Habermas e o Direito Brasileiro - Alvaro Ricardo - 2009

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    HABERMASE O DIREITO BRASILEIRO

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    www.lumenjuris.com.br

    EDITORESJoo de Almeida

    Joo Luiz da Silva Almeida

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    LVARO RICARDO DE SOUZA CRUZProcurador da Repblica em Minas Gerais.

    Mestre em Direito Econmico e Doutor em Direito Constitucional.Professor da Graduao e da Ps-Graduao da Pontifcia

    Universidade Catlica de Minas Gerais.

    HABERMASE O DIREITO BRASILEIRO

    2a edio

    EDITORA LUMEN JURISRio de Janeiro

    2008

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    Copyright 2008bylvaro Ricardo de Souza Cruz

    Categoria: Direito Constitucional

    PRODUO EDITORIALLivraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    A LIVRARIA E EDITORA LUMEN JURIS LTDA.no se responsabiliza pela originalidade desta obra.

    proibida a reproduo total ou parcial, por qualquermeio ou processo, inclusive quanto s caractersticas

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    de 1o/07/2003), sujeitando-se busca e apreenso eindenizaes diversas (Lei no 9.610/98).

    Todos os direitos desta edio reservados Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

    Impresso no BrasilPrinted in Brazil

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    Angelina, Adenir e Maria; saudades que otempo no pode apagar: o cantinho, o ngopreto e o cajuzinho.

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    VERDADE DIVIDIDA

    A porta da verdade estava aberta

    mas s deixava passarmeia pessoa de cada vez.

    Assim no era possvel atingir toda a verdade,porque a meia pessoa que entravas conseguia o perfil de meia verdade.E sua segunda metadevoltava igualmente com meio perfil.E os meios perfis no coincidiam.

    Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.Chegaram ao lugar luminoso

    onde a verdade esplendia os seus fogos.Era dividida em duas metadesdiferentes uma da outra.

    Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.Nenhuma das duas era perfeitamente bela.E era preciso optar. Cada um optouconforme seu capricho, sua iluso, sua miopia.

    (Carlos Drummond de Andrade)

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    Sumrio

    Prefcio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . xi

    Captulo I Introduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1

    Captulo II Os Antecedentes no Projeto do Esclareci-

    mento em Habermas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

    Captulo III Primrdios: A Teoria dos Interesses Ima-nentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59

    Captulo IV A Maturidade Intelectual: A Teoria do AgirComunicativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

    Captulo V A Teoria Discursiva do Direito . . . . . . . . . . 127

    Captulo VI A Constelao Ps-Nacional . . . . . . . . . . . 213

    Concluso . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247

    Referncias Bibliogrficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 261

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    Prefcio

    Suspeito, todavia, que o mal-estar e a inquietu-de atuais tm uma raiz mais profunda, a saber, o pres-sentimento e a suspeita de que, sob o signo de umapoltica completamente secularizada, o Estado deDireito no se pode manter sem democracia radical.

    Jrgen Habermas

    Todo processo de alterao de paradigma, quer sejana cincia, quer seja na vida, no se d sem resistncias.Afinal, no so todos os que, abertamente, reconhecem oesgotamento de uma concepo de mundo na qual cons-

    truram seu modo de compreender o trabalho cientfico,assim como a si prprios. Um paradigma no qual nos move-mos constitutivo de ns mesmos. E saltar para alm dalinha de Rhodes, que um paradigma pode representar,implica reconhecer, por um lado, o carter finito, falvel eprecrio da condio humana, algo que exige um aprendi-zado crtico e reflexivo em face de tradies sempre caren-

    tes de justificao, e por vezes abandonar aquilo que nosparece mais que bvio, natural, certo e assentado. Poroutro lado, implica reconhecer, com Hannah Arendt, que oque caracteriza a condio humana, no ser o humano umser-para-a-morte, como dizia Heidegger, mas umser-natal,em aberto, cuja liberdade est em ser um ser com capaci-dade de inovar, de dar incio ao novo, de renascer (n)ummundo que se constri intersubjetivamente entre e em ns.Precariedade, aprendizado e renascimento: no h, pois,outro modo de garantir o prosseguimento, quer de umacincia digna do nome, quer de uma vida autntica, que sse constrem na luta, no reconhecimento recproco e nodebate intersubjetivo que as constituem.

    EmHabermas e o direito brasileiro, lvaro Ricardo deSouza Cruz renova audaciosamente o seu compromisso

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    com o projeto jurdico-poltico de construo de uma Teo-ria da Constituio, marcada pelo giro lingstico na Filo-sofia contempornea e adequada ao Estado Democrticode Direito. Para isso, posiciona-se, com suas argutas refle-xes, no atual debate, suscitado entre os constitucionalis-

    tas brasileiros, em torno da Teoria Discursiva do Direito edo Estado Democrtico de Direito, proposta por JrgenHabermas, em que se destacam os nomes de Menelick deCarvalho Netto e Lenio Luiz Streck, dentre outros. E, em se

    tratando de um debate, toma criticamente como fio condu-tor de suas anlises as objees de Lenio Streck, emJurisdio constitucional e hermenutica, s tentativas derecepo da obra habermasiana no debate constitucionalbrasileiro.

    Esse debate pode ser, num primeiro momento, resumi-do na controvrsia acerca de se a Teoria do Discurso, deHabermas, poderia contribuir ou no para a discussoacerca dos dficits de legitimidade e de efetividade consti-

    tucionais, para alm de alternativas, por quase todos des-cartadas, ou seja, as que representam a perspectiva de umconstitucionalismo meramente simblico e a de um consti-

    tucionalismo meramente programtico. Mas, no fundo, oque est em discusso, como em Carvalho Netto e emStreck, a questo central acerca de como compreenderadequadamente o projeto constituinte/constitucional deum Estado Democrtico de Direito entre ns.

    Como lvaro Souza Cruz bem considera, as objeesde Lenio Streck vo desde a simples afirmao de que a

    teoria habermasiana no se apresentaria adequada reali-dade brasileira, de terceiro mundo, j que desenvolvida noprimeiro mundo, at a objeo mais profunda segundo aqual no haveria propriamente uma Teoria da Constituiopara o constitucionalismo visto como fenmeno universal,

    j que assim se estaria desconsiderando, mais uma vez, aespecfica realidade social, econmica e poltica de

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    Estados que no teriam vencido as mesmas etapas histri-cas europias e norte-americanas. Em outras palavras, a

    teoria habermasiana, procedimentalista, desconsiderariaas exigncias substantivas para o real exerccio de direitosfundamentais, na consolidao de democracias incipientesque, como o Brasil, no teriam efetivamente realizado aspromessas de materializao prprias a um Estado Socialdigno do nome. Seria, pois, necessria a construo de umaTeoria da Constituio Dirigente Adequada a Pases de

    Modernidade Tardia (TCDAPMT) que, fundada numasupostamente possvel leitura emancipacionista daHermenutica Ontolgica, proposta por Martin Heidegger,fosse capaz de tomar a srio os obstculos prprios nossafacticidade histrico-social, removendo-os, por exemplo,atravs da defesa de uma postura ativista e axiologizante,a ser assumida pelo Poder Judicirio, com destaque para oSupremo Tribunal Federal, que seria condizente com umconstitucionalismo da efetividade. Assim, para LenioStreck, a sada para nossa histrica frustrao constitucio-nal e democrtica seria a aposta na compreenso daConstituio como ordem concreta de valores e no seu

    guardio mximo, o Supremo Tribunal Federal, transfigura-do em Corte Constitucional. Caberia, precipuamente, aoSTF, o papel de uma espcie de regente em face da meno-ridade da nossa incipiente cidadania. A atuao da Corteseria a de preencher o hiato, entre Constituio formal erealidade poltico-social, deixado pela ao ou pela omis-so dos demais Poderes da Repblica e pela prpria din-mica de uma sociedade degredada e hipossuficiente, lan-ando mo de valores fundamentais, dentre eles, a digni-dade humana.

    Sob as condies modernas de um mundo da vida plu-ral e de uma sociedade descentrada, em que competemcom a mesma dignidade vrios projetos do que seja o flo-rescimento humano, tal compreenso, apresentada por

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    Streck, no somente parece chocar-se com o pluralismopoltico e de identidades individuais e coletivas, prprio damodernidade e da tradio do constitucionalismo, comocoloca em risco, com seu desprezo por nossas prpriasvivncias de cidadania, a democracia entre ns. Pois ademocracia, como bem afirma lvaro Souza Cruz, no podeser concedida nem realizada mediante a tutela de quemquer que seja. No h autonomia pblica sem autonomiaprivada, e vice-versa, e as condies sob as quais o exerc-

    cio da autonomia deve dar-se, como nica fonte possvel delegitimidade poltica moderna, s se estabelecem atravsde um processo de aprendizado social, sujeito a tropeos, aser vivido pelos prprios cidados de uma Repblica demo-crtica. Como j afirmado por Souza Cruz, em Jurisdioconstitucional democrtica, o constitucionalismo democr-

    tico necessita da atuao de uma jurisdio constitucionalcomprometida com a democracia, na garantia das condi-es processuais para o exerccio da cidadania, que levaem considerao as desigualdades sociais e o pluralismode identidades culturais e individuais, mas que no deve,nem precisa, ser um substituto para a cidadania que deve

    garantir.Menelick de Carvalho Netto vem destacando, ao longo

    de sua obra, a necessidade de superao do enfoque tradi-cionalmente dado ao tema da legitimidade e efetividadeconstitucionais, por exemplo, em Karl Loewenstein e emBiscaretti di Ruffia, e que, num certo sentido, tambm estpresente em Lenio Streck, como lvaro Souza Cruz noschama a ateno.

