Habermas e o Problema Da Religião Na Esfera Pública

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    HABERMAS E O PROBLEMA DA RELIGIO NA ESFERA PBLICA

    SRGIO MURILO RODRIGUES

    RESUMO

    Este artigo pretende tematizar a questo da relao entre a religio e apoltica na esfera pblica. Na realidade, a relao se d entre os crentesde uma tradio religiosa e os no-crentes e os crentes de tradiesreligiosas distintas no espao pblico institucionalizado. Algunsconsideram ser essa relao impossvel em uma democracia, pois odiscurso religioso no seria um discurso pblico, mas privado, e destaforma no poderia ser colocado como uma questo de interesse de todos.

    J o filsofo Habermas considera que no seria democrtico proibir umcidado, seja crente ou no crente, de participao poltica na esferapblica. Alm disso, no se deve obrig-lo a abrir mo de suas maioresconvices para poder ter acesso esfera pblica.

    Palavras-chave: Habermas; religio; esfera pblica; democracia; Estadolaico

    ABSTRACT

    This article aims to explore the question of the relationship between

    religion and politics in the public sphere. In fact, it is the relationshipbetween believers of a religious tradition and the non-believers andbelievers of different religious traditions on institutionalized public space.Some thinkers argue that the relationship between religion and the publicsphere is impossible in a democracy. But the philosopher Habermasconsiders undemocratic prohibit political participation of citizen. Also, youcannot force anyone to give up their convictions to have access to thepublic sphere.

    Keywords: Habermas; religion; public sphere; democracy; secular state

    O surgimento da modernidade, na histria do mundo ocidental, significou uma

    profunda ruptura modo de viver e pensar da poca medieval. Uma das

    caractersticas mais marcantes dessa ruptura foi o processo de secularizao ou

    dessacralizaodo mundo, da natureza e da sociedade. Esse processo consistia na

    substituio do pensamento religioso por um pensamento racional, cujo modelo era

    o pensamento cientfico.

    Professor de Filosofia da PUC Minas; Mestre em Filosofia UFMG.

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    Max Weber (1864-1920) afirmou ser a progressiva racionalizao da

    sociedade a principal caracterstica da modernidade. A racionalizao para ocorrer

    necessitava do processo de secularizao e por sua vez, o processo de

    racionalizao ampliava a secularizao na sociedade.

    Segundo Weber, a ao socialpode ser classificada em quatro tipos:

    1. Racional no que respeita aos fins: determinada por expectativas decomportamento tanto de objetos do mundo exterior como de outros homens,e utilizando essas expectativas como condies ou meios para arealizao de fins prprios racionalmente medidos e perseguidos. 2.Racional no que respeita aos valores: determinada pela crenaconsciente no valor tico, esttico, religioso ou de qualquer outra formacomo seja interpretado prprio e absoluto de uma determinada conduta,

    sem relao alguma com o resultado, ou seja, pelo simples mrito dessevalor. 3. Afetiva: especialmente emotiva, determinada por afetos ou estadossentimentais atuais e 4. Tradicional: determinada por um costumeentranhado (WEBER, 1983, p.75-76)

    Uma caracterstica fundamental da modernidadeser o predomnio da ao

    racional no que respeita aos fins em um processo de constante e progressiva

    racionalizao do mundo social. Esse predomnio ocorrer devido eficincia

    (mensurvel)desse tipo de ao e por ela favorecer outra caracterstica fundamental

    da modernidade: o processo de secularizao que levou desintegrao dasconcepes religiosas de mundo promovendo uma profanizao das sociedades

    modernas (HABERMAS, 1990, p.13). A ao racional com respeito aos valores

    estaria profundamente ligada s vises de mundo religiosas, que estavam sendo

    criticadas no processo de modernizao e, alm disso, no possui um critrio de

    eficincia facilmente mensurvel.

