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1 Habitação social na América Latina: uma metodologia para utilizar processos de auto- organização. Nikos A. Salíngaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy & Ernesto Philibert-Petit (membros do ESRG Environmental Structure Research Group). Tradução no Português por Lívia Salomão Piccinini. (Apresentado no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006) Introdução por Lívia Salomão Piccinini. Minha aproximação com Salingaros aconteceu quando eu pesquisava, na web, para preparar as aulas para meus estudantes de arquitetura, da disciplina de Gestão e Planejamento Urbano. Naquela época (2001) eu queria associar a questão do desenho com o planejamento urbano, mas as ferramentas teóricas e conceituais disponíveis não me satisfaziam. Encontrei, então, seu texto Linguagem de Padrões e Desenho Interativo, orientando o desenho com as comunidades, baseado nas teorias e na experiência prática de Christopher Alexander: um texto que apontava um caminho para pensar o trabalho com os estudantes e discutir a organização da forma urbana. Mais tarde, os conceitos de conexão, de teia e a busca incessante de uma ciência urbana, me desafiaram e me aproximaram cada vez mais deste urbanista e pensador original. Foi com grande contentamento que tomei conhecimento de seu texto sobre a habitação social na América Latina, no final de 2006, um dos textos mais lúcidos sobre o processo de habitação das populações de baixa renda. Particularmente importante para mim, que estava trabalhando com a questão da habitação social, buscando entender a relação entre padrões (ou a flexibilização dos mesmos) e a qualidade de vida, abordada sob o ponto de vista da saúde dos moradores. Sua abordagem inspirada e

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Habitação social na América Latina: uma metodologia para utilizar processos de auto-

organização.

Nikos A. Salíngaros, David Brain, Andrés M. Duany, Michael W. Mehaffy & Ernesto Philibert-Petit (membros do ESRG — Environmental Structure Research Group).

Tradução no Português por Lívia Salomão Piccinini.

(Apresentado no Congresso Ibero-Americano de Habitação Social, Florianópolis, Brasil, 2006)

Introdução por Lívia Salomão Piccinini.

Minha aproximação com Salingaros aconteceu quando eu pesquisava, na web, para preparar as aulas para meus estudantes de arquitetura, da disciplina de Gestão e Planejamento Urbano. Naquela época (2001) eu queria associar a questão do desenho com o planejamento urbano, mas as ferramentas teóricas e conceituais disponíveis não me satisfaziam. Encontrei, então, seu texto Linguagem de Padrões e Desenho Interativo, orientando o desenho com as comunidades, baseado nas teorias e na experiência prática de Christopher Alexander: um texto que apontava um caminho para pensar o trabalho com os estudantes e discutir a organização da forma urbana. Mais tarde, os conceitos de conexão, de teia e a busca incessante de uma ciência urbana, me desafiaram e me aproximaram cada vez mais deste urbanista e pensador original.

Foi com grande contentamento que tomei conhecimento de seu texto sobre a habitação social na América Latina, no final de 2006, um dos textos mais lúcidos sobre o processo de habitação das populações de baixa renda. Particularmente importante para mim, que estava trabalhando com a questão da habitação social, buscando entender a relação entre padrões (ou a flexibilização dos mesmos) e a qualidade de vida, abordada sob o ponto de vista da saúde dos moradores. Sua abordagem inspirada e

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criativa foi uma surpresa. Na abordagem de Salingaros, identifica-se a incorporação de um novo paradigma no enfrentamento da questão habitacional dos pobres urbanos dos países em desenvolvimento: uma concepção que abriga a qualidade do espaço. O texto apresenta recomendações para a participação do morador nas decisões “de baixo para cima” como maneira de garantir o bem-estar físico e psicológico dos habitantes; a metodologia apresenta uma insistência constante e contínua em garantir a constituição de espaços de prazer e de convívio, de socialização e de uso facilitado, descrevendo de regras precisas para a construção da habitação. Mas, além disso, apresenta um background filosófico e científico, baseado em evidências empíricas, para a constituição da habitação social.

Em um momento em que o número de sem tetos e de pobres vivendo em más condições nas cidades, assume proporções gigantescas na América Latina, o trabalho de Salingaros e seu grupo, aparece como uma das formas possíveis para orientar a organização dos espaços de vida destas populações. O enfoque e a metodologia, resgatando a complexidade e interessados em proporcionar bem-estar físico aos moradores, são absolutamente fundamentais no contexto da região, onde as soluções que vêm sendo adotadas tentam resolver a questão da moradia em termos de números de unidades construídas, abandonando a espacialidade e os sentimentos dos moradores. Salingaros, que, tendo na espacialidade o objeto de suas análises, desenvolve uma metodologia que propõe a intervenção sobre as áreas de baixa renda, a partir da interpretação das práticas tradicionais de abrigo, desenvolvidas ao longo dos séculos, nas formas que a moradia assume nas diferentes culturas e que são tomadas como evidências empíricas para o apoio de suas análises.

Discutindo especificamente a questão da habitação social na América Latina, Salingaros, considera que o espaço de sucesso é aquele capaz de garantir aos residentes, bem-estar físico e emocional e propõe um back-ground científico e filosófico para a elaboração teórica sobre a habitação social. A construção é tomada como um processo que, quando e se, controlado pela população moradora (a participação dos moradores no processo é determinante, ou os moradores “não irão amar o lugar”) e desenvolvida a partir do entendimento da complexidade tanto da forma urbana como das relações sociais, é capaz de gerar determinações físicas ricas e complementares, incorporadas à complexidade social.

Essa ‘dialética’ da complexidade sócio-espacial é identificada pelo autor nos assentamentos auto-produzidos, compostos de redes sociais complexas que requerem uma morfologia complexa, não mono-funcional, não desconectada do resto da cidade,

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mas capaz de garantir o “mix” social, a qualidade e a sustentabilidade urbana. Nestes assentamentos, contrariamente às formas rígidas e inumanas, de terríveis impactos ambientais, desenvolvidas por programas estatais, com soluções formais do desenho modernista monótono e repetitivo, com áreas específicas e imensas, designadas exclusivamente para a moradia dos pobres, há espaços “vivos”. O autor defende que na organização espacial das áreas das populações de baixa renda, produzidas autonomamente, a geometria e a qualidade da superfície auxiliam na conexão emocional, onde forma e padrão desempenham o papel de criar a conexão. Com este entendimento e o auxílio dos princípios da biofilia, o autor propõe o desenvolvimento de estruturas orgânicas, que estabeleçam uma relação complexa com os padrões organizacionais de seus moradores.

O processo de urbanização na América Latina, implementado a partir dos anos 50 com a massiva migração do meio rural para as cidades criou, ao mesmo tempo, algumas das grandes metrópoles mundiais e os mais representativos assentamentos informais do planeta que continuam a desafiar os governos, os arquitetos e urbanistas e a sociedade em geral diante do desafio de encontrar-se uma solução para o problema da degradação do ambiente urbano e da crescente deterioração das condições de moradia de uma ampla parcela de sua população.

Ao longo desse período significativas soluções urbanas e arquitetônicas orientadas pelo movimento modernistas foram produzidas na região e alcançaram níveis de qualidade internacional. Ao mesmo tempo, as soluções dos especialistas para o problema da habitação dos pobres no meio urbano produziram resultados qualitativamente desastrosos e quantitativamente irrelevantes, não sustentáveis desde o ponto-de-vista ambiental, econômico e social.

O fracasso das políticas de habitação para os pobres no meio urbano pode ser atribuído a diversas razões, dentre as quais se destacam o caráter formalista adotado nas soluções tradicionais dos arquitetos e urbanistas, uma determinada visão de poder e da ordem espacial dentro de um paradigma mecanicista dos processos no meio urbano. Desse modo, a estruturação do aparato do Estado para regular e disciplinar as soluções urbanísticas, com seus códigos cada vez mais abrangentes e rígidos, encontra nas instituições formadoras dos arquitetos e urbanistas, os mecanismos de reprodução de um modo de pensar formal incapaz de apresentar soluções viáveis para os problemas concretos da cidade contemporânea latino-americana.

Adotando uma visão orgânica da cidade e utilizando uma metodologia de trabalho baseada em evidências — que revê as melhores práticas acumuladas ao longo do

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processo de desenvolvimento das cidades, através dos séculos — os autores, liderados pela perspectiva adotada por Salingaros, desenvolvem uma metodologia aplicável aos projetos de habitação social, que representa uma proposta inovadora aos desafios colocados pela necessidade de prover habitação para os pobres no meio urbano.

Ao invés de propor a aplicação de uma imagem idealizada através de um projeto urbano e de habitação tradicional, os autores propõem explicitar os elementos, as etapas e fases de um processo, através do qual, na medida do seu desenvolvimento, o espaço urbano e da habitação vão sendo definidos. Apresentam de um lado, regras práticas para a construção da habitação social e, de outro, uma análise filosófica e científica sobre os processos sociais e culturais envolvidos na produção do espaço.

À prática do planejamento urbano, desenvolvida pelo movimento modernista, com sua visão mecanicista e formal (com seus modelos de planejamento e gestão baseados na idéia de comando e controle, hierarquizados e centralizados) e com princípios abstratos aplicáveis a todas as situações, os autores respondem com uma visão orgânica em que a complexidade do urbano é analisada enquanto relação entre a complexidade da forma espacial e a complexidade do processo social, cabendo ao planejador gerenciar essa complexidade, canalizando a energia das pessoas e ajudando no desenvolvimento dessa complexidade emergente.

No contexto das idéias herdadas do movimento modernista — ainda dominantes — as favelas representam uma solução espacial inapropriada, que deve ser removida tão logo quanto possível. Segundo os autores, contudo, o desenvolvimento orgânico do espaço das favelas resulta de um processo de auto-organização que, apesar de todas as graves deficiências, representa uma solução econômica e social bastante eficiente da qual pode-se aprender muitas lições sobre o urbanismo, como ideologia e sobre o espaço, como expressão do poder.

Na solução do problema da habitação social, os autores propõem o estabelecimento de tecidos urbanos complexos, garantindo a acessibilidade e a integração das áreas das favelas com os espaços de usos múltiplos, integrando todos os habitantes independentemente da sua condição social e demográfica, de tal maneira que a solução da habitação social encaminhe o processo mais geral da criação de uma cidade baseada em redes saudáveis.

Para além da forma física, é apresentado um conjunto de idéias que vinculam a produção da habitação social ao mundo da percepção, da representação e dos valores dos seus habitantes, ao que evidenciam a necessidade do conhecimento de como o ser

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humano é afetado pelo seu ambiente, em termos dos elementos físicos, artificiais e naturais, que o compõe. Através da análise dos padrões de relacionamento dos habitantes com o meio, um conjunto de conceitos-chave, que vão do psicológico ao sagrado, propõe uma dimensão nova do processo de produção da habitação, para mais além do material, alcançando o nível do simbólico, através da constituição de espaços urbanos de encontro e de identidade social e cultural.

Para a estruturação do espaço, a metodologia de Christopher Alexander é abordada, buscando a construção de um tecido urbano saudável, definindo os passos de implantação dos elementos físicos de modo a garantir um tecido urbano vivo. Ao invés do tradicional projeto desenvolvido em escritório, é proposto um processo de implantação, direto no terreno, dos elementos principais: rotas de circulação, espaços públicos, vias secundárias, espaços para os pedestres, implantação dos prédios e suas conexões, a partir dos quais os próprios habitantes constroem as suas habitações, onde o uso de padrões e códigos geradores apresenta a vantagem de incorporar soluções já adotadas em outros casos e baseadas em evidências, com base em conhecimento científico.