    Tanto Loewenstein quanto Di Ruffia, ao tratarem daexpanso do constitucionalismo moderno no ps-guerra,iro preocupar-se com o modo com que princpios constitu-cionais, originalmente prprios aos Estados da Europa oci-dental (Frana e Inglaterra) e aos Estados Unidos daAmrica, seriam vivenciados no sul e no oriente, marcados

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    por diferentes contextos socioeconmicos e culturais. Paraeles, haveria um hiato constante entre o ideal constitucio-nal, importado do norte ocidental, e a realidade poltico-social concreta, posto que a prpria realidade, quer meri-dional quer oriental, poderia constituir-se em obstculoquase intransponvel para a realizao desses princpios.Todavia, Loewenstein e Di Ruffia no estariam, em princ-pio, ao denuciar o que seria esse hiato, ao sul e ao leste,propondo uma Teoria da Constituio ou uma Teoria Geral

    do Direito Pblico que no pudesse ser universal, ainda quese considerassem as especificidades do sul e do oriente,pois, por mais paradoxal que isso pudesse parecer, o crit-rio normativo de referncia para ambos permanecia sendoo constitucionalismo moderno ocidental. Loewenstein eBiscaretti no so, nesse sentido, Carl Schmitt, pois elesno tm a menor dvida quanto legtima funo daConstituio e do Direito, prpria do constitucionalismomoderno: a da garantia dos governados em face dos gover-nantes. Eles permanecem, assim, diferentemente deSchmitt, como representantes da tradio do constitucio-nalismo liberal e social.

    O problema que Loewenstein e Biscaretti no conse-guem perceber que o prprio modo com que colocam o pro-blema da legitimidade/efetividade constitucionais, o hiatoentre ideal e real, contribui ainda mais para o agravamen-

    to daquilo que se pretende denunciar. Ou seja, tanto aoidealizarem a realidade poltico-social dos pases meridio-nais e orientais na forma quase-natural de um obstculointransponvel, quanto ao sobrecarregarem os princpiosconstitucionais modernos, desconsideram exatamente ocarter vivido, ou melhor, o carter hermenutico das pr-

    ticas jurdicas cotidianas. O Direito, como afirma RonaldDworkin, uma prtica social, interpretativa e argumenta-

    tiva, de tal modo que no h como compreend-la da pers-pectiva de um observador externo que no leva a srio o

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    ponto de vista normativo dos implicados, das pretenesjurdicas levantadas pelos prprios participantes dessaprtica. A realidade social uma construo dinmica, her-menutica, histrica, social, da qual o Direito faz parte. ODireito no est pairando estaticamente sobre uma socie-dade esttica. E, como tal, deve lidar, inclusive, com o riscoprprio a ele mesmo de ser descumprido a todo e qualquermomento.

    lvaro Souza Cruz, na presente obra, mostra que mui-

    tas das crticas de Lenio Streck proposta de Habermas,assim como possibilidade ou no de se lidar construtiva-mente, a partir dela, com os problemas de legitimidade eefetividade constitucionais, no so corretas. No so cor-retas, inclusive, porque, como mostra o autor da presenteobra, partem de uma compreenso equivocada deHabermas e de seu projeto filosfico de construo de uma

    teoria complexa, que toma por base a reconstruo filosfi-ca das condies lingsticas de entendimento, e dospotenciais de emancipao, j presentes no mundo moder-no. Assim, Souza Cruz percorre o desenvolvimento do pro-

    jeto habermasiano, desde obras como Tcnica e cincia

    como ideologia e Conhecimento e interesse, at a monumen-tal Teoria do agir comunicativo, assim como Facticidade evalidade: uma teoria discursiva do direito e do Estado demo-crtico de direito eA constelao ps-nacional. Para isso, nacondio de um exmio jurista que bem se aventura em dis-cusses filosficas e sociolgicas, revela todo o potencialdo enfoque habermasiano, no somente para reconstruir,mas tambm criticar partes da histria e da prtica institu-cionais brasileiras. E o faz com toda audcia e ousadia,abertura ao dilogo respeitoso e crtica honesta, como aseguir o lema do Iluminismo, Sapere aude!, como eterna-mente nos faz lembrar Imannuel Kant.

    No prefcio aFacticidade e validade, Habermas afirmaque h muito a Filosofia do Direito vem deixando de ser

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    coisa to-somente de filsofos. Se por um lado, a discus-so proposta por lvaro Ricardo de Souza Cruz mostra quea Filosofia, para ser, hoje, Filosofia, deve, como afirmaHabermas, deixar o seu lugar de indicador para as cinciase de tribunal supremo da cultura e, neste caso, aprendercom a Teoria e com a Cincia do Direito; por outro lado, noprecisa abandonar a pretenso de racionalidade, de verda-de e de correo, afogando-se num misticismo ressentidocomo em Heidegger ou ceder ctica ou cinicamente pol-

    tica como em Rorty. A Teoria do Discurso uma das gran-des possibilidades de resgate do papel da Filosofia na altamodernidade, como guardi de lugar da racionalidadecientfica e intrprete mediador do mundo da vida. Namedida em que lvaro Ricardo de Souza Cruz tambm pre-

    tende fazer jus necessidade de reconstruir as sementesde liberdade mergulhadas em nossas tradies, como nosconvida Menelick de Carvalho Netto, resgatando e explici-

    tando criticamente nossas prprias vivncias constitucio-nais e democrticas, a obraHabermas e o direito brasileiromostra que uma Teoria Discursiva da Constituio e doDireito inaugura um novo paradigma, capaz de lidar cons-

    trutivamente com os problemas legados pela velha teoriaconstitucional, e pode contribuir decisivamente comochave interpretativa do Direito Constitucional, que sirvaadequadamente de suporte para a perspectiva operacionalde uma Dogmtica Jurdica comprometida com o projetoconstituinte/constitucional de um Estado Democrtico deDireito entre ns.

    Belo Horizonte, 8 de outubro de 2004Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

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    Captulo IIntroduo

    A quadra atual do constitucionalismo est marcadapor uma crise de paradigmas que se manifesta atravs deuma disputa pela forma de compreenso dos espaos

    pblico e privado, pela primazia de um projeto de vidaboa/digna e se d em um contexto de legitimao de aesestatais coativas, dentro de um mundo no qual formasarcaicas e metafsicas de justificao do Direito no seprestam mais para tanto. Essa crise, se entendida em umcontexto filosfico de embate entre uma compreenso doprincpio da universalizao cientfica que prefere a formu-lao de conceitos partindo do particular para o universalou, contrariamente, do universal/mltiplo para o especfi-co/uno, certamente no uma novidade dos nossos tem-pos. Doutrina e jurisprudncia aliengenas sobre uma her-menutica indutivista, aportica e zettica e outra deduti-

    vista, a priori e analgica constituem exemplos que confir-mam essa situao.1

    O conceito de paradigma foi constitudo na dcada de1960 por Thomas Kuhn.2 Sinteticamente pode ser com-preendido como uma realizao cientfica universalmentereconhecida em um determinado perodo de tempo e quese altera por meio de rupturas nos aspectos centrais dasvises de mundo at ento dominantes.3 Assim, o paradig-

    1

    1 Cf. Souza Cruz, Jurisdio Constitucional Democrtica.2 Cf. Kuhn,A estrutura das revolues cientficas, p. 218.3 Tal noo apresenta um duplo aspecto. Por um lado, possibilita explicar o

    desenvolvimento cientfico como um processo que se verifica medianterupturas, por meio da tematizao e explicitao de aspectos centrais dosgrandes esquemas gerais de pr-compreenses e vises de mundo, consubs-

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    ma estabelece um conjunto de aspectos metodolgicos,convenes lingsticas e formas de realizao/interpreta-o de experimentos, o que estabelece valores, crenas,

    tcnicas, problemas e solues modelares compartilhadospor uma dada comunidade de cientistas. A noo de para-digma enterra qualquer possibilidade de se encarar a cin-cia nos padres clssicos de neutralidade e objetividade.4

    Apesar do presente trabalho se deter com mais ateno cincia jurdica, interessante observar que a noo de Kuhn

    envolve a idia de mudana no padro cientfico que ocor-re de maneira sucessiva e progressiva, mas no sincrnicapara todas as cincias. Mas, como o foco de interesse dopresente trabalho se volta para a primeira, a crise atualrepresenta a superao do modelo liberal e do paradigmada filosofia da conscincia na forma de produo do Direito.

    No Brasil, a situao no diferente. Por aqui, inegavel-mente, o paradigma jurdico prevalecente ainda se d sobbases do positivismo legalista, apoiado no exame dogmti-co de textos legislativos. Essa concepo se sustenta pormeio da incorporao das noes clssicas (Locke eMontesquieu) da diviso qualitativa dos poderes, pela qual

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

    2

    tanciados no pano de fundo naturalizado de silncio assentado na gram-tica das prticas sociais, que a um s tempo tornam possvel a linguagem,a comunicao e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepode ns mesmos e do mundo. Por outro, tambm padece de bvias simplifi-caes, que s so vlidas na medida em que permitem que se apresenteessas grades seletivas gerais pressupostas nas vises de mundo prevalen-tes e tendencionalmente hegemnicas em determinadas sociedades porcertos perodos de tempo e em contextos determinados (Carvalho Netto,O requisito essencial da imparcialidade para a deciso constitucionalmen-te adequada de um caso concreto no paradigma constitucional dos EstadoDemocrtico de Direito, p. 78).

    4 Kuhn, com essa idia, pretende sepultar, de uma vez por todas, a idiade que a Cincia neutra e impermevel a qualquer tipo de preconcei-

    to, pr-compreenses, vises de mundo e valores compartilhados peloscientistas (Ommati,A igualdade no paradigma do Estado Democrticode Direito, p. 61).

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    somente legislao atribuir-se-ia um carter de ao voliti-va, ficando a jurisdio e a administrao como aes mera-mente cognitivas. Logo, ao magistrado caberia to-somentedescobrir, por meios exegticos, a vontade do legislador ouda prpria lei, empregando-se, de modo geral, os mtodosde Savigny, acrescidos da interpretao teleolgica da obrade von Ihering. A Teoria da Deciso positivista tem por fim5

    a busca da certeza, da estabilidade e da predizibilidade.Perquire sentidos unvocos aos quais Wrblewski chama de

    ideologia esttica da interpretao jurdica.6O positivismo no distingue o texto da norma jurdica.

    incapaz de vislumbrar a indissociao do texto com seucontexto de aplicao. No percebe o carter meramentealogrfico do texto da norma, vez que o mesmo somente secompleta pela fuso de horizontes que se produz entre o

    texto e o intrprete.7

    Esse modo de compreenso do Direito cria umhabitusna teoria e na prtica da prestao das diferentes profis-ses jurdicas, ou seja, um conjunto de crenas que formam

    Habermas e o Direito Brasileiro

    3

    5 Ideologia entendida como um [...] discurso que oculta o sentido das rela-es entre sujeitos, com a finalidade de reproduzir os mecanismos dashegemonias sociais(Grau,A ordem econmica na Constituio de 1988,p. 175).