    A cincia moderna teve, sem dvida, um papel de destaque no projeto da

    modernidade de substituio do pensamento religioso por um pensamento racional.Segundo Jos Carlos de Souza,

    A matematizao e a quantificao da natureza provocaram um profundoimpacto na autocompreenso do homem ocidental e de seu mundo. Omecanismo da fsica newtoniana colocou em xeque a antiga concepo domundo como um cosmos sagrado. O atomismo subjacente a um universomecnico desafia as pressuposies bsicas de uma teologia da histria(SOUZA, 2005, p.34).

    A cincia comea a impor uma nova maneira de pensar fundada no mtodocientfico, que por sua vez tinha uma forte conotao positivista, no sentido de s

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    aceitar como vlidas as afirmaes sobre fatos empiricamente verificveis, rejeitar

    questes de valores (no passveis de verificao e de verdade), substituir a busca

    pela causa final (O que ? Finalidade do fenmeno) pela busca da causa eficiente

    (Como ? Como funciona? Mecanismo do fenmeno). O sucesso prtico da cincia,

    bem com seu uso nos processos de industrializao desenvolvidos pelo capitalismo,

    difundiu a maneira de pensar cientficapela populao em geral. Por isso, a cincia

    passa a exercer forte influncia na vida social e na religiosidade das pessoas.

    A cincia comea a exercer sua influncia sobre a prpria religio, e aextenso dessa influncia pode ser mais bem apreciada quandoconsideramos que o discurso religioso passa a se referir a supostasevidncias cientficas como fundamentao de sua prpria atividade(SOUZA, 2005, p.48).

    O Iluminismopassa a defender a total substituio do pensamento religioso

    pela racionalidade cientfico-instrumental. A moral se funda na razo. A sociedade

    surge do contrato racional entre os sujeitos humanos. A nica crena vlida era

    aquela baseada no objeto, ou seja, em procedimentos lgicos e empricos passveis

    de demonstrao racional. A crena baseada em testemunho era, na realidade,

    fundada na autoridade do sujeito que a enuncia e, portanto, deveria ser combatidacomo uma forma de opresso e de engano. A crena baseada em testemunho a

    base das religies. O Iluminismo pretendia consolidar o processo de secularizao

    iniciado alguns sculos antes. O homem deveria guiar a sua vida exclusivamente

    pela razo cientfica.

    A modernidade rejeita toda e qualquer teleologia divina na histria. O futurop0ode ser criado e provido pela vontade do prprio homem. Os pensadoresiluministas conceberam a histria como o desvelamento universal da razo,

    que, ao brilhar sobre toda escurido e superstio, iria iluminar a totalidadeda histria com sua prpria luz. Esse processo do desabrochar da razo nohorizonte histrico da humanidade foi concebido como um processoinevitvel e irreversvel. A histria torna-se um processo universal dodesvelamento de uma razo universal que segue seu cursoindependentemente das vontades individuais (SOUZA, 2005, p.59).

    Mesmo os chamados mestres da dvida, Nietzsche, Freud e Marx, que

    colocaram em questo a capacidade da razo em resolver os problemas da vida

    humana, mantinham um pensamento fortemente anti-religioso. No havia dvidas de

    que o fim das religies era uma questo de tempo

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    No entanto, no foi isso o que aconteceu. Apesar dos saberes e prticas do

    homem ocidental estarem cada vez mais submetidos aos procedimentos de

    racionalidade instrumental e eficcia, apesar da vida ter se tornado mais objetiva,

    isenta de sentimentos e calculista, a religio no desapareceu. E, pelo contrrio, o

    fenmeno religioso se expandiu e voltou a assumir, deste a ltima dcada do sculo

    XX, uma posio de grande relevncia na vida social e poltica das pessoas em todo

    o mundo.

    Segundo Habermas,

    Desde a virada de 1989/90, tradies religiosas e comunidades de fadquiriram inesperadamente, importncia poltica. Temos em mente, acima

    de tudo, os tipos de fundamentalismo que surgem, no somente no OrienteMdio, mas tambm nos pases da frica, no Sudeste da sia e nosubcontinente da ndia. Eles inserem-se eventualmente, em conflitosnacionais e tnicos constituindo, hoje em dia, uma espcie de incubadorade unidades descentralizadas de um terrorismo que opera a um nvel global,opondo-se aos melindres produzidos pela civilizao ocidental tido comosuperior (HABERMAS, 2007, p. 129).

    A partir do movimento poltico iniciado no Ir, quando um regime corrupto e

    ditatorial imposto pelo ocidente foi derrubado e substitudo por uma teocracia dirigida

    pelos aiatols, outros pases comearam a constituir governos baseados em leisreligiosas. A ideia de um Estado religioso assustou os governos laicos ocidentais,

    que consideraram tal movimento como uma regresso histrica. No entanto, no

    podemos julgar assim. Principalmente porque a revitalizao das religies e sua

    participao na esfera pblica poltica no um fenmeno restrito ao oriente.

    (...) o fato mais surpreendente consiste propriamente na revitalizaopoltica da religio no mago dos Estados Unidos da Amrica, portanto, no

    centro da sociedade ocidental, onde a dinmica da modernizao seexpande com maior sucesso. (...) nos Estados Unidos (...) todas aspesquisas de opinio confirmam que a elevada porcentagem dos cidadosreligiosamente ativos permaneceu relativamente constante durante osltimos sessenta anos (HABERMAS, 2007, p.130-131).

    Com relao aos Estados Unidos, interessante recordar que o

    fundamentalismo surgiu l, em uma comunidade protestante na primeira parte do

    sculo XX. Podemos definir o fundamentalismo religioso como aqueles grupos

    religiosos que no aceitam dialogar com outros grupos. O pressuposto de um

    dilogo a abertura para ouvir outros argumentos, debater sobre eles, e se for o

    caso, mudar suas prprias posies.

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    No Brasil, o censo do IBGE indica um pequeno crescimento dos no crentes

    em 2010. No ano 2000, 7,4% dos entrevistados declararam no ter religio, dez

    anos depois, este nmero subiu apenas 0,6%, passando para 8%. Temos 64,6% de

    catlicos e 22,2% de evanglicos.

    No se pode desconsiderar a participao poltica de quantidades to

    expressivas da sociedade. Na realidade, j temos h muito tempo exemplos de

    movimentos polticos em parceria com movimentos religiosos, o pastor protestante

    Martin Luther King nos EUA, Gandhi na ndia e a Teologia da Libertao na Amrica

    Latina. Habermas lembra que o presidente Bush deve a sua vitria a uma coalizo

    de eleitores cujos motivos predominantes eram religiosos (HABERMAS, 2007,

    p.133).No entanto, o mundo acadmico tem preferido simplesmente reafirmar a

    necessidade de um Estado laico considerando a esfera pblica poltica como um

    lugar inapropriado para religiosos. Trata-se de uma compreenso muito restrita do

    laicismo do Estado e sua relao com a Igreja. Nessa compreenso, o Estado no

    daria voz aos cidados religiosos.

    Estado laico e Igreja no so duas foras incompatveis. perfeitamente

    possvel a existncia de um Estado laico com a participao poltica de religiosos,inclusive nos cargos eletivos. Essa coexistncia possvel, mas no livre de

    turbulncias, principalmente em um mundo marcado pelo multiculturalismo e pela

    diversidade de tradies religiosas convivendo no mesmo espao social.

    Se h um predomnio da f crist no Brasil, isso no significa que no haja

    outras tradies religiosas e que todas precisem ser igualmente respeitadas. O

    discurso religioso muitas vezes apresenta uma caracterstica que dificulta o dilogo

    entre as religies e com os no crentes. Podemos chamar essa caracterstica defidelidade excludente. O sujeito do discurso assume o compromisso de agir

    ativamente para a expanso da sua crena e no combate a outras crenas. A

    fidelidade excludente muito forte nos discursos fundamentalistas, mas certamente

    essa caracterstica inapropriada para as relaes polticas em uma sociedade

    democrtica que garante a liberdade religiosa de seus cidados.

    Essa liberdade religiosa , inclusive, garantida pelo Estado laico, j que a

    laicidade implica que os poderes estatais se expressem de modo neutro quanto a

    imagem religiosa do mundo e, desta forma, no privilegie nenhuma comunidade

    religiosa determinada. Simultaneamente, o Estado autoriza e garante aos cidados

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    poderem escolher praticar qualquer religio que esteja dentro dos limites da

    legalidade.

    A expanso das comunidades e tradies religiosas, tanto em nmero de

    seguidores, quanto na diversidade de crenas, levou Habermas a caracterizar a

    sociedade na qual vivemos como ps-secular. O cidado ps-secular pensa da

    seguinte forma:

    Sob premissas agnsticas, ele se abstm de emitir juzos sobre verdadesreligiosas e insiste (sem intenes polmicas) em uma delimitao estritaentre f e saber. De outro lado, ele se volta contra uma concepocientificista da razo e contra a excluso das doutrinas religiosas dagenealogia da razo (HABERMAS, 2007, p.159).

    Assim, em uma sociedade ps-secular as tradies religiosas adquirem

    grande fora poltica. Ocorre um progressivo processo de assimilao religiosa por

    parte da vida social e valores morais religiosos so assumidos pela tradio cultural

    como pressupostos de ao correta mesmo para os no crentes.

    No Brasil percebemos que representantes de diversas comunidades

    religiosas se fazem presentes em veculos de comunicao de massa que atingem

    indistintamente milhares de crentes e no crentes Muitos lderes religiosos, nosltimos anos, passaram a pleitear o frum pblico para o exerccio do poder secular,

    tendo assento nas cmaras de vereadores, deputados, senadores e em cargos do

    executivo. So os chamados polticos religiosos, que uma vez eleitos iro legislar e

    administrar bens pblicos que afetam crentes e no crentes.

    Aqui temos uma outra turbulncia na relao entre Estado laico e religio.

    legitimo o poltico-religioso representar exclusivamente os interesses da sua

    comunidade religiosa? No razovel exigir que o religioso abra mo das suas

    crenas religiosas para assumir um cargo poltico. Segundo Habermas,

    (...) o Estado liberal que protege de igual modo todas as formas religiosasde vida, no pode obrigar os cidados religiosos a levarem a cabo, naesfera pblica poltica, uma separao estrita entre argumentos religiosos eno-religiosos quando, aos olhos deles, esta tarefa pode constituir umataque sua identidade pessoal (HABERMAS, 2007, p.147).

    No entanto, o Estado democrtico, legitimado pela sociedade, pode exigir que

    os ocupantes de cargos polticos, inclusive, os religiosos, faam um uso pblico darazo em suas argumentaes polticas. Afinal de contas, no debate poltico pblico,

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    os cidados participantes no necessitam conhecer1e muito menos concordar com

    os dogmas teolgicos especficos de uma determinada religio. Esses dogmas so

    fundamentais para a comunidade particular que compartilha aquela determinada

    crena religiosa, mas eles no podem ser impostos como regra poltica geral para

    todas as diferentes comunidades religiosas e no-religiosas.

    No uso pblico da razo, o discurso dever ser orientado por uma

    racionalidade compreensvel a todos e no apenas para os membros da

    comunidade do orador. De forma que todos, sem exceo, possam analis-lo,

    critic-lo e assumir uma tomada de posio lcida e consciente. O poltico-religioso

    dever assumir o compromisso de usar publicamente a razo. Sob pena de

    desqualificar-se para o jogo democrtico e com isso, criar uma barreira para quesuas idias e posies sejam compreendidas e debatidas. Sem o uso pblico da

    razo, o poltico-religioso fere a prpria democracia naquilo que ela tem de mais

    sagrado, o debate entre os pares.