A longo do texto é descrito, de forma detalhada, os passos a serem adotados, passando pela estratégia de construção e de layout, bem como de sugestões práticas para o funcionamento dos projetos, incluindo o papel do arquiteto, os tipos de materiais a serem empregados, as formas de financiamento e de manutenção das habitações. Ademais, é discutido um elenco de problemas a serem resolvidos, dos quais destaca-se a melhoria sanitária das favelas, os problemas da especulação imobiliária e o preço da terra. Por fim, é discutida a visão que os próprios moradores da favela têm sobre o modelo ideal de habitação — “escapar da pobreza, na mente de um morador a favela significa escapar da geometria da favela” — pode conflitar com as soluções propostas restando ao arquiteto a solução de um problema que combina as aspirações de curto prazo com as exigências de longo prazo, sempre na busca da arquitetura que toque às emoções.

É desta forma que o urbanista Salingaros, e seu grupo, nos auxilia a pensar soluções que contemplam a complexidade espacial e social que constitui os assentamentos dos pobres urbanos. É uma forma de conhecimento que tem como objetivo ajudar o desenho de uma maneira estruturada, para obter uma forma de sucesso e geradora de bem-estar. Não é um caminho livre de conflitos ou de dificuldades, mas é um percurso possível para a preservação da qualidade do espaço urbano.

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Nikos Salingaros, físico e matemático, pesquisador e professor da Universidade do Texas, USA, é o mais próximo colaborador de Christopher Alexander, com quem trabalha sobre a problemática urbana e da habitação, desde os anos 1980. Na companhia de outros autores (latinos, europeus e americanos, dentre os quais Andrés M. Duany, cubano, pesquisador da moradia de baixa renda naquele país; David Brain e Michael W. Mehaffy americanos e Ernesto Philibert-Petit, mexicano) compõe o ESRG — Environmental Structure Research Group, na pesquisa da habitação. Sua teoria, baseada nas estruturas das redes complexas, explicativas das cidades, das relações espaciais e das relações sociais coloca que a complexidade morfológica incorporada à complexidade social, diferentemente dos espaços rígidos e geometrizados da arquitetura modernista, é capaz de agregar qualidade à vida das populações e auxiliar no resgate do espaço de sucesso: aquele que garante bem-estar físico e emocional aos moradores, sendo, portanto, o tipo de arquitetura que deve ser buscada.

Lívia Salomão-Piccinini, arquiteta e urbanista, está na faculdade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil.

Habitação social na América Latina: uma metodologia para utilizar processos de auto-

organização.

Resumo: Nós oferecemos aqui um conjunto das melhores práticas para a habitação social, baseadas em evidências, que são aplicáveis em situações gerais. Exemplos variados são discutidos para o contexto latino-americano. Soluções adaptáveis que agem buscando uma sustentabilidade duradoura e ajudam os residentes a vincularem-se ao seu (novo) ambiente construído. Buscamos novos insights nas ciências complexas e, em particular, no trabalho de Christopher Alexander, sobre como desenvolver a forma urbana com sucesso. Aplicando as ferramentas conceituais do “Linguagem de Padrões” e “Códigos Geradores” estes princípios apóiam soluções prévias, derivadas por outros, que nunca foram levadas adiante de uma forma viável. Novas metodologias apresentadas aqui oferecem uma alternativa promissora ao fracasso das tipologias padrão da

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habitação social promovidas pelos governos em todo o mundo e que se provaram desumanizadas e, por fim, insustentáveis.

SEÇÕES 1-4: BACKGROUND E CRÍTICAS

1. Introdução.

Este paper resgata promissoras novas soluções para o futura do habitação social.Ele foi preparado na forma de um amplo relatório, por um de seus autores, (Nikos Salíngaros — NAS) para o Brasil e é aplicável de uma maneira geral para toda a América Latina. Um de nós (Andrés M. Duany — AMD), está projetando habitação social na Jamaica e no Caribe, e dois outros autores (AMD e Michael W. Mehaffy — MWM) estão diretamente envolvidos com a reconstrução após a devastação feita pelo furacão Katrina no sul dos Estados Unidos, o que significa enfrentar realidades similares, embora não idênticas. Outro autor (Ernesto Philibert-Petit — EPP), tem pesquisado conexões para pedestres no tecido urbano e está envolvido em promover soluções habitacionais através de programas governamentais, em grande escala, no México. O último autor (David Brain — DB), vem há muito tempo estudando a influência da forma urbana no bem-estar e na sustentabilidade da comunidade, um fator crucial na nossa discussão.

O desafio da habitação social é o maior componente do crescimento urbano no mundo e nós desejamos apresentar aqui uma ampla metodologia para melhorar, radicalmente, o seu desempenho. O sucesso será medido em termos humanos, isto é, o bem-estar físico e emocional do residente. Nós consideramos um projeto de sucesso se ele é mantido e amado pelos seus residentes e também se o tecido urbano se junta ao resto da cidade de uma maneira saudável e interativa. Por outro lado, nós consideramos como não tendo sucesso (e, portanto, não sendo sustentável) um projeto que é odiado por seus residentes, por um número de diferentes razões, que dissipa e não preserva recursos desde o início da construção, que contribui para a degradação social, que isola os residentes e que se deteriora em um curto período de tempo.

A essência da abordagem apresentada aqui é a de aplicar um PROCESSO ao invés de uma IMAGEM específica do projeto e do edifício.A maneira como isto tem sido feito no passado recente é o de construir de acordo com uma imagem preparada daquilo que

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os prédios deveriam ser e de como eles deveriam posicionar-se. Na nossa proposta, em contraste, no início não existe imagem do projeto: ela emerge do processo em si e fica claro somente quando tudo está terminado.

Nós podemos nos mover através de uma solução mais completa e satisfatória baseados no trabalho de Christopher Alexander — um entre os vários pioneiros que propuseram que o tecido urbano deveria seguir um paradigma orgânico — e podemos incluir trabalho teórico e prático que por várias razões não são amplamente aplicados. O que nós oferecemos é apoiado pelas evidências de muitos exemplos da prática tradicional através dos séculos.Os governos, ao invés disso, escolhem impor esquemas e tipologias que em última instância geram hostilidade, por parte dos próprios ocupantes, em relação ao tecido da habitação social. Nós iremos analisar as razões desta hostilidade com o objetivo de evitá-la no futuro. As relativamente simples soluções apresentadas aqui são genéricas. Desta maneira, embora ajustadas para a América Latina, elas podem ser adotadas pelo resto do mundo com modificações mínimas. Este estudo resume idéias que são genéricas o suficiente para ser aplicadas a países onde as condições locais para a produção da habitação podem ser muito diferentes.

Nós podemos aprender através das abordagens inovadoras em habitação promovidas por governos ou desenvolvidas por grupos independentes, em diferentes ambientes e condições.Usando nosso critério de bem-estar físico e emocional dos residentes, a análise de uma série de projetos, construídos ao longo de várias décadas, mostram que muito poucos podem ser julgados como realmente de sucesso. Estas (poucas) soluções excelentes tendem a ser negligenciadas porque elas falham em satisfazer certas propriedades icônicas (que nós discutiremos mais tarde neste paper). Talvez, e surpreendentemente, nós resgataremos tipologias de sucesso desenvolvidas para comunidades de alta renda.

Este paper combina duas abordagens mutuamente complementares (e irá contrastá-las com métodos existentes).Por um lado, vamos dar algumas regras práticas explícitas para construir a habitação social. Qualquer grupo ou organização que deseje começar imediatamente pode implementá-las — com as apropriadas modificações locais — nos seus projetos específicos. Por outro lado, nós iremos apresentar um background geral, filosófico e científico, para a habitação social e suas implicações culturais. O objetivo deste material teórico é “dar permissão” para os argumentos do senso comum, criando condições que irão, de maneira segura, apoiar o que, na verdade, acontece naturalmente. As pessoas, agindo como agentes locais inteligentes, podem, então,

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aplicar métodos que emergiram durante milênios de construção da própria casa pelos próprios moradores, com desempenho de sucesso, como parte da produção de comunidades saudáveis construídas pelos residentes.

Esta metodologia reconhece e incorpora os atributos dos mais robustos assentamentos humanos através da história, utilizando a abordagem “gerenciando-a-complexidade” ao invés da abordagem linear “de-cima-para-baixo”. Nós propomos canalizar o talento para o desenho e a energia para construir das pessoas, agindo como agentes locais, dentro de um sistema que nós gerenciamos somente para ajudar a gerar e a guiar a sua complexidade emergente. Neste tipo de abordagem, são permitidos que se desenvolvam os processos do tipo “de-cima-para-baixo” de maneira orgânica, embora com restrições baseadas em experiências anteriores. Por outro lado, intervenções “de-cima-para-baixo” devem ser feitas experimental e cuidadosamente (isto é, com feedback), permitindo mais interação com processos “de-baixo-para-cima” de escalas menores.

Nossa proposta vai além da habitação que é apenas literalmente construída pelos moradores, no sentido de que o morador é o que bate o prego e faz o concreto. É importante que eles experenciem o processo de desenho e construção como SEU processo. Trata-se de estabelecer conexões e engajamento. O ponto chave é o processo que comporte real engajamento, que seja ágil o suficiente para responder a processos adaptativos e que possa se engajar sem ser dirigido pela dinâmica social da desigualdade em infelizes direções. Ainda mais importante: o processo pode tirar vantagem tanto da tecnologia como da experiência. Nós estamos propondo algo mais do que deixar o pobre defender-se por si mesmo — nós desejamos empoderá-los com as últimas ferramentas da tecnologia e com entendimento altamente sofisticado da forma urbana.

Como muitos autores descreveram anteriormente, (tais como Alexander et. al. (1977), Jacobs (1961), Turner (1976)) a prática de planejamento estabelecida vem tendendo a seguir um ultrapassado modelo industrial, aquele modelo que surgiu em 1920 e que foi amplamente adotado no período que seguiu a Segunda Guerra Mundial, baseado em um modelo hierárquico, paradigmático de comando e controle de cima para baixo, que levou ao planejamento do tipo “predizer-e-prover”. As pesquisas demonstram amplamente que este modelo não reflete suficientemente o tipo de problema científico que a cidade coloca, pois ele ignora a tremenda complexidade física e social de um tecido urbano de sucesso. De uma maneira inacreditável ele nem mesmo considera as interações humanas no ambiente construído. Os fracassos e as conseqüências não esperadas são bem documentados. Assim como a ciência desenvolve ferramentas de

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pesquisa mais acuradas e de menor grão para o estudo analítico do fenômeno de auto-organização (que inclui as cidades), é também necessário agora propor um novo urbanismo radical. Nós desejamos empoderar as pessoas com a autoridade de uma nova metodologia, que seja baseada na pesquisa urbana recente.

O problema não é apenas a falta de complexidade física. A chave que faz o espaço urbano é, na verdade, a relação entre a complexidade da forma espacial e a complexidade do processo social. Se fosse apenas uma questão de complexidade física se poderia imaginar que um processo de cima para baixo poderia ser criado para simular a complexidade — digamos, um algoritmo computacional. O ponto crucial é que a complexidade incorpora e expressa a vida social. Ela é, em certos aspectos as relações sociais por outros meios (por exemplo, artefatos e espaços construídos). Em certa medida, a resposta começa por re-conceber o ambiente construído, ele próprio como um processo social, não somente como um produto ou um contenedor. Esta questão se tornará importante mais tarde, quando nós falarmos sobre manutenção, pois o caráter processual deste tipo de posse meramente começa quando os residentes se mudam.