    6 Cf. Wrblewski (Constitucin y teoria general de la interpretacin jurdi-ca, pp. 72-75).

    7 O texto, preceito ou enunciado normativo alogrfico. No se completacom o sentido que lhe imprime o legislador. Somente estaria completo,quando o sentido que ele expressa produzido pelo intrprete, como nossaforma de expresso. Assim, o sentido expressadopelo texto j algo novo,diferente do texto. a norma. A interpretao do Direito faz a conexoentre o aspecto geral do textonormativo e a sua aplicao particular, ouseja, opera sua inseronomundodavida. As normas resultam sempre deinterpretao. a ordem jurdica, em seu valor histrico concreto, umconjuntodeinterpretaes, ou seja, um conjunto de normas. O conjuntodas disposies (textos, enunciados) uma ordemjurdica apenaspoten-cialmente, um conjuntodepossibilidades, um conjuntodenormaspoten-ciais. O significado (ou seja, a norma) o resultado da tarefa interpretati-va (Streck, Hermenutica e(m) crise, p. 16, grifo do autor).

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    preconceitos rotinizadores no ensino e na praxis. Essehabitus formado no nosso cotidiano absorve os juristascom noes que se assemelham poesia de Cazuza, isto ,o futuro repetindo o passado e a constatao de que ummuseu possa estar cheio de grandes novidades. Atento aoproblema, Streck critica operadores nacionais do direitoque s conseguem trabalhar quando encontram uma deci-so judicial ou um artigo doutrinrio capaz de lhes tiraruma dvida, vez que se sentem incapazes de qualquer

    raciocnio por conta prpria.

    Pela histria, Al ditava o Coro para Maom,que, por sua vez, ditava para Abdula, o escrivo. Emum determinado momento, Maom deixou uma fraseinterrompida. Instintivamente, o escrivo Abdula su-geriu-lhe a concluso. Distrado, Maom aceitou comopalavra divina o que dissera Abdula. Este fato escan-dalizou o escrivo, que abandonou o profeta e perdeua f. Abdula no era digno de falar em nome de Al.No h exagero em fazer uma analogia desta histria

    com o que ocorre no cotidiano das prticas jurdicas.Assim como o personagem Abdula no tinha cons-cincia de seu poder (e de seu papel), os operadores

    jurdicos tambm no sabem de sua fora. Em suaimensa maioria, prisioneiros das armadilhas e dos gri-lhes engendrados pelo campo jurdico, sofrem dessasndrome de Abdula. Consideram que sua misso eseu labor o de apenas reproduzir os sentidos pre-viamente dados/adjudicados/atribudos por aquelesque tm oskeptron, dizer, a fala autorizada. No seconsideram dignos-de-dizer-o-verbo. Perderam a fem si mesmos. Resignados, esperam que o processohermenutico lhes aponte o caminho-da-verdade, ouseja, a correta interpretao da lei! Enfim, esperam

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    a fala-falada, a revelao-da-verdade (Streck, Juris-dio constitucional e hermenutica, p. 35).

    No ensino as coisas no andam melhor. De formageral, privilegiando uma formao dita prtica, tanto asEscolas de Direito quanto os alunos desprezam disciplinasque pudessem lhes dar uma melhor formao crtica, fazen-do com que os mesmos no tenham uma formao adequa-da, o que pode ser explicitado pelo baixo ndice de aprova-

    o nas provas para concursos pblicos ou para habilitaojunto Ordem dos Advogados do Brasil.

    Como est o ensino jurdico no pas? O relatriodo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico eTecnolgico CNPq, do j longnquo ano de 1986, cita-do por Faria, acentuava que as faculdades de Direitofuncionam como meros centros de transmisso doconhecimento cientfico. Neste sentido, a pesquisanas faculdades de Direito est condicionada a repro-duzir a sabedoria codificada e a conviver respeitosa-mente com as instituies que aplicam (e interpretam)

    o Direito positivo. O professor fala de cdigos e o alunoaprende (quando aprende) em cdigos. Esta razo,somada ao despreparo metodolgico dos docentes (oconhecimento jurdico tradicional um conhecimentodogmtico e suas referncias de verdade so ideolgi-cas e no metodolgicas), explica porque a pesquisa

    jurdica nas faculdades de Direito, na graduao e naps-graduao, exclusivamente bibliogrfica e lega-lista, tal como a jurisprudncia de nossos Tribunais(Streck,Hermenutica e(m) crise, p. 64, grifo do autor).

    O quadro descrito acima certamente no representa atotalidade do ensino jurdico no pas, mas, infelizmente,permanece majoritrio at os dias de hoje. por isso que

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    essa tica mecanicista da Justia, que imparcialmentedeve encontrar a verdade, sada, na atualidade, propostasfavorveis a efeitos vinculantes e concentradores das deci-ses judiciais de tribunais superiores, tais como as inova-es legislativas recentes sobre o instituto do controle daconstitucionalidade das leis.

    Essa vertente encontra sria oposio no pas em umadas mais importantes correntes tericas do moderno cons-

    titucionalismo brasileiro, denominada por Cludio Pereira

    de Souza Neto como o constitucionalismo brasileiro daefetividade:

    Com efeito, antes da adeso ao discurso da efeti-vidade, a vertente do pensamento jurdico brasileirosituado esquerda do espectro poltico, sobretudo dematriz marxista, entendia o estado (sic) como um merocomit de representao dos interesses da burgue-sia. Portanto, do Direito criado por esse estado bur-gus nada de avanado, nada de popular, poderiaresultar. Esse ponto de vista parece ter predominado

    at pelo menos o incio dos anos oitenta, inspirando asmais diversas correntes da chamada Teoria Crtica doDireito. No entanto, com o processo de reaberturademocrtica, o pensamento jurdico de esquerdapassa a se convencer de duas coisas; primeiro que osdireitos e garantias individuais so conquistas dahumanidade, cuja defesa deve tambm compor umdiscurso de esquerda; segundo que a ConstituioFederal de 1988 pode representar um instrumento de

    transformao social e, sobretudo, de promoo dadignidade humana: no um simples reflexo dosfatores reais de poder e nem pode se converter emuma mera folha de papel (Souza Neto, CludioPereira. Fundamentao e normatividade dos direitos

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    fundamentais: uma reconstruo terica luz do prin-cpio democrtico, pp. 289-290).

    O constitucionalismo brasileiro da efetividade permi-tiu que se procedesse por aqui uma abertura de horizontescientficos na filosofia jurdica brasileira pela incorporaode elementos tericos da Tpica, da Nova Retrica, daperspectiva da filosofia da linguagem8 e das Teorias argu-mentativas do Direito, com destaque na obra de Alexy.

    Autores como Vianna9 nomeiam essa corrente doconstitucionalismo ptrio de substancialismo, Bonavides10

    de constitucionalismo dirigente,11 enquanto Cattoni deOliveira, Carvalho Netto e Cittadino preferem a designaode comunitarismo, reconhecendo influncia decisiva nessaforma de pensar o Direito em estudos cientficos oriundosde Portugal e da Espanha.12

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    8 Particularmente, a obra de Streck marcada por uma profunda com-preenso do pensamento de Heidegger e de Gadamer.

    9 Cf. Vianna; Carvalho; Melo; Burgos.A judicializao da poltica e das rela-es sociais no Brasil, pp. 39-40.

    10 Cf. Bonavides, Paulo. Garcia Pelayo e o Estado Social dos pases emdesenvolvimento: o caso do Brasil. In: Constituicin y Constitucionalis-mo Hoy. Caracas: Fundacin Manuel Garcia-Pelayo, 2000.

    11 De fato, concordo com Canotilho quando diz que a Constituio dirigenteentendida como receita omnicompreensiva e totalizante no tem (mais)sustentao. A Constituio dirigente no pode ser entendida como fun-damento ltimo, como ressurreio da sociedade ou como ultima ratio. Seassim se a entendesse, estar-se-ia retornando metanarrativa marxistaque vislumbra a desalienao do homem atravs da ditadura do proleta-riado. Em sntese, isto seria acreditar nas filosofias historicistas, que acre-ditam num sentido irreversvel da histria. Nesse sentido, se se entenderque as Constituies dirigentes proclama(va)m a revoluo (socialista),fica inclusive difcil de enquadrar nesse conceito a Constituio brasileira,que aponta (to-somente) para um reformismo social, a partir da institui-o do Estado Social (art. 3o da CF/88) (Streck, Jurisdio constitucional ehermenutica, p. 123).

    12 possvel afirmar que h semelhanas entre o que Cittadino chama deconstitucionalismo comunitrio com o que Vianna chama de substancia-lismo. Ressalte-se que o constitucionalismo comunitrio toma a Constitui-

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    Tendo como eixo principal de sua concepo daConstituio um reformismo tendente a transformar oDireito em instrumento de resgate da incluso social, liga-do ao cumprimento das promessas do Welfare State, nunca

    teriam sido efetivamente concretizadas em benefcio dopovo brasileiro,13 os comunitaristas se vem como cruza-dos, empenhados na luta de construo de alternativapara o neoliberalismo globalizante.

    Ao contrrio do comunitarismo americano,14 ligado s

    noes cooperativas entre as esferas mltiplas na socieda-de, de modo a faz-las compartilhar com o Estado a tarefade proteger no apenas o bem-estar social, mas, essencial-mente, o modo de vida de uma coletividade, como se exem-plifica pelo american way of life, o comunitarismo brasilei-

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    o como um conjunto de valores compartilhados por uma determinadacomunidade poltica, e, segundo essa inspirao doutrinria, caberia aoConstituinte seja ele originrio, isto , legislador de uma Carta sistem-tica de princpios, valores e instituies, ou permanente, como na criaojurisprudencial do direito revelar, hermeneuticamente, a partir da suaimerso interpretativa no fundamento do existir comunitrio, os precei-tos fundamentais sua sociedade. Os comunitaristas contrapem, portan-

    to, uma concepo de Constituio como sistema aberto que tem comosistema fechado, historicamente vinculado imposio do liberalismo e sgarantias da autonomia privada (Streck, Jurisdio constitucional e her-menutica, p. 159).

    13 por demais evidente que se pode caracterizar a Constituio brasileirade 1988 como uma Constituio social, dirigente e compromissria, ali-nhando-se com as Constituies europias do ps-guerra. O problema que, como alerta Guerra Filho, a simples elaborao de um texto constitu-cional, por melhor que seja, no suficiente para que o iderio que o ins-pirou se introduza efetivamente nas estruturas sociais, passando a regercom preponderncia o relacionamento poltico de seus integrantes. Daque a eficcia das normas constitucionais exige um redimensionamentodo papel do jurista e do Poder Judicirio (em especial da JustiaConstitucional) nesse complexo jogo de foras, na medida em que se colo-ca o seguinte paradoxo: uma Constituio rica em direitos (individuais,coletivos e sociais) e uma prtica jurdico-judiciria que, reiteradamente,

    (s)nega a aplicao de tais direitos (Streck, Jurisdio constitucional ehermenutica, p. 15).

    14 Cf. Souza Cruz, Jurisdio constitucional democrtica.

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    ro coaduna-se melhor com uma concepo estatizante eintervencionista, jogando exclusivamente nas costas doEstado tarefas positivas de promoo de prestaes sociaispor meio de servios pblicos15 e de fomento atividadeeconmica dos menos favorecidos,16 com a finalidade dereduo de desigualdades econmicas e regionais. A inclu-so social e regional seria, pois, a funo essencial doEstado brasileiro.

    Hoje, espera-se da Constituio dirigente uma fora

    normativa suficiente para conduzir o Estado promoo deservios adequados de sade, educao, previdncia,transporte e habitao. De outro lado, as intervenes eco-nmicas do Estado devem priorizar o pleno emprego efavorecer os economicamente hipossuficientes, tais comoos acionistas minoritrios, os micro e pequeno-empresriose as cooperativas.17

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    9

    15 Os direitos sociais [...] so prestaes positivas proporcionadas peloEstado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais,que possibilitam melhores condies de vida aos mais fracos, direitos quetendem a realizar a igualizao de situaes sociais desiguais(Silva, Cursode Direito Constitucional Positivo, p. 277).

    16 Em certo sentido, pode-se admitir que os direitos econmicos constituiropressupostos da existncia dos direitos sociais, pois, sem uma poltica eco-nmica orientada para a interveno e participao estatal na economia,no se comporo as premissas necessrias ao surgimento de um regimedemocrtico de contedo tutelar dos fracos e mais numerosos (Silva,Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 277).

    17 Constituio a marca jurdica do destino poltico de um povo. Tem o sen-tido de sua base poltica juridicizada para fazer-se impositiva em sua nor-matividade e obrigatria em sua aplicao. Traz a revelao do fim polti-co buscado pela sociedade para aperfeioar os objetivos de hoje na pers-pectiva histrica do dever. Constituio mais que dever ser, tambm oque feito ser e o que dever ser. Informa e conforma o agir da sociedadeagora para a proximidade histrica que com ela ou a partir dela poderser. Constituio foi concebida, modernamente, como ponto de chegadada luta de um povo pela liberdade de uma forma poltica de ser. Hoje a suaconcepo incute-lhe o sentido de ponto de partida de novas e permanen-

    tes lutas pelas liberdades que so e daquelas que podero ser na buscahumana de ser mais em si e nos outros e com os outros (Rocha,Constituio e constitucionalidade, p. 25).

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    A defesa da viso kelseniana do controle de constitu-cionalidade das leis como um processo objetivo, monolgi-co, ou seja, sem partes e sem contraditrio, dominante nasCortes europias, certamente outro ponto de distancia-mento do comunitarismo nacional de seus congneresamericano/europeu. L, a noo de um procedimento dial-

    tico e em contraditrio permeia integralmente as obrasde Walzer, Taylor, Alexy e Zagrebelsky, por exemplo.

    Contudo, as diferenas param por a, o que permite a

    comunho de diversas idias, especialmente no que perti-ne ao controle da constitucionalidade das leis e teoria dadiviso dos poderes. Mas, quais seriam esses pontos devista comuns? Cittadino quem responde:

    A dimenso comunitria do constitucionalismobrasileiro revela-se seja quando adota uma concepode Constituio enquanto ordem concreta de valores,seja [...] enfim, quando atribui um papel preponderante-mente poltico ao Supremo Tribunal Federal, que deverecorrer a procedimentos interpretativos de legitimaoe aspiraes sociais e orientar a interpretao constitu-

    cional pelos valores ticos compartilhados (Cittadino,Pluralismo, direito e justia, p. 10, grifo nosso).

    Canotilho, Jorge Miranda, Jos Carlos Vieira de An-drade, em Portugal,18 e Pablo Lucas Verd e Perez Luo nalngua espanhola,19 influenciam significativamente o

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    10

    18 Fazer ver que os direitos fundamentais no podem ser pensados apenas doponto de vista dos indivduos, enquanto faculdades ou poderes de queestes so titulares, antes valem juridicamente tambm do ponto de vistada comunidade, como valores ou fins que esta se prope a prosseguir(Andrade, Os direitos fundamentais na Constituio portuguesa de 1976,pp. 144-145).

    19 Los derechos fundamentales han dejado de ser meros limites al ejercicio del

    poder politico, o sea, garantias negativas de los intereses individuales, paradevenir un conjunto de valores o fines directivos de la accin positiva de lospoderes pblicos(Perez Luno,Los derechos fundamentales, p. 21).

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    comunitarismo nacional. Na perspectiva de ser a Consti-tuio uma ordem concreta de valores, o princpio da digni-dade da pessoa humana, tal qual na concepo do TribunalConstitucional alemo, em funo de sua abertura e desdo-bramento ligados aos conceito de pluralismo e de tolern-cia, tem sido entendido como um metavalor ou o elementoagregador da unidade axiolgica da Constituio.

    Em outras palavras, a dignidade da pessoa humanaconstituir-se-ia no substrato material do princpio constitu-

    cional da unidade, sendo entendido como um centroblindado contra qualquer agresso, seja pblica ou priva-da, gerando uma perspectiva de um ncleo indispon-vel/absoluto dos direitos fundamentais, frmula consagra-da de forma majoritria entre os comunitaristas nacionais.

    Mas, ao lado dessa matriz substantiva,20 deflui comfora o princpio da proporcionalidade/razoabilidade e aponderao de valores como procedimento metodolgicode afirmao dos direitos fundamentais. Daniel Sarmentoanota como, paulatinamente, o Supremo Tribunal Federalvem incorporando em sua hermenutica o princpio da pon-derao de valores como mecanismo de restrio de direi-

    tos (ADIn no 855-2, publicada no DJUde 01/10/93); comolimite ao poder normativo estatal (ADIn no 1.158-8);21 narazoabilidade do reajuste de mensalidades escolares (ADInno 319-DF in RTJ, 149: 666/692); no exame de DNA em

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    11

    20 Ao lado da Corte alem, a Corte espanhola na Sentena no 21/81 firmouidntica posio em favor da noo da dignidade da pessoa humanacomo vrtice de uma escala de valores garantidos pela Constituio.Veja: Los derechos fundamentales responden a un sistema de valores yprincipios de alcance universal que subyacen a la Declaracin Universal ya los diversos convenios internacionales sobre derechos humanos ratifica-dos por Espaa y que, asumidos como decisin constitucional bsica, hande informar todo nuestro ordenamiento jurdico [...] (Peces-Barba

    Martinez, Curso de derechos fundamentales, p. 417).21 Cf. Barros, O princpio da proporcionalidade e o controle da constituciona-

    lidade das leis restritivas de direitos fundamentais, pp. 124-125.

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    investigao de paternidade (Habeas Corpusno 71.373-4-RS e 76.060-1-SC); e, em matria criminal, tal como ocorri-do no caso da cantora mexicana Glria Trevi,22 que acusoupoliciais federais de ter sofrido estupro dentro de estabele-cimento prisional.23

    A doutrina nacional tem travado enorme debate sobrea modulao da nulidade de provas obtidas por meios ilci-

    tos, por meio do emprego do princpio da proporcionalida-de.24 Assim, nos mais distintos problemas, esse princpio,

    muitas vezes tratado pela noo de razoabilidade, temganhado relevncia no cotidiano da magistratura nacional.25Por outro lado, a noo comunitarista de que a argu-

    mentao jurdica um caso especial da discursividadeprtica geral, fundindo os discursos jurisdicionais e legisla-

    tivos numa espcie nica, aniquilou definitivamente aperspectiva clssica de diviso dos poderes, vez que nohaveria distino qualitativa na forma de argumentaocondizente com provimentos legislativos e judicirios.

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    12

    22 Cf. Mattos,Apontamentos crticos ponderao de valores pelo SupremoTribunal Federal, 2003.

    23 A Corte vem utilizando o princpio, tambm, para invalidar leis queimpem nus exagerado a um direito, como a que exigia a pesagem debotijes de gs vista do consumidor, no ato da venda; ou para fulminarleis que instituam vantagens despropositadas a servidores pblicos, comogratificao de frias a inativos. Ainda recentemente, declarou-se incons-titucional, sendo a falta de razoabilidade um dos fundamentos de tal deci-so, a Medida Provisria que elevava a cinco anos o prazo decadencialpara as pessoas jurdicas de direito pblico interno proporem ao resci-sria (Barroso, Temas de direito constitucional, p. 158).

    24 O texto constitucional parece, contudo, jamais admitir qualquer provacuja obteno tenha sido ilcita. Entendo, porm, que a regra no sejaabsoluta, porque nenhuma regra constitucional absoluta, uma vez quetem de conviver com outras regras ou princpios tambm constitucionais.Assim, continuar a ser necessrio o confronto ou peso entre os bens jur-dicos, desde que constitucionalmente garantidos a fim de se admitir, ouno, a prova obtida por meio ilcito (Greco Filho, Manual de processo

    penal, p. 178).25 Cf. Castro, O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova

    Constituio do Brasil, p. 216.

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    Logo, as Cortes Constitucionais assumem um carterincondicionalmente poltico na conduo de suas prticashermenuticas, especialmente no controle da constitucio-nalidade.26

    Nesse sentido, o empenho dos comunitaristas emextinguir o Supremo Tribunal Federal e colocar no lugar umaCorte Constitucional justificar-se-ia pelo fato de acredita-rem ser a nica instituio que, na qualidade de guardi dosvalores constitucionais, poderia assumir a defesa da

    Constituio, tornando-se instrumento de incluso social.O comunitarismo repudia o passivismo formalista dos

    nossos operadores do Direito, especialmente do Judicirio,cobrando o surgimento de uma magistratura comprometi-da com um ativismo em favor de causas sociais. Esse enga-

    jamento da magistratura certamente elemento essencialpara a superao do Estado Social de Direito pelo EstadoDemocrtico de Direito. Em outras palavras, enquanto oLegislativo teve a supremacia no Estado Liberal e oExecutivo no Estado Social, agora seria a vez do Judicirio.

    Esse quadro de preocupaes do comunitarismonacional se completa por meio de ventos ideolgicos de um

    neoliberalismo tupiniquim que, dentre outras coisas, sus-tenta a necessidade de uma privatizao contnua do patri-mnio pblico, realando esse elemento gentico da cul-

    tura nacional, de favorecimento da autonomia privada,especialmente em prol dos grandes conglomerados econ-micos. Qualquer reao por parte do Judicirio ou doMinistrio Pblico tem sido violentamente rejeitada, provo-cando propostas de alteraes legislativas, algumas delas

    j aprovadas, tais como a proibio de concesso de deci-ses liminares contra a Fazenda Pblica, a criao de privi-

    Habermas e o Direito Brasileiro

    13

    26 O controle da constitucionalidade recebe o influxo da atividade poltica epassa a ter esta natureza quando aja para criar o Direito (Rocha,Constituio e constitucionalidade, p. 139).

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    lgio de foro na tramitao de aes de improbidade admi-nistrativa, outras em andamento no Congresso, como oprojeto de lei da mordaa, outros sob julgamento noSupremo Tribunal Federal, como a proibio do Parquet deinvestigar.

    A minimizao do Estado Social em um pas subde-senvolvido, com grande massa de analfabetos e quase ametade da populao abaixo da linha de pobreza, tem umvis ainda mais grave do que em pases do G-7. Um Estado

    Social que no Brasil jamais se aproximou dos parmetrosdos norte-americanos ou europeus, pois no conseguiu darfim violncia fsica, poltica e social.27 Por aqui, os direi-

    tos sociais e coletivos nunca passaram de promessas paraparcela significativa da populao, cuja cidadania jamaisse concretizou. A questo da ineficcia das normas consti-

    tucionais de cunho programtico se enquadra justamentenessa seara. Portanto, o Estado Social de Direito seria umaetapa a ser ainda percorrida no Brasil, contrariamente aoocorrido em pases desenvolvidos que poderiam se dar aoluxo de v-lo como um estgio j superado.

    Em busca de um constitucionalismo adequado para aterra brasilis, desponta um dos nossos principais doutrina-dores, Lenio Luis Streck, que compartilhando da opinio deAdeodato,28 rejeita o neoliberalismo, dentre outras razes,por fazer parte de um arsenal cientfico concebido em pa-ses desenvolvidos e, por conseguinte, incompatvel comum quadro dantesco em termos de injustia e de exclusosocial,29 propondo com isso um debate sobre a conforma-

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

    14

    27 Cf. Canotilho, O Estado adjetivado e a teoria da Constituio, p. 30.28 Cf. Adeodato, Uma teoria (emancipatria) da legitimao para pases sub-

    desenvolvidos, p. 220.29 importante observar, no meio de tudo isto, que, em nosso pas, h at

    mesmo uma crise de legalidade, uma vez que nem sequer esta cumpri-da. As promessas da modernidade s so aproveitadas por um certo tipode brasileiros. Para os demais, o atraso! O apartheidsocial! Os indicadores

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    o de uma Teoria da Constituio Dirigente Adequada aPases de Modernidade Tardia (TCDAPMT).

    Forte nestas convices, Streck v o procedimentalis-mo de Jrgen Habermas dentro desse quadro de teoriasaliengenas inadequadas s peculiaridades brasileiras.30

    Para tanto, desenvolve uma srie de argumentos.Primeiramente, sustenta que o constitucionalismo

    demanda particularismos de forma a melhor se amoldar identidade nacional. Logo, a pretenso universalista de

    Habermas se chocaria com a implementao de umanecessidade de vrios constitucionalismos31 que se encai-xassem s necessidades de cada Estado.

    Nessa perspectiva, tal como visto, o constitucionalis-mo haveria de conformar-se dentro de uma sensibilidadesocial carente no projeto de Habermas, pois:

    Habermas e o Direito Brasileiro

    15

    sociais apontam para um quadro dramtico, a ponto de o novo governofederal, empossado em 2003, lanar o Programa Fome Zero, para antes deiniciar o necessrio processo de incluso de mais de 50 milhes de brasilei-ros que vivem em condies de pobreza, alcanar uma rao mnima di-

    ria a essa populao que representa mais da metade dos brasileiros.Observe-se que pesquisa recente mostra que os excludos so 59% dapopulao do pas. Nessa categoria excludos esto as pessoas que esto margem de qualquer meio de ascenso social. Na escola, a esmagadoramaioria dessas pessoas (86%) no foi alem da 8asrie do 1o grau. De todosos segmentos sociais, so os que mais sofrem com o desemprego e a pre-carizao do trabalho: 19% vivem debico e 10% so assalariados semregistro algum. Como contraponto, o levantamento mostra que a elite seresume a 8% dos brasileiros. Essa elite concentra mais brancos do quequalquer outro segmento da sociedade. , em conseqncia, o segmentoonde h menos negros e pardos(Streck, Jurisdio constitucional e herme-nutica, p. 75).

    30 Por tudo isso, a discusso acerca do papel do Direito e da justia constitu-cional, a toda evidncia, deve ser contextualizada, levando em conta asespecificidades de pases como o Brasil, onde insisto no houve a etapado Welfare State, que Habermas considera superada (embora justia

    seja feita Habermas, ao expor sua tese jamais se referiu a pases como oBrasil) (Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 175).

    31 Cf. Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 133.

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    [...] ao desvincular os valores do texto constitucionalde sua ao/concretizao (naquilo que a Constituio

    tem de substantividade), terminando por separar o serdo texto constitucional do (respectivo) ente, como se oser pudesse subsistir sem ente, e este pudesse serapreendido como ente. Portanto, o procedimentalis-mo, em certa medida, ao esquecer a diferena ontolgi-ca, objetifica o texto da Constituio, impedindo o ques-

    tionar originrio da pergunta pelo sentido do seu texto.

    Assim, a teoria procedimentalista atua como um mto-do ou como uma ferramenta que est disposiodos agentes sociais/jurdicos/polticos, com o que seafasta do paradigma hermenutico (Streck, Jurisdioconstitucional e hermenutica, p. 172, nosso destaque).

    Esse afastar-se do paradigma hermenutico contem-porneo pode ser entendido como uma incapacidade deHabermas de superar os limites clssicos da interpretaoformalista, especialmente de compreender que o mundo seconstitui na linguagem/intersubjetividade32 (Heidegger) eque a compreenso se forma por meio de uma fuso de

    horizontes do autor de um texto e de seu leitor (Gadamer).Por outro lado, o procedimentalismo no teria como sesustentar em um pas carente como o Brasil, pois, se ele sebaseia na concepo da liberdade de autonomia de indiv-duos como pressuposto da democracia, como seria poss-vel uma teoria desejar um mnimo de concreticidade ondemais da metade da populao est excluda de qualquer

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

    16

    32 [] Habermas no leva devidamente em conta a relevante circunstnciade que o paradigma do Estado Democrtico de Direito ancora-se em ummodelo em que a resultante social que se estabelece a partir da noo decidadania advm de uma intersubjetividade, em que a relao sujeito-

    sujeito supera a serdia relao sujeito-objeto, ultrapassando o monadis-mo tpico do paradigma da autoconscincia (Streck, Jurisdio constitu-cional e hermenutica, p. 165).

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    direito social?33 Ele se esqueceria que as elites nacionaisjamais permitiram liberdade plena aos espaos pbicos decomunicao, de modo a que todos os segmentos sociaispudessem participar com iguais possibilidades de acessoao jogo poltico.

    Com bases to pouco slidas, o procedimentalismopadeceria de uma contrafaticidade crnica especialmentese contrastado com a realidade de pases emergentes comoo Brasil. Primeiro, porque, na viso de Streck, Habermas

    supe como etapa vencida o Estado Social de Direito, poisescreve exclusivamente tendo seus olhos/preocupaesvoltados para questes atinentes ao Primeiro Mundo. Logo,questes como aes reguladoras do Estado sobre o siste-ma econmico, especialmente sobre empresas transnacio-nais e o capital financeiro internacional, estariam muitodistantes do interesse de Habermas.

    Para o povo brasileiro seria fundamental a garantia demnimas condies de vida, coisa que jamais poderia pas-sar pelas cogitaes do autor alemo, pois este considerahaver uma excessiva politizao do Direito, levando-o ano compreender corretamente a ultrapassagem do mode-

    lo paradigmtico do Estado Social para uma etapa maisevoluda, o Estado Democrtico de Direito. Veja:

    evidente porque explicitamente presente nosseus textos que Habermas trabalha com a noo deEstado Democrtico de Direito; entretanto, no reco-nhece a necessria diferenciao que existe entre omodelo do Estado Social de Direito e o modelo doEstado Democrtico de Direito, que, insisto, supera anoo de Estado Social. E a comea o problema... [...]Ou seja, de certo modo, Habermas cai em um certosociologismo ao ignorar a especificidade do jurdico

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    17

    33 Cf. Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 174.

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    presente nas Constituies, que gerou todo um proces-so de revitalizao do jurdico, naquilo que diz respeito funo social do Direito. O constitucionalismo doEstado Democrtico de Direito acrescenta um mais aoDireito do Estado Social, porque estabelece no prprio

    texto constitucional e esse o ponto que Habermasdeixa de considerar os diversos mecanismos para oresgate das promessas da modernidade (Streck,Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 165).

    Essa incapacidade de Habermas perceber que a gran-de novidade trazida pelo Estado Democrtico de Direitoseria justamente essa nova forma de legitimidade que per-mite ao Direito assumir a condio de instrumento de trans-formao social deriva do fato do procedimentalismo ser tri-butrio das teorias sistmicas pelas quais a sociedadepoderia ser compreendida como uma rede de comunica-es, na qual seria mais relevante entender a operacionali-zao do sistema jurdico do que questionar a ao indivi-dual do jurista. O Direito seria to-somente entendido comomecanismo inspido de estabilizao de comportamentos,

    redutor da complexidade social, desligado de outros siste-mas de ao, tais como o econmico e o poltico. Como ooperador do Direito no poderia trabalhar fora das caracte-rsticas do sistema jurdico, sua comunicao somentepoderia se efetuar nos termos estritos do que chama cdigobinrio, uma dualidade estrita de lcito/ilcito.34

    Essa concepo conteria, na opinio de Streck, o pres-suposto de que seria possvel separar o direito positivo deseus valores substantivos, o que no contexto atual nopoderia ser entendido como mais do que uma miragem35

    pois, estaria, com isso, procurando desvincular os valores

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

    18

    34 Cf. Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 154.35 Cf. Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 153.