    O problema que se coloca em que medida a separao entre Igreja e

    Estado, requerida pela Constituio Federal brasileira, influencia o alcance das

    verdades morais defendidas pelas tradies e comunidades religiosas na esfera

    pblica poltica e na sociedade civil e, conseqentemente, quais os efeitos dessainfluncia no papel das religies na formao poltica da opinio e da vontade dos

    cidados de um Estado democrtico de direito. Este problema se torna mais urgente

    na medida em que temos um aumento significativo de representantes de

    comunidades religiosas ocupando (democraticamente) cargos polticos eletivos.

    O Estado democrtico de direito no pode impedir que as comunidades

    religiosas participem ativamente da esfera pblica poltica na atividade de formao

    poltica da opinio e da vontade dos cidados, bem como na atividade legislativa deformulao e aprovao de leis. No entanto, funo do Estado laico2, bem como

    da sociedade democrtica, garantir o uso pblico da razo na esfera poltica. Desta

    forma, polticos que assumem mandatos pblicos ou se candidatam a eles deveriam

    somente utilizar argumentos racionais nas discusses acercas de verdades morais

    na esfera pblica.

    1 importante, certamente, conhecer as diferentes comunidades culturais-religosas que compem a nossasociedade, pois assim ser mais fcil exercermos a tolerncia essencial para uma sociedade multicultural comoas contemporneas. Mas no , de maneira nenhuma, um pr-requisito para o exerccio da cidadania.2O Estado laico a garantia constitucional da liberdade religiosa.

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    No temos ainda uma resposta bem fundamentada para as questes acima

    colocadas, mas entendemos que a teoria discursiva da verdade de Jrgen

    Habermas seria adequada para obtermos fundamentao racional para a ao

    poltica das comunidades religiosas em um Estado democrtico de direito.

    O mundo atual se caracteriza pela convivncia em um mesmo espao social

    de uma pluralidade de tradies religiosas distintas. Tal situao gera uma srie de

    conflitos, muitos deles violentos. A expresso guerra santa voltou a ser usada,

    algumas vezes de forma metafrica e outras vezes de forma literal. Se at a dcada

    de 1970, a palavra terrorismoestava estreitamente ligada ao confronto poltico entre

    direita e esquerda, a partir da dcada de1980, o terrorismopassa a ser relacionado

    ao confronto entre religies. Essa violncia latente entre os praticantes de diferentesreligies precisa ser trabalhada para que ela no se manifeste. Trabalhada ao ponto

    de deixar de existir, mesmo que s de forma latente. E esse trabalhos pode ser

    feito atravs da via poltica. O debate poltico pblico o local adequado em um

    Estado democrtico de direito para a resoluo de conflitos de forma no violenta. E

    efetivamente vemos, no mundo, com especial ateno, no Brasil, o aumento

    significativo de polticos membros de comunidades religiosas. Se para alguns

    pensadores, como Carl Schmitt(1888-1985), a participao poltica de religiosos no problemtica, para outros pensadores, como John Rawls (1921-2002), essa

    participao poltica deveria ser restrita por regras to rgidas, que no seria mais

    possvel identificar o poltico como religioso. Jrgen Habermasassume uma posio

    intermediria defendendo a participao poltica dos religiosos sem que eles tenham

    que perder a prpria identidade, mas tambm se submetendo a regras restritivas,

    mas que so para todos os polticos e no apenas para os religiosos.

    Coerentemente com a sua teoria discursiva da verdade, Habermas defende aparticipao das diferentes comunidades religiosas em um dilogo aberto entre si

    mesmas, na busca de um consenso acerca de seus prprios limites de ao dentro

    da esfera pblica poltica. Esse dilogo estaria aberto aos no crentes tambm.

    Jrgen Habermas, nascido em Dsseldorf (Alemanha), em 1929 um dos

    mais importantes filsofos polticos da contemporaneidade. Na questo da relao

    da religio com a esfera pblica, Habermas estabelece um importante debate com

    outro filsofo fundamental para o pensamento poltico contemporneo: John Rawls.