Este paper é muito complexo e trata de muitas questões, então precisamos mapear as formas de sua exposição. As primeiras quatro seções colocam o background e criticam as práticas correntes. A seção 2 introduz a competição entre os assentamentos feitos pelos próprios moradores e a habitação social produzida pelos governos. A seção 3 faz uma revisão dos programas de habitação social em suas práticas-padrão e tipologias do tipo “de-cima-para-baixo” e recomenda a sua substituição (ou no mínimo complementá-las) com os procedimentos “de-baixo-para-cima”. A seção 4 assinala como uma “geometria de controle” arruína mesmo o mais bem intencionado dos esquemas, por fazê-los inumanos.

As próximas seis seções oferecem ferramentas específicas para desenho. A seção 5 discute os mecanismos para o estabelecimento de conexões emocionais com o ambiente construído, onde a biofilia, ou a necessidade de conectar-se com a vida das plantas é um componente crucial. Nós também discutimos os espaços sagrados e seu papel no estabelecimento da comunidade. A seção 6 revê o trabalho de Christopher Alexander, em especial seu trabalho recente em códigos geradores. A seção 7 argumenta contra a abordagem de um plano diretor fixo, sugerindo um processo de planejamento interativo, que permita a retro-alimentação. A seção 8 revê os padrões Alexandrinos e analisa a transição dos mesmos para os códigos geradores. A seção 9 apresenta, nos termos mais amplos possíveis, nossa metodologia para planejar um

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assentamento. Sugerimos que se peça licença para construir para um processo, ao invés de licença para um desenho em um papel. A seção 10 contém um conjunto explícito de códigos descrevendo o esqueleto de serviços em um projeto de habitação social. A seção 11 introduz as ferramentas complementares de desenho descrevendo os códigos geradores necessários para este tipo de projeto.

As próximas quatro seções continuam com sugestões práticas para fazer os projetos funcionarem. A seção 12 sugere a indicação de um gerente de projeto para dirigir a aplicação dos códigos geradores. A seção 13 defende o uso de materiais apropriados: baratos, mas permanentes, duráveis mas flexíveis para serem modelados, sólidos mas agradáveis ao toque e à vista. Discute-se também o uso de módulos industriais tais como “caixa hidráulica”. A seção 14 traz o tópico de como financiar um projeto, recomendando o envolvimento de organizações não governamentais com foco em escalas pequenas. A seção 15 é política, investigando como se pode cooperar da melhor maneira com o sistema existente criado para produzir habitações sociais que seguem tipologias industriais muito diferentes. A seção 16 oferece estratégias que levam os residentes a manter seus assentamentos depois que ele são construídos.

As quatro seções finais identificam alguns dos problemas. A seção 17 enfrenta o difícil problema de re-urbanizar a favela para fazer dela uma parte aceitável do tecido urbano. Algumas vezes isto não pode ser feito. Nós discutimos uma estratégia de reforço para quando isto for factível. A seção 18 analisa algumas dificuldades no entendimento da vida de um morador informal como, por exemplo, a sua necessidade econômica de estar próximo ao centro. Isso faz com que a habitação social construída nos arrabaldes afastados da cidade, seja pouco atraente. Nós também chamamos a atenção para os grandes esquemas que podem se tornar em desastres econômicos. A seção 19 culpa os arquitetos por imporem formas modernistas nas habitações sociais. Aquela geometria as faz hostis aos residentes. A seção 20 culpa os residentes por rejeitarem tipologias urbanas e de habitação adaptáveis, desejando as estéreis imagens do modernismo. A seção 21 revê como as condições são diferentes, hoje, das décadas passadas e demonstra otimismo ante a ampla aceitação da habitação adaptável.

O Anexo contém uma explícita seqüência geradora para habitação social numa área de campo ou numa antiga área industrial aberta.

2. A analogia do eco-sistema.

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Aqui está uma incompatibilidade básica: o tecido urbano orgânico é uma extensão da biologia humana, enquanto a construção planejada é uma visão artificial do mundo imposta pela mente humana sobre a natureza. O primeiro é cheio de vida, mas pode ser pobre e insalubre, enquanto o último é limpo e eficiente, mas estéril. Uma destas duas morfologias urbanas contrastantes pode ganhar sobre a outra, ou elas podem, juntas, alcançar algum tipo de equilíbrio de coexistência (como tem ocorrido na maior parte da América Latina). No movimento de auto-construção os governos aceitam que os moradores irão construir suas próprias casas e provê os materiais e treinamento para ajudar a estabelecer as redes de eletricidade, água e esgotos.

A “habitação social” é usualmente entendida como um projeto para os pobres, construída e financiada pelos governos ou organizações não governamentais. Os ocupantes poderiam comprar suas unidades, mas a prática comum é alugá-las a preços baixos, subsidiados, ou mesmo, prover as moradias gratuitamente. Nessa última situação, os residentes vivem ali por cortesia (e, são sujeitos a variados níveis de controle) da entidade proprietária. Um “assentamento invadido”, por outro lado, é um loteamento auto-construído em terra que não é de propriedade dos residentes, e que é freqüentemente, ocupada sem permissão. Como as invasões são ilegais, os governos geralmente recusam-se a prover os serviços existentes nas terras dos lotes individuais comprados legalmente. Na maioria dos casos recusa-se também a conectar aqueles residentes à rede de serviços (eletricidade, água e esgotos) do resto da cidade. Como resultado, as condições de vida nestes locais são as piores entre os assentamentos em tempos de paz.

Habitações sociais e invasões são as regiões onde vivem mais de um bilhão dos mais pobres habitantes do mundo. Nós iremos discutir esses dois fenômenos urbanos, lado a lado, e nos oferecer para resolver a competição ideológica e espacial entre os dois. Para começar, moradia para os pobres representam o nível mais baixo do eco-sistema urbano mundial. Diferentes forças, dentro da sociedade humana geram ambos os tipos de sistemas urbanos: a habitação social financiada pelos governos e os assentamentos invadidos. Christopher Alexander (2005), Hassan Fathy (1973), N. J. Habraken (1972), John F. C. Turner (1976) e outros reconheceram esta competição antes de nós e propuseram uma acomodação entre os dois sistemas. Turner auxiliou a construir vários projetos no Peru e no México, e aconselhou a implementação dessas idéias no mundo inteiro.

A analogia do eco-sistema também explica, e em uma certa medida justifica, a vigilância com a qual os governos impedem os invasores de ocuparem o resto da cidade.

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Se não são refreados pela lei e por intervenção direta, as ocupações avançam sobre as terras públicas e privadas. Nós estamos descrevendo uma competição entre grupos pelo mesmo espaço disponível. Cada grupo (tipologia urbana) quer deslocar todos os outros. Os assentamentos invadidos querem tomar a cidade inteira se lhe for permitido (por exemplo, no Cairo, eles tomaram as coberturas planas dos prédios comerciais; nos Estados Unidos constroem abrigos temporários em parques e sob viadutos). O governo, por seu lado, gostaria de fazer desaparecer todas as invasões. Os governos, ao redor do mundo, assumem que eles devem construir moradias planejadas para substituir as casas construídas pelos próprios moradores. Isso é muito caro para ser factível.

Assim como qualquer outro verdadeiramente sistema orgânico, as cidades funcionam melhor sem um controle central. No entanto, acomodar a competição de sistemas urbanos nunca foi uma prática-padrão. Embora as idéias básicas sobre assentamentos tradicionais estivessem certos, muitos elementos chave para compreendê-los estavam faltando. Nós estamos agora oferecendo conhecimento e experiência em habitação como um processo DINÂMICO (combinando linguagem de padrões com códigos geradores: veja as seções seguintes). São necessárias intervenções partindo do zero, para os novos projetos de habitação. O mesmo processo dinâmico pode também ser aplicado a ambientes já construídos, quando buscando adaptar um grande número de projetos habitacionais informais não planejados (favelas ou outros) a um nível aceitável de condições de vida.

A competição ocorre entre todos os estratos econômicos (“espécies”) que ou usam a terra urbana ou têm lucros com ela. Nas cidades da América Latina, a especulação da terra urbana deixa uma grande quantidade de terra urbanizada, com todos os serviços, vazia. As populações mais pobres têm então, que encontrar lotes na periferia, e pagar preços mais altos para água e outros serviços sem ter o benefício de viver perto de suas fontes principais de renda: o centro da cidade. Isso cria um grave problema para os governos, mas ao invés de caracterizar essa prática como injusta ou errada (o que não leva a nenhuma mudança) preferimos mostrar os imensos custos cumulativos gerados para o futuro.

De todas as certezas sobre a habitação social que foram tentadas ao longo dos anos, tem sido aceito amplamente (com algumas poucas exceções) que a favela não planejada e construída pelo próprio morador é vergonhosa para o governo e que deve ser demolida tão cedo quanto seja possível. Mas mesmo esta afirmação é errada. Muito poucos em uma posição de autoridade para decidir, parecem considerar as vantagens

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econômicas da existência das favelas. Os padrões geométricos das construções, dos lotes e das ruas desenvolveram-se na maior parte (emergiram), organicamente, e nós iremos argumentar que esta auto-organização comporta um grande número de conformações que são desejáveis. Mesmo com todas as suas graves deficiências, as favelas oferecem uma demonstração instrutiva espontânea de um processo econômico, rápido e eficiente de abrigar pessoas.

As desvantagens das favelas não são inerentes ao sistema urbano. A sua geometria orgânica é perfeitamente boa, no entanto, é precisamente este aspecto que é veementemente rejeitado. Ele não se adapta à estereotipada (e cientificamente fora de moda) imagem daquilo com que um tecido urbano progressivo deveria se parecer — organizado, uniforme, retangular, modular e estéril. A geometria orgânica da favela está ligada ao ato ilegal de invadir e com a falta de lei generalizada. A geometria representa, ela mesma, “uma inimiga do progresso” para uma administração. Nós não podemos construir tecidos urbanos vivos (ou salvar porções existentes) até que esse preconceito seja abandonado. As favelas tem um mecanismo de auto-cura que é ausente na maioria dos esquemas de habitação social desenvolvidos de cima para baixo. O crescimento orgânico também repara o tecido urbano em um processo natural, o que é uma coisa inteiramente ausente dos projetos geometricamente rígidos de habitação.

Ironicamente, a geometria orgânica de uma favela está em conflito com os imperativos da direita ou da esquerda do estado moderno, dado seu interesse em responder às questões sociais de uma maneira que é apropriadamente controlada. Uma parte deste interesse no controle tem relação com um interesse literal em um tipo de ordem administrativa que é amarrada ao controle social. No entanto, muito disso pode refletir a necessidade do Estado em legitimar suas intervenções demonstrando sua racionalidade ou a necessidade de manter os rituais burocráticos da responsabilidade quando distribuindo os recursos públicos, ou ainda, seu respeito pelas convenções da propriedade privada. Pode ser também uma sincera preocupação reformista de elevar os padrões de vida dos pobres de uma maneira que é tanto eficiente como justa em termos de procedimentos e motivada por princípios democráticos.

Uma geometria ordenada dá uma impressão de controle investido na entidade que constrói. Se isso é intencional (para expor a autoridade do estado) ou subconsciente (copiando imagens dos livros de arquitetura), tanto os governos quanto as organizações não-governamentais preferem ver uma expressão de sua própria “racionalidade” através da construção. Sair deste conjunto de tipologias é sentido como um relaxamento da

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autoridade; ou isto levanta possíveis questões relativas à legitimidade da distribuição de recursos que não sejam sujeitos a cuidadosos responsáveis procedimentos burocráticos.

Ambas as situações são evitadas porque elas tendem a desgastar a autoridade do estado, particularmente sob regimes onde os direitos da propriedade privada são uma parte importante dos sistemas legal e regulatório. Assentamentos invadidos com complexa morfologia são usualmente completamente fora do controle do governo. Uma maneira de afirmar o poder é deslocar os residentes para habitações construídas pelo governo. Em uma triste e catastrófica confirmação de nossas idéias, vários governos na África, periodicamente destroem as moradias construídas pelos moradores, levando seus moradores para viver fora das cidades em locais sem nenhuma construção ou serviço.

3. Os anti-padrões da habitação social.

Vamos resumir algumas das crenças e tipologias correntes que guiam a habitação social hoje, de tal maneira que possamos substituí-las por um quadro de referência inteiramente diferente. Nós vamos sugerir as soluções que nós sentimos que funcionaram melhor, como as mais “iluminadas” alternativas. Muito da nossa crítica foca-se no controle de-cima-para-baixo. Esta abordagem leva a simplificações do processo de planejamento. No entanto não se pode projetar e construir um tecido urbano complexo usando ferramentas de-cima-para-baixo. Há ainda mais a criticar sobre as imagens específicas que as pessoas têm da modernidade, o que preocupa tanto arquitetos que carregam consigo um conjunto falso de imagens desejáveis, quanto preocupa os residentes, que invariavelmente são influenciados por estas mesmas imagens, através da mídia.

1. Os projetos para as habitações sociais são concebidos como e construídos como dormitórios, e desta forma seguem uma filosofia de planejamento militar / industrial: são construídas o maior número possível de unidades, da maneira mais barata e eficiente possível. Nós deveríamos abandonar este hábito e construir, ao invés disso, espaços urbanos. Construir um espaço urbano é uma responsabilidade muito mais séria e que requer um comprometimento mais complexo, para além do pequeno círculo dos fazedores de política e das elites profissionais.

2. Para desenvolver um projeto habitacional da maneira mais eficiente possível, a entidade que o dirige quer ter o máximo controle sobre a geometria do processo

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construtivo. Este requerimento prático significa que a participação do usuário é excluída.

3. O próprio nome “habitação social” implica que somente um dormitório é construído, e não um espaço urbano. Após a Segunda Guerra Mundial, o zoneamento mono-funcional tornou-se o critério estabelecido pelo qual eram realizadas as intervenções governamentais. Estas idéias já existiam antes da Guerra, mas a reconstrução e a expansão do pós-guerra criaram as condições para aplicá-las em uma escala muito maior.

4. A tipologia de construção industrial relega as plantas e os ambiente natural a um papel puramente decorativo, ou os elimina completamente. No entanto, a saúde humana só é possível se estivermos em conexão com as plantas e a natureza, em nosso entorno imediato: é a “Hipótese da Biofilia”.

5. Um espaço urbano é constituído de uma complexa rede de relações sociais e requer a apropriada morfologia urbana de uma rede. Ela nunca é mono-funcional, nem é homogênea. Ela não pode ser construída pelo governo central, de maneira convencional, de cima para baixo. As vilas individuais (os pueblos da América Latina) que têm se desenvolvido por mais de 500 anos, e possuem uma rica herança, proveniente da mistura de muitas culturas que vem de um longínquo passado como, por exemplo, as culturas Tolteca, Maya, Inca, Caribenha e as culturas mais recentes espanhola, portuguesa, africana, islâmica e outras tantas que também foram incorporadas. Há muitas lições a serem aprendidas a partir dessa evolução.

6. Um projeto de habitação social convencional raramente está interessado pela acessibilidade à rede social urbana, pois é normalmente construído em áreas desconectadas (muitas vezes áreas rurais). Na maioria das vezes a coisa toda é entendida como uma questão de “casa”, com as medidas de sucesso sendo tipicamente as relativas ao número de “unidades” e do impacto imediato nos indivíduos, ao invés da qualidade (ou sustentabilidade) da vida comunitária que resulta.

7. A localização típica dos projetos de habitação social nas áreas rurais tem a ver com uma poderosa razão econômica: os proprietários de terra arrumaram uma maneira de mudar o uso do solo e conseguiram, para eles mesmos, um extraordinário lucro. Isto é parte da expansão orientada de nossas cidades. Além disso, o projeto, o governo e os usuários raramente se beneficiam de alguma forma deste lucro.

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8. Um projeto típico de habitação social, concebido como uma “ilha urbana” desconectada tem um impacto terrível no ambiente natural. Ele é desconectado dos ciclo econômico global e local.

9. A geometria de um projeto de habitação social, e a configuração das suas unidades constituintes, oferecem a chance para muito poucas ou mesmo nenhuma forma de desenvolvimento futuro. Eles apresentam um número de obstáculos geométricos para sua evolução ao longo do tempo. Estes impedimentos frustram as esperanças dos habitantes e suprimem suas perspectivas de desenvolvimento social e econômico.

10. Arquitetos, representantes dos governos e os futuros residentes, todos eles, carregam em suas mentes uma “imagem de modernidade”. Este conjunto de imagens entranhadas gera uma tipologia construtiva que é hostil para o uso corrente e apresenta um dos maiores obstáculos para uma habitação social adaptativa.

Os governos ainda estão intransigentes em suas idéias de que a habitação social cria trabalho numa área particular. A realidade é diferente: espaços urbanos saudáveis conectam-se com conglomerados e as pessoas trabalham onde elas conseguem encontrar trabalho. Em contraste, regiões urbanas que não são saudáveis são também isoladas, desconectando as pessoas umas das outras e das oportunidades de emprego. Apesar das forças sociais e econômicas que levam ao isolamento, nosso objetivo não é codificar esse isolamento nos prédios e na forma urbana. Fazer isso é reforçar o problema. Nós devemos, ao invés disso, usar a geometria urbana para impedir o isolamento social.

A lista de tipologias e práticas, acima, leva à criação de projetos habitacionais não saudáveis, que criam condições sociais insustentáveis. Para adquirir uma abordagem mais adaptativa, estas tipologias precisam ser revertidas, e as forças que nos levam a cometer os mesmos erros várias vezes seguidas devem ser redirecionadas. Alguns erros surgem simplesmente por inércia: copiando as fracassadas soluções porque se tornou um hábito fazer isso, sem identificar as alternativas viáveis. Esses erros são muito fáceis de ser corrigidos, desde que a situação seja melhor entendida. Há outra classe de erros, no entanto, que surgem porque as mesmas forças levam a manifestações similares nas aplicações práticas. Estas condições não podem ser mudadas, e, ao invés disto devem ser redirecionadas. A falha em entender as diferenças entre os dois problemas significa que nós não iremos nunca ser capazes de melhorar a situação atual.

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Um princípio fica claro: não há nenhum sentido em projetar “habitação social” da maneira em que isso tem sido feito. Nós devemos projetar e construir tecidos urbanos complexos e com usos mistos, e garantir que eles adaptem-se aos tecidos complexos e de usos mistos já existentes. A habitação social e a habitação em geral precisam ser parte de um processo saudável (e socialmente inclusivo) de urbanismo. A própria noção de habitação mono-funcional é obsoleta e desacreditada, porque ela nunca funcionou com a intenção de conectar os residentes ao seu ambiente. Todas as medidas de planejamento que nós rejeitamos - originalmente bem intencionadas — foram adotadas como um meio para melhorar a eficiência para enfrentar os sérios desafios urbanos.

As principais razões pelas quais elas falharam, no entanto, nunca foram admitidas oficialmente. Como resultado, tem havido uma tendência do debate em focar nos problemas do projeto da habitação social, enquanto construção: como se fosse meramente uma questão de aparecer uma melhor proposta de projeto para ser imposta com mais ou menos os mesmos aparatos de controle de-cima-para-baixo. Hoje em dia, a idéia de um bom projeto, para um arquiteto, é normalmente um desenho opressivo e impessoal para os usuários. Algumas iniciativas de habitação social nos EUA (como, por exemplo, o projeto HOPE 4), têm feito um esforço para incorporar a participação dos residentes nos projetos, mas de maneira superficial e com sucesso relativo. Nosso ponto chave é que o processo de produzir espaços vivos que incorporem a habitação social tem que ser mudado em suas raízes. Ele deve acomodar um comprometimento mais fundamental e significativo, assentando a geração da forma urbana em um processo que respeite, de maneira adequada, a complexidade organizada que é distintiva da natureza da cidade.

Há a necessidade de misturar classes sociais para um tecido social mais saudável. A mistura pode ocorrer naturalmente através de processos de melhoramento. É importante que as pessoas que tem a possibilidade de escolher continuem na vizinhança. O espectro mais amplo de criar uma vila faria sentido em lugares como a América Latina, onde assentamentos inteiros, de população rural, criam favelas e invasões nas periferias das cidades. Neste contexto, não há outra possibilidade do que do que catalisar a geração de inteiros espaços urbanos construídos pelos residentes, com a nossa ajuda. De uma maneira geral deveríamos ter cautela ao construir espaços urbanos específicos para os pobres. Tecidos urbanos saudáveis não são mono-funcionais, nem contém apenas um nível de renda. Nós temos consciência da tremenda dificuldade social de encorajar habitação para população com renda mista, devido à percepção de que as pessoas não gostariam de morar com outras pessoas levemente

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mais pobres do que elas mesmas. No entanto, nós encontramos exemplos encorajadores de mistura social nas cidades históricas e centros históricos, por toda a América Latina. (o centro histórico de Querétaro é um bom exemplo). As diferenças estão na percepção da comunidade (que pode superar diferenças de renda) em relação a perceber a casa como estritamente moradia de caráter social produzida pelo governo para os pobres. Comunidades de rendas mistas não são apenas possíveis, como são mais resilientes.

Não se trata aqui apenas de uma questão de espaços urbanos separados, na periferia urbana. Como se pode criar um único processo gerador de padrões para estes espaços urbanos sem criar enclaves que se apartam dramaticamente do resto da cidade? Em outras palavras, como se pode planejar habitação de baixa renda sem criar “projetos”, bairros ou guetos? É fundamental para nós que este re-pensar a “habitação de social” tenha que ser um re-pensar da casa de todos — isto é, do urbanismo — de tal forma que a “habitação social” seja submetida a um processo mais geral de criar uma cidade de redes saudáveis (Salingaros, 2005). È da maior importância que as habitações se conectem com as redes globais da cidade: ruas principais, o sistema de transporte público, os sistemas políticos e sociais, etc.

Parte da atitude dos governos baseia-se em que a habitação social deve seguir um conjunto específico de políticas direcionadas a um específico problema e administradas para um sítio específico. Nós temos projetos de super quadras (que são desumanizadoras, mas fáceis de gerenciar) ou nós temos algo como o sistema de tickets da Seção 8, nos EUA, que subsidia os aluguéis para os moradores de baixa renda. Neste último caso, a habitação social se torna uma categoria abstrata — definida somente em termos das patologias dos indivíduos que precisam de assistência e dirigida na forma de pagamento aos proprietários. Neste caso, o sítio é uma categoria de indivíduos separados de suas conexões com a comunidade.

