Há lugar para um palhaço-estrangeiro de si na cidade ... · PDF fileclássicos, mas ao mesmo tempo não pode deixar de reconhecer essas matrizes. Da mesma forma, um ator deve saber

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  • H lugar para um palhao-estrangeiro de si na cidade?Eveline Dantas Nogueira1

    O pintor Paul Gauguin amou a luz na Baa de GuanabaraO compositor Cole Porter adorou as luzes na noite dela

    A Baa de GuanabaraO antroplogo Claude Levy-Strauss detestou a Baa de Guanabara:

    Pareceu-lhe uma boca banguela.E eu menos a conhecera mais a amara?

    Sou cego de tanto v-la(Caetano Veloso)

    No trecho da msica Estrangeiro, de Caetano Veloso, citado acima, o cantor

    afirma ser cego de tanto ver a Baa de Guanabara. Parece-me um fato comum este: o de

    no enxergarmos a cidade em que habitamos exatamente pelo fato de muito a v-la da

    mesma forma, com os mesmos hbitos e repertrios de uso.

    J quando estamos na condio de estrangeiro, uma pessoa de fora da cidade que

    tem esse olhar no cotidiano sobre a mesma, que se deixa encantar, que se abre para

    provar e no ficar cego de tanto ver, deixamos que nossa percepo cotidiana se

    modifique de algum modo. Ns somos as nossas prticas e por isso fundamental

    revermos a nossa histria, ocupaes, hbitos, relaes com outras pessoas, com o

    capital, para que assim possamos dar sentido a tudo que aconteceu e organizar de tal

    modo que nos ajude a pensar sobre como estamos vivendo e o que fazemos da nossa

    vida. E a arte pode colaborar para afirmar nossa humanidade diante de tudo.

    E exatamente partindo desse lugar que repenso minha atuao de palhaa na

    cidade de Fortaleza. Ser que consigo abrir espaos para que eu seja, mesmo que por

    fraes de segundos, palhaa-estrangeira na cidade que habito? Ser que consigo criar

    potncia no encontro com o espectador que me observa? Como fraturar e lanar luz na

    cidade que no enxergamos?

    Encontrei pistas muito fortes para essa reflexo, durante o mdulo Cidade e

    Teatro, ministrado pelo professor Andr Carreira. Entrei em contato com um novo

    olhar sobre a cidade, vista alm da arquitetura, atentando para a noo dos fluxos

    urbanos que devem ser desvendados, seus limites e possibilidades. Na proposta de um

    teatro invasivo na cidade, por exemplo, Andr Carreira sugere que mais importante

    perceber como a cidade me provoca no meu trabalho enquanto atriz, em vez de pensar

    somente na praa ideal para meu espetculo.

    Penso que um grande escritor no aquele que escreve imitando os escritores

    1 Integrante do Grupo La Calle e aluna do Curso Teatro: Conexes Contemporneas, da Escola Pblica de Teatro da Vila das Artes (Fortaleza- CE).

  • clssicos, mas ao mesmo tempo no pode deixar de reconhecer essas matrizes. Da

    mesma forma, um ator deve saber usar as tcnicas de que dispe para a renovao da

    linguagem e de suas possibilidades expressivas, sendo capaz de inventar percepes

    inexistentes anteriormente. Cabe, ento, a mim, passar de um modelo do teatro que se

    estrutura como um instrumento de transmisso de informao e comunicao para outra

    coisa, para uma linguagem de percepes e sensaes, na tentativa de oferecer

    passagem para algo que, somente atravs do encontro como espectador, pode existir.

    Tarefa rdua que se pe como um desafio cotidiano.

    Diante de tudo isso, como estabelecer, por exemplo, um figurino que colabore

    para uma composio, para a fabricao de uma ambincia no ator e que no seja

    apenas uma informao a mais? Segundo Carreira as roupas tambm definem quem

    somos e por isso preciso descobrir a potncia potica da roupa no trabalho do ator. O

    figurino um componente do ambiente operacionalizado pelo ator, e este modificado

    por ele. A partir disso no tive como no ser remetida minha roupa de palhaa e s

    minhas variadas experincias na rua, desde apresentaes at laboratrios pela cidade,

    como sair andando nas ruas, tomar um caf com desconhecidos, pegar um nibus etc.

    Esse debate despertou em mim o interesse de pensar nessas questes a partir do lugar do

    palhao, linguagem de pesquisa do grupo que fao parte, o Grupo La Calle.

    Se a roupa de palhaa instala em mim um lugar potico, mas ao mesmo tempo

    um signo a ser lido, ela uma construo simblica que ajuda a (re)construir o ambiente

    da cidade. Ao utilizar, por exemplo, uma cala apertada e colorida, tal roupa poder me

    levar para uma construo corporal diferente da que habitualmente possuo em meu

    cotidiano. Como eleger uma roupa de palhao que no parta do imaginrio do que ser

    palhao e sim pensar nesta roupa como um dispositivo criativo que me desloque de um

    lugar de representao e colabore para a dilatao de mim mesma? Como conciliar uma

    roupa que realce caractersticas fsicas que me tornem mais cmica, mas que tambm

    no me impea de me mover ou utilizar meu corpo para a atuao? Acredito que um

    figurino no responsvel por dizer por si s as caractersticas do palhao, ou at

    mesmo de um personagem situado num ambiente de poca clssica, ele no pode ser

    desconectado dos outros dispositivos criativos.