    Embora Habermas no concorde com Rawls em relao a interdio de

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    representantes religiosos na esfera pblica, ele concordam em pontos fundamentais

    para a compreenso da moderna sociedade democrtica.

    Ambos sustentam uma concepo pblica de justia, vlida para associedades modernas, visando contemplar o pluralismo, isto , construiruma teoria poltica que d conta da pluralidade de convices morais,concepes de bem, religies etc., visando conciliar a autonomia individuale os interesses coletivos. Habermas se utiliza de uma razo ps-metafsica,enquanto Rawls, utiliza-se da razo poltica sem consideraes metafsicas.Ambos operam com o carter finito da razo, isto , considerando o aspectode falibilidade da razo. Este o aspecto procedimental da razo que operapor construes de procedimentos de argumentao racional. Este carterprocedimental funciona a partir de mecanismos de representao (device ofrepresentation): em Rawls, a posio original e, em Habermas, ascondies ideais do discurso (SILVEIRA, 2001, p.42).

    Em 2005, Habermas publicou um livro chamado Entre Naturalismo e

    Religio (Zwischen Naturalismuns und Religion) com uma srie de estudos

    elaborados nos anos anteriores em diferentes circunstncias e por motivos diversos.

    No formam, por tal motivo, um conjunto sistemtico. Mesmo assim, possvel descobrir, por trs das diferentes contribuies, a inteno de tratardos desafios do naturalismo e da religio, que so complementares, bemcomo a insistncia ps-metafsica no sentido de uma razo

    destranscendentalizada (HABERMAS, 2007, p.14).

    No livro, Habermas ir discutir o conflito entre as cosmovises naturalistas

    (cientficas) e religiosas, que dominam a vida cultural da atualidade. Nas palavras de

    Habermas, duas tendncias contrrias caracterizam a situao cultural da poca

    atual a proliferao de imagens de mundo naturalistas e a influncia poltica

    crescente das ortodoxias religiosas (HABERMAS, 2007, p.7).

    O referencial de Habermas para analisar o confronto entre naturalismo e

    religio em um mundo caracterizado pelo pluralismo a teoria poltica do Estado

    democrtico de direito. Essa teoria, por sua vez, est alicerada na teoria da ao

    comunicativa, na teoria discursiva da verdade, na teoria procedimental do direito. As

    trs teorias so interdependentes e complementares e, poderamos mesmo dizer

    que no se trata de teorias diferentes. Para Habermas, a democracia a melhor

    forma que conhecemos para conseguirmos conciliar interesses privados entre si e

    eles com os interesses pblicos. A democracia permite a resoluo pacfica e

    racional dos conflitos, na medida em que ela no depende exclusivamente doEstado, mas incentiva as pessoas a participarem da poltica (legitimao das leis)

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    buscando assumirem as perspectivas uns dos outros. A democracia

    intrinsecamente inclusiva. E

    Incluso no significa aqui confinamento dentro do prprio e fechamentodiante do alheio. Antes, a incluso do outro significa que as fronteiras dacomunidade esto abertas a todostambm e justamente queles que soestranhos um ao outroe querem continuar sendo estranhos (HABERMAS,2002, p.8).

    Assim, a relao entre crentes de tradies religiosas distintas, bem como

    entre crentes e no crentes deve acontecer em um ambiente democrtico, no qual o

    Estado laico garanta a liberdade religiosa e as pessoas possam fazer a sua parte,

    encontrando-se e discutindo temas relevantes para a sociedade.

    O direito fundamental da liberdade de conscincia e de religio constitui aresposta poltica adequada aos desafios do pluralismo religioso. Issopermite desarmar, no contexto do trato social dos cidados, o potencialconflituoso que continua permeando, no nvel cognitivo, as convicesexistenciais de crentes, de no-crentes e de crentes de outrasdenominaes. Para uma garantia simtrica da liberdade de religio, ocarter secular do Estado constitui uma condio necessria, porm, nosuficiente. Tal funo no pode ser preenchida pela benevolnciadesdenhosa de uma autoridade secularizada. As prpriaspartes envolvidastm de chegar a um acordo sobre as fronteiras precrias que separam odireito positivo ao exerccio da religio da liberdade negativa, segundo aqual, ningum obrigado a seguir a religio do outro (HABERMAS, 2007,p.136)

    Habermas, de forma surpreendente para um filsofo vinculado tradio

    iluminista, afirma que uma sociedade mais secular no ser necessariamente mais

    democrtica. As tradies religiosas possuem um grande potencial de mobilizao

    comunitria que garante laos de solidariedade social mesmo onde o Estado no

    consegue atuar de forma eficaz. E onde o Estado eficaz, a solidariedade inspiradaem conceitos religiosos consegue dar um sentido mais forte de comunidadepara os

    indivduos estimulados pelo mercado a serem individualistas narcisistas.

    Ao discutir a insero da religio no debate poltico das sociedade

    democrticas, Habermas no poderia deixar de tematizar a questo da verdade,

    mas especificamente a questo da verdade moral. A teoria discursiva da verdade

    sustenta uma pretenso de universalidade e racionalidade para a verdade. Trata-se

    de uma concepo ampla de verdade, que suprime o abismo entre fatos e normas,

    entre questes de ser e de dever-ser. Podemos falar em afirmaes verdadeiras e

    por analogia, tambm de normas verdadeiras (e, portanto,justas). Alis, uma das

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    grandes preocupaes de Habermas o nexo teoria e prxis e por isso a sua

    concepo de verdade no apenas terica, mas mantm um forte vnculo com a

    prxis cotidiana. Habermas no recorre a um conceito de verdade que esteja fora

    do mundo e da histria. No se trata de uma universalidade arrasadora do singular e

    do particular, mas de uma universalidade que se sustenta na unidade tnue de uma

    razo estruturada atravs da linguagem. A universalidade s possvel atravs de

    um dilogoautntico.

    Podemos dizer que a pretenso de Habermas tornar os discursos

    mensurveis mediante regras processuais capazes de permitir a formao de

    consensos racionalmente motivados, tanto em questes tericas como em questes

    prtico-morais.O quadro de referncia no qual Habermas vai pensar a verdade o de uma

    teoria pragmtica da linguagem. Ele interpreta a verdade como um pressuposto

    pragmtico da comunicao dando mais importncia para a noo de pretenso de

    validez do que para a noo de verdade strito sensu. A pretenso de validez

    intrinsecamente intersubjetiva, pois ela pressupe a possibilidade do locutor justificar

    a pretenso levantada. Verdade umapretenso de validezque pode ser aceita ou

    no. O consenso serve de base para toda ao comunicativa. Ele pode ser desfeitoou abalado por qualquer participante do contexto comunicativo. Para isso, basta que

    ele problematize, de forma radical, a pretenso de validez levantada. Nenhuma

    pretenso de verdade est imune crtica e problematizao.

    Diante da problematizao radical da pretenso de validez, os participantes

    da comunicao precisam restabelecer o consenso ou alcanar um novo consenso.

    Para isso eles precisam entrar na esfera do discurso, a fim de justificar ou refutar a

    pretenso de validez problematizada. O Discurso uma forma de comunicao suigeneris. Ele caracterizado pela argumentao, pela busca cooperativa do

    entendimento. No discurso a nica fora que deve prevalecer a fora no-violenta

    do melhor argumento.

    A teoria discursiva da verdaderecebeu muitas crticas de ser uma espcie de

    idealismo lingstico, j que a verdade se confundiria com justificabilidade racional

    discursiva. J em 1999, com o livro Verdade e Justificao (Wahrheit und

    Rechtfertigung), Habermas esclarece que verdade no se confunde com

    justificabilidade racional e defende um assim chamado realismo fraco, a existncia

    de um mundo objetivo independente das legitimaes lingsticas. Em Entre

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    naturalismo e religio, ele volta ao tema, agora relacionando com a discusso acerca

    de verdades morais defendidas pelas diferentes tradies religiosas.