Tipicamente, os pobres têm uma extensa e complexa rede de relações sociais na qual eles se apóiam para sobreviver. Ao mesmo tempo, no entanto, o relativo isolamento dessas redes é um problema sério. Embora seja freqüente que elas sejam densamente conectadas num tipo de “sociedade de iguais” os pobres tendem a ter conexões limitadas fora desses círculos e são isolados em suas próprias vilas. Elas fecham-se em pequenas redes, mas não tem senso de si próprios como residentes de uma vizinhança. Eles tendem, também a desconfiar das pessoas de fora do grupo. Essencialmente, eles não têm capacidade de se identificar ou cuidar da sua vizinhança como ‘um grupo de vizinhos”. O problema de um ponto de vista das redes, é o de como reforçar o padrão

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tênue das amarrações de maneira que se possa incorporar as populações de baixa renda na vida cívica. Além do que, isso precisa ser feito sem interromper as fortes redes de assistência mútua nos quais estes sistemas se apóiam. A solução requer organizar estes networks locais em redes que funcionem em larga escala.

4. A geometria do controle.

O processo psicológico de controle influencia a forma urbana e o feitio da habitação social numa extensão extraordinária. O controle pode ser manifestado na geometria arquitetônica e também do layout urbano. Uma geometria rígida e mecânica dita o feitio dos edifícios individuais e dos espaços urbanos, enquanto a geometria dos seus layouts determina a relação entre os edifícios separados e a forma da rede de ruas. Há muitas oportunidades para expressar controle em termos urbanos e na arquitetura, e nós podemos encontrá-las em todas as habitações sociais construídas pelos governos.

Exemplos de estruturas urbanas geradas organicamente, de-baixo-para-cima, são encontradas ao longo de uma linha de tempo universal, começando com as primeiras cidades registradas no período Neolítico até os tempos modernos. A estrutura urbana fabricada, mecanicamente, de-cima-para-baixo, é encontrada em nossa linha de tempo desde que os padrões da colonização apareceram na história. Nós temos, então, modelos desta estrutura mecânica, datando dos períodos imperiais da Grécia, de Roma, ou da China, até hoje. No século XX, uma estrutura mecânica exacerbada foi imposta nas cidades através da cultura da máquina dos pensamentos e valores modernistas. Este último período tem sido decisivo em configurar a estrutura das cidades de hoje, e certamente vai dominar os próximos anos. Num futuro próximo, a fragmentação espacial pode se tornar na última conseqüência do passado recente. De maneira alternativa, nós poderemos entrar em um período quando o paradigma emergente das redes poderá ser sabiamente utilizado para conectar nossas estruturas e padrões espaciais novamente, e trabalhar contra a fragmentação.

Há uma clara e reconhecível “geometria do poder” (Alexander, 2005; Salingaros, 2006). Ela é expressa mais claramente na arquitetura militar e fascista da segunda Guerra Mundial (e bem antes dela), mas tem sido adotada por governos e instituições de todas as filiações políticas (das mais progressistas às mais repressivas). Estas construções são moldadas como exagerados blocos retangulares e posicionados em grades repetitivas retangulares estritas. Os altos blocos de apartamentos dão a impressão de controlar os seus ocupantes, que são forçados em uma tipologia militar /

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industrial que obviamente é o oposto da geometria livre da favela. Nós temos duas geometrias contrastantes: unidades habitacionais massivas em um ou mais blocos, ou as unidades espalhadas irregularmente. A impressão psicológica de controle segue a possibilidade REAL de controle, assim como a entrada de um edifício de apartamentos pode ser facilmente fechada pela polícia, algo que é impossível em uma disposição aleatória de casas individuais.

Os oficiais do governo e os promotores de terras têm esse mesmo ponto de vista sobre o controle e isso tende a eliminar qualquer outra abordagem. O governo local prefere ter melhor acesso a um sítio através de blocos de prédios regulares. Os administradores são enlouquecidos pela noção de que as simplísticas formas geométricas são as únicas tipologias que se pode usar para criar habitações eficientes. Qualquer administração pode construir muito mais unidades pequenas do que blocos de edifícios em altura, mas rigidamente fixados no solo, em uma quadrícula militar / industrial. Unidades de habitação individuais são cópias exatas de um único protótipo. O controle é exercido exatamente não permitindo variações individuais. Uma casa modular é repetida para cobrir uma região inteira, com cuidadosa atenção ao alinhamento retangular. Complexidade e variação são percebidas como maneira de perder o controle, não apenas como uma tipologia construtiva, mas sobre a forma como as decisões são tomadas, e então, são evitadas.

Vários fatores provêem motivação poderosa para a padronização e a relativamente rígida regulação: eficiência administrativa, responsabilidade, manutenção dos padrões pelos quais o sucesso de uma administração será avaliado e os requerimentos de transparência e de correção nos procedimentos. A eficiência da produção modular amarrada de maneira falsa ao progresso econômico, é usada como uma desculpa para a geometria militar /industrial. A variação construtiva é percebida como uma ameaça e é contida pelos argumentos de custos excessivos de produção. Estes argumentos apóiam a crença de que um planejamento central é tanto uma necessidade social como econômica. No entanto, estes argumentos já foram mostrados muitas e muitas vezes como sendo inválidos. Isto é mais uma vez o paradigma industrial e mecânico da produção linear (e o pensamento linear) que não permite que os promotores de habitação social considerem a variação, a heterogeneidade e a complexidade como elementos essenciais de seus projetos.

De uma maneira similar à aplicação de uma nova tecnologia na produção fabril, a justificativa é sempre apresentada em termos de custos e de eficiência, mas a lógica subjacente é a lógica do controle. No contexto do Estado moderno, é, com freqüência,

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mais importante manter padrões, transparência e responsabilidade do que reduzir custos em termos absolutos. Como resultado, torna-se muito comum para as estruturas da administração burocráticas (com a melhor das intenções e indiferentemente às tendências ideológicos da esquerda ou da direita) impor padrões que rompem com a verdadeira coisa que eles desejam criar.

Adaptação às necessidades individuais requer liberdade de desenho para que cada unidade possa ser diferente, com sua forma e posição decididas, em grande parte pelos futuros residentes. È realmente possível fazer isso. No entanto, os dois lados do espectro político fazem oposição à liberdade de desenho. A direita porque considera que os pobres não merecem esta atenção e que somente a população de alta renda pode ter o privilégio de casa “customizada”. A esquerda, por outro lado, na sua crença na igualdade fundamental, que é interpretada como a proibição das casa dos loteamentos sociais de serem minimamente diferentes umas das outras. Instituições tais como bancos, companhias de construção e avaliadores de terra ficam assustados pela perspectiva de ter que lidar com variações individuais.

Como resultado da padronização, o controle é exercido de outra maneira mais sutil. Um módulo industrial barato, disponível no mercado, quando de tamanho suficiente, substitui alternativas que são melhores. Os componentes modulares restringem a liberdade de desenho porque influenciam o produto final resultante da sua montagem (Alexander, 2005; Salingaros, 2006). Os governos que financiam a habitação social gostam de promover os componentes e os módulos industriais e de desencorajar a construção que é desenhada individualmente. No entanto, a produção local pode ser adquirida por menor preço e resolver parte do problema de desemprego. Uma geometria industrial incorporada nas tipologias arquitetônicas e urbanas é, eventualmente, refletida no ambiente construído.

O ambiente natural torna-se mais uma vítima da geometria do controle. A natureza e a vida são visualmente desorganizadas. Referência topológica tais como rochas, morros e riachos assim como árvores e plantas vivas desafiam a geometria plana e retangular, e são normalmente eliminadas. Os governos locais põem esforço em erradicar os elementos orgânicos do Ambiente estéril “ideal”. Algumas vezes (mas não sempre) este ato de agressão contra a natureza é, depois, amenizado, com a plantação de algumas árvores não-nativas, em alinhamento geométrico rígido e a produção de uma paisagem rochosa falsa como uma escultura visual. As plantas nativas não são bem vindas, a aparência artificial da topiaria é aceita (porque elas são arrumadinhas e não crescem desigualmente como as outras plantas). Nas habitações de baixa renda, mesmo isso é

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considerado um luxo que não pode ser adquirido, e ao fim, o projeto adquire um caráter sem vida e pouco natural, onde falta completamente a conexão com o crescimento de vegetação.

SEÇÕES 5 – 11: FERRAMENTAS ESPECÍFICAS PARA O DESENHO QUE AUXILIAM A ESTABELECER UMA POSSE INTELECTUAL

5. Biofilia, conectividade e espiritualidade.

A noção de “arquitetura biofílica” estabelece que a saúde e o bem-estar humanos dependem fortemente da geometria do ambiente e isto é expresso em configurações particulares, superfícies, materiais, detalhes, luz e acessibilidade a plantas e outras formas de vida (Kellert, 2005). Todos estes fatores contribuem para o sucesso de qualquer construção e para a habitação social em particular. O desenho baseado em evidencias é baseado no conhecimento de como um ser humano é afetado pelo seu ambiente.

A geometria apropriada que promove o bem-estar humano é baseada, o que não é de surpreender, no oposto da geometria do poder descrita na seção anterior. Uma geometria viva é solta, complexa e altamente inter-conectiva. É a geometria de uma favela auto-construída e também a geometria de um rio, de uma árvore ou de um pulmão. Sem nenhum condicionante imposto, os seres humanos irão construir de acordo com essa geometria natural (Alexander, 2005; Salingaros, 2006). Note-se que muitos dos projetos auto-construídos não seguem inteiramente esta geometria, porque o governo define grades regulares de lotes antes de dar a terra para os construtores individuais. Assim, ele realmente impõe uma grade industrial que é impossível de mudar. Nós vamos discutir mais adiante como esta prática restritiva pode ser evitada.

As qualidades da geometria e da superfície podem tanto ajudar como impedir a conexão emocional, a partir da maneira como os seres humanos as usam. Nós devemos equilibrar o estudo da estrutura com o estudo de forma e de padrão. No estudo da estrutura, nós pesamos e medimos coisas. Os padrões de interação não podem ser medidos ou pesados, no entanto, eles devem ser mapeados e têm mais relação com a qualidade. Para entender um padrão, nós precisamos mapear uma configuração de relações. Nós acreditamos no conceito de cidade como um organismo, não somente no sentido de que ele tenta desenvolver uma estrutura orgânica, mas também devido à

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complexa relação que esta estrutura estabelece com o padrão organizacional dos usuários. Aqui está a lista de alguns dos conceitos chave com os quais se deve trabalhar:

1. As pessoas ficam psicologicamente doentes e hostis em ambientes onde a natureza não está presente. A biofilia é inata em nossos genes. Os espaços urbanos devem “misturar-se com” e não “substituir” o habitat natural.

2. Nós nos conectamos às plantas através de suas estruturas geométricas, desta maneira, algumas geometrias são mais conectivas com o espírito humano que outras. Nós nos sentimos confortáveis em um ambiente construído que incorpore uma geometria natural e complexa e que mostre uma hierarquia de subdivisões ordenada.

3. Os moradores devem amar suas casa e suas vizinhanças. Isto significa que a forma do ambiente construído imediato deve ser espiritual, e não industrial.

4. Materiais e tipologias industriais geram ódio em relação ao ambiente construído. Nós ficamos hostis às formas e às superfícies que não nos alimentam espiritualmente, porque nós sentimos a sua rejeição à nossa humanidade. Quando não são odiadas, elas geram com freqüência um tipo de indiferença que pode ser ainda pior para as comunidades humanas. O uso destes materiais e tipologias tem sido comumente apresentado como ditado pela natureza da tecnologia dos edifícios e pela realidade econômica do dia. O resultado é que as pessoas freqüentemente consideram normal o caráter alienado inevitável do ambiente construído, que apresenta quantidade sem qualidades significativas.

5. O caráter sagrado das vilas tradicionais e dos espaços urbanos não pode ser ignorado e tratado como antiquado nonsense (como tem sido feito atualmente). Esta é a única qualidade que conecta a vila em larga escala às pessoas, e assim, indiretamente umas às outras. Nós precisamos construir isto nos espaços urbanos.

Não é fácil identificar a estrutura sagrada de qualquer assentamento, mais difícil ainda é planejar uma, em um novo assentamento. Nós precisamos olhar os padrões da atividade humana nos assentamentos tradicionais e procurarmos identificar quais são os nós de atividades que são os mais valorizados de todos. Normalmente é nos locais onde os residentes se juntam para interagir. Estes nós (quando eles estão presentes), podem ser interiores, mas freqüentemente eles são elementos do espaço aberto urbano (Gehl, 1996). As pessoa podem, ao mesmo tempo, se conectar às plantas e às outras

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pessoas em espaços urbanos projetados apropriadamente. Estes locais são então responsáveis pela coesão societal da vizinhança.

Uma coisa é “sagrada” se atribuímos a ela um valor acima e além da sua estrutura material. Uma boa regra é perguntar sobre se nós estaríamos disponíveis para lutar para protegê-la do dano ou da destruição. Poderíamos perguntar também: será que muitas pessoas, alguns necessariamente estrangeiros, sentem o mesmo a este respeito? Nós consideramos o lugar como tendo significado para a comunidade como um todo, de tal forma que um grupo viria proteger este lugar, objeto ou sítio? Nas cidades antigas, uma árvore velha, uma grande pedra, uma montanha proeminente, um riacho ou um córrego poderia ser considerado sagrado (no sentido religioso mais profundo) e ser protegido de qualquer dano. Aquelas sociedades construíam cidades ao redor de lugares sagrados e atribuíam a certas partes do que eles construíam um significado sagrado. Hoje, esta qualidade infelizmente é descartada, como anacrônica.

Por exemplo, os mais velhos nós sociais são: as fontes de água (a torneira comunitária ou o poço), o lugar de adoração (igreja ou templo), os lugares de encontro (bar / café para os homens), o play-ground das crianças, etc. No caso da igreja, nós temos uma estrutura genuinamente sagrada que é com freqüência construída no centro original do assentamento. Ela serve à função coesiva da comunidade: “ecclesia” é a junção das crenças religiosas comuns, que é tanto um ato coesivo social como é um ato puramente religioso. Não é por coincidência que o lugar de encontro não-religioso, o café, é, freqüentemente, situado na frente da igreja nas vilas tradicionais. Como um lugar alternativo, o café substitui o espaço de reunião para os que não se inserem nos significados sagrados da religião local.

Outro código da estrutura sagrada é a praça central, ou a praça aberta que nos climas temperados acomoda a vida social, no fim da tarde. A tradição latina de caminhar à tardinha na praça central estabelece um valor para a praça na coesão social da comunidade. Aquilo a que nós nos referimos como “estrutura sagrada” neste paper se refere A TODAS essas funções coesivas. Nós vemos a coesão como uma representação natural e interpretamos suas várias manifestações como simplesmente diferentes graus de conectividade em canais que se sobrepõem. Uma praça central é um lugar para a coesão social, enquanto a igreja conecta seus crentes no mais alto nível, que é ao seu Criador.

As sociedades não religiosas substituíram, em alguns casos com sucesso, os “espaços sagrados” para manter suas sociedades coesas. Os países comunistas, por exemplo, construíram, a Casa do Povo ou o Clube dos Trabalhadores, os quais tomaram o papel

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de lugar de encontro, para pelo menos, parte da comunidade. Nos bairros de alta renda, (por exemplo, comunidades que vivem em áreas cujo acesso se dá através de um único acesso principal (portão)) as mesmas forças se aplicam, mas não são resolvidas, devido à total dependência do automóvel. Neles, não há espaço sagrado, não há espaço comum de encontro, nem lugar de interação social. Contrariamente às intenções dos promotores imobiliários, nos clusters suburbanos da população de alta renda, as piscinas e os clubes de ginástica dos empreendimentos não atendem a esta função. A geometria urbana nunca estabelece uma vida social comum entre os residentes, o que origina uma séria falta de socialização.

O lugar sagrado que nós estamos descrevendo, está ausente da construção urbana contemporânea (Duany et. al., 2000). Nós vemos cópias superficiais criadas sem qualquer entendimento do seu profundo sentido cultural. Como conseqüência, o dramático declínio no sentido de comunidade leva a um igualmente dramático aumento da alienação social. Tanto a esquerda quanto a direita, certamente jamais reconheceram a necessidade de espiritualidade no tecido da habitação social. No entanto, um sentido do sagrado está inerente em todas as habitações tradicionais (em alguns lugares mais, em outros lugares menos) independentemente de suas origens. Em contraste, os dormitórios militares /industriais não são apenas rejeitados pelos seus ocupantes, mas são odiados, porque ninguém pode se conectar com as suas formas e imagens. Um ser humano não pode, verdadeiramente, pertencer a estas construções, nem pode a imagem deste tipo de prédio pertencer, emocionalmente, a um ser humano, e então as pessoas passam a odiá-los, e mesmo a destruí-los. Prédios deste tipo, construídos ao redor dos anos 60 com as melhores das intenções, são abundantes em todo o mundo. Eles não canalizam um apego emocional à grande escala. Esquemas propondo “shopping lineares” e jardins de infância (como um substituto dos lugares sagrados) no quinto andar de um arranha-céu, se mostraram ridículos. Praças de concreto tendem a ser desconectadas e hostis, gerando um sentimento de animosidade ao invés do de conectividade.

Christopher Alexander e colaboradores construíram habitação social em Mexicali, no México (Alexander et. al., 1985). Um conjunto-protótipo de casas foi construído ao redor do canteiro de obras que servia às necessidades do bairro. Aquele espaço poderia ter servido como o espaço sagrado. No entanto, enquanto as casas foram um tremendo sucesso (e sobrevivem muitos anos após a construção, com os seus donos originais), o espaço do canteiro de obras não sobreviveu. O governo não o manteve, nem o ofereceu para outra comunidade ou para uso privado. Ele foi abandonado, e as conexões com as

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casas ao redor foram interrompidas pelos proprietários. O governo nunca tentou ajudar para que ele se tornasse um lugar de reunião. Nenhum esforço foi feito para reforçar o valor sagrado do canteiro de obras.

A categoria do “sagrado” tem sido definida de maneira genérica para englobar a ordem normativa dos espaços cívicos, e ela é importante para incorporar o espectro completo das relações sociais, desde as relações privadas, passando pelas comunitárias (paroquiais) e chegando às públicas (cívicas). As vilas tradicionais crescem até o nível de comunitária, mas NÃO ao nível da cultura cívica. Os locais de reunião são importantes não somente porque eles encorajam a coesão comunitária (que tende a ser baseada na homogeneidade), mas porque aos mais variados tipos de locais de reunião, correspondem às mais variadas possibilidades de relações sociais. As relações no espaço público têm significado tanto em relação a definir a distância social quanto a coesão (social). Freqüentemente, a coesão associada com o urbano é associada com o compartilhamento de um sentido comum de lugar. E, de uma certa forma, os lugares são uma incorporação do que chamamos de “capital social”. Eles SÃO relações sociais, não apenas contenedores ou facilitadores de relações sociais.

Pode haver um problema com a ênfase sobre o sagrado nesta discussão. No terceiro mundo, mais do que em lugares como os EUA, as constituências da habitação social são freqüentemente envolvidas em uma outra forma de movimento democrático. Particularmente nas cidades globais, nós não queremos que pareça que estamos promovendo o retorno a algum tipo de tribalismo (que é a forma como as vilas tradicionais são vistas). Os lugares requerem a materialização do “sagrado”, mas não no senso comum da palavra. Os lugares de reunião são importantes, mas a sua estrutura (e a suas relação com a estrutura social) é mais complexa do que a de simplesmente atuar como contenedora ou como oportunidade para as pessoas se juntarem. Nós precisamos prestar atenção aos padrões de interação nas cidades tradicionais assim como nas vilas e assentamentos tribais que são homogêneas em termos de classes. Esses padrões de interação são estruturalmente variados e não se trata apenas de coesão comunitária.

Em conclusão, um assentamento deve, acima de qualquer coisa, estabelecer algum tipo de estrutura sagrada que, de alguma maneira, possa conectar emocionalmente os residentes. A estrutura sagrada também auxilia as pessoas a se conectarem a uma ordem mais alta. Esta ordem mais alta engloba três determinações funcionais: (a) é usada como um meio coletivo para formar a comunidade; (b) é construída a partir da cooperação dos discursos de um grupo de pessoas e não é a decisão unilateral de um individuo; (c) é carregado com um significado poderoso para a comunidade. Se a maioria,

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ou todos, os residentes se conecta com a estrutura física sagrada, então, indiretamente, eles se conectam, uns aos outros. Este simples princípio estabelece um sentido de comunidade, que sobrevive as difíceis condições de vida. E isso mantém as forças orientadas a manter a estrutura física da comunidade, ao invés de se virarem contra a ela, como acontece nos casos em que a estrutura física não é valorizada.

6. Utilizando o trabalho de Christopher Alexander.

Muitas vezes, em sua longa carreira como arquiteto e urbanista Christopher Alexander foi convidado a planejar e construir habitação social. Em todos os casos, e muitas vezes em oposição ao memorial descritivo pretendido pela agência de governo que o contratara, ele insistiu na participação do usuário. Ele viu claramente, muito cedo, que esta era a única maneira de produzir e construir formas que fossem “amadas” pelos seus ocupantes (Alexander, 2005; Alexander et. al., 1985). Cada um de seus projetos começou com o envolvimento inicial dos futuros usuários em planejar o seu espaço de viver, e desenhar a configuração das ruas e áreas comuns. Em alguns casos isso fez com que os governos suspendessem o financiamento, o que evidencia o quanto uma atitude deste tipo enfraquece o controle governamental sobre a geometria do projeto.

Nós acreditamos que Alexander estava completamente certo ao insistir na participação como um princípio básico. Ele predisse, corretamente, que as habitações construídas por alguém que não estivesse envolvido no mundo e na realidade diária dos residentes, teriam muitas de suas qualidades essenciais não atendidas. Como resultado, seus habitantes nunca iriam amar o lugar. Mesmo se as casas fossem construídas seguindo exatamente a mesma tipologia modular, a participação no planejamento ou no processo de construção garantiria que o eventual usuário tivesse um aporte pessoal no produto final. A maior parte das pessoas não têm a menor preocupação com as virtudes formais do desenho, elas só desejam alguma coisa que possam verdadeiramente considerar suas.

O mais recente trabalho de Alexander (Alexander, 2005) estabelece um ordenamento temporal para qualquer construção que seja adaptável às necessidades humanas. Isto é, faz uma imensa diferença o que é desenhado e construído antes e o que vem depois na seqüência do desenho / construção. Esta prática foi seguida desde os tempos antigos, no Oriente Próximo e codificada no urbanismo Bizantino e Islâmico que atingiu todas as regiões influenciadas por estas civilizações (Hakim, 2003). Sua base científica, como

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parte do processo geral pelo qual um sistema complexo surge é a nova contribuição, e tem sido demonstrado, na teoria, o quanto ela é fundamental para o sucesso de qualquer projeto. Tornou-se possível, agora, mostrar a ordem certa na qual os componentes de um loteamento habitacional podem ser construídos para garantir a sustentabilidade.