    O palhao que atua na rua sabe o quanto se perde a proteo na rua, pois nela

    possvel dialogar com o imprevisvel e justamente com isso que ele joga. Um palhao

    nas ruas de uma cidade uma imagem real do ser humano e ao mesmo tempo sugestiva,

    habitada por tenso no cotidiana, porque ele provoca uma radicalizao da realidade, o

  • que gera uma qualidade ficcional muito particular. Como ento trabalhar nesse dilema

    de instalar um lugar potico sem partir de escolha aleatria de uma roupa colorida

    qualquer, desviar da construo de subjetividade, do corpo dilatado? Tornar um figurino

    engraado sem conect-lo com sua subjetividade (em permanente

    construo/desconstruo) pode prejudicar a busca da realidade exagerada e isso pode

    soar falso.

    comum se escutar que a roupa do palhao deve funcionar como sua segunda

    pele, atrelada sua histria de vida, e que o figurino no deve escond-lo e sim revelar e

    expor a si prprio. Por isso, importante que o ator saiba lidar com o peso, o volume, a

    durabilidade, o material utilizado em seu figurino, pois ele tambm ajuda a criar

    o universo no qual vai jogar. Geralmente, porm, em sua iniciao, quase todo palhao

    busca em suas referncias pessoais as inspiraes para a criao de sua atuao, at ir

    encontrando a si mesmo: muitas vezes, esse palhao mais experiente pode ser um dolo,

    o pai, o tio, o palhao mais velho do circo, que o influencia. [...] s vezes, o comeo se

    d imitando trejeitos, figurinos e maquiagem que lhe servem como referncia

    (SACCHET, 2009, p. 66). O palhao Grock, por exemplo, comeou substituindo outro

    palhao, tendo que copiar seu estilo e foi, gradativamente, impondo seu modo de atuar e

    de se vestir, at que em 1909 surge vestido da forma como o conhecemos: usando um

    vasto casaco xadrez e o crnio coberto com uma simples calota de pano ou com um

    traje de gala apertado, tpico de um Augusto concertista circense (Idem, Ibidem,

    p.68).

    Portanto, aprendi que necessrio ter um cuidado em escolher o figurino, pois

    ele funciona como um dispositivo, nos instalando fisicamente em um ambiente. Se essa

    escolha tiver em vista somente elementos que rondem o imaginrio do que soaria

    engraado no palhao ou se paute na elaborao de um personagem eleito, pode ficar

    difcil negociar o que seria a sua realidade ampliada ou que seria um afastamento total

    de si, o que no teria conexo alguma com a realidade e provavelmente no criaria uma

    esfera de sensaes e relaes entre o ator e o espectador. Por outro lado, pensar

    seriamente na elaborao da roupa do palhao, pode favorecer a abertura de espaos que

    desloque o espectador da vida cotidiana, das suas aes dirias e crie, assim,

    microfraturas com uma imensa fora poltica. o que eu penso ocorrer em

    determinados tipos de espetculos que, segundo o professor Andr Carreira, criam

    tramas durveis no espectador.

    O que faz essas pessoas, por exemplo, em meio ao centro da cidade, andando de

  • um lado para outro com tarefas a cumprir, prdios, casas, lojas, placas, carros buzinando

    e ambulantes enxergarem um acontecimento e terem desejo de provar, de saborear

    uma apresentao de um palhao? Somente, penso eu, quando se cria um encontro

    entre artista e platia. Como nos diz Rancire (2005, p. 2), a arte tambm se faz poltica

    por modificar a paisagem da vida coletiva, dos espaos comuns:

    a arte no poltica antes de tudo pelas mensagens que ela transmite nem pela maneira como representa as estruturas sociais, os conflitos polticos ou as identidades sociais, tnicas ou sexuais. Ela poltica antes de mais nada pela maneira como configura um sensorium espao-temporal que determina maneiras do estar junto ou separado [...] Ela poltica enquanto recorta um determinado espao ou um determinado tempo [...] uma modificao das relaes entre formas sensveis e regimes de significao, velocidades especficas, mas tambm e antes de mais nada formas de reunio ou de solido.

    Assim, tenho como desafio tratar do meu figurino de palhaa como possuidor de

    uma fora poltica, ao elaborar em mim uma ambincia que pode ou no colaborar para

    a fixao de sensaes, que pode vir a ser material de foras imperceptveis que esto

    circulando na cidade a todo instante. A tarefa que se faz urgente a de experiment-lo-

    o figurino novamente, em outra relao com a cidade, como a de um eterno

    estrangeiro de si.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFI