli- dação. A proposta feminista se desenvolve e se ex- pressa em dois níveis:

a. Como proposta de transformação global para o conjunto da sociedade. Nela, o feminismo

M^^BMwa^ expressa seu corpo de conhecimentos políticos, cul- turais e simbólicos, sua confrontação e ruptura pro- funda com a lógica patriarcal, seu sistema ético e

de valores. A partir dela, estabelecemos as buscas de novas propostas e desafios. Esta proposta de transformação, comum em seus valores fundamen-

tais ao feminismo latino-americano, se concretiza e enriquece com as realida- des históricas e atuais de cada país e com o sistema ético específico do femi- nismo em cada expressão nacional.

b. Desenvolve-se também como eixos temáticos e propostas de ação, que partem desta proposta global, reconhecem as urgências e possibilidades de cada situação concreta e atuam sobre elas.

A proposta global do movimento se enche de conteúdo e se alimenta, incorpora respostas e reconhece desafios a partir do desenvolvimento dos ei- xos temáticos e propostas de ação.

Assim, o movimento feminista não é uma somatória de ações ou te- mas, nem uma pauta de reivindicações, mas um movimento político.

A diversidade de enfoques e propostas surge no processo de constru- ção deste movimento político, enriquecendo-o permanentemente.

No entanto, a diversidade é conflitiva e complexa. Porque há diversi- dades que se complementam e enriquecem mutuamente, outras que se confron- tam produtivamente, algumas que são falsas diversidades e muitas não são comentadas. Estas últimas são as que mais nos preocupam.

Porque nem sempre recuperamos a historicidade e as conexões de nos- sas diferentes práticas. Nem sempre conseguimos expressar como proposta as diferentes referências de que partimos. Não reconhecemos a diversidade apenas em teoria, mas atuamos com ela de forma pragmática, imediata e às vezes arbitrária.

Não expressamos as diferenças porque presenciamos rupturas doloro- sas e profundas dentro do movimento nesta década, porque tememos perder segurança coletiva, porque finalmente cedemos à cultura da intolerância. Es- tas diversidades não expressas debilitam o caráter subversivo do movimento.

Como respeitar, no entanto, diversidades que nos paralizam, que são subjetivamente arbitrárias, que nos descomprometem da ação coletiva?

O único limite que o respeito à diversidade encontra é seu confronto

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com a vontade política de construção de um movimento com capacidade re- al de intervenção a partir de suas perspectivas particulares.

Com base nisso podemos abordar a diversidade com duas posturas básicas:

- com confiança, assumindo que existe um projeto comum, que con- cretizamos através de múltiplas estratégias de ação.

- a partir da confrontação clara e explícita, com respeito a regras de jogo claras, com o jogo das maiorias e minorias, sem pretender consensos. A confrontação é uma prática de crescimento e avanço.

Explicitadas as diversidades, a liberdade de ação é uma garantia de avanço e um direito. A articulação da diversidade não pode ser uma camisa de força que obscurece iniciativas e freie vontades.

II - A Construção do Movimento

/. A democracia O movimento feminista assume a democracia interna como o contex-

to intrínseco e vital de seu desenvolvimento. No entanto, a democracia não é uma vontade abstrata e sim a fusão

de regras de jogo claras que permitam a expressão e representação da diversi- dade do movimento.

É fundamental gerar espaços de mediação a partir da explicitação das diferenças e acordos. Explicitando as dificuldades pessoais e coletivas na cons- trução da democracia na pluralidade podemos encarar com maturidade e so- lidariedade as distorções autoritárias que se expressam de forma recorrente em nossas práticas pessoais e coletivas.

É fundamental buscar formas de trabalho que expressem a diversida- de, aceitem as diferenças e habilidades individuais, superando o mito de que todos somos iguais, que conduz a uma espécie de ineficácia coietivista que paraliza o movimento.

A democracia na pluralidade requer construir o movimento com ima- ginação e audácia, através de formas criativas, capazes de romper as estrutu- ras simbólicas patriarcais através das quais concebemos a ordem e interpreta- mos o mundo.

Para isso, precisamos de estruturas flexíveis, capazes de gerar cone- xões e comunicações que nutram permanentemente o movimento e suas par- tes, para evitar, de um lado, os riscos de concentração de poder e, de outro, o individualismo caótico.

Estas estruturas são mutáveis de acordo com as transformações e ne- cessidades do movimento e o contexto em que se insiram. As mudanças na estrutura visam melhorar a qualidade do jogo político do movimento e não apenas expressar estados de ânimo pontuais.

A estrutura é fundamental para construir o movimento, mas o movi- mento não se esgota nela nem as mulheres se tornam feministas apenas por participar de suas estruturas organizativas. O movimento expressa-se em to- das as iniciativas ami-patriarcais que as mulheres feministas desenvolvem em diferentes espaços. Daí a importância de nos reconhecermos mutuamen- te e de estabelecer os laços e conexões necessários para o fortalecimento da proposta feminista, em qualquer lugar que se encontre.

2. A liderança As lideranças representam, real e simbolicamente, características e ne-

cessidades diversas do movimento em cada momento de seu desenvolvimen- to. O avanço e complexidade da proposta feminista criam a necessidade de gestar permanentemente novas lideranças, que assegurem a continuidade his- tórica e impulsionem novas e mais amplas presenças.

No entanto, o movimento tem dificuldades de reconhecer, assumir e outorgar lideranças. Nossos medos históricos de ficar excluídas, de que deci-

dam em nosso nome, de que nào nos sintamos representadas continuam ron- dando o movimento. Estes fantasmas só poderão se desvanecer se estabelecer- mos claramente mecanismos democráticos de comunicação, de eleição e de troca. Se reconhecermos as capacidades e habilidades especificas a nível pes- soal e coletivo e as pensarmos de forma complementar e nào exclusiva. Isso é mais factível agora, porque o avanço do movimento produziu possibilida- des de uma liderança mais coletiva. Não é uma mulher que contém todas as nossas necessidades e exigências, somos muitas as que contemos e expressa- mos, em diferentes momentos e situações, as exigências e iniciativas do movi- mento.

Temos diferentes tipos de lideranças: umas brilhantes e expressivas, outras mais opacas; umas públicas, outras em espaços restritos do movimen- to; umas formais e outras informais. As informais são as mais perigosas, porque não se explicitam abertamente e não prestam contas a ninguém de seus atos.

O movimento deve ter a capacidade de construir, eleger e substituir formalmente suas próprias líderes, para evitar que sejam eleitas, de fora, co- mo interlocutoras, aquelas que não apostam na construção do movimento.

É necessário assegurar conteúdos democráticos em nossas lideranças e isto só é possível através da reflexão sobre que seres humanos queremos construir, como vamos fazê-lo, a partir de que referências e conhecimentos é possível consegui-lo. Construir novas concepções de vida e não apenas de alguns de seus aspectos é, talvez, o maior desafio do movimento. Mas nào há construção possível sem o reconhecimento de nossa história e isso passa também pelo reconhecimento da contribuição e função de nossas líderes histó- ricas, que impulsionaram a construção do movimento com audácia e criativi- dade em situações mais adversas e difíceis do que as que hoje enfrentamos.

3. Produção de conhecimentos Aprofundar e ampliar o caráter e o conteúdo dos conhecimentos que

alimentam o corpo teórico da proposta política feminista constitui um enor- me desafio. Somente a consciência e o desafio de reconhecer que somos por- tadoras e interlocutoras de um novo saber nos permitirá avançar. Necessita- mos produzir conhecimentos em relação às transformações e aos novos desa- fios econômicos e políticos do continente e as pautas simbólico-culturais que têm processo mais lento de transformação.

Necessitamos produzir conhecimentos a partir de nossas práticas pes- soais e sociais, o que implica transformar o campo das experiências em cam- po de teorização.

Necessitamos produzir conhecimentos a partir da reflexão nos cam- pos metodológicos, buscando novas leituras das realidades no que tange ao movimento.

Necessitamos incorporar novas especializações e habilidades ao movi- mento, para tornar nossa ação competente e eficaz no mundo social e político.

Necessitamos garantir a fluidez na circulação dos diferentes conheci- mentos, gerando novas formas de relação entre a prática e a teoria, que não se sustentem em hierarquização ou valoraçào diferencial.

4. Os centros feministas e o financiamento Os centros feministas contribuem para a produção de conhecimentos

sobre a realidade das mulheres, fortalecem e democratizam a sociedade civil a partir da proposta feminista, geram ações e apoio ao amplo movimento de mulheres e geram um importante espaço de interação entre mulheres de diferentes setores sociais e diferentes experiências de vida.

No entanto, sempre houve clareza sobre as diferenças de dinâmicas entre os centros e o movimento. As feministas dos centros enfrentam uma série de dificuldades em sua prática cotidiana. Seu trabalho, geralmente orien- tado para o movimento de mulheres, produziu em alguns casos problemas

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de identidade. Estabeleceu-se uma distância entre as propostas para o traba- lho externo e os processos de crescimento interno, pessoais e coletivos. Gerou- se o mito da promotora feminista a serviço do movimento de mulheres, ao confundir a dinâmica do movimento feminista com a dinâmica do movimen- to de mulheres ou ao pretender submeter uma lógica à outra.

Também corremos o risco de fragmentar a proposta e a ação ao reali- zar um trabalho localista, autocomplacente, de pequeno alcance, sem fazer as necessárias conexões entre este e a proposta política do movimento, o que compromete a eficácia e a consolidação do feminismo em outros espaços. A competência e as dificuldades de coordenação dos centros feministas que atuam sobre um mesmo tema ou um mefrao espaço levam muitas vezes a que as ações se superponham, se repitam, sejam múltiplas e desconectadas entre si, saturando o espaço e lesando a autonomia do amplo movimento de mulheres.

Por sua vez, o movimento feminista resistiu durante muito tempo a assumir os centros feministas como parte de seu crescimento e desenvolvimen- to. Exigências aos centros, de levar a proposta feminista sem mediações ao movimento de mulheres ou a auto-censura por parte dos centros para avan- çar nas propostas mais feministas em seu trabalho cotidiano com as mulhe- res fizeram, em alguns momentos, com que esquecêssemos que as diferentes vertentes que alimentam o movimento precisam manter uma relação mais flui- da entre si e com o amplo movimento de mulheres, resolvendo em conjunto a falsa contradição entre as lutas pela sobrevivência e as lutas contra a opres- são sexual. A qualidade de vida das mulheres dos setores populares e campo- neses tem tanto a ver com a situação econômica e de serviços quanto com sua dignidade enquanto seres, com a violência e o aborto, com a democracia e a participação.

Os problemas decorrentes do financiamento geraram outro dos nós mais visíveis do movimento.

Conseguir financiamento requer esforços e qualidade na proposta dos centros, fortalece sua ação e amplia sua capacidade de intervenção. Mas tam- bém pode gerar um poder diferencial, ao concentrar-se em alguns centros. Este poder diferencial é ainda mais nocivo quando se transporta ao movimento.

Apenas explicitando as dificuldades, compartilhando contatos, buscan- do ações coletivas, que reforcem ainda mais centros e instituições poderemos começar a abordar este assunto com seriedade.

Isto pode garantir mais segurança e força para evitar a dependência em relação aos financiadores, para negociar nossas condições e expor nossas prioridades.para estabelecer uma interlocução entre os centros do sul e as agências do norte, especialmente com as mulheres destas agências; para con- seguir dar um conteúdo diferente e democrático à cooperação internacional. Isto é ainda mais importante porque a percentagem de financiamento orienta- do para organizações feministas da América Latina e do Caribe em alguns casos não chega nem a 3% do montante global de cooperação na região.

III. A interlocução

A ação política do movimento e sua interação com a sociedade pressu- põem uma elaboração concreta e conjuntural em cada país.

A reestruturação do Estado, o aguçamento dos efeitos da crise, o apro- fundamento da democracia, são alguns dos desafios que o feminismo dos anos 90 enfrenta, tanto para o debate e confronto com o sistema patriarcal como para a elaboração de alternativas transformadoras para as mulheres e para a sociedade.

Nas ricas e diversas modalidades de interlocução que o movimento experimentou na década passada em relação a outros setores sociais, organi- zações partidárias e instituições estatais, geraram-se diferentes posições a res- peito de como abordar o diálogo e o confronto. Existe maior acordo quan- to à interação com alguns movimentos sociais e grupos específicos, como os ecologistas, pacifistas, homossexuais, étnicos, buscando enriquecer e ampliar a proposta de transformação. Há maiores divergências quanto à forma de assumir a interlocução com partidos políticos e especialmente com o Estado. São posições que vão desde a negação a qualquer tipo de diálogo, passando pela mediação e a negociação para ganhar espaços, até as que terminam sub- metendo suas práticas a lógicas que não nos pertencem.

Na base deste debate há diferentes realidades nacionais e diferentes possibilidades de influenciar e/ou pressionar o Estado. Tendo presente que este é um terremo de legitimidade patriarcal por excelência, é também impor- tante reconhecer que o Estado não é sempre homogêneo nem monolítico e que apresenta espaços mais permeáveis que outros à pressão e reivindicações das mulheres. Pode ser mais fácil a aproximação das mulheres com o Esta- do a partir dos governos locais, ou do poder legislativo do que com outras expressões como o poder judiciário e seus procedimentos.

Em todo o caso, é necessário formular alguns critérios para o debate e a ação, tais como: a) Explicitar as diferenças no debate concreto, responsa- bilizando-nos pelas opções assumidas; b) Analisar e avaliar os espaços que nos são oferecidos, as experiências criadas, seus limites, se contribuíram ou não para o reconhecimento da necessidade de buscar soluções para alguns aspectos flagrantes de nossa subordinação; c) Entender esta relação como mutável e dinâmica, tanto devido à conjuntura política concreta de cada pa- ís quanto à capacidade e desenvolvimento do movimento, o que implica em rever permanentemente nossas forças e, com base nisso, determinar os limi- tes de nossa relação com o Estado, tratando de impor regras de jogo demo- cráticas; d) Imprimir um marco ideológico e político a nossas propostas, bus- cando evitar a cooptação e a democracia dos políticos de turno; e) Evitar o risco de uma autonomia defensiva que limite a audácia e a criatividade de nossa política; f) Reconhecer que na prática política feminista nossas opções e elaborações estão em interação com as diferentes interpretações da realida- de. Ou seja, que não nos diferenciamos apenas por nossas práticas mas tam- bém pela forma com que concebemos a utopia transformadora para o con- junto da sociedade; g) Assumir que o estabelecimento de espaços de interlocu- ção com governos, partidos e movimentos sociais, limites, alianças e negocia- ções devem ser fixados a partir dos interesses do movimento.

Na década de 80 o desenvolvimento das lutas feministas e a expansão de sua proposta conseguiram permear a sociedade civil e suas instituições po- líticas. Hoje, parte das reivindicações das mulheres foi assumida por outros movimentos sociais, por governos e partidos. Devemos resgatar isso como uma conquista e um desafio.

A articulação entre o corpo de conhecimentos do feminismo e as rei- vindicações concretas que surgem das práticas das mulheres, em interação com a sociedade e seus diferentes atores, é um campo de ação e elaboração política permanente, que enriquece o movimento. Não abrir esse campo de interação nos reduz à enunciação de reivindicações, debilita nossa interlocu- ção frente a organizações sociais, partidos políticos e inclusive o Estado.

* liste documento foi o resultado da discussão de mais de 100 mulheres durante três dias no V Encontro Feminista Latino-americano e do Cari- be. O grupo foi coordenado por Gina Vargas e Esteia Sudrez. As relato- ras do grupo foram Carmen Gangotena, Elena Tapia. Cristina Martin, Ximena Bedregal e Lilian Celiberti. A redação final ficou a cargo de Gina Vargas, Esteia Sudrez. Liliam Celiberti, Ximena Bedregal, Cristi- na Martin e Neuma Aguiar.

• A tradução do espanhol foi feita por Olívia Rangel.

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i DEPOIMENTO/CAPA

Falam as feministas latino-americanas

Entrevista a Ana Maria Rocha *

Líderes do movimento de mulheres presentes ao V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe opinam sobre a situação política de seus países e a luta das mulheres.

Guatemala

Sílvia Solerzano Foppa - dirigente da Unidad Revolucionária Nacional Guatemalte- ca (frente política e militar que leva a luta na Guatemala). Sílvia foi homenageada no V Encontro por ser filha de Alaíde Foppa, m—^mm^^mmmmm— feminista que no México deu grande contri- buição ao feminismo.

Falando sobre o movimento revolucionário na Guatemala, Sílvia afirmou:

"A luta revolucionária na Guatemala tem sido uma luta muito longa, muito dura, muito cruenta. Dentro desse transcurso, foi ura pro- cesso de muita aprendizagem, muito transformador para mim. Minha participação em diferentes tarefas levou quase 20 anos, uma vida!!!

Desde seu surgimento, o movimento lutou pela transformação nas estruturas econômicas e da situação de terrível injustiça, opressão, discriminação. No momento a preocupação é a chegada de um governo civil. O exército fez uma proposta de diálogo para buscar uma solução política para o conflito da Guatemala. Essa tem sido nossa exigência permantente que o governo tem rechaçado. Mas apesar disso, acredita- mos que, em 90 foram dados passos importantes. Estamos convencidas de que os principais problemas da Guatemala podem ir sendo soluciona- dos pela via política. Faz falta um consenso nacional, a participação de todas as forças políticas e sociais da Guatemala e por isso durante o ano de 90 se realizaram uma série de conversações entre o comando da unidade revolucionária nacional guatemalteca e representantes das for- ças sociais e políticas do país. E isso abriu novas possibilidades e pers- pectivas nesse processo de busca da paz. Definitivamente nós somos um movimento, que está convencido e vai seguir lutando para encontrar essa transformação. Creio que neste momento, a meta e o objetivo seria a construção de uma verdadeira democracia".

Referindo-se à participação feminina na luta revolucionária, Síl- via afirmou:

"O movimento revolucionário sempre esteve consciente da neces-

BMCUBvíTRO FEMINSIA LATINOAMERICANO

Y DEL CARIBE

sidade de incorporação da mulher e houveram esforços específicos para isso. Dentro do movi- mento revolucionário tem havido muita partici- pação da mulher e uma transformação da mu- lher paralelamente aos homens. Em outras esfe- ras da sociedade, devido à mesma situação de repressão, houve pouca possibilidade de organi- zação e é bastante recente a criação de grupos feministas, organizações de mulheres especifica- mente. Só há três, quatro anos isso se deu e sur- gem com um nível de amadurecimento. As orga- nizações das viúvas de guerra lutam para que o exército não as violem, para que a ajuda inter- nacional das viúvas não seja utilizada pelo exér- cito, senão que chegue diretamente às vítimas de guerra. Em outros âmbitos há organizações

^—^—— de mulheres que trabalham mais especificamen- te com a questão de gênero. Embora recentes,

essas organizações têm uma certa solidez, emboram não sejam massivas." Opinando sobre o V Encontro feminista ela declarou: "Chegamos aqui como um movimento revolucionário e sentimos

que o abismo que existiu em décadas passadas entre as revolucionárias e as feministas foi superado. Foi um processo gradual e neste encontro vemos reivindicações comuns, há consciência das feministas de que são indispensáveis às transformações sociais e há consciência das revolucio- nárias de que é indispensável a luta de gênero.

Bolívia

Agueda Burgos Paputsakis - Advogada e conselheira municipal da Bolívia; Membro da Frente Revolucionária de Esquerda (FRE)

Quanto à situação política da Bolívia, ela afirmou: "A situação política e econômica de nosso país é alarmante devi-

do à crise geral que existe. E como a Bolívia não está à margem, sofre também uma profunda crise econômica, existe muito desemprego, misé- ria. Há uma piora dos serviços de saúde e educação devido à política im- posta pelo FMI (Fundo Monetário Internacional). Essa situação afeta diretamente às mulheres que neste momento estão servindo de colchões amortecedores dessa crise, porque têm de fazer malabarismos para esti- car as parcas rendas que tem a família."

Avaliando a situação e a luta da mulher boliviana, ela declarou: "A situação da boliviana é de discriminação não só na lei como

na vida, no exercício de seus direitos. E logicamente, dentro dessas dis-

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Alice de Oliveira

Botivianas u passeata de 5 mil mi i Aires, por ocasião do encerramenlo do V Encontro Feminista I.alino-Americano e do Caribe.

eliminações, existem problemas mais pontuais, como a violência no lar, a discriminação no trabalho, como o fato da não admissão de mulheres grávidas.

Há também a violência na própria sociedade: em nosso país exis- te a diversidade de nacionalidade. As pessoas do povo são discriminadas pela pequena minoria que controla o poder político e econômico.

A educação também está sendo pouco a pouco privatizada impe- dindo o acesso das camadas populares à educação. E nesse sentido, a mais prejudicada é a mulher. Por ser mulher é mais difícil ascender a qualquer tipo de formação, seja formal ou não.

Existem também leis vigentes que são discriminatórias. Por isso na Bolívia está surgindo um movimento em favor da mulher, embora não como uma corrente feminista, mas como um desejo das mulheres de assumir a defesa de seus direitos.

Existem organizações de mulheres pelos bairros, como os centros e clubes de mães, que são organizações muito grandes na Bolívia. Mas infelizmente o motivo de sua existência são os alimentos.

O que estamos tentando é fazer com que tomem consciência de organizar as mulheres não só pelos aumentos, mas também como uma forma de defender-se. Existem também organizações de mulheres campo- nesas, como a Federação de Camponesas Bertolina Sisa, uma das orga- nizações mais avançadas na Bolívia no que se refere à defesa e análise da situação da mulher.

Temos outros tipos de organizações que existem em função de objetivos concretos. Na maioria dos casos são organizações de benefici- ência, que trabalham pela saúde."

Argentina Isabel Lerguia- argentina, autora de vários livros sobre a questão

da mulher, viveu em Cuba 27 anos. Durante o encontro foi coordenado- ra do grupo Feminismo e poder político. Declarou:

"Penso que o feminismo nos 25 anos de seu surgimento neste sé- culo, como instrumento teórico, como uma nova visão do mundo, com sua conseqüente metodologia e filosofia, com sua penetração nas acade- mias, sobretudo nos países desenvolvidos, assentou em seus 25 anos de existência a análise sobre os vínculos que se estabelecem na vida priva- da, ou como dizem muitas feministas, o privado político. Somente ago- ra está ocorrendo um fenômeno a nível mundial em que este feminismo acumulou tantos avanços que se tornou um movimento importante".

Analisando a luta das mulheres na Argentina, Isabel afirmou: "Pensamos que na Argentina as mulheres estão na luta pela ta-

xa. A taxa é uma proporção obrigatória de mulheres nos cargos eletivos e partidários, nos sindicatos. Creio que isso é importante porque seria a forma de assegurar às mulheres dos setores populares. Em nosso país as mulheres constituem a maior parte dos movimentos sociais, mas quan- do chega na cúpula só há homens, Esta seria uma das formas pela qual as mulheres de setores populares poderiam chegar à grande estrutura do estado e à direção política. Isso é importante para criar uma verda- deira democracia, chegar a uma nova forma de fazer pohtica, sobretu- do no que se refere às mulheres das bases populares. Creio que nesse sen- tido a criação da rede de feminismo e poder político cumpre essa função uma vez que a interrelação entre os países da América Latina vai ajudar para que nos distintos países, as mulheres se sin-

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iam imerapoiadas por sua força. 0 feminismo na Argentina ainda não conseguiu ampliar-se. Pre-

domina ainda o pensamenti radical, talvez mude com este V Encontro. Este é um momento de acumulação, uma vez que o feminismo argenti- no é muito jovem, já que no período da ditadura não houve nenhuma possibilidade nem de evolução da mulher, nem de se falar de feminis- mo. Além do mais, durante esse período se acentuou muitíssimo o cará- ter machista, o autoritarismo. Se culpabilizou bastante a mulher, refor- çou-se seu papel de dona de casa, de mãe. Por todos os meios de comu- nicação se culpabilizou às mães pelo que faziam seus filhos, e quem sa- be pelos 30 mil mortos. E a mulher sofreu com o reforço de sua culpa. Tudo isso fez com que houvesse muita perda do feminismo na Argenti- na. Havia uma feminista simpática que dizia: "não há um movimento feminista muito estruturado na Argentina, mas sim muitas feministas em movimento. As mães da Praça de Maio são um grande símbolo da resistência das argentinas".

Peru

Aidi Garcia Nannjo - integrante do Partido Unificado Mareate- guista, Regidora de Lima - Peru.

Falando sobre a situação da mulher peruana, ela afirmou: "O governo criou um programa de emergência social, pretenden-

do oferecer comida, emprego, à população que carece de recursos econô- micos. Mas esse programa não vem sendo cumprido, o que aguçou a cri- se para a mulher. No movimento popular de mulheres, existe um ascen- so da luta da mulher peruana que levou a uma importante tomada de consciência e neste ano teve lugar o 1? Congresso da mulher mineira, o 1? Congresso da mulher rendeira (do serviço de auto-defesa na luta con- tra o terrorismo, contra o saque, contra o roubo e que tem forma de organização e luta pela auto-defesa camponesa e popular). Também foi realizada a 2? Convenção metropolitana do litro de leite, que são orga- nizações de mulheres pela sobrevivência, que atendem a 1 milhão e 700 mil crianças. É uma rede de organizações de assistência de 200 mil mu- lheres que evidentemente ganharam posições populares e as posições que se opõem ao programa de choque. Existe também a Federação Departa- mental das Mulheres de Puno, a Federação de Mulheres de Vila El Sal- vador, a Centralização da mulher mineira, a centralização das rendeiras. Não existe uma centralização única, nem de mulheres, nem feminista. Existe muitíssimas organizações feministas, e muitíssimas organizações de mulheres nas diferentes regiões, departamentos, províncias. A princi- pal reivindicação das mulheres neste momento é uma campanha nacio- nal organizada em relação ao planejamento familiar. Existe uma forte luta contra os setores mais conservadores da Igreja, porque se negam à adoção por parte das mulheres de forma livre, dos métodos anticoncep- cionais. O fato é que a luta das mulheres e do feminismo no Peru está centrada na livre escolha da maternidade, na paternidade responsável e no planejamento familiar. Uma segunda luta muito importante, que nes- te momento se faz um debate parlamentar e nacional, é do direito ao aborto para a mulher no caso de estupro. Em nosso país temos 18 mil mortos devido à guerra suja implementada pelo aparelho de estado, co- mo resposta ao terrorismo do Cendero Luminoso e temos mais de 3 mil desaparecidos. As mulheres também sofrem grandes conseqüências com essa guerra suja, porque são estupradas, tanto pela força do exército,

como da marinha, como da aviação, dos serviços especiais de combate ao terrorismo, como pelos setores do roubo comum. Nós exigimos que essas mulheres tenham direito ao aborto. Em nosso país o aborto é con- siderado crime".

Avaliando o V Encontro Feminista, Aída achou que "foi muito importante. Em primeiro lugar pelo crescimento das propostas feminis- tas, tanto do ponto de vista quantitativo, como qualitativo. O feminis- mo sai da Idade da Pedra para uma etapa em que o feminismo busca uma estratégia integral muito mais adequada aos processos e movimen- tos sociais em curso. Nós não entendemos um feminismo desligado do processo de libertação, desligado da luta, e dos processos contra a opres- são, contra o colonialismo, contra o imperialismo. Creio que, nós mu- lheres, que pertencemos a essa linha de feminsimo, conquistamos neste evento um novo espaço. Um segundo aspecto importante de resgatar é que tendo se integrado ao movimento de mulheres aqui reunidas, a pre- sença de muitas mulheres dirigentes políticas, integrantes de partidos po- líticos e que fazem política sem militar nos partidos, conquistaram espa- ço a partir da participação nos grupos de discussão. Ficou evidente uma vontade de manter uma comunicação de ordem política, não somente comunicação através de rede de saúde, de violência, ou direitos huma- nos, mas explicitamente de política. A mulher tem consciência de quais são suas reivindicações nesse campo, colocando como questão fundamen- tal, a questão do poder e a questão da política e a mulher dento do po- der e da política".

Alice cfc Oliveira

Cuba

Alicia Chamorro - da Federação de Mulheres Cubanas - Cuba.

Analisando a atual conjuntura política de Cuba e da América La- tina, ela considerou que: "o continente está vivendo um momento difí- cil devido a toda a conjuntura internacional, a situação de crise. Em nosso país, com suas particularidades estamos sofrendos as conseqüên- cias da crise, não só pelo problema econômico, como pelo bloqueio e as pressões do imperialismo. Em meio à derrocada do campo socialista, o imperialismo também quer nos atingir. Mas nosso povo está trabalhan- do fortemente para vencer e sobreviver.

Nós mulheres cubanas, também estamos trabalhando nesse senti- do, para defender o que conquistamos nesses 31 anos de revolução e po- der demonstrar que o processo revolucionário cubano, que o socialis-

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mo em Cuba é viável. Estamos seguras disso e conseqüentemente esta- mos num processo de retificação de alguns erros que cometemos, visan- do melhorar nosso sistema social.

Neste momento, a crise que passamos, nosso país está enfrentan- do o que chamamos um período especial em tempo de paz. Tomou-se uma série de medidas econômicas para garantir a sobrevivência de nos- so país. Nós vamos sobreviver e defender o socialismo!"

Falando sobre as principais lutas levadas hoje pela Federação de Mulheres Cubanas, ela disse: "Neste ano realizamos nosso 5? Congres- so e neste momento um dos problemas mais importantes que estamos trabalhando é a consciência de gênero. Nesses 30 anos tivemos grande participação e a mulher deu saltos qualitativos e quantitativos. Há uma grande participação. Pode-se dizer que 58% dos técnicos de nível supe- rior em mosso país são mulheres. Uma cifra que por si só diz bastante. Sem dúvida ainda temos de lutar pelo ascenso da mulher aos cargos de direção. Isso é uma das tarefas fundamentais. E por isso é necessário esse trabalho da consciência de gênero de nossas mulheres.

Neste momento que estamos vivendo, o trabalho que fazemos em torno da especificidade vai se unir ao trabalho político das mulheres em defesa da sociedade socialista".

Avaliando o V Encontro ela disse: "Creio que este encontro foi importante porque permitiu a todas as mulheres presentes, intercambiar idéias, intercambiar opiniões e colher ex- periências. Creio que é muito importante a união de todo o movimento feminino, tanto daquelas que se proclamam feminis- tas, como dos movimentos de mulheres, movimentos sociais, populares, para tra- balhar pelo que chamamos em nosso pa- ís, a plena igualdade da mulher. Creio que é muito importante para as cubanas, a experiência deste encontro para nosso trabalho nacional. Creio que o feminis- mo deu uma grande contribuição teórica ao movimento de mulheres. E dele apro- veitamos tudo para levar essa experiência positiva ao nosso trabalho com as mulheres.

Venezuela

Nora Castaneda - da Frente Conti- nental de Mulheres - Venezuela

Analisando a situação na Venezue- la ela afirmou:

"A Venezuela, como os demais países latino-americanos, atravessa profun- da crise, que atinge mais de 80% da popu- lação. Nosso país continua obtendo gran- des divisas em dólares porque é um país petrolífero, aproximadamente 12 bilhões de dólares ao ano, para uma população de aproximadamente 20 milhões de habi- tantes. Mas esta alta renda é cada vez mais distribuída entre uma minoria, em detrimento dos assalariados. Além do

mais, a Venezuela tem um compromisso grande com o Fundo Monetário Internacional, de pagar a dívida externa, que é a 4a da América Latina. Somos quase o único pais da América Latina que tem pago religiosamen- te não só os juros como o principal da dívida. Isso se dá devido a uma política de ajuste muito forte que deu lugar, em fevereiro do ano passa- do, a praticamente uma revolta popular, onde sobretudo a população de Caracas, saiu às ruas e saqueou praticamente todo o comércio da ci- dade. A situação não melhorou e continua sendo cada vez mais difícil, o desemprego crescendo, a economia informal proliferando. Nessa situa- ção, as mulheres levam a pior, há um processo crescente de feminiliza- ção da pobreza, e as mulheres são chefe de família em 60% dos lares na Venezuela. E como sua renda não é suficiente, são obrigadas a reali- zar não apenas uma jornada, mas duas ou três. Para socorrer 40% da população que está em situação de pobreza crítica, o governo, obedecen- do aos ditames do FMI e do Banco Mundial, implementou uns planos sociais de socorro, que visam ajudar as famílias para evitar conflitos so- ciais. Nós mulheres estamos nos organizando desde a base, de diferentes posições políticas, ideológicas, da mesma forma que os demais setores do movimento popular, para fazer frente à dificuldade de sobrevivência.

Mas não queremos dedicarmo-nos apenas à questão da sobrevi- vência, queremos ir mais adiante, ser um movimento transformador, que tire nosso país e nossas mulheres dessa situação de pobreza extrema".

Falando sobre as reivindicações da mu- lher venezuelana, ela afirmou "O princi- pal trabalho de todas as organizações de mulheres é pela reforma da lei do traba- lho. Desde 1985 estamos lutando pela re- forma da lei, na qual, por exemplo, a questão da maternidade passe a ser um problema da sociedade e não apenas da mulher. Estamos trabalhando sobretudo pelo que chamamos de fórum maternal: quando uma mulher está grávida até três meses após o parto ela não pode ser de- mitida. Isso encontrou grande resistência por parte dos empresários que estão ame- açando não só as mulheres, como os tra- balhadores em geral, afirmando que a única maneira de passar a reforma é que nós aceitemos uma nova lei de previdên- cia social. Essa nova lei, praticamente eli- mina a assistência social aos trabalhado- res, tornando mais barata a força de tra- balho, fazendo com que a Venezuela pos- sa competir no mercado internacional com seus produtos, porém às custas da força de trabalho mais barata".

Alice de Oliveira

A% H-.V.

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Nora CaslaAcdi da Vcnezueta.

* Ana Maria Rocha representou a revis- ta Presença da Mulher no V Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe.

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k OPI NI AO/CAPA

Os novos caminhos do feminismo

Jô Moraes *

A crise que o feminismo vem enfren- tando nos últimos anos é de múltipla natu- reza. Os avanços obtidos no campo institu- cional e jurídico, num grande número de países, impôs a necessidade de se pensar novas exigências. As experiências organiza- tivas diversificadas levaram a novas práti- cas. E a relação com as outras instâncias da sociedade enriqueceram o movimento, politizando-o e ampliando sua base de apoio.

Novos desafios se colocaram à nos- sa frente. Como transformar a igualdade jurídica alcançada em prática cotidiana da sociedade? Como fazer com que as conquis- tas não se tornem novos instrumentos de discriminação, como no caso da ampliação da licença maternidade? Como enfrentar a grande distância que vai entre essa igualda- de formal e a crescente degradação das condições de vida e de trabalho da mulher? Quais as novas tarefas na construção de um movimento fe- minista avançado e radicalizado que retome sua tradição?

No período mais recente, muitas alternativas são discutidas na ten- tativa de enfrentar e superar os novos problemas postos. Várias delas se relacionam com a prática concreta do movimento. Algumas se referem à concentração em bandeiras específicas tais como as relativas à saúde, particularmente à sexualidade e ao aborto. Outras se dão na priorização de setores sociais ou de organizações da sociedade como a ação junto aos sindicatos ou às mulheres das camadas mais pobres.

Com o avanço do debate chega-se a uma proposta mais elabora- da que procura transformar o movimento feminista num projeto políti- co alternativo para a sociedade.

A sistematização dessas idéias surge com força nos fóruns femi- nistas particularmente nos últimos encontros internacionais. O V Encon- tro Feminista Latino-Americano e do Caribe, realizado em novembro de 1990, na Argentina, foi um momento privilegiado dessa elaboração. E o resultado da discussão na oficina Feminismo dos Anos 90 - Desa- fios e Propostas, o seu exemplo maior.

Afirma o documento síntese da referida oficina: "A proposta fe- minista se desenvolve e se expressa em dois níveis:

1. como proposta de transformação global para o conjunto da sociedade (grifo nosso)...

2. Se desenvolve também com eixos temáticos e propostas de ação que partam dessa proposta global" (grifo nosso).

Com esse objetivo, procura-se construir uma nova estratégia de ação que tenha como centro criar as condições básicas para a realização

IL B4CUENTRO FEMNS1A LATIKOAMERICANO

Y DEL CARIBE

do novo projeto. Todo esse processo leva a uma ruptura profunda com a prática até então vigente no movimento feminista. Na construção do novo projeto há elementos que significam grande avanço na prática do movimento feminista, especialmente aqueles que se referem ao rompimento de sua guetiza- ção e os que lhe dão uma maior organicidade. Mas há também os que lhe ferem de morte co- mo a sua visão reformista de aproximação com o Estado.

Elementos da nova estratégia

É importante compreendermos os elementos fundamentais que servem de base para a nova abordagem da luta feminista. Levantamos

aqui, de forma re:umida, alguns de seus aspectos.

a) Estabelecimento de novas vivências na construção do movimento. Passa-se a combater a "prática do consenso" e da "negação de

lideranças", formas até então predominantes nos fóruns feministas. Afir- ma o documento "Do amor à necessidade", elaborado durante o IV En- contro Feminista, em Taxco, no México: "Um exemplo concreto desta política arbitrária é a idéia de que o consenso é expressão de democracia". O documento síntese da oficina O Feminismo dos Anos 90, Desafios e Propostas, do V Encontro Feminista acima referido, vai mais além: "Sobre esta base, podemos abordar a diversidade com duas posturas bá- sicas: ... na confrontação clara e explícita, em respeito e com regras de jogo claras, com o jogo das maiorias e minorias, 5enj pretender consen- sos (grifo nosso)".