Alexander, por exemplo, revela os passos para o desenho de um tecido urbano saudável. É lógico que isto depende muito da escala. Sendo uma das prioridades a maneira como um assentamento se conecta com o resto da cidade, uma área de 1 Km² (um quilômetro quadrado) será, normalmente, tangente a uma das vias principais, enquanto áreas maiores precisarão, provavelmente, de uma via principal que a atravesse.

1. As rotas de circulação principal são determinadas como parte do centro integrador da cidade e da área urbana adjacente.

2. Os espaços públicos importantes são identificados para amarrar a topografia, as formações naturais e as linhas principais de movimento.

3. Os alinhamentos das vias secundárias são posicionados, distando entre si de 60-150 m, nas intersecções com os espaços e vias principais.

4. Os espaços para pedestres são definidos pelas fachadas dos prédios, e são acessados por veículos, mas são fisicamente protegidos deles.

5. Os prédios são posicionados de tal forma que as suas fachadas definam o espaço urbano da maneira mais coerente possível — sem recuos e com poucas falhas na seqüência entre eles.

6. As ruas surgem como conseqüência da linearidade, conectando segmentos de um espaço urbano bem definido.

A falha em seguir esta seqüência inevitavelmente leva a um tecido urbano morto.A aplicação correta desta seqüência só pode aparecer após convencer as autoridades a implementarem uma prática construtiva diferente da que é comum atualmente. No entanto, existem poderosas razões teóricas para insistir nessa seqüência. Esses passos foram seguidos em incontáveis assentamentos tradicionais, formando cidades e espaços urbanos antes da era industrial. Quando o modo de transporte era ainda o de pedestres e tráfico de baixa velocidade (animais, charretes, pequenos ônibus e caminhões de

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pequeno porte, etc.) era fácil dar prioridade para o espaço e para a construção. Quando o automóvel assume, no entanto, ele começa a ditar uma nova prioridade, que inverte a seqüência acima. O planejador, então, sacrifica o tecido urbano tradicional para acelerar o movimento transversal e isto, em última análise, é o que cria o desenho disfuncional e insustentável.

Alexander tem aplicado estes princípios em muitos projetos de habitação social, incluindo Santa Rosa de Cabal, Colômbia (Alexander, 2005, livro 3, páginas 398-408) e Guasare New Town, Venezuela (planejada, mas não construída) (Alexander, 2005, livro 3, páginas 340-348). Outro exemplo recente de sucesso é Poundbury, na Inglaterra, feita por Leon Krier (1998). Interessante é que este último empreendimento é um assentamento de alta renda, na qual uma parcela significativa — mais de 20% — de moradores subsidiados é incluída, financiados pelo Guinness Trust, uma organização não-governamental. Nós vamos extrair regras de trabalho destas experiências e apresentá-las neste paper.

7. O desenho descontinuado e a emergência da forma.

Uma nova comunidade não pode ser simplesmente inserida numa terra limpa (na verdade, poderia ser, mas então, não seria adaptável e não formaria uma comunidade). Nós visualizamos um crescimento gradual ao invés de construir tudo de uma só vez. Deve ser permitido ao desenho emergir e isso não pode ser feito no início. Um plano diretor — no sentido de decidir onde exatamente a futura construção vai ser localizada e qual a exata forma o prédio terá — é muito restritivo, e, portanto, altamente incompleto.

A habitação social que segue esta atitude — de planejar no papel e depois construir de acordo com o plano — é falha para constituir um ambiente vivo. Assim como Alexander, nós defendemos um processo no qual cada futuro passo seja influenciado pelo que existe em cada momento.

A cuidadosa consideração das características topográficas, da vegetação existente, dos pontos de acesso, etc. é suficiente para indicar, por alto, a morfologia do assentamento inteiro, no início do processo de planejamento. Após formar uma idéia aproximada sobre a localização dos prédios e das principais vias de acesso, então os lotes individuais podem ser mentalmente localizados, ao longo das vias, que não estarão, também, completamente especificadas. Nada ainda esta construído, e as decisões principais são feitas utilizando estacas de madeira e outras marcações no solo.

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Para garantir a coerência morfológica, o que é construído deve ser influenciado pelo seu entorno. Esta interação é experimentalmente determinada e não pode ser decidida no papel, ou antecipada, devido à complexidade de todos os mecanismos envolvidos. Em um empreendimento parcialmente construído, a próxima casa ou o próximo segmento de uma via a ser construído tem que adaptar sua geometria ao que já foi previamente construído.

Qualquer decisão feita no início do projeto deve ser entendida como recomendação, e não como uma regra ditada (diferentemente do que acontece nos planos diretores). À medida que o projeto se desenvolve no tempo, as decisões que foram feitas no começo para as áreas não construídas vão ser vistas agora como incorretas, não mais relevantes, então nós precisamos da possibilidade de mudar o desenho continuamente, à medida que mais construções vão acontecendo. Isto é exatamente o que ocorreu nas comunidades históricas construídas num espaço de tempo de séculos. Este procedimento adaptável (que se adapta à sensibilidade humana, em relação às formas e espaços que aos poucos emergem) gerou geometrias extremamente coerentes e complexas nas tradicionais vilas e cidades e esta coerência não pode, matematicamente, ser adquirida de uma só vez.

Um processo descontinuado constitui-se de um vai-e-vem entre seus passos, melhorando cada um deles. Isto é o que nós estamos descrevendo no planejamento e no desenho adaptativo: primeiro se forma a idéia conceitual no solo, então, são introduzidas as posições e os tamanhos dos futuros elementos sem, ainda, construí-los. Então, volta-se para refinar o espaço urbano, e assim por diante. È somente assim que a interação de todos os componentes entre si e com o seu entorno pode efetivamente acontecer. Uma vez que os componentes comecem a ser construídos eles tornam-se partes do entorno, e por sua vez, influenciam todos os futuros elementos construídos.

Um tecido urbano saudável é um sistema extremamente complexo e não pode ser desenhado e construído de uma maneira estritamente de-cima-para-baixo. Alguns componentes podem ser realizados de-cima-para-baixo por alguém que entenda a complexidade requerida. O ordenamento tem que emergir do processo e não simplesmente ser um final imaginado e imposto por uma regulação arbitrária. Deve haver uma capacidade adaptativa que seja distributiva e ampla, em um processo includente. Cidades e vizinhanças são “coisas que as pessoas fazem juntas”, onde a comunidade exerce sua territorialidade de uma maneira positiva. Qualquer intervenção de-cima-para-baixo tem que ser orientada para facilitar a colaboração, não ditando os seus termos ou a forçando abertamente a ser um contenedor racionalizado.

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8. Exemplos de padrões e códigos geradores

Os padrões resumem soluções de desenho descobertas e que fazem as pessoas mais confortáveis ao usar ou experimentar a forma construída. Os seus méritos relativos estão em que eles foram decididos sobre (em muitos casos cientificamente) bases firmes, ao invés de ser apenas uma outra opinião. O uso de padrões e da linguagem de padrões é descrito em uma literatura que está facilmente disponível (Alexander et. al., 1977). Nós agora descreveremos alguns padrões para aqueles que não os tenha visto antes. O urbanismo convencional tem negligenciado o tremendo potencial oferecido pelo desenho baseado-em-padrões, principalmente por razões ideológicas. O desenho baseado-em-padrões libera o indivíduo, mas suprime alguns dos mais lucrativos (embora inumanos) aspectos da indústria da construção.

Ao construir um tecido urbano denso, um padrão impõe um limite de quatro andares de altura para residências (Padrão 21: Limite de quatro andares). Acima desta altura, um morador se sente desconectado do solo e de qualquer função social, que sempre ocorre no solo. Este padrão imediatamente invalida os prédios altos de apartamentos, que são simplesmente um falido experimento social, em larga escala, proposto por um simbolismo icônico. Outro padrão requer acesso às árvores (Padrão 117: Lugares com árvores). As árvores são necessárias para o ambiente humano e o seu plantio deve ser cuidadosamente pensado para cooperar com os edifícios próximos e definir um espaço urbano coerente (Gehl, 1996; Salingaros, 2005). Alternativamente, as árvores já existentes devem ser salvas e os prédios introduzidos da mesma maneira cuidadosa e flexível (e não de acordo com uma rígida malha arbitrária) de tal forma que os prédios e as árvores cooperem para criar um espaço urbano. As árvores combinam-se com a geometria dos caminhos e as paredes externas para definir o espaço urbano utilizável cujas dimensões e estrutura de caminhos convidam ao uso.

O ponto para o qual se está chamando atenção aqui (resumido neste padrão particular) é o de usar um conjunto de árvores para definir um espaço sagrado. Isto, filosoficamente, está muito distante da idéia de plantar árvores simplesmente como uma “decoração” visual, o que simplesmente reforça a geometria do poder. Há uma razão pragmática para isso. A não ser que a árvore seja protegida, fazendo parte de um lugar sagrado, ela será logo cortada e usada como material de construção ou como combustível para aquecer e cozinhar. Esta idéia segue o mesmo princípio de proteger as vacas necessárias para o arado, tornando-as animais sagrados. Assim, as vacas não são

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comidas durante os períodos de fome, e então elas podem ser utilizadas para a agricultura na próxima estação.

Na prática, se pode escolher vários diferentes padrões do livro de Alexander, “Linguagem de Padrões” (Alexander et. al., 1977) e começar um assentamento. À medida que o trabalho avança, se tem que voltar e trabalhar com mais padrões, porque surgem novas necessidades de desenhos. Um outro conjunto de padrões ajuda a guiar o layout da rua. Alexander usou originalmente os padrões em 1969, para desenhar habitação social no Peru (Alexander, 2005, livro 2, página 352). A maneira como os diferentes padrões têm que se combinar é explicado in (Salingaros, 2005, capítulos 8 e 9). Alguns arquitetos caracterizaram os padrões como um método incompleto, porque eles não os puderam combinar com sucesso. No entanto, padrões são apenas um componente de um sistema de desenho e sua combinação tem que seguir princípios que não estão contidos nos padrões propriamente. Trabalhos de Alexander e outros (incluindo o autor) continuam a desenvolver a aplicabilidade da linguagem dos padrões na arquitetura. Uma visão particular tem sido obtida a partir do dramático sucesso da linguagem dos padrões no desenho de software de computador.

Um outro fator, e mais sério, que tem funcionado contra a adoção dos padrões para o desenho, é que a arquitetura e o urbanismo têm se apoiado, por várias décadas, na base filosófica do relativismo qualitativo. Esta alegação significa que todos os julgamentos na arquitetura são uma questão de opinião e de gosto, e a arquitetura é só um pouco mais do que um ato de expressão pessoal. Este relativismo está em contraste marcante com a visão da ciência, onde fatos descobertos sobre a estrutura da realidade são entendidos como subjacentes às questões de aparente opinião individual. Os arquitetos e urbanistas inculcados na tradição relativista desconsideram efeitos estruturais observáveis e soluções mais avançadas. Eles consideram os padrões como apenas mais uma opinião, e uma que pode ser tranqüilamente ignorada (especialmente se os padrões contradizem diretamente a tipologia militar / industrial). Mas os padrões são agrupamentos observáveis de configurações recorrentes, de respostas recorrentes a problemas de desenho e que constituem uma forma, passível de ser descoberta, de “inteligência coletiva” na civilização e na vida humana. Esta inteligência coletiva relaciona-se à maneira como nós operamos no contexto da relação entre a forma construída e nossos valores, aspirações, práticas sociais, etc.