    Em 19 de janeiro de 2004, a convite da Academia Catlica da Baviera, em

    Munique, Habermas participou de um dilogo com o Cardeal Joseph Ratzinger,

    futuro Papa Bento XVI. Na ocasio Habermas partiu da seguinte questo: ser que o

    Estado liberal secularizado se alimenta de pressupostos normativos que ele prprio

    no capaz de garantir?(HABERMAS, 2007a, p.23). Ou seja, a democracia liberal

    necessita de pressupostos normativos religiosos e metafsicos para se legitimar? A

    mesma questo posta por John Rawls: qual a capacidade de gerar legitimidade

    e entendimento mtuo que uma sociedade democrtica secularizada possui? Rawls

    j pressupe que no necessrio nenhuma ajudadas tradies religiosas para alegitimidade da democracia liberal. Segundo Habermas,

    Nos ltimos captulos de Uma teoria da justia, Rawls j havia investigadose uma sociedade instituda segundo princpios de justia poderiaestabilizar-se por si mesma, se ela poderia, por exemplo, encontrar porfora prpria os motivos funcionalmente necessrios, medida quesocializasse seus cidados de forma correta (HABERMAS, 2002, p.74-75).

    Rawls, na obra Uma teoria dajustia, apresenta uma teoria moral, segundo oconstrutivismo kantiano, capaz de ser compreensiva (abrangente) para os cidados,

    de tal forma que eles tenham a justia distributiva como equidade como uma

    concepo de bem formadora da viso de mundo de uma sociedade bem ordenada.

    Posteriormente, no Liberalismo Poltico, Rawls substitui a teoria moral por uma teoria

    poltica, ou seja, um espao pblico independente de uma concepo abrangente de

    bem. As questes de justia bsica, princpios constitucionais da sociedade bem

    ordenada, precisam ser resolvidas de forma neutra em relao s diversas

    concepes de bem que coexistem na sociedade. S para exemplificar, tradies

    religiosas defendem concepes de bem determinadas. Assim, os cidados

    razoveis e racionaisdevero recorrer exclusivamente a uma razo pblica, ou seja,

    acessveis da mesma maneira a todos, para discutir suas questes polticas.

    Una sociedad poltica, y ciertamente, cada agente razonable y racional, yasea un individuo, una familia o una asociacin, o incluso una confederacinde sociedades polticas, tiene una manera de formular sus planes, de

    colocar sus finalidades en orden de prioridades y de tomar sus decisionesen concordancia con todo esto. La manera en que una sociedad poltica lohace es tambin su razn, aunque en un sentido diferente: constituye unpoder intelectual y moral, enraizado en las capacidades de sus integrantes

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    humanos. No todas las razones son razones pblicas, pues existen lasrazones no pblicas de las Iglesias, universidades y de otras muchasasociaciones en la sociedad civil (RAWLS, 1995, p.204).

    Para Rawls, todos os polticos deveriam utilizar uma razo pblica e com issoo vocabulrio religioso ficaria totalmente excludo da esfera pblica poltica.

    Habermas concorda com o uso pblico da razo, mas no da forma restritiva

    defendida por Rawls.

    A concepo do uso pblico da razo provocou posicionamentos crticosdecididos. As objees no se dirigem inicialmente contra as premissasliberais enquanto tal, mas contra uma determinao por demais estreita,secularista, do papel poltico da religio no quadro de uma ordem liberal.

    Mesmo assim, o dissenso parece atingir, no final das contas, a prpriasubstncia da ordem liberal. A mim me interessa a linha que separapretenses ilegtimas do ponto de vista de um direito constitucional. Noobstante, no podemos confundir dois tipos de argumentos no torigorososem prol de um papel poltico da religio, a saber, de um lado, osque so inconciliveis com o carter secular do Estado constitucional e, deoutro lado, os que constituem objees justificadas contra umacompreenso secularista da democracia e do Estado constitucional(HABERMAS, 2007, p.139-140).

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