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    do texto constitucional de sua concretizao. Seria por essarazo que o procedimentalismo habermasiano optaria peloreconhecimento de uma natureza deontolgica das normas

    jurdicas, rejeitando uma axiologia gradual e multipolarcontida na noo de ponderao de valores.36

    Exatamente por isso Habermas no conseguiria ver aimportncia sem igual do papel das Cortes Constitucionaisna atualidade. Preocupado apenas com a operacionaliza-o do Direito, ele centrar suas atenes na manuteno

    dos procedimentos democrticos, especialmente no con-cernente ao controle abstrato da constitucionalidade dasleis, o que poderia ser feito pelo prprio Legislativo, levan-do-o a concluir at mesmo que a existncia dos TribunaisConstitucionais no fosse auto-evidente,37tal como preten-de o comunitarismo. Habermas estaria, na viso de Streck,amarrado ainda a uma lgica de diviso dos poderes cls-sica, pela qual uma hermenutica que se desse em condi-es construtivas seria simplesmente uma invaso ilegti-ma de competncias do Judicirio de atribuies tpicas doExecutivo e fundamentalmente do Legislativo.

    Destarte, Habermas estaria se opondo s noes mais

    caras do constitucionalismo da efetividade, especialmente exigncia de um Judicirio comprometido/engajado comcausas sociais, pois os milhes de marginalizados no pasestariam esperando pela materializao real de direitossociais, coletivos e difusos, o que somente poderia ocorrerpor meio de um claro ativismo da magistratura.

    So, portanto, diversas as observaes colocadas porStreck. Contudo, as mesmas abrangem as linhas cardinaisdo projeto trabalhado por Habermas ao longo de toda sua

    trajetria acadmica. Primeiramente quando percebe-seque o suporte heideggeriano das crticas tem como supos-

    Habermas e o Direito Brasileiro

    19

    36 Cf. Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 156.37 Cf. Streck, Jurisdio constitucional e hermenutica, p. 158.

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    to o fim da filosofia analtica e que o Daseinteria transfor-mado a busca por um fundamento slido para a razo uma

    tarefa quixotesca. Em outras palavras, que a razo seriaapenas um modelo cultural e histrico e que no apresen-

    taria qualquer superioridade sobre outros modelos histori-camente concretos.

    De outro lado, afastando-se dessa posio prpria doirracionalismo contemporneo comum aos projetos deRorty, Foucault e Derrida, dentre outros, as observaes de

    Streck curiosamente face seu marco terico heideggeria-no se inserem tambm dentro da noo iluminista deracionalidade como elemento lastreador da democraciacomo um regime que se prope efetivao da justiasocial. Nesse sentido, sua opo e a do constitucionalismoda efetividadetm sido pelo substancialismo implementa-do pela tcnica hermenutica da ponderao de valores.

    O objetivo desse trabalho justamente verificar asbases de tal argumentao, procurando mostrar ao leitor aoutra face da moeda: em outras palavras, que a contribui-o do procedimentalismo de Habermas universal e, por-

    tanto, no pode ser desconsiderada para fins do enriqueci-

    mento do constitucionalismo nacional e para a praxis dojurista brasileiro.

    Para tanto, no seria possvel estabelecer contrapon-tos isolados de cada um dos argumentos de Streck, sobpena de no se conseguir dar uma noo mais unitria daobra de um dos mais importantes pensadores da atualida-de. Dessa forma, o presente trabalho proceder ao examesinttico do que se considera essencial da obra deHabermas, tendo sempre como foco as crticas aqui apon-

    tadas.Assim, o projeto do esclarecimento de Habermas ser

    inicialmente contextualizado como uma proposta originalde dar seqncia ao projeto iluminista de emancipao dohomem, examinando para tanto, desde o racionalismo car-

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

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    tesiano, a razo prtica em Kant e em Hegel, o materialis-mo histrico marxista, chegando finalmente primeiragerao da Escola de Frankfurt. Lanadas as bases do pro-

    jeto habermasiano, o trabalho se dividir em quatro partesde sua obra, partindo de Conhecimento e Interesse epassando respectivamente pela Teoria do Agir Comuni-cativo, pela Teoria Discursiva do Direito e chegando,finalmente, Constelao ps-nacional.

    Repita-se: no h, no trabalho, a inteno de sintetizar

    toda a obra de Habermas, mas apenas a de reconstru-la deforma a permitir ao leitor uma viso distinta daquela ofere-cida por um dos mais insgnes constitucionalistas brasilei-ros, Lenio Luis Streck, de modo a permitir um juzo sobre apossibilidade do procedimentalismo contribuir para o ama-durecimento de nossas instituies democrticas e denossapraxisconstitucional. Isso permitir ao leitor a visoda outra faceta da verdade dividida, tal como a concebeCarlos Drummond de Andrade.

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    Captulo IIOs Antecedentes no Projeto doEsclarecimento em Habermas

    As colocaes feitas por Streck relativas insensibili-

    dade social de Habermas pela suposio de que o EstadoSocial seja uma etapa superada, indicando um divrcioirremedivel com a realidade, especialmente com o quadrode misria e descaso social tpico do terceiro mundo e rela-

    tiva desconexo de sua obra com o paradigma hermenu-tico contemporneo, de modo a at-lo ao formalismo deuma diviso lockeana dos poderes, podem ser questiona-das pelo simples exame da trajetria intelectual de JrgenHabermas.

    Dessa forma, como j se disse, sem nenhuma preten-so de se fazer uma sntese exaustiva de toda a sua obra,o presente trabalho se prope a reconstruir o projeto eman-

    cipatrio do autor, que pode ser sintetizado por meio deuma reflexo crtica para a reconstruo da substnciatica da idia de vida boa, pelo fortalecimento de institui-es capazes de orientar a modernidade em favor de umapostura humanista1 e no opressiva e, finalmente, pela pro-

    23

    1 Eu no iria opor-me, caso algum afirmasse que minha concepo da lin-guagem e do agir comunicativo orientado ao entendimento alimenta-se daherana crist. O telos do entendimento, ou seja, o conceito do acordoobtido discursivamente, que se mede pelo reconhecimento intersubjetivo,portanto pela dupla negativa de pretenses de validade criticveis, ali-menta-se da herana de um logos entendido ao modo do cristianismo, oqual se incorpora na prtica comunicativa da comunidade (no somente

    na comunidade dos Quakers). A prpria tessitura terico-comunicacionaldo conceito de emancipao, delineado em Conhecimento e Interessefoidesmascarada como sendo uma traduo profanizadora de uma promes-

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    cura de uma alternativa crtica favorvel a uma respostapositiva no tocante a questes ecolgicas e humanas emface da dominao irracional de um socialismo pan-pticoe de um capitalismo desumanizado levado s ltimas con-seqncias pela globalizao.

    Ao contrrio do que sustenta Streck, o projeto emanci-patrio habermasiano tem, desde o seu incio, compromis-so inafastvel com a incluso social atravs de uma cone-xo factvel entre teoria e prtica de modo universalista, ou

    seja, pertinente no apenas a pases desenvolvidos, comoa Alemanha ou os Estados Unidos, mas tambm a pasescomo o Brasil. o que se depreende dos escritos do jovemHabermas, nos quais fica claro seu esforo em torno deuma renovao democrtica do marxismo, eis que aindamuito influenciado por seu mestre Adorno.

    Ao longo desta exposio poder-se- ver que em toda atrajetria do autor a busca por uma teoria que se aproximas-se ao mximo das especificidades da modernidade, aprimo-rando-se paulatinamente por meio de contnuas revises,dotada de um enorme otimismo com a condio de ser-humano do ser humano, faz com que sua obra tenha uma

    sensibilidade social nem de longe percebida por Lenio Strecke pelo comunitarismo nacional. Com esses objetivos passa-se, desde logo, ao desenvolvimento do presente trabalho.

    Nesse sentido, o presente trabalho procura demons-trar que Habermas herdeiro do projeto da modernida-de de emancipao do homem por meio do esclarecimen-

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    24

    sa de salvao (convm notar, no entanto, que me tornei mais cuidadosocom o emprego da expressoemancipao fora do mbito do desenvolvi-mento biogrfico de pessoas individuais, pois no podemos representar ascoletividades sociais, os grupos ou comunidades como sujeitos superdi-mensionados). Pretendo afirmar apenas que a comprovao de que existeuma relao da minha teoria com uma herana teolgica no me incomo-

    da, enquanto ficar clara a diferena metdica entre os discursos, portantoenquanto o discurso filosfico obedecer exigncia de um discurso funda-mentador(Habermas,Era das transies, pp. 211-212).

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    to2 (Aufklrung), ou seja, que a nica sada para a emanci-pao humana se centraria na razo.3 No entanto, vai bus-car uma justificativa distinta de alguns dos esforos maisinstigantes feitos na histria da filosofia. Assim, interes-sante fazer-se uma reconstruo sinttica de alguns dosmais notveis esforos que o Iluminismo4 produziu e daqual a obra de Habermas tributria.

    Nessa linha, indispensvel citar Descartes, vez que,ver-se- mais tarde, um dos mais importantes representantesda Escola de Frankfurt, Horkheimer, atribui sua obra a ori-gem dos problemas de dominao e de explorao do homem.Todavia, o autor deve ser compreendido no horizonte cientfi-co e nas condies histricas que lhe so peculiares.

    Descartes no tolerava a idia de incerteza na cincia.Seu projeto de emancipao humana buscava uma reflexo

    Habermas e o Direito Brasileiro

    25

    2 Considerando o esclarecimento um processo inacabado de argumentaoque procura reiterar a mediao prtica entre a razo e o seu outro,entre a razo e a no-razo, entre a razo instrumental e a razo comuni-cativa, entre as pretenses de validade do mundo objetivo, do mundosocial-moral e do mundo esttico, Habermas ope-se a uma tendncia con-tempornea inspirada em F. Nietzche e na vanguarda esttica, que pode

    ser caracterizada como esclarecimento ps-estruturalista ou esclareci-mento desconstrutivista da razo, na qual podem ser includos os nomesde M. Foucault, M. Heidegger e J. Derrida (Siebeneichler, Razo Comu-nicativa e emancipao, p. 35).