Mais adiante, indica este último documento: "O avanço e a com- plexidade da proposta feminista necessitam ir gerando permanentemen- te novas lideranças que assegurem a continuidade histórica e que impul- sionem novas e mais amplas presenças" ... "O movimento tem dificulda- de em reconhecer, assumir e outorgar lideranças... O movimento deve ter a capacidade de construir, eleger e substituir a suas próprias líderes".

b) Superação do isolacionismo, interrelação com as demais instân- cias da sociedade.

O documento referido constata que "hoje, parte das demandas das mulheres tem sido tomada por outros movimentos sociais, por go- vernos e partidos". E, ao contrário da sensação que essa constatação causou no 111 Encontro Feminista, em Bertioga, São Paulo ("roubaram

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nossas bandeiras!"), dessa vez diz-se: "devemos resgatar isto como uma conquista e um desafio".

É importante destacarmos que essa aproximação maior do femi- nismo com os sindicatos, os partidos, o movimento popular trouxe alte- rações na própria composição dos fóruns feministas e introduziu novas questões para o debate.

c) Aproximação do Estado Durante muito tempo, setores do movimento só reconheciam "le-

gitimidade feminista" no discurso puramente do específico. Isso se ex- pressava na grande resistência em se admitir temas políticos gerais nos encontros e debates das organizações feministas. Rompendo essa históri- ca resistência, as participantes da oficina citada destacam como desafios a serem enfrentados "a reestruturação do Estado, a agudizaçâo dos efei- tos da crise,o aprofundamento da democracia" ... "tanto para o deba- te e confrontação com o sistema patriarcal como para elaboração de al- ternativas transformadoras para as mulheres e para a sociedade". Na base desse raciocínio redefine sua relação com o Estado: "... há diferen- tes realidades e diferentes possibilidades de influenciar e/ou pressionar o Estado"... É importante também reconhecer que o Estado não é sem- pre homogêneo nem monolítico e que apresenta espaços mais permeá- veis que outros a pressões e demandas das mulheres".

d) Produção de um corpo teórico especifico Partindo da constatação de que é preciso aprofundar e ampliar

o caráter e o conteúdo dos conhecimentos que alimentam o corpo teóri- co da proposta política feminista, dizem as feministas envolvidas nesse debate: "Necessitamos produzir conhecimentos em relação às transfor- mações e aos novos desafios econômicos e políticos do continente e às pautas simbólico-culturais que são as de mais lenta transformação".

Ruptura aparente

Compreender a essência de uma nova estratégia para tirar o femi- nismo de suas dificuldades presentes, passa por situá-la na crise geral em que se debate a sociedade humana hoje e suas causas reais.

Nas últimas décadas vimos convivendo com situações de profun- da crise econômica e política, ao lado de grandes modificações na corre- lação de forças mundial. A ofensiva dos monopólios para implantar uma nova ordem econômica, a grave crise que se abateu sobre a alterna- tiva socialista, os avanços da direita nas estruturas de poder dos países dependentes, criaram uma grande perplexidade para os que lutara por uma sociedade mais justa e igualitária.

Diferentes concepções surgiram na tentativa de indicar novos ca- minhos. A grande maioria aparece com a perspectiva de "melhoria" da sociedade capitalista e não na ruptura com ela. A nova estratégia de certos setores feministas aqui apresentada se coloca dentro dessa compre- ensão. E está aí a essência de seu equívoco histórico.

Não podemos traçar caminhos de superação completa da situação de subalternidade que enfrentamos se não compreendermos corretamen- te as origens históricas que levaram a isso. Na experiência geral da hu- manidade, a opressão sexual, de gênero, e a opressão social, de classe, surge num mesmo contexto histórico. A acumulação de riqueza nas mãos de alguns homens levou ao surgimento de relações sociais de escra- vidão e relações entre os sexos de opressão. Nesse momento, a mulher

foi jogada no privado, perdendo sua função social, tomando-se proprie- dade de seu marido. Em todas as sociedades de classe os setores domi- nantes sempre usaram a inferiorização da mulher para assegurar também a escravizaçào social. Quem sustenta e alimenta o machismo são as mes- mas estruturas de poder socialmente opressoras.

1 ■ O Feminismo exige radicalidade e confrontação global - As relações de gênero construídas na base da desigualdade entre os sexos não podem desaparecer em sociedades que são organizadas sob a base da desigualdade geral. A sociedade capitalista em que vivemos sobrevi- ve da exploração da minoria sobre a maioria. A conquista de relações de gênero que se situem num novo patamar de igualdade não pode ser obtida nos marcos de um sistema cujas estruturas sociais e de poder ne- cessitam manter a opressão. Só num novo sistema social que não neces- sita da opressão de gênero para a sua sobrevivência permite que se enfren- te, com eficácia, o arcabouço ideológico e cultural do machismo em me- lhores condições. E ainda não se inventou outra forma de organização social que suceda à atual senão a sociedade socialista.

A nova proposta tem neste aspecto sua grande debilidade. Ela pretende "a confrontação e ruptura profunda com a lógica patriarcal" nos marcos do sistema social em que vivemos, sem incluir, explicitamen- te, nos seus objetivos a confrontação e ruptura profunda com a sua lógi- ca social.

2 - O Feminismo é parte de um projeto global e não a sua essên- cia - Um projeto de transformação global da sociedade só é eficaz se se baseia em uma teoria que interprete e compreenda os fenômenos sociais, gerais e não que seja elaborada a partir de um enfoque setorial da opres- são de gênero. Produzir novos conhecimentos que ajudem a compreener o conteúdo e o caráter dessa opressão e as possibilidades de sua supera- ção é de fundamental importância para o avanço da luta feminista. Mas propor-se a produção de um corpo teórico que leve a "um novo saber" "em relação às transformações e aos novos desafios econômicos e políti- cos do continente", com todo o desenvolvimento científico já acumula- do dos fenômenos econômicos, políticos e sociais, é tentar descobrir a pólvora na época dos SCUDS e PATRIOTS.

3-0 Feminismo é um movimento social que exige organicidade - Aqui se encontra o que existe de mais positivo na nova proposta. As novas práticas na construção do movimento e sua interrelação com as demais instâncias da sociedade permite um maior poder de intervenção e conseqüentemente maiores possibilidades de ampliação das conquistas. O fato de nossas reivindicações serem absorvidas pelos sindicatos e par- tidos, ainda que de forma inicial, representa reforço de nossa luta. Por sua essência revolucionária os avanços na luta pela igualdade só poderão seguir adiante se o feminismo assumir uma nova radicalidade e uma maior politização nas suas bandeiras e na sua prática cotidiana. Estão aqui os novos desafios.

■ J6 Moraes é presidente da União Brasileira de Mulheres.

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TEORIA

Liberdade Reprodutiva

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O direito ao aborto, a esterilização involuntária e a maternidade são temas presentes na vida da mulher. Em seu artigo "Liberdade repro- dutiva, além do direito da mulher escolher", a norte-americana Ro-

salynd Petchesky faz uma análise aprofundada dessas questões, dando-lhes não só uma dimensão biológica, mas também social, muitas vezes esquecida.

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"Além do direito da mulher escolher,,

Rosalynd Petchesky

Introdução

^ ^ ...enquanto o feto está se formando...até o momento em que a Alma é infundida, é absolutamente não só no Poder dela, mas no seu direito, matar ou manter vivo, salvar ou destruir,

a Coisa que ela carrega, ela não a chamará de Criança; e que portan- to até então ela resolve usar todas as maneiras de Arte com ajuda de Remédios e Médicos seja. Adstringentes, Diuréticos, Eméticos, ou qual- quer outro tipo , ou mesmo Purgativos, Poções, Venenos, ou qual- quer coisa que os Apotecários ou Farmacêuticos possam fornecer..." O trabalho que as mulheres têm dispendido para controlar suas condi- ções de reprodução - se, quando, como e com quem elas terão filhos - é espantoso e persistente. Como Angus McLaren nos mostra, atrás da condenação terrível de Defoe da maldade feminina no ato do abor- to está a presença não só dos antecedentes do " direito à vida " no sé- culo XVII da Inglaterra, mas a idéia entre ás mulheres de que o abor- to é um " direito da mulher ". Linda Gordon em seu livro Woman's Body Woman's Righ estabelece a base da teoria feminista da liberda- de reprodutiva, observando que através da história as mulheres pratica- ram formas de controle da fecundidade e aborto e que as proibições morais e legais contra tais práticas meramente forçaram as mulheres à clandestinidade na busca do controle reprodutivo. Similarmente Ge- orge Devereux levantando 350 sociedades pré-industriais antigas e pri- mitivas afirma " há uma indicação absolutamente clara que o aborto é um fenômeno universal e que é impossível construir um sistema so- cial imaginário no qual nenhuma rplher se sentisse pelo menos impeli- da a abortar ".

O fato da universalidade das práticas de controle da fecundida- de como Gordon enfatiza nos ajuda a compreender que a liberdade re- produtiva para as mulheres não é simplesmente uma questão de desen- volver técnicas mais sofisticadas. Enquanto a substituição de venenos, poções, purgativos pela aspiração à vácuo, sem dúvida representa um ganho para as mulheres, o aborto e a liberdade reprodutiva de um mo- do geral (da qual o aborto seguro, legal e financiado é somente uma pequena parte) permanecem na agenda política e não agenda tecnológi- ca - na qual as feministas consideram necessário mobilizar-se repetidas vezes em diferentes contextos e diferentes situações. Porque estamos no momento, no auge desta mobilização é importante examinar as idéias políticas que informaram os movimentos da liberdade reproduti- va historicamente e hoje também.

Duas idéias essenciais estão subjacentes à visão feminista da li- berdade reprodutiva, idéias que repetidamente estiveram implícitas em todas as situações históricas, nas quais o aborto, controle da fecun-

didade, o cuidado das crianças, o cuidado d^ maternidade, e o status das mães solteiras e de seus filhos foram o objeto de conflito político. Num nível mais amplo estas duas idéias refletem a tensão permanente na teoria feminista, entre uma ênfase na igualdade e uma ênfase na autonomia da mulher. A primeira deriva-se da conexão biológica entre o corpo da mulher, a sexualidade e a reprodução. É uma extensão do princípio da " integridade física " e da " auto determinação " até a noção de que as mulheres devem ser capazes de controlar seus próprios corpos e suas capacidades procriativas, isto é, os usos sexuais e repro- dutivos em que seus corpos são colocados. A segunda idéia, a da auto- nomia, é um argumento histórico e moral baseado na posição social das mulheres e nas necessidades socialmente determinadas que são ge- radas por esta posição. Afirma que na medida em que as mulheres na atual divisão de trabalho entre os sexos são as mais afetadas pela gra- videz, pois são as mulheres que são responsáveis pelo cuidado e educa- ção das crianças, são as mulheres que devem decidir sobre a contracep- ção e aborto, ter ou não ter filhos.

É evidente que essas duas idéias crescem de diferentes tradições filosóficas e têm diferentes pontos de referências, e também diferentes prioridades políticas muitas vezes contraditórias. A primeira enfatiza as dimensões individuais da reprodução e a segunda as dimensões so- ciais. A primeira apela para um nível fixo da pessoa biológica enquan- to que a outra implica num conjunto de arranjos sociais, uma divisão sexual do trabalho que se desenvolveu historicamente e pode portanto ser mudada sob novas condições. Finalmente uma se baseia num qua- dro conceituai dos direitos naturais, enquanto a outra invoca o princí- pio legitimador das necessidades socialmente determinadas.

Destas perspectivas, os seus laços são de um lado com o femi- nismo liberal e de outro com a tradição marxista.

No que se segue vou tentar analisar as origens e as implicações teóricas dessas duas idéias, levar em consideração os elementos radi- cais e conservadores de cada uma e referindo-me às experiências histó- ricas e particulares nas quais o controle da reprodução pelas mulheres tem sido colocado em questão, enfatizar certas tensões entre essas duas idéias que podem talvez nunca ser, ou talvez não devêssemos de- sejar que fossem totalmente resolvidas. Meu argumento é que a liber- dade reprodutiva, na verdade a própria natureza da reprodução em si mesma é irredutivelmente social e individual ao mesmo tempo, isto é, opera no núcleo da vida social, tanto quanto, dentro e sobre os cor- pos individuais das mulheres. Assim, uma análise coerente da liberda- de reprodutiva requer uma análise que é tanto

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mo tempo, isto é, opera no núcleo da vida social, tanto quanto, den- tro e sobre os corpos individuais das mulheres. Assim, uma análise co- erente da liberdade reprodutiva requer uma análise que é tanto marxis- ta quanto feminista. Esta perspectiva dupla também é necessária no nível da prática política, pois mesmo que fosse verdade, como alguns defensores da " vida " têm argumentado, que o movimento de mulhe- res é contraditório ao reivindicar tanto o controle das mulheres sobre as questões da reprodução quanto uma maior divisão de responsabili- dades em tais questões entre homens e mulheres, é também verdade que esses dois objetivos são indispensáveis a um programa feminista de liberdade reprodutiva. Temos que lutar por uma sociedade na qual a responsabilidade pela contracepção e o cuidado das crianças não se- ja relegada primordialmente às mulheres e ao mesmo tempo, na medi- da em que há uma conexão entre o sexo, reprodução e o corpo femini- no temos que defender o princípio de controle sobre nossos corpos e nossas capacidades reprodutivas. A longo prazo nós temos que pergun- tar se o controle da mulher sobre a reprodução é o que queremos, se é consistente com a igualdade. A curto prazo nunca experimentamos condições históricas concretas, nas quais nós pudéssemos nos dar ao luxo de desistir deste controle.

Controlando nossos corpos

Vou argumentar que o princípio que fundamenta a liberdade reprodutiva das mulheres, num direito à auto-determinação física ou num controle sobre o próprio corpo, tem três bases

distintas, mas relacionadas: o liberalismo, o neo-marxismo e a contin- gência biológica. Sua raiz liberal pode ser traçada na revolução purita- na do século XVII da Inglaterra. Naquele período a idéia de Leveller de propriedade da própria pessoa, foi ligada explicitamente à nature- za e tinha um paralelo na idéia de ura " direito natural" à proprieda- de de bens; "a cada indivíduo na natureza é dada uma propriedade in- dividual pela natureza, que não deve ser invadida ou usurpada por nin- guém, porque cada um tem a si próprio, portanto tem a propriedade de si, se não fosse assira não poderia ser ele mesmo, e disto nenhuma segunda entidade pode arrogar-se de privar quem quer que seja, sem manifesta violação e afronta aos próprios princípios da natureza e às regras de eqüidade e justiça entre homem e homem ". Uma pessoa pa- ra ser uma pessoa deve ter controle sobre si mesma no corpo tanto quanto na mente. Essa noção de Leveller de individualismo e identida- de individual, embora expressa em termos masculinos tem aplicações específicas para as condições da mulher no século XVII. A passagem da idéia puritana do casamento como um contrato, as restrições con- tra bater na esposa e a liberalização do divórcio, essas foram as conse- qüências da idéia do individualismo para a mulher. Teve outras aplica- ções entretanto que afetaram tanto homens quanto mulheres, por exem- plo a introdução do habeas-corpus em 1628 (os corpos não podem ser presos sem causa) e sobretudo a resistência à idéia de vender ou alie- nar o próprio corpo para outro através do trabalho assalariado. Assim a noção original da "propriedade na própria pessoa", não foi só uma asserção do individualismo no sentido abstrato, mas teve um corte ra- dical particular, que rejeitava a mercantilização dos corpos através do mercado de trabalho emergente. Os Levellers (que de fato eram princi- palmente pequenos comerciantes e artesãos ansiosos de distinguirem- se dos trabalhadores não proprietários) estavam dizendo: "meu corpo

não é propriedade, não é transferivd, pertence só a mim". Enquanto as origens liberais de integridade física são bastante

claras, suas implicações radicais hoje, cone no século XVJI, também não devem ser esquecidas. Nas expressões jurídicas mais recates, por exemplo o chamado direito à privacidade, esse princípio foi aplicado para defender prisioneiros contra a tortura, e defenda estrangeiros sem documentos contra revistas físicas, defendo- pacientes contra tratamen- to involuntário ou experimentação médica, e também os mais conheci- dos casos de direito reprodutivo. (Ela cita aqui alguns casos jurídicos americanos, inclusive a decisão original do aborto). Enquanto a i cidade, como a propriedade, tem conotações distintamente i que são exclusionárias e a-sociais, quando aplicadas a pessoas i to pessoas - nos seus seres físicos concretos - também tem um sentido positivo que grosseiramente coincide com a noção de auto-determina- ção individual. Em outras palavras, o controle sobre o próprio corpo é uma parte essencial de ser um indivíduo com necessidades e direitos, um conceito que é por sua vez o mais poderoso legado da tradição po- lítica liberal.

Esse princípio claramente aplica-se a pessoas enquanto pessoas e não só às mulheres. Juliet Mitchell argumentou entretanto, que de

era o solo que nutria o crescimento do feminismo nos séculos XVIII e XIX e que muitos dos ganhos positivos buscados pdas mulheres sob a rubrica de liberdade e igualdade ainda não foram ganhas. Eu iria além e argumentaria que uma certa idéia de individualidade também não é antitética à tradição marxista que distingue entre a idéia de seres humanos individuais historicamente determinados, concretos e particu- lares em suas necessidades e a ideologia do individualismo Cisto é, o in- divíduo concebido isolado, atomizado, exclusivo na sua possessão, des- conectado da fábrica social mais ampla). Este conceito marxista de uma individualidade concreta foi elucidado por Agnes Hdler, e Marcu- se, que reconheceram que o fim da transformação socialista para Marx era em última análise a satisfação das necessidades individuais que são sempre concretas e específicas (diferentemente dos diretos que pertencem a ddadãos ou pessoas em abstrato). Assim, de acordo com Hdler, "Man não reconhece nenhuma necessidade, a não ser aqudas das pessoas individuais", e embora compreendendo as necessidades de um modo geral como produzidas sodalmente, tais necessidades en- tretanto "são as necessidades de seres humanos individuais". "Quan- do a dominação das coisas sobre os seres humanos cessar, quando as relações entre os seres humanos não mais parecer como relações entre coisas, então toda necessidade governa a necessidade de desenvolvimen- to do indivíduo, necessidade de auto-realização da personalidade huma- na". (Agnes Hdler in A Teoria da necessidade em Marx).

Similarmente, Marcuse em seu ensaio "Sobre o Hedonismo" argumenta em favor da restauração do sentido da feücidade indivi- dual para uma ética revolucionária ("fdiddade geral separada da feli- cidade dos indivíduos é uma frase sem significado"). Através de sua análise das formas contemporâneas da alienação e repressão que alie- na os indivíduos de um senso de relação com seus próprios corpos e assim com o mundo físico e sodal, Marcuse chega a uma visão do he- donismo como contendo um demento liberador. Este demento é um sentido de imediatidade completa ou sensualidade que Marcuse suge- re é uma pré-condição necessária para o desenvolvimento da personali- dade e a partidp&çào dos indivíduos na vida social. A ligação entre o erotidsmo e a política é uma receptivida^ que está aberta e que ata- se a si mesma à experiênda. O controle sobre o próprio corpo é um

PMSINÇA DA MULHIR 1*

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aspecto fundamental deste sentido de imediatidade, esta receptividade é um requisito para ser uma pessoa e engajar-se numa atividade cons- ciente. Compreendido assim, é um principio de moralidade radical que não deveria ser abandonado sob nenhuma condição social.

A conexão direta do princípio do controle sobre o próprio cor- po e a reivindicação feminista da mulher em relação ao controle sobre a reprodução, parecia óbvia para os advogados do controle da fecun- didade do século XIX. Muito antes de Margareth Sanger, Ezra Heywo- od um "binh controller" anarquista da década de 1870 afirma: "o direito natural da mulher a ser proprietária de e controlar seu próprio corpo, um direito inseparável da existência inteligente da mulher". Es- ta conexão é igualmente real hoje. Porque a gravidez ocorre no corpo da mulher (e provavelmente continuará assim em que pese o argumen- to de Shulamith Firestone), a possibilidade continuada de uma gravi- dez não desejada, afeta as mulheres no sentido muito específico, não só como potenciais carregadoras de feto, mas também na capacidade de desfrutar da sexualidade e manter sua saúde. Como o juiz Dooling manteve no caso de McCrae Kalifane, o direito à mulher de decidir so- bre o aborto quando a sua saúde está em jogo é praticamente aliado ao seu direito de ser.

A reprodução afeta a mulher enquanto mulher, uma forma que transcende as divisões de classe e que penetra tudo, o trabalho, o en- volvimento político e comunitário, a sexualidade, a criatividade e os sonhos. Linda Gordon ilustra este ponto com referência às condições que geraram o movimento de Birth Control no século XIX. "Os dese- jos de obter um aborto e os problemas em obtê-lo assim como a con- tracepção formam experiências femininas comuns. A técnica do abor- to não era aparentemente muito mais segura entre os doutores de clas- se alta do que entre as parteiras da classe trabalhadora.

Os contraceptivos usados mais comumente, as duchas, coito in- terrompido, eram acessíveis às mulheres de todas as classes sociais e a evidência existente da experiência subjetiva das mulheres nas suas ten- tativas de controlar a fecundidade também sugerem que o desejo de espaçar os nascimentos, de obter famílias menores existia em todas as classes e que o desejo era tão apaixonado que as mulheres estariam correndo riscos muito graves para ganhar um pouco de espaço de con- trole em suas vidas. A teoria individual e a prática do Birth Control pane de uma condição biológica feminina, mais básica mesmo do que a classe". É surpreendente encontrar Gordon voltando a condição fe- minina biológica no meio de uma análise da construção social da expe- riência reprodutiva das mulheres, no entanto nos lembra de que o prin- cípio da integridade física tem um componente biológico inegável inse- parável de seus aspectos sociais e morais. À medida em que os corpos án molheres permanecem meio para a gravidez, a conexão entre a li- berdade reprodutiva das mulheres e o controle sobre seus corpos repre- senta não só uma reivindicação moral e política mas também em algum nível uma necessidade material. Este reconhecimento da realidade bio- lógica não deve ser confundido com o pensamento determinista bioló- gico sobre as mulheres. Meu ponto é simplesmente de que a biologia é uma capacidade tanto quanto um limite. O fato de que são as mulhe- res que engravidam tem sido a fonte não só do nosso confinamento em todos os sentidos, mas do nosso poder (limitado). Uma numerosa literatura antropológica feminista nos lembra que os rituais de poiução, os cultos de fertilidade, as proibições contra o aborto, assim como as regras de castidade impostas sobre as esposas e as filhas são sinais da inveja dos homens e medo da capacidade reprodutiva das mulheres -

de seus poderes imaginados sim, mas também da sua realidade. Na verdade o atual ataque sobre o aborto nos Estados Unidos e em ou- tros países ocidentais tem sido interpretado por algumas feministas co- mo uma massiva recorrência da inveja do útero por parte dos homens.

Eu seria a última a romantizar o controle que vem de nossa co- nexão biológica com a maternidade ou a última a subestimar o aspec- to repressivo para as mulheres. De outro lado o controle das mulheres sobre seus corpos não é como o controle dos trabalhadores pré-indus- triais sobre seus instrumentos. Não pode ser extorquido simplesmente através de mudanças na tecnologia ou proibições legais e repressão, - que é a razão porque nenhuma sociedade moderna foi bem sucedida por longo tempo em proibir o aborto ou a contracepçào, só conseguin- do levá-lo para a clandestinidade. Até as mulheres escravas retêm a ca- pacidade de abortar como um ato de resistência. Um ato que deriva da falta de poder como enfatizarei mais tarde, mas também de um po- der residual. A incapacidade de sociedades e dos homens de regular to- talmente o controle reprodutivo das mulheres ou de mediar de forma absoluta a conexão das mulheres com seus corpos reflete a natureza dialética da condição biológica feminina.

7*A~,

É importante entretanto ter em mente que a situação reproduti- va das mulheres nunca é o resultado da biologia somente, mas da

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biologia mediada pela organização social e cultural, isto é, não é inevi- tável que as mulheres e não os homens, carreguem as principais conse- qüências da gravidez não desejada e portanto que a sua expressão se- xual e reprodutiva seja inibida por isto. Pelo contrário, é o resultado da primazia determinada socialmente da maternidade na vida das mulhe- res. No entanto também é verdade que a biologia como é socialmente me- diada por instituições dominadas pelos homens afeta todas as mulhe- res numa forma que corta divisões de classe. No nosso próprio perío- do há uma evidência enorme de uma experiência feminina comum: nos cortes do financiamento de abortos cujo impacto inicial e mais du- ro tem sido para as mulheres de baixa renda, tem sido a ponta de lan- ça de um movimento de direita para cortar os serviços de aborto e os reembolsos para a maioria das mulheres da classe trabalhadora e da classe média que vivem em vários estados e que dependem de muitos seguros de saúde diferentes também. Enquanto os abusos de esteriliza- ção foram dirigidos principalmente para mulheres pobres do terceiro mundo e mentalmente incapazes, o ultimatum colocado para trabalha- doras da indústria química bem pagas, de que se esterilizassem ou per- dessem seus empregos, ampliou a nossa perspectiva sobre esta questão. Na verdade o fato que a esterilização feminina, um procedimento irre- versível, tornou-se o método de contracepção mais encorajado pela medicina e reembolsável nos seguros de saúde passando a ser o méto- do mais comum entre todos exceto nas camadas mais jovens da popu- lação dos Estados Unidos, na medida em que aumenta a evidência dos perigos da pílula e os abortos se tornam mais difíceis de se obter, estes fatos levantam questões sobre as "escolhas" reprodutivas para a maio- ria das mulheres. A condição material básica da reprodução - de que os dois métodos de controle da fecundidade mais comuns em uso atual- mente são: um, irreversível e outro perigoso para a saúde - afetam as mulheres de todas as classes. É uma condição colocada não pela tecno- logia reprodutiva, mas pela política reprodutiva, uma política que bus- ca cercear os esforços das mulheres enquanto mulheres para ganhar um pouco de espaço de controle sobre suas vidas e expressar livremen- te sua sexualidade. O princípio de controle sobre nossos corpos então tem uma base mate- rial tanto quanto uma base moral e política. O que eu chamei de ele- mentos liberais, radicais e neo-marxistas e biológicos deste princípio não devem ser vistos como alternativas um ao outro, mas níveis dife- rentes de significado que dão ao princípio a sua força e complexidade. Separar estes níveis diferentes, deve tornar mais fácil distinguir entre situações em que estamos descrevendo o controle dos corpos como um fato material, em que o estamos afirmando como um direito, e em que (eu acredito é a mais radical das implicações políticas) estamos definindo como uma parte de conjunto mais amplo de necessidades humanas determinadas socialmente. No entanto, a idéia do direito da mulher a escolher como o principal princípio da liberdade reprodutiva é insuficiente e problemático ao mesmo tempo em que é politicamente forte. De um lado este princípio não foge às questões morais sobre quando e sob que condições e para que objetivos as decisões reprodutivas - por exemplo, a decisão do abor- to - devem ser feitas. As feministas que escrevem sobre aborto, geral- mente não têm argumetado que a mulher grávida possui o feto ou que ele é parte de seu corpo (embora os "contra aborto" tenham interpre- tado a posição feminista desta forma). Pelo contrário, as feministas geralmente caracterizaram uma gravidez indesejada como um tipo de

invasão corporal. Reconhecendo uma situação de conflito real entre a sobrevivência do feto e as necessidades da mulher e daqueles que de- pendem dela, a posição feminsta diz meramente que as mulheres devem decidir, porque é o corpo delas que está envolvido e porque elas ain- da têm a responsabilidade principal pelo cuidado e desenvolvimento das crianças nascidas. Mas, determinar quem deve decidir - a questão política - não nos diz nada sobre os valores morais e sociais que as mulheres devem fazer para esta decisão, como elas devem decidir. Deveriam as mulheres ob- ter um aborto com base em que elas preferem um sexo diferente (e que a amniocentese agora pode determinar). Tal decisão segundo pen- so, seria notadamente sexista, a argumentação do controle sobre seu corpo, não pode fazer com que esta decisão seja compatível com os princípios feministas. Isto é, o direito da mulher sobre seu corpo não é abstrato ou abosoluto, mas nós não desenvolvemos uma moralida- de, tanto socialista quanto feminista que nos indique que exceções de- veria haver. Admitir que não articulamos completamente uma moral feminista do aborto, entretanto não implica que todas ou a maioria das mulheres que conseguem o aborto o fazem irresponsavelmente sem pensar. Pelo contrário, as mulheres que buscam o aborto sabem e ex- perimentam mais do que qualquer pessoa a dificuldade desta decisão. Muito mais sério é o perigo potencial na afirmativa do direito da mu- lher ao controle sobre sua reprodução como absoluto e exclusivo, na medida que pode ser virado contra nós para reforçar a visão de que toda a atividade reprodutiva é uma província feminina por especial destinaçào biológica. Aqui tem que ser reconhecido que este perigo surge do conceito de direitos em geral, um conceito inerentemente está- tico e abstraído de condições sociais. Direitos são por definição, reivin- dicações que são firmados numa dada ordem de coisas e relações. Eles são demandas para o acesso para si próprio e para c não acesso a ou- tros, mas eles não questionam a própria estrutura social, as relações sociais de produção e reprodução. A reivindicação do direito ao abor- to busca o acesso a serviços necessários, mas por si só não se dirige às relações sociais existentes e à divisão sexual em torno da qual a res- ponsabilidade da gravidez e pelas crianças é atribuída. E nas lutas da vida real esta limitação tem um preço, pois deixa os homens e a socie- dade isentos de responsabilidades. A noção de direitos tem um poder polêmico tremendo, mas direitos tendem a ser vistos como uma mercadoria isolada, discreta, não co- mo uma parte de um programa revolucionário total. Isto é diferente da visão de Marx e Engels, dos direitos burgueses como pré-condições necessárias e meios de construção do movimemto de consciência de clas- se mas não como fim em si mesmo (como as feministas freqüentemen- te pensam deles). É também diferente do conceito mais radical de con- trole sobre o próprio corpo, como uma necessidade social e individual implícita nos requisitos de personalidade e receptividade sensual. Ne- cessidades, ao contrário dos direitos, existem somente em conexão com indivíduos concretos e em circunstâncias concretas. Para uma mulher índia americana que subsiste em "welfare" (pobre), e a quem cada vez que aparece numa clínica para cuidado pré-natal se lhe pergunta se gostaria de ter um aborto, o direito de escolher um aborto pode pare- cer dúbio e ofensivo. Finalmente, a idéia do direito da mulher escolher é vulnerável a mani- pulações políticas pelas forças do conservadorismo e do laisser-faire, como demonstrado em debates do judiciário e do legislativo recentes. Assim os oponentes do aborto exploram o conceito liberal de consenti-

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mento informado, promovendo a legislação que exigiria que as pacien- tes que requerem o aborto sejam informadas em detalhe gráfico das características fisiológicas do feto em cada estágio do desenvolvimen- to. Os médicos que se opõem as regulações federais, e da Califórnia e New York para coibir a esterilização involuntária, particulamente a exigência de um período de espera de trinta dias, tem argumentado que esta exigência é paternalista e que inibe o direito de escolha da mulher, em escolher a esterilização. Durante as audiências ante o co- mitê de população da câmara dos deputados em 1978, um porta-voz da Companhia Upjohn, a fábrica de Depoprovera (um contraceptivo injetável, atualmente proibido nos Estados Unidos, porque há evidên- cia de que seja cardnogênico) se opôs à regulação de contraceptivos, baseado na idéia de que "impede ao público de ter uma livre escolha", "a segurança não pode ser absoluta, só pode ser definida em termos relativos e pessoais. O indivíduo com o conselho de seu ou sua médi- ca - não de uma agência do governo - deve decidir que riscos são ra- zoáveis sob tais circunstâncias". A idéia de que a decisão sobre segurança contraceptiva pode só ser fei- ta em termos relativos e pessoais, obviamente ataca o estabelecimento e implementação de padrões sociais generalizáveis de saúde e seguran- ça que transcendam julgamentos individuais. Além disso, quando os riscos incluem tromboembolismos, enfarto do miocárdio, câncer do seio e câncer cervical a necessidade de padrões sociais e sua vigorosa implementação é uma questão de vida ou morte para as mulheres. As aplicações recentes de ideologia do laisser-faire à política reprodutiva são claramente parte de uma campanha mais ampla da direita que bus- ca a desregulação em muitas esferas; visto neste contexto político ge- ral, eles eram esperados. Mas, a facilidade com que o principio de in- dividualidade e controle sobre o próprio corpo podem ser pervertidos no que é um individualismo burguês - e ânsia de lucro do capitalismo - devem levar a refletir e pensar mais rigorosamente sobre as condi- ções sociais do controle individual.

As Relações sociais de reprodução

A idéia de que a própria reprodução biológica é uma ativida- de social, distinta da atividade de cuidar de crianças e deter- minada pelas relações sociais e condições materiais que se

transformam, é essencialmente marxista em inspiração. Na Ideologia Alemã, Marx define três aspectos da atividade social: ao lado da "pro- dução da vida material", e a produção de novas necessidades, a pro- criação humana, a reprodução dentro da família é também uma "rela- ção social". Isto é, envolve não só relações naturais e biológicas, mas relações sociais cooperativas entre homens e mulheres, através de práti- cas procriativas. Esta atividade é social na medida em que é cooperati- va, tem objetivos e sobretudo é consciente. Enquanto Marx, claramen- te, tem em mente relações para o objetivo de procriação. Nós pode- mos estender esta visão à sexualidade humana em geral, quer seja hete- rossexual, homossexual ou bissexual, ela é fundamentalmente social, envolvendo reciprocidade, articulação consciente e recriação de dese- jos, e não meramente, satisfazendo uma necessidade, mas fazendo-o num contexto imperativo que as pessoas criam juntas. Além disso, co- mo os recentes trabalhos de Rayna Rapp, Ellen Ross, Jeffrey Weeks, Jean Louis Flandrin, Michael Foucault, Gayle Rubin e outros, mos- tram as práticas e significados sexuais, como as práticas e significados

da maternidade, variam enormemente, através da história, da cultura e dentro da mesma cultura, indicando que estes campos de atividade "naturais da experiência humana" são, incessantemente, mediados pe- la praxis social e pelo planejamento.

Sc é verdade que esta variabilidade caracteriza a experiência se- xual e maternal, isto é, muito mais verdadeiro em relação à contracep- ção, ao aborto e à prática de cuidar das crianças. São todos domínios que, através da civilização, têm sido transformados pela intervenção humana consciente. Uma mulher não fica simplesmente grávida, ou dá à luz como as marés e as estações. Ela o faz sob condições mate- riais definidas que estabelecem limites aos processos reprodutivos "na- turais", como por exemplo: os métodos existentes de controle da fe-

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cundidade e o acesso a esta tecnologia, divisões de classe e o financia- mento dos serviços de saúde, nutrição, emprego, particularmente de mulheres, o estado da economia de modo geral. Ela o faz dentro de uma rede específica de relações sociais envolvendo ela própria, seu par- ceiro sexual, seus filhos e parentes, os médicos, fábricas de pílulas, os empregadores, a igreja e o estado.

Lukács, um teórico marxista que aborda a idéia de um metabo- lismo ou interação necessária entre os aspectos naturais e sociais da vida humana, sugere que a socialização progressiva de seres naturais, através da prática social, é a própria essência da história. Dicotomizar a natureza da sociedade como objeto de duas ciências dife-

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rentes é, nesta visão, falso; por inferência é também falso assumir uma divisão entre as funções biológicas femininas e suas funções so- ciais. Hilda Scott, também reflete este ponto de vista, parafraseando a demógrafa tcheka Svarcova: "a observação de Marx sugere que se procure a relação dialética entre os lados naturais e sociais da reprodu-

. çâo, em vez de os olhar como dois processos paralelos, mas indepen- dentes. Neste ponto de vista, a população humana é vista como a uni- dade dos aspectos biológicos e sociais que condicionam um ao outro, sendo o aspecto social o principal, mas não o único fator".

A tentativa de desenvolver uma concepção social da reprodução, naturalmente, não foi limitada aos marxistas. Os demógrafos, por exem- plo, geralmente reconhecem a importância das condições sociais na de- terminação da população, mas, dentro de um conjunto completamen- te mecanicista de pressupostos. Um fenômeno social, tal como a mu- dança na taxa de natalidade, é visto, somente em termos de eventos demográficos mensuráveis estatisticamente (n0 de mulheres de uma da- da realidade, que entram na força de trabalho, disponibilidade de uso contraceptivos, etc), como se fosse uma ocorrência natural, não planejada.

Os antropólogos orientados para a questão da população, por outro lado, enfatizam, não só a tremenda variabilidade, mas o caráter racional deliberado de métodos de controlar a população e a fertilida- de (infanticídio, contracepção, abstinência, coito interrompido, práti- cas de casamento), entre todas as sociedades, incluindo as mais primi- tivas. Entretanto, eles vêem tal atividade de uma perspectiva funciona- lista como "mecanismos adaptativos" adotados pela cultura como ura todo indiferenciado por divisões de sexo ou divisão de poder. Es- tá ausente desta perspectiva que os métodos e objetivos da reprodução e o controle sobre eles podem em si mesmos, ser uma área contestada dentro da cultura - particularmente entre horaens e mulheres.

De outro lado, uma análise da atividade reprodutiva em termos de "relações sociais de reprodução" enfatizaria o dinamismo históri- co de consciência e de conflito social e a agência histórica de grupos sociais. Divisões sociais baseadas nas diferentes relações de poder e de recursos mediatizam os arranjos institucionais e culturais, através dos quais a biologia, a sexualidade e a reprodução entre seres huma- nos são expressos e tais relações são essencialmente antagonísticas e complexas.

No nível mais básico, elas envolvem divisões de gênero ou a di- visão sexual do trabalho (em si mesma um produto predominantemen- te cultural, como teóricas feministas como Rubin e Chodorow demons- traram). Mas, nas sociedades divididas em classes, são também interli- gadas com divisões baseadas nas classes.

O livro de Gordon está cheio de exemplos de maneiras nas quais nos Estados Unidos, no século XIX e XX, as possibilidades das mulhe- res controlarem a fecundidade estava diretamente afetada pela sua po- sição de classe , o que determinava sua relação com o sistema médico e de planejamento familiar. Assim, por exemplo, o diafragraa, o méto- do contraceptivo mais eficiente na década de 30 (e quando considera- mos a saúde e a segurança da mulher ainda um dos melhores métodos até hoje) era virtualmente inacessível às mulheres pobres e trabalhado- ras, devido às condições materiais como a falta de privacidade, de água corrente, de clínicas privadas, a formação - instrução médica, atra- vés dos quais o diafragma era distribuído.

Hoje, as divisões de classe e raça no cuidado da saúde reprodu- tiva determinam, não só o acesso das mulheres a serviços ginecológi- cos decentes, aconselhamento etc, mas também o seu risco de esterili-

zação involuntária, drogas contraceptivas perigosas, histerectomia des- necessária.

As relações sociais de reprodução, também são complicadas pe- las formas diferentes de consciência e luta, através da qual elas são ex- pressas em diferentes períodos históricos. Às vezes os antagonismos permanecem implícitos e reprimidos, outras vezes sob particulares con- dições que precisam ser compreendidos mais precisamente, a contracep- ção e o aborto tornam-se terrenos de conflito aberto sexual e de clas- se. Estudos antropológicos e históricos, embora escassos, registram as particularidades das relações reprodutivas com classe e cultura e as for- mas em que estas relações são inerentemente relações de divisão social.

Devereux, por exemplo, descreve um número de sociedades nas quais o aborto ou a retaliação contra o aborto involuntariamente pro- vocado representava um ato claro de desafio das mulheres. Também Flandrin, em sua análise da visão da igreja da alta idade média em re- lação à contracepção e às relações sexuais (especialmente o sexo não procriativo) aponta que a evidência de ampla prática contraceptiva entre pessoas casadas e não casadas indica que era comum na Europa do século XV ao século XVIII a resistência consciente e mesmo impe- nitente.

Em relação a uma teoria da liberdade reprodutiva, estes exem- plos sugerem que a questão critica para as feministas não é tanto o conteúdo das escolhas das mulheres ou mesmo o direito a escolher, mas sim as condições sociais e materiais nas quais estas escolhas são feitas.

O direito à escolha significa muito pouco quando as mulheres não têm poder. Em culturas onde a ilegitimidade é estigmatizada, on- de os bebês mulheres são desvalorizados, as mulheres podem recorrer ao aborto, ou ao infanticídio com impunidade, mas esta opção clara- mente deriva de uma subordinação feminina.

Similarmente as mulheres podem ter autonomia sobre a reprodu- ção, ou parto como na Nova Guiné ao mesmo tempo em que são to- talmente excluídas de tudo mais. Ou como as mulheres empregadas da América Cyanimid na Virgínia: podem escolher a esterilização co- mo alternativa a perder os seus empregos. Parafraseando Marx, as mulheres fazem sua própria escolha reprodutiva, mas não as fazem co- mo querem, não as fazem sob condições que elas próprias criaram, mas sob condições sociais e restrições que elas como meros indivíduos são impotentes para mudar.

O fato que os próprios indivíduos não determinam o quadro so- cial no qual agem, não anula suas escolhas nem a sua capacidade mo- ral de fazer, só sugere que temos de focalizar menos na questão da es- colha e mais na questão de como transformar as condições sociais da escolha, do trabalho e da reprodução.

No presente, as forças organizadas que forjam o caráter social- mente construído e específico de classe da experiência reprodutiva das mulheres nos Estados Unidos são poderosas demais. A intervenção de médicos, particularmente obstetras e ginecologistas no controle das mulheres sobre suas vidas reprodutivas têm sido muito ampla, no en- tanto, o controle médico sobre a reprodução está longe de monolítico.

As agências de controle privado e governamental cooperaram com a profissão médica, como indicações médicas e eficácia médica tornaram-se eufemismos para eficácia técnica no controle da natalida- de. Estas agências mantêm um poder financeiro e institucional indepen- dente dos médicos.

Além disso a comercialização em escala de produtos de controle de fecundidade significou que outros interesses como as companhias

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farmacêuticas e de seguros tornaram-se influências importantes nos ti- pos de métodos disponíveis para as mulheres, sua segurança ou risco, e se ou não ela será reembolsada.

O impacto desta ligação de interesses médicos, de empresas e do Estado na administração da reprodução definiu as escolhas de to- das as mulheres mas numa forma realmente diferente dependendo da classe e da raça. Sabe-se que os médicos, ainda os principais fornecedo- res de aborto e contracepção, variam grandemente o tipo de informa- ção que fornecem, e a qualidade do serviço, em função da classe e da raça da mulher.

Por exemplo os médicos particulares em Maryland praticam o aborto com muito mais regularidade nas pacientes de classe média do que nas de classe baixa.

Também os casos de abuso de esterilização por médicos nos ser- viços de saúde pública ocorreram quase que exclusivamente entre mu- lheres negras, índias, mexicanas, assim como entre as mulheres prisio- neiras e retardadas mentais.

Às mulheres de baixa renda e que não falam inglês é negada a informação de métodos mais seguros e não médicos de controle de fe- cundidade por causa dos pressupostos racistas, classistas de que elas não são competentes para gerenciar tais métodos.

Além disso quem será usado como sujeito experimental nos pro- gramas internacionais de controle populacional serão invariavelmente as mulheres de periferia, da América Latina, Porto Rico e no sul dos Estados Unidos. Elas são usadas para testar os implantes e químicos contraceptivos (como a Depoprovera), que são questionados pelas agên- cias federais nos Estados Unidos.

Finalmente, numa sociedade capitalista, classe é o determinan- te mais poderoso dos recursos materiais que ajudam a fazer com que ter e cuidar de criança seja uma experiência alegre, agradável, mais do que uma carga.

Seria errado, entretanto, desenhar as mulheres de qualquer clas- se como as vítimas passivas de políticas médicas, comerciais e estatais de controle reprodutivo. Nas audiências do comitê de população da câmara dos deputados e em processos legais as mulheres desafiaram com sucesso os laboratórios e os médicos em relação aos riscos graves do uso das pílulas, da Depoprovera e de outros hormônios sintéticos.

Os grupos de mulheres negras, mexicanas e índias vieram jun- tar-se com grupos de direitos reprodutivos e de saúde da mulher para lutar contra a esterilização involuntária nas Cortes e através de novas regulações reprodutivas. O movimento ativo para defender a liberda- de reprodutiva e do direito ao aborto está crescendo nos Estados Uni- dos, Europa Ocidental e é atualmente a principal força do movimen- to feminista. A política reprodutiva é mais que nunca um terreno de luta ativa.

O que é a liberdade reprodutiva do ponto de vista do materialis- mo histórico? A luta da mulher para assegurar o controle sobre os ter- mos e as condições da reprodução é baseada em que princípio? A vi- são materialista da liberdade reprodutiva justificaria esta luta em ter- mos do princípio da necessidade determinada socialmente, isto é, nes- ta perspectiva o imperativo moral surge da posição em que as mulhe- res se encontram, definida historicamente e culturalmente. Porque são as mulheres, não os pais, não os médicos, não os especialistas de cuida- dos infantis, não o estado, e sim as mulheres ain-

da que agüentam as conseqüências da gravidez e a responsabilidade pelas crianças, as condições de reprodução as afetam diretamente e em qualquer outro aspecto de sua vida.

Portanto, devem ser as mulheres primariamente que devem ter controle sobre se, quando, como e sob quais condições ter crianças. Além disso, uma ênfase na base social mais do que na biológica da ati- vidade reprodutiva implica que tal atividade de uma vez por todas se- ja removida de qualquer esfera privatizada ou pessoal e possa legitima- mente ser trazida para intervenção política e social. Esta intervenção pode tomar a forma de medidas para proteger ou regular a saúde re- produtiva - por exemplo, para assegurar a segurança e voluntariedade de métodos contraceptivos ou para transformar as condições materiais que atualmente dividem as opções reprodutivas das mulheres de acor- do com a classe e a raça.

De outro lado a visão materialista da liberdade reprodutiva reco- nhece as contigências históricas nas quais as mulheres buscam o contro- le reprodutivo para si mesmas.

Na maior parte da história as escolhas das mulheres sobre a re- produção foram exercidas num quadro no qual a reprodução e a ma- ternidade ainda determinam a sua relação com o resto da sociedade. Uma visão materialista, e eu argumentaria feminista, busca a eventual transcendência das atuais relações sociais da reprodução de tal forma que o gênero não seja em última instância o determinante da responsa- bilidade. Isto implica que se as relações sociais atuais mudassem, e a sociedade fosse transformada de tal forma que os homens e a própria sociedade assumissem a responsabilidade igual pelo cuidado das crian- ças, então a base das necessidades mudaria e o controle sobre a repro- dução não mais pertenceria primariamente às mulheres.

É aqui entretanto que uma sensibilidade feminista contrária co- meça e as limitações de um quadro de referência materialista históri- co tradicional marxista para definir a liberdade reprodutiva torna-se aparente. Estas limitações aparecem na defesa que Alison Jaggar faz do aborto dentro de um quadro marxista feminista e que argumenta que o direito das mulheres ao aborto é contingente à situação das mu- lheres era nossa sociedade: "Se a comunidade total assume as responsa- bilidades pelo bem estar das mulheres e das crianças então a comunida- de como ura todo deveria participar da decisão se um aborto era parti- cular deve ser realizado".

Podemos realmente imaginar condições sociais nas quais nós estaríamos prontas a renunciar o controle sobre nossos corpos e nos- sa vida reprodutiva, para abrir mão da decisão sobre se, como, cora quem nós teremos filhos, para a comunidade como um todo?

A realidade atrás desta questão é que o controle sobre as deci- sões reprodutivas, particularmente o aborto, tem a ver não só com o bem estar das mães e crianças, mas com a sexualidade e o corpo das mulheres enquanto tal.

A análise enfatizando as relações sociais de reprodução tende a ignorar e negar o nível de realidade mais imediato para as mulheres individuais: seu corpo no qual a gravidez ocorre. Na realidade a análi- se torna-se falsa na medida que omite a realidade sensual e imediata dos indivíduos. Para fazer esta conexão, a teoria da liberdade reprodu- tiva tem de recorrer a outros quadros conceituais, particularmente o que tem sido associado cora a tradição feminista e que afirma o direi- to e a necessidade de auto-deterrainaçào da mulher quanto ao seu corpo.

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Política Reprodutiva: Lições do passado e visões do futuro

Mesmo que a contracepção fosse aperfeiçoada até a infalibi- lidade e portanto nenhuma mulher precisasse ter um filho não desejado, mesmo que leis e costumes mudassem - des-

de que mulheres, e mulheres só sejam as que criam as crianças - nos- sos filhos crescerão procurando a compaixão só nas mulheres, ressen- tindo-se da força da mulher como 'controle', agarrando-se às mulhe- res quando nós tentanos nos mover para um novo modo de relaciona- mento." (A. Rich)

Como nós podemos quebrar a aparente contradição entre o di- reito da mulher ao controle sobre a reprodução, e sua necessidade de não ser definida pela reprodução? Como começamos a transformar as relações sociais de reprodução, trazer os homens, como pais poten- ciais dentro de relações com bases igualitárias? Como poderia tal trans- formação afetar o princípio de "controle sobre os nossos corpos"? É o argumento deste texto que na prática as duas idéias de liberdade re- produtiva discutidas aqui devam ambas ser incorporadas em uma polí- tica revolucionária feminista e socialista. A despeito das reais tensões entre estas idéias - a ênfase nas mudanças das relações sociais de repro- dução e a ênfase no controle das mulheres sobre seus corpos - nenhu- ma é dispensável para feministas e ambas são essenciais. Até agora ne- nhum movimento político por direitos reprodutivos ou emancipação das mulheres, incluindo o nosso próprio, tem sustentado esta dupla agenda de modo completo, sistemático e consistente.

O fracasso em integrar estas duas idéias na prática em um mo- vimemto político está ilustrado bastante dramaticamente por Attina Grossman em seu trabalho sobre luta por aborto que uniu feministas, socialistas e comunistas na Alemanha de Weimar. De acordo com Grossman, a esquerda comunista e seu movimento de mulheres viu o aborto como primariamente uma "questão de classe", a lei proposta fazendo do aborto um ato criminoso afetaria as mulheres da classe tra- balhadora mais severamente desde que as mulheres da classe média po- deriam dispor de meios e ter acesso ao aborto ilegal e à contracepção. Feministas, por outro lado, enfatizavam "o direito das mulheres ao prazer sexual e ao controle de seus corpos", sugerindo que a própria maternidade é uma região especial da experiência feminina que atraves- sa as divisões de classe.

Grossman enfatiza corretamente os aspectos positivos desta cam- panha política: que ela trouxe juntos em uma só coalizão o movimen- to de mulheres e o movimento da classe trabalhadora; que ela apela- va às mulheres de todas as classes nas bases de sua opressão como mu- lher na reprodução; que ela moveu mesmo o Partido Comunista Ale- mão (KPD), por razões principalmente táticas, a avançar um slogan feminista: "Seu corpo pertence a você". No entanto, as bases ideológi- cas muito diferentes nas quais diferentes grupos sustentaram a luta pe- lo aborto implicava sentidos diferentes de porque aquela campanha era importante e deve ter tido um impacto na coesão do movimento e sua habilidade para fazer suas idéias serem sentidas. Como Grossman assinala "a política de reprodução nunca foi... adequadamente integra- da na ideologia comunista", isto é, uma teoria que relaciona a necessi- dade individual das mulheres por controlar seus próprios corpos às ne- cessidades da classe trabalhadora como um todo não foi - nem tem si- do ainda - articulada.

A política reprodutiva no contexto das atuais revoluções socia- listas tem sido ainda menos coesa ou conscientemente feminista. Em geral, onde reformas tais como o aborto liberado e divórcio têm sido introduzidos como um aspecto fundamental das revoluções socialistas - por exemplo na União Soviética e Europa do Leste o propósito tem sido principalmente facilitar a participação das mulheres na indústria e quebrar os modelos feudais e patriarcais.

Tais medidas não têm sido inspiradas nem nas idéias que eu ve- nho examinando, nem por um movimento feminista de luta auto-cons- ciente em colocar aquelas idéias em prática. O trabalho de Richard Sti- tes sobre a União Soviética nos anos de 1920 e 1930 (1), e o de Hilda Scott sobre a Tchecoslováquia nos anos de 1950 e 1960 (2) - ambos ri- ca e punjentemente ilustram os limites das "reformas reprodutivas" quando elas não são nem acompanhadas por mudanças materiais ne- cessárias que aumentariam o poder real das mulheres na sociedade, nem são trazidas a efeito através de um movimento de mulheres inde- pendente.

Nestes casos, pressagiando a recente experiência dos Estados Unidos desde Roe V. Wade - tais reformas foram usadas em um perío- do posterior reacionário como um pretexto para repressão sexual e re- produtiva. A tendência que estes casos apontam é de uma cadeia reati- va de desdobramentos nos quais medidas tais como liberalização do aborto e abolição de ilegitimidade parecem desencadear uma emergên- cia na atividade sexual, abortos e divórcios seguidos por um período de reação, no qual há um forte protesto contra a "quebra da família", mulheres são condenadas e acusadas de "egoísmo" e a sociedade é re- preendida por especialistas em população pela taxa de natalidade decli- nante.

Na ausência de apoio material adequado, (seja renda, creches, unidades de saúde ou habitação) ou de divisão de responsabilidade pe- la contracepção e cuidado das crianças pelos homens, as mulheres, par- ticularmente as mulheres não qualificadas e as mulheres de baixa ren- da, parece que depois destas reformas se tornaram mais vulneráveis do que antes. E assim a reação é reforçada pelo próprio fracasso das reformas de ir suficientemente longe.

A avaliação de Scott da situação da Tchecoslováquia, enquan- to crítica da repressão das políticas de aborto posteriores mais restriti- vas, tende entretanto a focalizar a culpa no próprio aborto e por im- plicação nas mulheres que o conseguiram. Ela sugere que o aborto é implicitamente um método de controle da fecundidade que coloca as mulheres em desvantagem, e encoraja a irresponsabilidade da parte dos homens. Aborto como método de controle da fecundidade coloca toda a responsabilidade pelo futuro da criança não nascida sobre a mulher. Ela faz o pedido para o aborto, ela concorda com a opera- ção, ela paga a taxa. Se, como na Tchecoslováquia, ela deve se subme- ter a uma comissão de aborto que decide ela é que assiste a conferên- cia desta comissão, ela que se sujeita à pressão para ter a criança e é ela que é culpabilizada. No entanto, o que é chocante no relato feito por Scott, é a ausência, como na Rússia, de qualquer organização, ou movimento de mulheres, que faça da liberdade reprodutiva um valor em si mesmo. Claramente não há nada inevitável, nada escrito na natu- reza, na relação presumível entre o aborto e a irresponsabilidade mas- culina. Poder-se-ia muito bem imaginar um sistema de decisão sobre o aborto que envolvesse os pais potenciais no mesmo grau que as mães potenciais, embora a questão se as mulheres devem ou não abrir mão do controle sobre esta decisão seja outra questão. O que reforça

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a irresponsabilidade masculina é confiar no aborto num contexto so- cial no qual a própria divisão sexual, particularmente no cuidado das crianças permaneça inalterado e num contexto político no qual esta divisão permanece não questionada.

Que a revolução socialista é uma base necessária, mas muito in- suficiente para a liberdade reprodutiva, é ilustrado de uma forma dife- rente pela política atual anti-natalista na China. O esforço do gover- no chinês para limitar o nascimento em dois por casal, através de uma campanha maciça de propaganda e educação, assim como de incenti- vos econômicos, tanto positivos como negativos levanta numerosas questões. Enquanto a decisão política de que a economia chinesa e seu sistema educacional não podem sustentar uma população cada vez mais jovem pode ser racional até certo grau, pode-se imaginar, primei- ro se as sanções econômicas sobre as unidades domésticas são acompa- nhadas por esforços tão rigorosos para equalizar a posição da mulher no trabalho, na vida econômica e política, ou para desenvolver educa- ção e métodos de controle da fecundidade para os homens. Além dis- so, as medidas caem mais pesadamente em alguns grupos por causa da divisão de classe e econômica de tal forma que as famílias mais po- bres sentem uma pressão mais forte para concordar com esta política. Finalmente, como e por quem são estas decisões feitas? Os pais mais afetados por estas políticas são envolvidos no processo? O que é mais preocupante na política chinesa é sua ênfase em contraceptivos quími- cos e o DIU para as mulheres, com todos os conhecidos riscos e efei- tos colaterais. Uma vez mais é o corpo das mulheres que é sujeito aos riscos reprodutivos.

Estratégias para estabelecer a liberdade reprodutiva devem dis- tinguir entre diferentes contextos históricos e políticos. Sob as condi- ções do capitalismo avançado existente nos Estados Unidos, hoje parti- cularmente como a direita busca restaurar o controle patriarcal através da família, igreja e do estado sobre se, como e com quem as mulheres terão crianças, as mulheres são compelidas a defender seu próprio con- trole. A política reprodutiva neste contexto, necessariamente, toma-se uma política pelo controle, além disso esta luta é grandemente compli- cada por divisões de classe e de raça que persistem. Para a maioria das mulheres, numa sociedade capitalista, o controle reprodutivo, a escolha é impensável sem uma ampla gama de mudanças sociais nos serviços de saúde, no emprego, na habitação, etc, mudanças que são em si mesmas predicados de uma revolução socialista. No meio tem- po, controle no sentido mais limitado pode significar coisas muito dife- rentes para diferentes grupos de mulheres.

Informação sobre controle da fecundidade é uma coisa, posse de seus órgãos reprodutivos, custódia de suas crianças é outra. Numa sociedade dividida em classes e raças, políticas anti-natalistas e pró-na- talistas coincidem (isto é, restrição ao aborto e esterilização involuntá- ria) tornando necessário para os proponentes dos direitos reprodutivos articular continuamente que a liberdade reprodutiva significa a liberda- de de ter, tanto quanto não ter crianças. Porque as mulheres são ain- da subordinadas política, econômica e legalmente, uma política enfati- zando a divisão da responsabilidade em cuidar das crianças como os homens poderia colaborar para tirar das mulheres o controle sobre suas crianças numa situação onde eles têm pouca coisa mais (nós esta- mos atualmente sentindo o prenuncio deste perigo no número crescen- te de perdas de lutas pela custódia por mulheres, particularmente por lésbicas). Neste contexto reacionário o princípio "coletivo" poderia reforçar as sugestões da corrente "a favor da vida" de que a responsa-

bilidade pela concepção das crianças é importante demais para ser dei- xada às mulheres.

De outro lado porque a divisão sexual do trabalho de cuidar das crianças ainda prevalece e define a posição social das mulheres, uma política que enfatize os benefícios e serviços a fim de encorajar a natalidade - mesmo entre as mulheres solteiras, heterossexuais e lés- bicas - pode aliviar a carga material da maternidade, mas pode também, na prática, contribuir para perpetuar a divisão atual de trabalho entre os sexos e a subordinação social das mulheres. Este tem sido o caso na Europa Oriental, de acordo com Scott. Igualmente nos Estados Unidos é fácil imaginar reformas - particularmente agora, quando os demógrafos e os políticos temem a queda da natalidade - tais como a licença-maternidade, creches, etc, que se não acompanhadas de reivin- dicações pelas transformações da posição total da mulher, particular- mente a respeito da questão do cuidado das crianças, podem ser usa- das para racionalizar esta posição. O argumento não é, é claro, que as atuais tentativas de assegurar aborto financiado pelo Estado, benefí- cios de maternidade e gravidez, cuidados de creches e outras reformas ligadas à reprodução, deveriam ser abandonadas, e sim que estas tenta- tivas devam ser colocadas além do quadro de referências do direito da mulher escolher, e conectadas a ura movimento revolucionário mais amplo que se dirija a todas as condições para a liberação das mulheres.

Uma transformação feminista e socialista das atuais condições de reprodução buscaria Uberar as possibilidades de melhoria material, econômica e tecnológica da reprodução das formas tradicionais familia- res e sexuais e colocar estas mudanças materiais positivas num novo conjunto de relações sociais. O importante entre estas novas relações é aquela relacionada com o cuidado das crianças. Como Adrienne Rich declara, os homens devem estar prontos para dividir as responsa- bilidades de cuidado de tempo integral e universal das crianças como uma prioridade social o que quer dizer que a responsabilidade de cui- dado das crianças deve ser dissociada do gênero, o que necessariamen- te significa que se torne dissociada da heterossexualidade. Os escritos de teóricas feministas como Rich, Chodorow e Dinnerstein revelando a base psíquica e cultural profundamente emaizada dos arranjos tradi- cionais de cuidado de crianças, ajudam a explicar porque este aspecto do patriarcado pré-socialista é o que parece mais intratado nas socieda- des pós-revolucionárias. As mudanças que requeremos são totais; co- mo Scott escreve "nenhuma mudança decisiva pode ser realizada por medidas que visem somente as mulheres, mas as divisões das funções entre os sexos devem ser mudadas de tal forma que homens e mulhe- res tenham as mesmas possibüidades de serem pais ativos e serem em- pregados assalariados. Isto faz da emancipação das mulheres não uma questão feminista, mas uma função da luta geral para maior igualda- de que afeta todo mundo. O cuidado das crianças torna-se um fato que a sociedade tem que tomar em consideração".

Sob diferentes condições históricas do que as atualmente existen- tes pode ser possível transcender alguns dos elementos mais individua- listas do pensamento feminista sobre a liberdade reprodutiva... e se- guir em direção a uma concepção da reprodução como uma atividade que concerne a toda a sociedade. Ao mesmo tempo, a base poderia ser criada para a genuína liberdade reprodutiva de indiví-

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duos. terminando o sistema de dominação que inibe o controle indivi- dual sobre seus corpos. Nós precisamos começar a visualizar o que es- tas condições seriam, embora pareçam tão longe da realidade presen- te. Pelo menos, três condições parecem necessárias a fim de que se con- siga realizar, normas de reprodução baseadas socialmente, livres de gê- nero e liberadoras de indivíduos.

Primeiro nós teríamos que ter os pré-requisitos materiais que fariam com que ter e cuidar de crianças ou não fazê-lo seja uma alter- nativa real para todas as pessoas: métodos de regulação da fecundida- de que sejam seguros, confiáveis e convenientes, serviços de saúde de boa qualidade e gratuitos, serviços de cuidar de crianças, creches, cui- dados maternaise pré-natais, a eliminação de ambientes insalubres pa- ra a reprodução onde trabalhamos e vivemos, e provisão de empregos adequados, renda, habitação, educação para todos.

Mas o tipo de transformação socialista e feminista que quere- mos exigiria mais que as mudanças materiais e tecnológicas.

Em segundo lugar requereria mudanças fundamentais nas rela- ções sexuais e sociais de reprodução de tal forma que a idéia feminis- ta de uma responsabilidade dividida e coletiva pela sexualidade, pelo controle da fecundidade, e pelo cuidar das crianças se torne embutido na ideologia socialista e na prática social.

Sob condições de transformação socialista, diferentemente do capitalismo, há uma base normativa para a manutenção do princípio de responsabilidade coletiva, trans-gênero na atividade de reprodução e de cuidar das crianças, como de tudo mais. O fato histórico que, na maioria das sociedades socialistas atuais, o controle da fecundida- de e o cuidar das crianças permaneceram no domínio primário das mulheres tanto ideologicamente como praticamente, não deveria ser tomado como evidência de uma incompatibilidade inerente entre o so- cialismo e a liberação das. mulheres (a visão de que o socialismo é só uma outra forma de patriarcado). Pelo contrário deve ser visto como uma dimensão entre outras na qual a transformação socialista plena não foi atingida. Os arranjos formais através dos quais estas relações sociais transformadas poderiam ser expressas não foram nem imagina- dos, ainda.

Entre a família nuclear heterossexista e patriarcal e as barracas espartanas do Comunismo de Guerra, há certamente uma enorme am- plitude de possibilidades sexuais e de cuidar de crianças.

Em terceiro lugar, as condições sociais em que as mulheres po- dem antecipar dividir a responsabilidade reprodutiva com os homens e com a comunidade como um todo, necessitariam ser condições nas quais os princípios e os processos democráticos fossem construídos em todo processo de decisão, inclusive os reprodutivos. Precisamos de uma democracia social radical na qual não seria permitido que a dominação burocrática ou por profissionais médicos reprimisse aque- les cujas vidas são mais imediatamente afetadas.

Dado este contexto, nós podemos imaginar um número de situa- ções concretas, nas quais a intervenção social organizada coletivamen- te nas questões reprodutivas, ou mesmo nas questões de população, num sentido mais estreito, seriam não somente legítimas, mas necessá- rias. A sociedade teria que tratar de questões econômicas, sociais con- cernentes à alocação de recursos para o equipamento comunal de cui- dado de crianças, a mobilização de homens numa base sistemática pa- ra a atividade de cuidar de crianças, e mais difícil de tudo, a relação entre as responsabilidades com as crianças de organizações coletivas e aquelas dos pais - ou dos adultos relacionados.

Na,verdade, a menos que adotemos uma posição anti-malthusia- na rudimentar que recusa qualquer destas questões como problema de população nós teríamos de tratar de algumas questões quantitativas reais (as formas pelas quais a estrutura etária da população afeta as capacidades de prover cuidados infantis coletivos e recursos educacio- nais). A visão da paternidade essencialmente como relação social im- plica não só um compromisso com a legitimidade em princípio da regu- lação social daquela área da atividade humana, mas também, da rejei- ção da idéia de que existe um direito natural de procriar indefinidamen- te ou de não procriar absolutamente. Esta idéia deve ser distinguida claramente da idéia de uma necessidade socialmente determinada (tan- to de homens quanto de mulheres) em participar do cuidado das crian- ças, como uma parte muito distinta e especial da existência humana. A última, me parece, é absolutamente essencial para uma visão femi- nista e socialista do futuro. A primeira é um remanescente do pensa- mento determinista biológico semelhante ao "direito materno" que não tem lugar no pensamento feminista.

E no entanto, mesmo numa sociedade onde a responsabilidade coletiva pela reprodução e cuidado das crianças seja levada seriamen- te em todos os níveis da vida inter-pessoal e pública, não haveria ain- da aspectos da vida, das relações sexuais e reprodutivas que permane- ceriam uma "questão pessoal"? Em particular as mulheres não rete- riam ainda uma autonomia reprodutiva especialmente em questões de aborto e parto, com base no princípio do controle sobre o próprio cor- po? Mesmo no contexto de novas e revolucionárias relações sociais de reprodução não seria nunca legítimo compelir uma pessoa a fazer sexo ou a ter uma criança, a fazer um aborto ou a ser esterilizado, a expressar ou a reprimir a sexualidade numa forma prescrita ou a se submeter a uma intervenção química ou cirúrgica ou de qualquer ou- tra intervenção física para objetivos de reprodução ou de contracepçào.

O sentimento de ser uma pessoa com integridade pessoal, corpo- ral e física permaneceria essencial à definição da participação social e da responsabilidade social sob quaisquer condições históricas que eu possa imaginar.

Negar que haja sempre um conflito residual ou tensão entre es- te princípio que é a idéia da individualidade concreta ou da realidade subjetiva e aquela de uma moralidade social ou imposta socialmente

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na reprodução parece claramente são só ingênuo, mas omisso em rela- ção a um valor importante.

Em qualquer sociedade permanecerá um nível de desejo indivi- dual que não pode ser totalmente reconciliado com a necessidade so- cial, sem destruir as personalidades individuais cuja auto-realização, como Heller e Marcuse salientam, é o objetivo último da vida social. Como o desejo de uma mulher em particular de ter uma criança ou de não ter seria harmonizado em cada caso com uma política social que determine na base da necessidade social as circunstâncias nas quais as pessoas devem ou não ter crianças? Mesmo se a reprodução e gravi- dez fossem tecnologicamente relegadas ao laboratório (Firestone) sem dúvida permaneceriam mulheres que resistiriam à revolução tecnológi- ca como usurpadora do processo que pertence a

elas individualmente, pessoalmente aos seus corpos. A provisão de serviços universais e adequados de cuidado de

crianças, ou a divisão com os homens no cuidado das crianças não eli- minará a tensão entre os princípios do controle individual e a responsa- bilidade coletiva sobre a reprodução nem a necessidade de fazer esco- lhas reprodutivas que são difíceis. Por outro lado, esta própria tensão pode ser para o feminismo, e através do feminismo o socialismo, uma fonte de vitalidade política... • Rosalynd Petchesky é coordenadora do Programa de Estudos da Mulher do Hunter College na Universidade de Nova Iorque, EUA.

- Artigo publicado na revista Signs, Summer 1980, Volume 5, Number 4. (Esta tradução não revista foi feita por Carmen Barroso e transcri- ta da fita por Eleonora M. de Oliveira.) Foram omitidas as notas de rodapé.

NOTAS

Stiles mostra como o pos-revolucionário Código Russo da Família que aboliu a ilegitimidade, facilitou o divórcio e reconheceu os casamentos de fato - operou com desvantagens para a mulher na ausência de meios adequados de sustentação material para mulheres e crianças e na ausência de uma política feminista enfatizando o papel dos homens na reprodução. Da mesma forma a liberação do aborto pela lei de 1920 tornou-se um pretexto não só para abandono e não reconhecimento da paternidade, mas para as relações sexuais exploradoras e sem vínculos que caracterizaram o período. Nestas condições de insegurança, o retorno a uma tradicional santificação do casamento e da maternidade nos anos de 1930 com pesadas restrições ao aborto e divórcio, foram realmente bem-vindas por muitas das próprias mulheres, em tal extensão que novas (1936) providências reforçaram a res- ponsabilidade masculina em prover proteção a esposa e filhos. Scótt documenta a introdução das leis que liberaram o aborto durante os anos 1950 na Tchecoslováquia, Hungria e Romênia e seus resultados repressivos posteriores. Seguindo-se um maior declínio nas taxas de natalidade, tanto quanto um aparentemente significativo crescimento na taxa de aborto, nos anos 1950/60 políticos e especialistas em população nesses países não só conde- naram o aborto pelos problemas sociais e demográficos mas acusaram as mulheres de egoísmo e irresponsabilidade por procu- rar o aborto e engravidar em primeiro lugar. Uma política de uma série de incentivos à maternidade foi introduzida incluindo licença maternidade paga, licenças para donas-de-casa, bônus para filhos adicionais, etc, e aborto por razões não-médicas no caso das mulheres casadas sem filhos ou com um filho foi restringido.

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CULTURA

O maternômetro da novela das seis

Somente a invenção de um mater- nômetro (aparelho ainda não inventa- do e que mede o nível de instinto ma- terno), poderia resolver o dilema da no- vela das seis que a Globo exibe - "Bar- riga de Aluguel".

Apresentando um dilema bastan- te falso para a realidade brasileira, que ainda não conhece a experiência da bar- riga de aluguel (muitos aspectos ligados à maternidade poderiam ser tratados na TV brasileira, de forma bem mais esclarecedora e proveitosa, como os filhos e o trabalho fora de casa, a la- queadura, etc...), a novela das seis mos- tra Clara, uma jovem desmiolada, vi- vendo num meio moralmente perverti- do para os padrões vi- gentes, tendo de que- bra, um pai fanático, cuja religião não permi- te intervenções no cor- po humano.

Se observarmos bem, Clara, depois de alugar seu útero em dó- lares, é acometida de um verdadeiro surto fre- nético de maternalis- mo e desenvolve uma paixão louca pelo bebê que, meses antes, ela concordou em abrigar em seu útero em troca de dinheiro. Tudo na novela é montado pa- ra que se esqueça des- se aspecto financeiro do problema, pois os personagens das nove- las globais, nunca têm problemas com esse la-

do "insignificante" da vida que é a so- brevivência financeira do dia-a-dia. Cla- ra vira mãe assumidíssima, como se a gravidez e seus hormônios pudessem gerar o chamado instinto materno, de forma tão avassaladora, totalmente in- dependente da realidade vivida antes, durante e após a gravidez.

Tamanho instinto materno tam- bém acomete Ana, a dona do óvulo (se- mente) que alugou a barriga de Clara para poder ter um filho que a nature- za lhe negou pelos meios convencionais. O que se segue é uma disputa que já dura infinitos capítulos, sobre qual das duas se sente mais mãe e qual das duas tem em seu sangue um hormônio mais maternalizante, capaz de levá-la mais longe na luta pelo bebê, de quem aliás, ninguém se lembra nessa confusão de mães de lá e de cá.

O instinto paterno, também foi descoberto pelo Globo e o belíssimo Zeca, doador do espermatozóide (pai inquestionável da criança), se apaixo-

na pela jovem alugada, quem sabe pe- los humores e eflúvios de sua gravidez que contém um pedacinho dele também.

A máxima de que "mãe é mãe", mesmo pobre, sozinha, desamparada, que a maternidade é uma questão pura- mente pessoal que só diz respeito à mu- lher e a mais ninguém (na hora de cui- dar dos filhos, pois na hora de decidir todos querem dar palpites). No papel de Estado, a figura da juíza, decide quem é a mãe legal e biológica, mas ninguém quer saber do que será feito para que a mãe tenha condições de criar a criança, ou qual a responsabilidade legal dos cientistas, preservados no pa- drão global, nos cuidados com essa crian- ça e com suas mães.

A mãe, qualquer uma das duas, rejeitando seu instinto materno, ou pe- lo menos dividida entre o desejo e a re- jeição do filho, seria demais para os estilos da Globo.

Enquanto isso, a mensagem paté- tica da adoção da menininha loira de

olhos azuis, surge como a salvação para aplacar os instintos maternos de Ana, a compradora do útero. Pois as revistas já anun- ciam esse final feliz. Ora, a problemática da adoção está mais nos me- ninos acima de 5 anos, ne- gros que vivem na Praça do que nos casais que ado- tam loirinhos tipo exporta- ção. O que a Globo não discu- te, afora os discursos arti- ficiais de Clara sobre a ri- queza de Ana e suas como- didades como mulher "bem de vida", são os milhões de dólares gastos em pesquisas de reprodu- ção humana, voltadas pa- ra controlar os úteros po- bres e aperfeiçoar os úte- ros ricos.

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PELO MUNDO

A mulher árabe e a guerra Amai El Khatib

Iraque, palavra árabe que quer dizer Costa, é a terra de Nabucodonosor e o berço da civilização, a página na qual se escreveu a primeira letra do primeiro alfabeto que

o homem conheceu. É uma terra de grandeza, coragem, so- nhos e lendas, de filosofia, ciências e artes, onde as palmeiras ondulantes e os minaretes dourados refletem sua beleza nos rios majestosos. É a terra onde se inventou a primeira foice e onde se descobriram os primeiros implementos da vida civiliza- da, que depois se difundiram para outras partes do mundo. Muitas dessas descobertas pioneiras foram deslocadas para di- versos museus do Oriente e Ocidente, longe dos locais de ori- gem e de sua paisagem natural.

Os iraquianos lutam, hoje, em seu próprio território, pa- ra salvaguardar sua pátria, seus filhos e sua civilização, amea- çados por tropas estrangeiras do Ocidente. Como pode uma terra de grandezas e de cultura milenar estar sendo destruída sob os auspícios da ONU? Como entender os objetivos dessa guerra e do que sabem os ocidentais a respeito do Iraque, do Kuwait e do Oriente Médio, uma vez que as informações são manipuladas e até omitidas?

Imagem do oriente é invenção do ocidente

O mundo ocidental assiste a uma "guerra limpa" que já matou 300.000 pessoas (homens, mulheres e crian- ças) no Iraque. O caráter imperialista desta guerra é

o de formar uma nova ordem mundial de hegemonia dos EUA. No entanto, a imprensa ocidental vem bombardeando o Orien- te Médio com clichês espantosos, a maioria deles, ignorante, moralista e sem qualquer fundamento histórico. A visão que se passa dos árabes e dos muçulmanos é a de pessoas sem res- peito pela moral e pela vida humana.

Há sempre interesse em deixar que a verdade seja detur- pada ou omitida por correspondentes compromissados com de- terminados lobbies. Assim, fica fácil chamar Saddam Hussein de louco ou ditador. Quando as tropas iraquianas invadiram o Kuwait, jornais e revistas estamparam a foto do presidente Saddam Hussein comparando-o a Hitler. Esta comparação tra- zida repetidas vezes, pela TV, mereceu uma resposta do povo iraquiano: em meio a uma manifestação de apoio a Saddam Husseim, um jovem empunhava uma foto caricaturizada de George Bush, de bigode hitleriano, em que se lia: "Qualquer um pode ser Hitler".

Regularmente, publicam-se livros e artigos sobre o Orien- te e o Islã, em que o árabe é convertido em terrorista, coloniza-

do, conquistado por uma geografia imaginária. Para não ir lon- ge, algumas emissoras de televisão levaram ao ar, recentemen- te, a cena de uma ave mergulhada em petróleo espalhado pelo mar, em referência ao derramamento de óleo no Golfo. Ora, essa mesma cena foi mostrada, ano passado, por ocasioão do vazamento de petróleo na costa do Alasca.

Neste emaranhado todo, mesclado de areias do deserto, petróleo e o sangue dos inocentes, a mídia de informação cum-

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pre o seu papel conforme interesses ou lobbies ocidentais. A TV mal consegue desempenhar o seu papel de informar porque está compromissada com certos grupos. Dessa forma, a notícia vem pronta, amarrada, fechada. A verdade, muitas vezes, omi- tida intencionalmente, dissipa-se, dando margem a interpreta- ções errôneas, uma vez que imagens montadas no vídeo não permitem contestação. Neste caso, a TV tem um papel diabóli- co por desprezar verdades, omitindo a exatidão dos fatos. Foi exatamente isso o que aconteceu quando as forças americanas e aliadas invadiram o Iraque. Os EUA precisavam de dar uma conotação de justiça à investida contra o Iraque. Aí entrou a mídia de informação para incutir na mente das pessoas que eles, os EUA, podem atacar um outro país, os outros não. De um lado Bush representando o Bem, de outro Saddam Hus- sein, com o papel do Mal. O mundo inteiro viu TV, ouviu pelo rádio e leu em jornais que era preciso aniquilar o inimigo do mundo, o novo Hitler. Uma chamada bem à americana.

Origens do conflito

Impossível discorrer sobre a guerra do Golfo Arábico sem conhecer o contexto histórico, cultural, religioso e políti- co do mundo árabe. Para um bom entendimento sobre

essa guerra é preciso começar onde termina a II Guerra Mun- dial, quando os EUA passaram a ser obedecidos pelo mundo. Antes da II Guerra, o ftiundo obedecia aos ingleses. Foram eles que colonizaram, dominaram os árabes por muitos anos, através de mandatos. Também foram os ingleses responsáveis por lotear a Palestina, na época do Mandato Britânico, quan- do expulsaram gradativamente o povo palestino de sua própria terra, para dar lugar aos judeus, que lá se estabeleceram e cria- ram um novo estado - Israel - transformando o povo palesti- no em refugiados e povo sem pátria até os dias de hoje.

Países árabes como Egito, Arábia Saudita, Jordânia e Iraque (além do Irã - antiga Pérsia) estiveram sob o domínio britânico, o qual foi perdendo poderes em conseqüência de lu- tas, sucessivas guerras e movimentos nacionalistas. Muitos des- ses países lutaram por sua independência, entretanto, os ingle- ses, ao se retirarem, deixaram para trás de si, o modelo de seu regime: a monarquia. Por essa razão, alguns países árabes são governados por reis, príncipes, emires e monarcas, que, aliás, espelham-se na monarquia inglesa. Imperam hoje, o rei Fahd, na Arábia Saudita; o rei Hussein, na Jordânia; o príncipe Ja- ber al-Ahmad al-Sabah, no Kuwait, entre outros.

O Kuwait, cujo significado é fortaleza, é uma província de 17.820 km2 que sempre pertenceu ao Iraque, nunca foi um país. Para fins de documentação, só tinham direito a passapor- tes os membros da família real Kuwaitiana. Os outros cida- dãos possuíam documentação iraquiana. Para melhor esclare- cer, o Kuwait foi criado em 1967, quando o general Kassem, chefe de Estado do Iraque, decidiu retirar concessões aos mag- natas das companhias petrolíferas que exploravam o petróleo

na região e por vontade destas, o Kuwait foi criado, através de uma intervenção militar inglesa que colocou no trono o prín- cipe Sabah, um chefe de tribo de beduínos do deserto. Assim, o Kuwait, foi separado do conjunto para servir aos interesses do Ocidente.

Quem acompanha atenciosamente os acontecimentos so- bre o Oriente Médio, dos últimos anos, já leu, mais de uma vez, que o governo americano conseguiu, finalmente, o que vi- nha tentando há muito tempo, isto é, por os pés na Arábia Saudita. O papel internacional que compete hoje à Arábia Sau- dita consiste em emprestar aos EUA as bases navais e aéreas que permitam controlar a região do petróleo e garantir a mo- narquia que restou.

Assim, a intenção das tropas ocidentais é a de permane- cer no Golfo, mesmo após a guerra. Já ficou claro que o obje- tivo principal não é devolver o Kuwait à família real, mas colo- car o povo do Iraque contra o seu presidente e depor Saddam Hussein, além de forçar uma posição estratégica num novo mapa geopolítico no Golfo e permanecer lá, pelo menos 20 ou 30 anos, a fim de controlar o petróleo. Não há mais dúvi- da de que a Guerra no Golfo é econômica e que o importante não é recuperar o Kuwait para os emires, mas tomá-lo para o Ocidente. O presidente Bush deixou isso bem claro, ao afirmar que "chegara a hora de os americanos redefinirem o seu papel no mundo sem o muro de Berlim, a fim de conservar o seu 'status'r de superpotência a qualquer custo".

É preciso não perder de vista que quem deve decidir se Saddam Hussein é bom ou não para governar o Iraque é o po- vo iraquiano.

Nem Bush, nem os governos árabes têm moral para is- so. Esses governos estão defasados e desmoralizados diante do seu próprio povo.

ONU: Falência da Paz

Os EUA conclamaram seus aliados, em agosto de 1990, para o uso da força contra o Iraque que ocupou o Kuwait.

A ONU, pela primeira vez em toda sua existência, autorizou a guerra, esquecendo-se de que é uma entidade destinada a pro- mover a paz, conforme o Artigo 24 da Carta da ONU, que de- fine como sua função a "manutenção da paz e segurança inter- nacional".

Recentemente, ao final de 89, os EUA invadiram o Pana- má, seqüestraram o presidente Noriega, provocando a morte de inúmeros inocentes.

Para não citar todas as ocupações efetuadas pelos EUA, basta dizer que existe hoje, na Nicarágua, um exército de mer- cenários americanos em torno de 16 mil homens - "os contras" - financiados pelo governo George Bush, encarregados de lutar contra os sandinistas.

A ONU possui 140 países membros dos quais 5 (os ven-

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cedores da II Guerra Mundial) têm o poder de veto às decisões. Fica fácil entender porque Israel ocupa Jerusalém, Cis-

jordânia e Gaza e, ali permanece, há mais de 23 anos, sem que nunca a ONU tivesse se manifestado em favor do uso da for- ça, obrigando a desocupação. As Nações Unidas condenam es- sa ocupação ilegal (resoluções 242-252, 267, 465), porém, as tropas de ocupação além de cometer massacres cotidianos aos palestinos, instalam a cada dia, colônias israelenses no territó- rio ocupado.

Pesos e medidas diferentes: Israel ocupa território árabe, os EUA invadem Granada e Panamá culminando em insignifi- cantes resoluções de condenação. O Iraque ocupa o Kuwait e provoca a fúria da maior potência mundial, a qual sem cerimô- nia, lança sobre Badgá, juntamente com seus aliados, bombas equivalentes a sete vezes toneladas a de Hiroshima, matando 30 mil iraquianos.

Esta investida bélica e cruel, sem antecedentes foi deno- minada de "guerra justa e limpa". Por trás desta justiça escon- de-se a falência da ONU e a hipocrisia do presidente Bush, que ao lançar bombas sobre um abrigo em Bagdá, matando 400 pessoas, acusou o presidente Saddam Hussein de crimino- so porque colocou as pessoas ali, bem debaixo de seu míssil.

Mulher árabe e islamísmo

A imagem da mulher árabe sempre foi distorcida no Ocidente. Muita literatura em língua inglesa a respei- to da mulher no Oriente Médio tende a ser secundá-

ria, principalmente quando se refere à mulher muçulmana. Na maioria das matérias ou discussões a seu respeito, são em- pregados termos vagos e limitados, tais como véu, harém e con- finamento.

A mulher árabe é vista sob ótica ocidental que demons- tra ignorância total no que se refere à cultura, aos costumes e as tradições. O desconhecimento em relação ao Islã tem condu- zido a uma falsa interpretação em que a mulher aparece margi- nalizada e oprimida, segundo a literatura ocidental, quando, na realidade, ela é colocada em plano superior e elevado.

Na época anterior ao Islamísmo (do Islã), a sociedade árabe vivia dissociada em guerras permanentes de tribo contra tribo, afundada na superstição, no paganismo e na idolatria e entregue à violência e à pilhagem. Nesta sociedade em que o adultério, a embriaguez e o incesto formavam parte do seu "modus vivendi" e os mais elementares direitos eram infringi- dos, as mulheres foram as mais penalizadas.

Muitos bebês do sexo feminino eram enterrados vivos por causa de insignificantes defeitos físicos. Os muçulmanos consideraram essa época pré-islâmica como a época da barbá- rie e da ignorância.

Na concepção islâmica, a mulher e o homem são da mes- ma essência e absolutamente iguais.

Na nova ordem islâmica, a mulher foi libertada, dignifi-

cada, honrada e protegida. O Islã tem como objetivo a proteção da mulher e a reve-

lação ordena ao homem lutar em defesa das mulheres e das crianças fracas, inclusive arriscando sua vida. Ordena, igual- mente tratar a esposa com justiça, bondade e benevolência e ressalta que o Islã moraliza o matrimônio, pondo em relevo os direitos da mulher que são sagrados e compreendem: igual- dade ante a lei, propriedade pessoal e direito à herança e divórcio.

É interessante citar que alguns costumes no que se refe- re às vestes das mulheres muçulmanas, nada tem a ver com o Islamísmo.

O véu ou "shador" foi trazido para o Oriente Médio pe- los bizantinos. É aparentemente na Pérsia que as mulheres en- contraram esses costumes levados aos países árabes. Na época, somente as mulheres das cidades cobriam a cabeça com véus, significando status. Uma camponesa jamais ousava usar um lenço sobre a cabeça. Esse costume é ainda seguido por algu- mas mulheres, atualmente. Na verdade, até o homem árabe usa a "Kafia" ou "Kata" sobre a cabeça, antiga tradição dos beduínos.

Após a queda do Xá da Pérsia (Irã), as mulheres irania- nas voltaram às tradições, usando o "shador". Esta postura significava, na época, a volta às raízes, à cultura e às tradições que vinham sendo corrompidas e destruídas, graças à influên-

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cia ocidental a qual fora estimulada pelo próprio Xá que colo- cou o pais à mercê da decadência e do imperialismo dos estran- geiros.

Mulher árabe: atuante e participante

Nos paises árabes onde ainda existe regime de monar- quia, como Arábia Saudita, Kuwait e Bahrain, a mu- lher não ocupa, na sociedade o papel que deveria ocu-

par. Com efeito, não é a religião que dificulta sua ascensão, mas a própria característica do regime autoritário de seus pai- ses. Já em paises mais progressistas, que já alcançaram sua in- dependência - de certa forma - ou onde lutam por ela, a mulher árabe ocupa importante pa- , pel na sociedade, contribuindo para progres- so cultural, social, educacional, artístico e plás- tico de seu povo, como ocorre com as palesti- nas, as argelinas, as egípcias, as tunisianas, as libanesas e iraquianas.

Muitas são as mulheres palestinas que se destacam na luta de libertação de seu po- vo, através de sindicatos, departamentos médi- cos, educacionais, assistência ao menor, asso- ciações de arte etc... A União Nacional de .Mulheres Palestinas agrega mulheres de todas as categorias com o objetivo de estudar, deba- ter e promover a luta contínua até a desocupa- ção dos territórios árabes. A escritora Fádua Tuqan é uma das mais célebres representantes da poesia palestina árabe. Sua obra é conheci- da no mundo árabe e em muitos países ociden- tais, pelo teor humorístico e político.

As mulheres argelinas lutaram lado a la- do com os homens pela libertação da Argélia ocupada pela França durante 128 anos. Famí- lia Abu Haired tomou-se líder de seu povo por ter participado das batalhas de seu país até sua independên- cia. A jornalista argelina Fedela Marabet tem dado significati- vas contribuições literárias e políticas, dentro de uma visão cri- tica e política.

No Egito, a escritora e editora Ámina al-Said destacou- se pela obra ''A mulher árabe e o desafio da sociedade", que aborda a tarefa da mulher egípcia em toda sua amplitude. Ela continua produzindo obras de relevância na atualidade.

A novelista libanesa Gadah ai Samman aponta a comple- xidade do conceito da emancipação da mulher, em suas maté- rias publicadas e editadas em várias regiões do Oriente Médio. Também a produção literária de outra libanesa, Layla Balabak- ki tem importância especial. Essa autora superou as acusações em sua luta pessoal contra a repressão literária.

Em outros setores de atividades, além da literária, a mu- lher árabe vem desempenhando, cada vez mais, tarefas impor-

tantes, ocupando cargos relevantes, quer na área médica, edu- cativa, artística ou política.

No Iraque, a mulher iraquiana, não apenas freqüenta universidades, mas trabalha no comércio, nos serviços públicos, dirige ônibus e até pilota aviões. Neste sentido basta dizer que a mulher iraquiana fixou sua concepção política por meio de participação deliberativa obtida nos Congressos da Mulher Ira- quiana para tratar de questões gerais com o objetivo de eman- cipar a mulher, no sentido de contribuir para a realização da libertação da sociedade de forma global. O próprio governo iraquiano vem depositando grande interesse nesta questão de emancipação da mulher iraquiana.

Tanto é que o Centro de Moda Iraquiana é uma das

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Manifestação pela paz no Chile igual &s que ocorreram em todo o mundo.

muitas instituições artísticas patrocinadas pelo Ministério de Informação em Bagdá.

A casa da moda iraquiana DAR AL-AZ1A vinha exibin- do no mundo todo - mais de 40 países, inclusive o Brasil - os tesouros de herança artística do Iraque. Esta escola de criação artística foi fundada em 1970 e vinha trabalhando, antes da Guerra, para arregimentar todas as potencialidades estéticas e artísticas do Iraque, com o objetivo de criar uma nova visão na apresentação da moda, envolvendo a cooperação simultâ- nea de poetas, músicos, artistas, artesãos e historiadores, assim como de pesquisadores da cultura antiga.

Amai EI-Khatib é licenciada em Letras e Pedagogia e membro de equi- pe da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) do Estado de São Paulo. É professora do colégio Rio Branco de Campi- nas. Dedica-se também ás artes plásticas.

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é DE NORTE...

Revista humilhante em Betim

Quando as funcionárias da Industrial Cachoeira chega- ram para o trabalho no dia 27 de fevereiro passado, uma hu- milhação sem precedentes espe- rava por elas. No vestiário, uma policial e a gerente - capa- taz da confecção as aguarda- vam. Se iniciava uma revista, verdadeiramente criminosa de todas as funcionárias - elas de- viam ficar todas nuas, abaixar e levantar três vezes.

No início, era uma por vez, em seguida começaram a obrigar as restantes a serem re- vistadas todas juntas. A funcio- nária Ariadne, negou-se a tirar a roupa e ao ser forçada e ame- açada desmaiou.

Tudo começou, porque o dono da fábrica, que já foi presidente da Câmara Munici- pal de Betim, montou uma ar- madilha para descobrir quem andava roubando as bolsas do

vestiário, que por sinal, não tem armários individuais para suas funcionárias. Como o di- nheiro que ele colocou de cha- mariz sumiu, porque ninguém é besta de ver dinheiro sobran- do por aí, chamou a polícia e montou um verdadeiro campo de concentração na fábrica pa- ra pegar "as suspeitas".

Engana-se quem pensa que elas ficaram quietas e se conformaram com a arbitrarie- dade.

A União Brasileira de Mulheres, sendo informada da denúncia por uma funcioná- ria, procurou as trabalhadoras, e junto com o Sindicato dos Alfaiates e Costureiras de Mi- nas Gerais e a CUT, foi para a porta da fábrica protestar. Estão abrindo um inquérito junto à Corregedoria da Polí- cia Civil de Minas e uma ação de fiscalização na Delegacia

Regional do Trabalho. O empresário ainda ale-

ga que estava agindo no inte- resse das funcionárias que vi- nham sendo assaltadas. Agia em "seu interesse", mas deu- lhes o tratamento de câmara de tortura lidando com crimino- sas.

Não é por acaso que a denúncia teve repercussão e a solidariedade de vários segmen- tos sociais, tamanha a afronta que significou essa atitude e a indignação das mulheres.

São freqüentes esses des- respeitos com as mulheres tra- balhadoras, como foi o caso da De Millus que teve o displan- te de pagar anúncios caríssi- mos para responder de forma machista e reacionária às de- núncias de revistas em suas fá- bricas.