    3 Desde o final do sculo XVIII, quando Kant falou da sada do homem de suaculposa minoridade, os conceitos tais como esclarecimento e emanci-pao referem-se a processos nos quais a gente experimenta em si mesmacomo se transforma quando se aprende a se comportar racionalmente sobpontos de vista formais. Esclarecimento (Aufklrung) um reflexo da auto-experincia no decurso de processos de aprendizagem. [...]A emancipao um tipo especial de auto-experincia porque nela os processos de auto-entendimento se entrecruzam com um ganho de autonomia. Nela se ligamidias ticas e morais(Habermas,Passado como futuro, p. 99).

    4 A vitria dos aliados no serviu apenas para abrir caminho para o desen-volvimento democrtico na Repblica Federal da Alemanha, no Japo e naItlia e, finalmente, tambm em Portugal e na Espanha. Todas as legitima-

    es que no prestassem homenagem ao menos verbal e textualmente ao esprito universalista do Iluminismo poltico foram ento descartadas(Habermas,A constelao ps-nacional, p. 62).

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    filosfica independente da f. Criado num ambiente no qualo mtodo experimental j se difundira entre cientistas comoBacon, Roberval, Torricelli e Pascal, comungava com Galileua viso de que a natureza est escrita em linguagem mate-mtica. , pois, contemporneo da revoluo cientfica.

    Em novembro de 1633, estava prestes a lanar obraligada questo fsica da luz,5 vinculada s concepesheliocntricas. Contudo, com a priso de Galileu pelo SantoOfcio, simplesmente por ser adepto da mesma idia,

    Descartes adiou o lanamento de sua obra.Assim, com o objetivo de preparar caminho para o lan-amento do Tratado da Luz, escreveu o Discurso doMtodo. Com a obra em questo esperava justificar suaconduta cientfica, afirmando ter-se pautado exclusivamen-

    te pela razo. Ironicamente sua obra-prima teve o objetivode preparar o terreno para o lanamento do que conside-rava ser seu verdadeiro trabalho cientfico, ou seja, suaobra-prima.

    O Discurso do Mtodo foi algo de revolucionrio pa-ra o racionalismo filosfico. Descartes centrou suas preocu-paes na metodologia cientfica, julgando ser capaz de

    demonstrar qualquer hiptese racionalmente, inclusive ada existncia de Deus. Ele no aceitava mais nenhuma ver-dade imposta apenas pela f.6 Partindo do suporte das

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

    26

    5 Obra intitulada: O Tratado da Luz.6 [...] um Estado muito mais bem regrado quando, tendo pouqussimas

    leis, elas so rigorosamente observadas; assim, em vez desse grandenmero de preceitos de que a lgica composta, acreditei que me basta-riam os quatro seguintes, [...]. O primeiro era de nunca aceitar coisa algu-ma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; [...].O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantasparcelas quantas fosse possvel e necessrio para melhor resolv-las (ope-raes matemticas). O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos,comeando pelos objetos mais simples e mais fceis de conhecer (mtodo

    dedutivo). [...] E por ltimo, fazer em tudo enumeraes to completas, erevises to gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir (Descartes,Discurso do mtodo, pp. 22-23).

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    demonstraes matemticas, Descartes construiu umraciocnio dedutivo, que comeava por suposies indo ata demonstrao de sua hiptese, via experimentaes.

    Afastando a lgica aristotlica, descreveu um mtodoque seria comum s cincias naturais e sociais.7

    A racionalidade cartesiana pretendeu ser absoluta.8

    Ao contrrio de Toms de Aquino, que buscou conciliar fe razo, ao sustentar que uma no existe sem a outra,Descartes lanou as bases de uma cincia social, inclusive

    o Direito, desligada da Religio. Desconfiava de uma cin-cia baseada em evidncias sensoriais e, por isso, concebeuuma nova viso do prprio homem com suporte num dua-lismo que dividia o esprito e o corpo.

    A viso, pois, de um direito material suposto inteira-mente na razo teve suas bases em Descartes. Sua antro-pologia [...] guiada por um otimismo fundamental comrespeito natureza humana e capacidade humana deconhecer e agir [...](Vaz, 1991, p. 85), e persistiria na filo-sofia de Kant, especialmente no seu esforo de formulaode leis universais nas cincias humanas.

    Kant daria seqncia ao trabalho de Descartes no sen-tido da emancipao, pois, na viso de Weber/Habermas,ambos trabalharam no caminho do desencantamento/des-mistificao do mundo, que anteriormente concebia um

    Habermas e o Direito Brasileiro

    27

    7 Essas longas cadeias de razes, to simples e fceis, de que os gemetroscostumam servir-se para chegar s suas mais difceis demonstraes, leva-ram-me a imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimen-to dos homens encadeiam-se da mesma maneira [...] (Descartes,Discursodo mtodo, p. 23).

    8 As atividades que nos levam ao conhecimento seguro so, pois, somenteduas: intuitus e deductio. Entendo porintuitusno a f flutuante dos sen-tidos ou o juzo falaz de uma imaginao que une desajeitadamente[aspectos diversos]; mas o conceito de uma mente pura e atenta, conceito

    to fcil e distinto a ponto de no deixar margem a nenhuma dvidadaquilo que entendemos (Rovighi, Histria da filosofia Moderna: da revo-luo cientfica a Hegel, p. 68).

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    amlgama entre Direito, Moral e Religio. Descartes come-ou a apartao da religio. Kant distinguiu o Direito daMoral9 e concebeu uma sociedade pautada por princpiosuniversais.

    Kant conclui a reviravolta fundamental do pensa-mento ocidental aberto por Descartes [...]. Projetaduas linhas de descendncia: uma que resulta nadiminuio ideal do direito, caracterizando uma ver-

    tente axiolgica cuja idia central a de liberdade,que no direito assume a forma da justia; outra, quearremata o trao positivista do direito, cujo conceitobasilar a segurana (Salgado, Prefcio de, O funda-mento de validade do direito: Kant e Kelsen, p. 9).

    A obra kantiana se centra na percepo de um hiatoentre o inteligvel e o emprico na construo do conheci-mento. Nesse sentido, ele percebe a existncia de um sujei-

    to singular capaz de verificar a priori e de modo monolgi-co a certeza/correo de um fenmeno.

    No monumental Crtica da Razo Pura, ele percebe

    que esses juzos abstratos sobre as coisas (juzos sintticosa priori) no definem as coisas em si mesmas, mas unificamos dados da sensibilidade.10 Em outras palavras, ele v o

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    9 O primeiro critrio de distino puramente formal, no no sentido quediz respeito ao contedo, respectivamente da lei moral e da lei jurdica,mas exclusivamente quanto forma de obrigao; e o critrio com baseno qual Kant distingue moralidade de legalidade (Bobbio,Direito e Estadono pensamento de Immanuel Kant, p. 53).

    10 Portanto, se um juzo pensado com universalidade rigorosa, isto , demodo a no lhe ser permitida nenhuma exceo como possvel, ento no derivado da experincia, mas vale absolutamente a priori. Logo, a uni-versalidade emprica somente uma elevao arbitrria da validade, daqual para a maioria dos casos at a que vale para todos, como por exem-

    plo na proposio: todos corpos so pesados. Ao contrrio, onde a univer-salidade rigorosa essencial a um juzo, indica uma fonte peculiar deconhecimento do mesmo, a saber, uma faculdade de conhecimento a prio-

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    objeto no como a coisa em si, mas como um fenmeno.Logo, no se possvel avaliar qualquer dado emprico sema configurao de conceitos puros, sem a fixao de cate-gorias. E tais categorias integram tambm os prpriosobjetos, posto que incapazes de existir de forma isolada.

    Dessa forma, indispensvel deixar claro que a ques-to essencial viso do primeiro em relao cincia podeser resumida em um questionamento: O que eu possoconhecer?. Kant o responder com a afirmao de que

    sem conceitos puros, isso , sem categorias, no haveriaobjetos de experincia; e, que as categorias integrariam osobjetos da experincia.

    Kant concebe uma razo atemporal capaz de unificarem si o intelecto e a intuio. Isso porque os elementos domundo fenomnico somente poderiam ser apreendidos pormeio da intuio humana, especialmente por meio de ju-zos sintticos a priori, construdos em cima das noes de

    tempo e espao, propriedade exclusiva da mente humana eelemento de distino do homem para com os animais.

    Dentre os juzos sintticos a priori11 incluir-se-iam as

    proposies matemticas, j que qualquer proposiomatemtica algbrica, tal como toda equao (1+1=2) sedaria em cima da relao temporal de sucesso; e, qualquerelemento da matemtica euclidiana da geometria, como porexemplo a menor distncia entre dois pontos uma reta,fixar-se-ia dentro da relao sensitiva do espao.

    Habermas e o Direito Brasileiro

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    ri. Necessidade e universalidade rigorosa so, portanto, seguras caracte-rsticas de um conhecimento a priori e tambm pertencem inseparavel-mente uma outra (Kant, Os pensadores, p. 55).

    11 Kant chama tais juzos de juzos sintticosa priori; sintticos porque opredicado acrescenta uma noo nova do sujeito, a priori porque so

    necessrios e universais [...] uma vez que no h necessidade de verifica-es experimentais para saber que uma coisa ela mesma (Rovighi,Histria da filosofia moderna, pp. 551-552).

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    Dessa forma, o princpio da causalidade dependeriadessa percepo intuitiva presente apenas na razo huma-na, fato que, libertando-o do empirismo de Hume abririaespao para a objetividade e a neutralidade cientfica, tocara filosofia da conscincia.

    Ao mesmo tempo, o fato do conhecimento ser condi-cionado pelos dados espaciais e temporais da sensibilida-de impediria o conhecimento de elementos da metafsica

    tradicional, tais como a percepo de que a alma seria uma

    coisa em si, de que o cosmos seria finito e de que Deuspudesse ser reduzido realidade.Kant, por meio de sua dialtica transcendental, acredi-

    ta que essa metafsica busca algo inalcanvel pela razo,vez que se colocar sempre diante de uma antinomia bsi-ca, isso , diante de questes, tais como aquelas que ver-sam sobre a existncia de Deus, que admitem sempre maisde uma resposta lgica: sim e no.

    A interveno da conscincia/razo essencial constituio do objeto, mas no suficiente. Para tanto, eleacrescenta a sensibilidade,12 ou seja, a sua demonstrabili-dade por via experimental.13 Eis a distino entre a razo

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

    30

    12 Vimos acima que sem as condies da sensibilidade nenhum objeto abso-lutamente pode ser representado mediante conceitos puros do entendi-mento, porque faltam as condies da sua realidade objetiva e neles nose encontra seno a simples forma do pensamento. Tais conceitos, no obs-tante, podem ser apresentadosin concreto quando so aplicados aos fen-menos; nestes, com efeito, eles propriamente possuem a matria para oconceito emprico que no seno um conceito in concreto do entendi-mento (Kant, Os Pensadores, p. 356).

    13 A deduo transcendental demonstrou a interveno do intelecto na cons-tituio do objeto, mas a demonstrou apenas como atividade unificadora.Isso significa que o intelecto sozinho no suficiente para representar umobjeto, que h necessidade de um material para unificar, e esse materiallhe fornecido pela sensibilidade. Essa tese expressa pela famosa frase:Os pensamentos sem contedo so vazios, as intuies sem conceitos so

    cegas.(...) De fato, as categorias e os princpios que nelas se baseiam,mesmo sendo do intelecto puro, portanto aplicveis por natureza a qual-quer realidade, no podem ser aplicadas ao que no experimentvel por

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    terica e a razo prtica, essa ltima sempre dependenteda sensibilidade.

    Assim, tudo, inclusive a moral, poderia ser deduzidapela razo,14 pois somente ela poderia impor regras con-duta humana,15 atravs de um critrio de universalizaodenominado por Kant como imperativos categricos.16 E,ser a partir dessa concepo, que ele definir a distinodo direito com a moral.

    Isto significa que a representao de um dever s sig-

    nifica tambm a existncia de um dever legtimo se estepuder ser atribudo universalmente a qualquer ser racional,o que implica que a existncia de um dever no pode seautocontradizer. possvel exemplificar essa situaodizendo que a representao de uma mxima segundo aqual seja permitido o furto no pode ser convertida em umalei e deve ser, portanto, repelida, uma vez que tal mximaimplicaria uma autocontradio de princpios: se me fossepermitido furtar, quer dizer que tal conduta seria permitidaa qualquer um; e se o furto fosse permitido a qualquer um,eu no poderia gozar os benefcios de meu furto, vez queoutra pessoa poderia, furtando-me, impedir que eu ficasse

    Habermas e o Direito Brasileiro

    31

    que, sem a contribuio da sensibilidade, no so capazes de representarum objeto (Rovighi,Histria da filosofia Moderna: da revoluo cientficaa Hegel, pp. 560-561).

    14 O dualismo Kantiano implica ser o homem racional e tambm sensvel.Enquanto ser racional conhece a lei moral, enquanto ser sensvel nonecessariamente obedece lei moral, j que pode ser afetado pela sensibi-lidade (Gomes, O fundamento de validade do direito: Kant e Kelsen, p. 63,grifo do autor).

    15 A lei moral nada mais exprime do que a autonomia da Razo pura prti-ca, isto , da liberdade, e esta mesmo a condio formal de todas asmximas, sob a qual, unicamente elas podem harmonizar-se com a lei pr-tica suprema (Kant, Crtica da razo prtica, p. 45).

    16 Pergunta a ti mesmo se poderias ver a ao que tens em mente como pos-

    svel mediante tua vontade, quando ela deveria acontecer segundo uma leida natureza da qual tu mesmo s uma parte (Kant apud Rovighi,Histriada filosofia Moderna: da revoluo cientfica a Hegel, p. 585).

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    com o bem. Assim, uma autorizao para furtar se autocon-tradiria e no poderia, por isso mesmo, ser universalizada.17

    Os imperativos categricos somente existem porqueo homem pertence tanto ao mundo inteligvel quanto aomundo sensvel, e somente se sustentam sob o pressupos-

    to da liberdade humana. Logo, os imperativos categricosso possveis porque:

    [...] a idia de liberdade faz de mim um membro do

    mundo inteligvel; pelo que, se eu fosse s isto, todasas minhas aes seriam sempre conformes a autono-mia da vontade; mas como ao mesmo tempo me vejocomo membro do mundo sensvel, essas minhasaces devem ser conformes a essa autonomia. E essedever categrico representa uma proposio sintticaa priori, porque acima da minha vontade afectada porapetites sensveis sobrevm ainda a idia dessamesma vontade, mas como pertence ao mundo inteli-gvel, pura prtica por si mesma, que contm a condi-o suprema da primeira, segundo a razo [...] (Kant,Fundamentao da metafsica dos costumes, p. 104).

    A distino entre o Direito e a Moral no apenas se dpela forma de obrigao, cogente apenas no Direito, maspela dualidade interioridade/exterioridade,18 vez que ape-

    lvaro Ricardo de Souza Cruz

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    17 Cf. Galuppo,Igualdade e diferena, p. 84, grifo do autor.18 O fundamento do direito em Kant a liberdade, entendida enquanto auto-

    nomia da razo. [...] A liberdade fundamenta a existncia de leis internas,que criam deveres internos, na forma de imperativos categricos. Mas amesma liberdade interna fundamenta a existncia de leis exteriores, quetornam possvel o convvio das liberdades individuais (arbtrio). Odireito,,portanto,aliberdadeexteriorizada. [...] Como somente no Estado Civilh direito positivo, isto , h garantia do convvio das liberdades indivi-

    duais mediante uma lei universal de liberdade, o homem tem o dever desair do estado de natureza e a ele nunca voltar(Gomes, O fundamento devalidade do direito: Kant e Kelsen, pp. 79-80, nosso destaque).

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    nas a relao jurdica impe a prtica/omisso causadorade efeitos na realidade ntica para se materializar, comobem adverte Baracho Jnior:

    A ao moral estaria, portanto, condicionada atrs requisitos: 1. Ao moral a que realizada nopara obedecer a uma certa atitude sensvel, a umcerto interesse material, mas somente para obedecer lei do dever; 2. Ao moral aquela que cumprida

    no por um fim, mas somente pela mxima que adetermina; 3. A ao moral aquela que no movidapor uma inclinao a no ser o respeito lei. [...] anorma jurdica, por seu turno [...] admite a simplesconformao da ao lei desconsiderando as inclina-es e interesses que levam o indivduo a cumpri-la(Baracho Jnior, Responsabilidade civil por dano aomeio ambiente, p. 40).

    Kant v o Direito como mecanismo social de garantir olivre arbtrio humano com a liberdade, definida a partir deuma lei universal, o que plasmava o carter tico da corre-

    o no Direito.19 Harmonizava as liberdades individuais eviabilizava a vida na sociedade civil, enquanto sua faltaprivava o homem de sua liberdade.20 Era isto o que levaria

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    19 Se minha ao pode conviver com a liberdade de todos, segundo leis uni-versais, ela justa; injusta (unrecht) a ao do outro que me impea depratic-la. Da o imperativo universal do direito como aplicao do impe-rativo categrico moral: ageexternamentedetalmodo,queolivreusodeseuarbtriopossacoexistircomaliberdadedetodossegundoumaleiuni-versal. Disso conclui Kant que tudo o que constitui um obstculo liber-dade (segundo as leis gerais) injusto (unrecht) e que o afastamentodesse obstculo , pela mesma forma, justo (Salgado,A idia de justiaem Kant, p. 162, grifo do autor).

    20 A liberdade o fundamento do direito em Kant, sendo traduzida em fun-

    damento transcendental, porquanto no pode ser demonstrada por no sedar na experincia. Somente sob o pressuposto da liberdade que so pos-sveis a moral e o direito. A moral constitui a legislao interna do homem,

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    a comunidade dos homens a se organizar em uma formaespecial de organizao poltica: o Estado.21

    Esse Estado manifestava-se como legislador, querepresentava o prprio povo, garantindo o exerccio daliberdade externa do indivduo por meio de normas univer-salmente aplicveis, e, com isso, o projeto emancipatrioiluminista.

    Esse projeto tem seguimento na obra de Hegel.A viso emancipatria hegeliana supe que a constru-

    o do esprito humano no se d de forma solipsista comosupunha Kant, mas algo que necessita de um balizamentoem objetivaes de outra natureza, qual seja, na relao dohomem com o mundo.22 Mas para que melhor se compreen-da tal seguimento, preciso perceber algumas mudanasessenciais entre o pensamento kantiano e o hegeliano. Se possvel traar uma paralelo entre os dois, pergunta oque eu posso conhecer como elemento central do pensa-

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    na forma de imperativos categricos, enquanto o direito traduz-se nalegislao externa, reguladora do convvio das liberdades individuais atra-vs da coao. A partir da, tem-se o conceito de direito que , portanto, a

    liberdade exteriorizada (S, O direito de morrer, pp. 89-90).21 O ato pelo que o povo mesmo se constitui como Estado ainda que, pro-

    priamente falando, s idia deste, que a nica pela que se pode pensara legalidade o contrato originrio, segundo o qual todos (omnes etsinguli)no povo renunciam sua liberdade exterior, para recobr-la emseguida como membros da comunidade, quer dizer, como membros dopovo enquanto Estado (universi) (Kant, Crtica da razo prtica, p. 146).

    22 No entanto, diferentemente de Gehlen, Hegel insiste na seguinte condio:o sujeito autoconsciente no obrigado a reconhecer nada que no possaaceitar como justificado pela prpria razo.O Estado moderno tem a imen-sa fora e a profundidade sobre cuja base o princpio da subjetividade podese completar como extremidade autnoma da particularidade pessoal eretornar unidade substancial. (...) Esta idia fundamental, anticartesia-na, de Hegel, sobrevive, tanto na antropologia filosfica, como no pragma-tismo e no historicismo. O esprito humano s pode se encontrar consigomesmo de forma indireta, atravs de uma relao com o mundo, mediada

    atravs de smbolos; ele no existe na cabea, e, sim, no conjunto de mani-festaes e prticas simblicas acessveis publicamente e compreensveisintersubjetivamente (Habermas, Era das transies, pp. 83-84).