Os anúncios certamente forma bem mais caros do que seria o roubo de milhares de calcinhas e sutiãs. Mas conta mais o descaso e a desvaloriza- ção do trabalho feminino que leva esses patrões a considera- rem simples e rotineiro obrigar mulheres trabalhadoras a se despirem e se exporem diante de policiais ou chefes por sus-

peitas na maioria das vezes in- fundadas.

40 anos de resistência

São 40 anos de existência e de brigas para continuar exis- tindo. O que elas querem é ape- nas uma casa para morar em São Paulo, enquanto estudam aqui, vindas do interior ou de outros estados.

E desta vez, não se tra- ta como da última briga mais recente, de especulação da ini- ciativa privada, mas o próprio governo do Estado de São Pau- lo que move uma ação de rein- tegração de posse para expul- sar as meninas da Casa da Uni- versitária de São Paulo que é de utilidade pública. Mas elas estão na briga e continuam fir- mes na casa, colhendo assinatu- ras e conquistando apoio para resistir.

Ele está de volta

Você se lembra do Nor- plant? Aquele anticoncepcio-

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A SUL

nal implantado no braço que dura 5 anos, cuja pesquisa no Brasil foi proibida?

Embora fanamente acu- sado, cheio de efeitos colate- rais e implantado de forma des- controlada em milhares de mu- lheres, eles não desistem e, ago- ra é Marília Gabriela, a apre- sentadora de TV, que vem a público dizer que usa o Nor- plant e que ele é ótimo, depois de liberado nos EUA. O que Dona Marília Gabriela não fa- la é que ela tem todas as infor- mações, médicos e acompanha- mentos que quizer para cuidar de sua saúde, enquanto mulhe- res desassistidas e desinforma- das não têm a mesma seguran- ça para optar.

Atenção, se ele já é usa- do nos Estados Unidos, logo, logo, as farmácias vão estar vendendo os implantes, em sua- ves prestações.

Mulheres no ar, silêncio!

"Fala Mulher" e "Pre- sença da Mulher", quem diria! Dois programas de rádio feitos por e para mulheres, investin- do no crescimento e consciên- cia de suas ouvintes. O primei- ro no Rio e o segundo em Ca- xias do Sul. "Fala Mulher", na Rádio Guanabara AM - 1360 Khz, todos os dias, das

8:05 às 8:30 horas e o "Presen- ça da Mulher" aos sábados, das 11:00 às 12:00 horas na Rádio São Francisco. Fiquem ligadas!

Clima de extermínio

A cidade de Rio Maria vive em clima de guerra. Loca- lizada no sul do Pará, palco de conflitos pela terra, assistiu ao assassinato de mais um lí- der sindicalista rural. Expedi- to Ribeiro de Souza.

Como forma de engros- sar a luta contra a violência im- pune no campo, as mulheres

vêm integrando os comitês for- mados para impedir que a vio- lência instaurada em Rio Maria continue se espraiando.

Muitas lideranças estão ameaçadas de morte no Pará por combaterem o latifúndio, dentre elas a deputada federal Socorro Gomes.

Essa briga é longa

Nossa Constituição já está ficando velhinha, até se pensa em revogá-la e quase na- da foi regulamentado em leis ordinárias. É para exigir a agi- lidade nessa regulamentação, particularmente nos Códigos Civil e Penal, naquilo que diz respeito às mulheres que va- mos nos reunir, movimento au- tônomo, Conselhos e advoga- das em Brasília, no dia 20 de março e entregar aos parlamen- tares nossas propostas e reinvi- dicações para uma nova legisla- ção.

Rosa dos tempos

Surge uma nova opção no mercado editorial brasilei- ro, e voltada para as mulheres. A Editora Rosa dos Tempos foi lançada em novembro de 1990 e já editou vários títulos, tanto na área de ficção como de psicologia, feminismo, sem- pre trazendo a vanguarda do que tem sido produzido pelo mundo. Ruth Escobar e Rose Marie Muraro encabeçam essa iniciativa. A Editora Liberda- de Mulher traz os votos de su- cesso à sua mais nova colega.

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REPORTAGEM

Moda em Cuba Emérita Ramirez *

Estgmos acostumados com a indústria de moda em nosso país e achamos interessante o contraste do

que vem sendo feito em Cuba. Lá há uma preocupação não só no "estar na moda" como em levar ao povo cubano o conhecimento e a prática de uma

"cultura de vestir".

Logo após o triunfo da revolução popular, a produção em Cuba procurou satisfazer as necessidades das amplas mas- sas populares. Foi a partir da década de 70 que iniciou-se o processo de recuperação da qualidade e começou-se a dar aten- ção à moda internacional.

Existem diversos organismos ligados, entre outras coisas, a tudo que se relacione com a vestimenta da população, e é numerosa a mão de obra nacional vinculada a esta atividade. O Ministério da Indústria Leve do Comércio Externo é respon- sável pela compra e distribuição dos artigos.

Por outro lado, o Escritório Nacional de Desenho Indus- trial é encarregado de orientar tecnicamente o desenho, levan- do em conta a tendência internacional.

Ditar as normas de qualidade é tarefa do Comitê Estatal de Normalização. E quando se trata de "escolha" é o Institu- to Cubano de Pesquisa e Orientação da Demanda que se encar- rega de fornecer os dados sobre as preferências do consumidor.

Estudos realizados por este organismo informam que exis- tem atualmente cinco grupos de consumidores de vestuário, que se comportam de forma diferente quanto à seleção de arti- gos: os vanguardistas (grupos mais jovens que implantam mo- da); os avançados (mantêm atitude progressista sem chegar à vanguarda); os tardios (aceitam a moda já generalizada); os consevadores (mantêm uma atitude tradicional, clássica); e os indiferentes (que se opõem aos vanguardistas e se comportam de forma negativa em relação à moda). Nos três primeiros gru- pos predominam as mulheres e nos dois últimos os homens.

Em 1984, a partir da própria linha de trabalho e orienta- ção do Instituto, surge a possibilidade material de criar a ofici- na de Experimentação da Moda. Esta unidade de produções experimentais tem o objetivo não de vestir, mas de orientar ar- tigos do vestuário. Conta com uma diretoria e um especialista

em meios de comunicação. O trabalho de orientação é realiza- do a partir dos próprios resultados das pesquisas sócio-econô- micas e das análises realizadas por especialistas com formação internacional.

Desta forma, a conjugação de informes sobre a moda no exterior, as necessidades e possibilidades reais do país inter- vém neste papel orientador. Localizada no coração de Hava- na, esta oficina produz 150 unidades por cada desenho, com preços acessíveis para toda a população.

Os meios de comunicação de massa e as exposições en- carregam-se da divulgação deste trabalho.

A experiência econômica que esta atividade deve compor- tar é a capacidade de orientar a produção, podendo assim in-

tervir na racionalização dos produtos materiais e evitar perdas na compra (às vezes equivocada) de produtos estrangeiros.

A experiência social tem a aspiração de, mais do que "estar na moda", poder levar ao povo cubano o conhecimen- to e a prática de uma "cultura de vestir", entendendo-se por isso a criação e adaptação das diversas tendências da moda in- ternacional às condições climáticas do país, levando-se em con- ta as condições econômicas e o modo de vida da população cubana.

"Estar na moda" em Cuba, como em outros países, não se restringe apenas ao vestuário. Poderemos tratar disto em outra matéria.

• Esmérita Ramirez é jornalista cubana especializada em moda.

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DICAS

A magia das ervas Bata a clara de um ovo

em ponto de neve, junte a infu- são do chá de sua preferência ou necessidade de sua pele. A máscara não deverá ficar mo- le demais por isso prepare a in- fusão(chá) bem concentrada. Aplique sobre o rosto e pesco- ço. Deixe agir por meia hora e retire com água. Indicada pa- ra todos os tipos de pele depen- dendo da erva usada.

ALECRIM: Rosmarinus officinalis. Contém óleo essencial com ácidos orgâ- nicos e aminoácidos. É antissép- tico, tônico estimulante para peles secas.

ARNICA: Arnica montaria. Contém óleo essencial, resinas, tanino, áci- do málico, cera, goma e silício. É adstringente, cicatrizante. Pode ser usado em tônicos com finalidade de regularizar a se- creção sebácea das peles oleosas.

BOLDO: Pneumus boldus mol. Contém

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eucalipto!, boldina e flavanói- des. É estimulante e adstringen- te para as peles oleosas.

CALÊNDULA: Calendula officinalis. Seu óleo essencial é rico em alcoois e ácido salicílico, é especialmen- te indicado para as peles com acne.

CAMOMILA: Matricariarecutida. Seu princi- pal princípio ativo é o azule- no com grande poder de anal- gesia, sedativo e antisséptico, indicado para as peles sensíveis ou sensibilizadas pelo sol e aler- gias.

CENOURA: Daucus sativus Hayek. Rica em caroteno e vitaminas do Complexo B. É suavizante e nutritiva, agindo bem em to- dos os tipos de pele.

ERVA DOCE: Foeniculum vulgare mill. Seu óleo essencial é rico em sais minerais e vitaminas A e C. Tonifica e acalma a pele normal.

GINSENG: Panax ginseng. É rico em este- róides e vitamina E, age como anti-oxidante em todos os ti- pos de pele envelhecidas. É um excelente regenerador celu- lar.

HAMAMELIS: Hamamelis virginia. Rico em taninos que agem como antisu- doriparos. É adstringente leve para as peles normais ou leve- mente oleosas.

MALVA: Malva silvestris. Rico em muci- lagens e sais minerais. Um exce- lente emoliente para as peles secas.

MELISSA: Melissa officinalis. Seu melhor princípio ativo é o ácido succí-

todos os tipos de pele e especial- mente indicado para queimadu- ras solares.

SALVIA: Salvia officinalis. Seu ácido rosmarínico é antisséptico, esti- mulante e muito usado nas pe- les oleosas com finalidade de adstringência suave.

TÍLIA: Tilia cordata. Rico em óleos,

nico que é cicatrizante para as peles com acne.

SABUGUEIRO: Sambucusnigra. Contém nitra- to de potássio, óleos, tanino e vitamina C. É suavizante para

mucilagem e manganês. É emo- liente agindo contra a "coupe- rose" (pele com muitos vasos capilares), rugas e sardas.

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Texto extraído da revista Prática da Beleza n" I - Edições 90 Ltda.

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MEMÓRIA

Marie Curie, Mulher, Cientista, Mãe, Apaixonada,

Democrata

Lilian Martins *

0 ano de 1991 comemora 80 anos da conquis- ta do Prêmio Nobel de Quimica, por Marie Curie.

A pequenina polonesa de olhos cinzas e Figu- ra frágil, de 1867 a 1934 ■ a maior pane na França -, viveu ioda a dimensão da maravilhosa aventura da parcela feminina da humanidade.

Cientista, num tempo onde a ciência era prin- cipalmente, ou exclusivamente, território dos homens, desenvolveu, primeiro ao lado de seu marido - Pierre Curie-, e, depois de sua morte, com outros colabora- dores, as teses cientificas que embasam o princípio da radioatividade.

Foi a primeira mulher a ser laureada com o Prêmio Nobel da Academia Real de Estocolmo. Com- partilhou este titulo, em 1903 em Física, junto de Pier- re Curie, e novamente em 1911, em Química.

Para avaliar o significado dessas premiações, no inicio do século, por uma mulher, basta dizer que a conferência sobre o trabalho laureado em 1903 foi proferida por seu marido, tendo Marie assistido ape- nas da platéia.

Marie continua seus estudos ao lado de Pier- re, entretanto não vive como uma acadêmica, fecha- da em quatro paredes. Os dilemas de seu tempo a en- volvem.

Em 1905, Marie enviará dinheiro aos revolu- cionários russos.

Ela não se define como socialista ou marxis- ta, mas sim como uma democrata, sensível aos clamo- res de justiça que perpassam sua ipoca.

Marie, mãe de duas filhas, fica viúva em 1906. Lm estúpido acidente de trânsito vitima seu marido e companheiro de estudos científicos.

Prossegue em seus trabalhos, apesar da dor. Acompanha pessoalmente a vida doméstica e a educa- ção das filhas.

1911, o ano do segundo Prêmio Nobel, desta vez recebido pessoalmente por Marie, é também mar- cado pelo vendaval da paixão.

Marie e Paul Laugevin, colegas de ciência e trabalho, vêem seu romance pessoal divulgado aos quatro ventos, como a expressão da imoralidade.

A França burguesa do começo do século, puri- tana e chauvinista, não perdoará a cientista estrangei- ra, de estar vivendo uma paixão com um homem casa- do. Paul Laugevin, apesar da permanente crise de sua vida doméstica, não se decide a enfrentar o proble-

Marie Carie em sua mesa de trabalho.

ma do divórcio. "O instinto que nos arrasta um para o outro

foi muito forte. A destruição de um sentimento since- ro e profundo não seria comparável à morte de um filho que adoramos e vimos crescer e não poderá até em certos casos, constituir infelicidade maior do que a esta morte?" (Trecho da cana de Marie Curie a Paul Laugevin)

E ao lado do trabalho insalubre desenvolvi- do com a radiotividade, Marie, que luta por construir uma relação profunda com seu novo afeto, vê os jor- nais sensacionalistas estamparem "Os metecos na Sorbone: Laboratórios invadidos por uma corte de indivíduos em sua maioria estrangeiros. O número de mulheres aumenta constantemente. As mais reco- medáveis ali vão procurar marido. Quanto ás outras. .." O processo judicial que decorreu da denúncia de adultério separa Marie de Laugevin.

Marie Curie era simpática ao nascente movi- mento de mulheres, integrava o "Conselho Internacio- nal de Mulheres", assinou abaixo assinados em defe- sa de dirigentes do movimento em prol do voto das mulheres, presas ou condenadas á prisão.

Tendo como fio condutor de sua vida o estu- do científico, integrou-se á luta contra a Alemanha, em 1914, num esforço muito mais humanitário e de cientista militante. Estabelece uma frota de veículos

munidos de Raio X para examinar os feridos na zo- na de combate.

A Primeira Guerra Mundial inaugura a utili- zação de gases mortíferos, de microfones de ultra-som nos combates e as descobertas e esforços de Marie Curie, Pierre Curie, Paul Laugevin, entre outros, se- rão fundamentais. A comunidade científica, em am- bos os lados do conflito, será mobilizada no esforço de Guerra.

Após a Guerra, a continuidade da vida de Marie Curie é marcada pelo esforço de angariar fun- dos para o trabalho na Ciência. Apesar de sua mo- déstia permanente, faz inúmeros pleitos junto aos go- vernos nesse sentido.

Os efeitos da manipulação do rádio, naque- la época, eram desconhecidos. Inúmeros trabalhado- res e cientistas foram suas vítimas. Também Marie Curie adquiriu a misteriosa anemia, sem explicação ainda, vindo a morrer aos 66 anos, em 05/07/1934.

Dela, disse Einstein: "A única pessoa a quem a glória não corrompeu". E nós acrescentamos: "Mulher pioneira, muito à frente de seu tempo".

• Lilian Martins é professora de história e pre- sidente da União Popular de Mulheres do Esta- do de São Paulo.

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í LITERATURA

Os sonhos e os séculos Ácidas frutas doces

Os amores de chamas extintas eu os julgava: fósseis.

Assim, temia-te novamente.

Te receiava, roto vulto envolto num chambre fedendo a mofo.

Mas, na ciência do carinho

vale também que vulcões inativos a qualquer momento

podem ejacular fogo.

E assim,

com a pureza e a fome

de quem volta aos pomares da infância,

voltei a ti.

E ao correr, novamente, solto, travesso, por teu pomar

meus dentes sentiram

que o teu outono

ainda persiste em madurar

aquelas ácidas frutas doces.

É que o carinho

em nós ardera tanto que as ondas dele

até hoje se propagam

em tudo aquilo que amo.

Cadeado no coração

Não quero ser teu carcereiro.

Anel no dedo, cadeado no coração.

Não quero que meu carinho

seja pedrada no peito

da ave que buscava.

Vejo nos teus olhos o mesmo brilho

que há nas pupilas dos marinheiros,

dos ciganos, dos violeiros.

Os teus lábios salivam

pelos sais de outros mares.

Viajar, pisar outros continentes,

outras cidades,

percorrer o carinho

e o subúrbio de outros homens.

Provar de outras coisas:

suco de açaí, jaca, guaraná.

Vê, como os portos

oprimem os veleiros?

Vê, como as redes sangram os peixes?

Vá, não te quero como prisioneira.

Adeus, nunca mais!

40 PRESENÇA DA MULHER

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Uma senhora louca de amor

Minha canção

é tua. mulher

mãe.

heroina de meu

Se aproxima

a hora vital do almoço

e tua casa é um ninho

de filhotes famintos,

e tu, absolutamente, sozinha.

Num segundo, abandonas o tanque,

as roupas.

E já te vejo,

louca de amor,

brava como uma leoa,

correndo nas ruas da vila,

as pernas azuis de varizes...

Batendo de porta-em-porta,

com teu vestido de chita-azul,

teus olhos pretos,

pequenos,

comuns,

mas extremamente brilhantes.

Com tua voz firme,

com altivez, mas com a humildade

de uma embaixatriz de uma nação oprimida,

expões ao dono da venda,

aos vizinhos,

explicas que não tens dinheiro

mas tens as mãos calejadas

e que não és uma mendiga,

e que não é possível

que os teus filhos

não tenham direito,

pelo menos, a uma tigela de arroz.

Argumentas, negocias, lutas

defendes com unhas e dentes

a vida dos teus.

Te envolvo de carinho

com minha canção.

Os meus versos

são teus:

Linda senhora.

Do livro "Os sonhos e os séculos", do poeta goiano Adalberto Monteiro.

PRESENÇA DA MULHER 41

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ÚLTIMA PÁGINA

PRISENÇA DA MULHIR

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DE UMA ASSINATURA DA REVISTA PRESENÇA UA MULHER D Anual Comum: Cr$ 3.000,00 A partir do n? O Anual de apoio: Cr$ 5.000,00 A partir do n? O Semestral comum: Cr$ 1.500,00 A partir do n? G Semestral de apoio: Cr$ 3.000,00 A partir do n? Exterior: US$ 40 Cheque nominal à EDITORA LIBERDADE MULHER LTDA. Rua dos Bororós, 51,1? andar - 01320 - Bela Vista - São Paulo - SP

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AS MULHERES DE ATENAS. DE HOLANDA

E DE SÃO PAULO AGORATÊM MAIS

UMA ARMA PARA SE DEFENDER.

Quem é mulher e vive em São Paulo, conhece muito bem os problemas que todos os dias tem que enfrentar.

Por isso a Coordenadoria Especial da Mulher foi criada. Ela existe para sensibilizar a administração

através das diversas secretarias a pensar nos problemas da mulher. Sejam eles quais forem. Se você vive em São Paulo, procure a gente.

Você vai perceber que não está sozinha.

x^ oordenadoria (rytspec/a/ da .Jj-A/rulher i

SAO PAULO PARA TODOS

Prefeitura do Município de São Paulo