Na era da especialização profissional, o ambiente construído tem sido crescentemente, sujeitado a um conjunto que se prolifera de especialistas, cada um levando sua disciplina para entender um particular tipo de problema. Isso acontece

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freqüentemente às expensas da habilidade de ver (muito menos de discutir) o completo desafio de criar lugares vivos, bonitos e sustentáveis. A noção de uma inteligência coletiva incorporada em padrões não deveria ser entendida como uma alegação de se haver descoberto a verdade final, mas como o reconhecimento da importância de um processo vivo. Isto re-estabelece a capacidade cultural de se engajar na construção do espaço como um processo social colaborativo. O sucesso não é medido em termos abstratos, mas pela experiência local de melhoria contínua da qualidade e na sustentabilidade dos assentamentos humanos. O uso de padrões no desenho proporciona a base necessária para um método colaborativo que é adaptável e particular para um local (isto é, os condicionantes do momento) e ainda é capaz de responder às aspirações humanas por alguma coisa melhor.

Mesmo quando os padrões são usados para o desenho, o desenhista deve ter certeza que o projeto está sendo executado e construído na seqüência correta. Esta nova abordagem do planejamento é baseada no reconhecimento de que a emergência de uma forma adaptável tem que seguir uma específica seqüência de passos. Um desenho adaptável requer um “processo gerador”. Um desenho vivo nunca é imposto: ele é gerado por uma seqüência na qual cada passo depende dos passos anteriores. Os padrões, eles mesmos, no entanto, não contam nada sobre a seqüência. Para isso é necessário consultar o trabalho mais recente de Alexander (Alexander, 2005). Há outros autores que apóiam a necessidade de um processo gerador. Besim Hakim chegou a esta conclusão através da impressionante evidência disponibilizada por sua pesquisa sobre as cidades tradicionais (Hakim, 2003).

9. A estratégia de construção.

Tanto a linguagem de padrões como os processos e os códigos geradores (sejam eles explícitos ou implícitos) têm estado presentes por milênios. A linguagem de padrões foi codificada em uma forma prática há trinta anos atrás. Os códigos têm sido usados na arquitetura tradicional e códigos fixos (não geradores) foram amplamente implementados por um dos autores (Duany & Plater-Zyberk, 2005). Os códigos fixos são baseados-na-forma e contam exatamente como estruturar a geometria de um ambiente urbano. Os códigos geradores são mais recentes e possuem a adicional capacidade de alterarem a forma ao longo do projeto. Eles mostram a seqüência de passos, mas deixam a forma e o produto final não-especificado. Eles também se distinguem entre conjunto de códigos adaptáveis e conjunto de códigos não adaptáveis (isto é, aqueles que ou geram ou impedem o tecido urbano vivo).

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Mesmo considerando que um projeto particular vai requerer um cuidadoso ajustamento às condições locais, esses dois métodos agindo juntos servem para a maioria dos casos. Nós podemos começar sua imediata aplicação utilizando material publicado com experiências no sítio, o que levará a conseqüentes refinamentos no processo. Em termos mais amplos, aqui está como alguém pode seguir nossas sugestões:

1. Use a linguagem de padrões para planejar a rede de transportes antes que qualquer construção seja feita. Isto é essencial para gerar centros para as vilas e as vizinhanças. Malhas em xadrez, do tipo facilitado pelos governos, não criam a necessária conectividade nodal do espaço urbano.

2. Use a linguagem de padrões (e desenvolva novas, apropriadas para a localidade) para construir um espaço urbano para uma sociedade complexa consistindo de crianças, adultos, idosos e que inclua casas, lojas, escolas, distribuidoras, espaços informais, pontos focais de transporte, etc.

3. As existentes zonas mono-funcionais simplificadas (e conseqüentemente anti-humanas) devem ser anuladas pelo governo central. Sem este passo, todos os esquemas planejados impedirão a vida urbana desde o começo, indiferentemente ao que ela possa parecer.

4. Encoraje os sistemas de construção (controlados de-cima-par-baixo) a trabalhar com os futuros residentes locais (trabalhando de-baixo-para-cima) de maneira a gerar habitações de baixo custo e de alta qualidade.

5. Use a linguagem de padrões para reabilitar as casa dos habitantes de baixa renda e para converter as unidades alugadas em casas próprias. Isto requer uma injeção de dinheiro, mas também gera trabalho na construção.

6. Use a linguagem de padrões e a noção de cidade como uma rede para orientar as intervenções globalmente. Processos de larga escala e de longo tempo irão garantir que além de construir casas os projetos são concebidos e implementados para completar uma vizinhança sustentável, bem conectada em um grande cenário urbano.

O processo começa por identificar a terra certa. Um grande problema é que muito da habitação informal é empurrada para terras problemáticas e marginais, nas quais é impossível a melhoria. È necessário que o arquiteto / planejador responsável tenha

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conhecimento na linguagem de padrões e em sua aplicação. Como muitos arquitetos, hoje, não sabem, recomendamos os governos, que ao menos nos próximos anos, apóiem-se em quem é familiar com este material para coordenar os projetos de construção. Um certo número de profissionais com este conhecimento estão disponíveis, embora não em número suficiente para satisfazer a demanda. Temos esperança que nas próximas décadas se possa treinar um número suficiente de jovens arquitetos para dirigir novos projetos.

Um ponto importante refere-se ás licenças para construção. Devido à variabilidade orgânica de diferentes componentes do projeto, é proibitivo, tanto em termos de custos como em termos de tempo, preparar desenhos finais e tê-los, cada um, aprovados. A permissão para o projeto é dada usualmente através de um documento explícito que especifica cada detalhe do desenho, ao invés de um plano geral do processo que pode gerar desenhos similares, mas individuais. Alexander resolveu este problema conseguindo licença do governo para um processo de construção específico (um conjunto de operações construtivas, dentro de parâmetros claramente definidos) que gera resultados distintos, mas semelhantes. Todos os produtos do processo eram então, aprovados automaticamente sem necessidade de futura licença individual (Alexander et. al., 1985). É importante conseguir a aprovação das autoridades para o PROCESSO, ao invés de para um conjunto final de desenhos. Se isso não for possível, então o melhor é conseguir uma aprovação que seja conveniente para a estrutura geral, e que possa ser modificada durante o processo.

10. Estratégia de layout: o esqueleto dos serviços.

O que segue é uma estratégia de layout baseada em regras que um de nós (AMD) observou durante seu trabalho em São Domingos, na República Dominicana. Ela oferece um esqueleto de referência simples, mas efetivo no qual um assentamento saudável e humano pode se auto-organizar.

O que segue são as regras para uma favela de renda MÍNIMA. Há mais regras para o grupo localizado em uma escala acima, em termos de renda, incluindo acomodações para carros. Mas qualquer coisa menos do que este conjunto de regras tende a não funcionar, pois ele forma o núcleo sobre o qual outras regras são acrescentadas.

1. O governo deve fazer um esquema dos lotes e garantir a posse da terra, através de um documento em papel. Isto pode começar com “noções” sobre os lotes, que

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poderão ser definidos mais tarde, através de um processo “gerador” que poderá ser, num outro momento, pesquisado e documentado.

2. Os lotes deverão estar dentro de quadras definidas pela previsão de uma rede de ruas. Cada quadra deve ter a previsão de um caminho de pedestres atrás de cada lote. Os lotes podem variar em tamanho e forma, mas não devem ser menores do que 6 m de frente e 20 m de fundos.

3. O governo deve fazer um canal, na terra, que drene das quadras para as ruas e das ruas para fora da área habitada.

4. O governo deve construir passeios de concreto nos dois lados das ruas previstas (mas não necessariamente pavimentar as ruas). O canal formado entre os passeios conterá as águas da chuva. E também será uma forma de prevenir contra a propagação do fogo.

5. No mínimo em um ponto do caminho de pedestres, deve haver um poste com eletricidade, do qual os residentes possam se conectar e utilizar a eletricidade livremente. O mesmo deve ser feito com alguns pontos de água potável. Deve haver uma grande latrina com separação por gênero, a cada quadra. Estes serviços podem começar a ser taxados, desde que os trabalhos estejam avançados.

6. À medida que os lotes vão sendo construídos, deverá ser mantida uma passagem bem definida do caminho de pedestres para a rua. Isto encoraja a construção de peças com janelas e também permite o lote e a quadra a drenarem para a rua.

7. Os moradores irão construir as suas casas eles mesmos, ao seu próprio ritmo, mas eles devem iniciar construindo a parede do caminho de pedestres em primeiro lugar. A parte de trás é feita mais tarde. Pode ser pedido para que a parede frontal seja de blocos de concreto. Os telhados não devem drenar suas águas para o lote vizinho.

8. Os lotes de esquina são reservados para o comércio. Todos os lotes podem ser unidades de habitação e comércio.

9. Nenhuma iniciativa comercial não-criminosa, nem operações privadas de trânsito devem ser proibidas. Ao contrário, deverão ser encorajadas.

10. As várias responsabilidades dos residentes e do governo, listadas acima, deverão ser estabelecidas em um simples contrato do tipo: “O governo fará isto ...” e “Os residentes farão isto ...”

11. É possível requerer que os residentes paguem pelos lotes, através de pequenas mensalidades, após a construção ter sido concluída.

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Há ainda várias questões de controle social sobre as quais não estaremos lidando agora, mas que precisam ser observadas empiricamente. Este é apenas um código físico, portanto apenas parte da solução completa que irá fazer o projeto vivo. O estabelecimento dos limites legais é uma função do governo. No entanto, não deve ser entendido que isto deva ser feito antes, como um ato de-cima-para-baixo. A proposta de layout dos lotes envolve uma participação preliminar dos moradores. A questão mais importante sobre a morfologia dos lugares planejados pelos moradores, é o seu poder de auto-organização, e é isto que o processo dos “códigos geradores” de Alexander está tentando explicitar.

11. Estratégias de layout II: código gerador.

Alexander (2005, livro 3) aplicou “códigos geradores” mais avançados a projetos e nós resumimos aqui parte de seu procedimento. Esta é uma versão mais incremental da metodologia de layout descrita anteriormente para o “esqueleto de serviços”.

Alexander observou os processo de auto-organização que criaram vários assentamentos informais ao longo da história humana, e tentou desenvolver “códigos geradores”, baseados em regras, para explorar estes processos. As suas geometrias naturais são tão fortes, que por exemplo, ao observar as fotos aéreas de Querétaro, no México (onde um de nós realiza pesquisas) verifica-se que a morfologia dos assentamentos se parecem muito com as pequenas vilas admiradas no mundo inteiro de Provença, na França e de Toscana, na Itália. Todas elas utilizam artifícios para adaptarem-se ao terreno, para as visuais, a diferenciação das funções comerciais e outras representações autopoiéticas (de auto-organização).

O desafio é não construir, por antecipação a partir de uma estrutura baseada em um modelo, sobre uma tabula rasa (isto é, arrasando para limpar), mas colocar as instalações e outros elementos humanos nestas já complexas e sofisticadas “cidades medievais”. Nós desejamos a complexidade orgânica e o caráter adaptativo da atividade de-baixo-para-cima com alguns dos standards e condições de eqüidade social sobre as quais se assentaram as intervenções de-cima-para-baixo. Há uma maneira como isto pode ser construído de forma seqüencial, descontinuada, de acordo com uma simples série de regras, que é como os códigos geradores propõem que seja feito. Após isto ser feito, então os resultados são levantados e os limites são marcados para propósitos legais.

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Um layout gerador que inclui ruas estabelece os lotes de acordo com a topografia, com as aflorações naturais e a percepção psicológica dos melhores fluxos conforme é determinado ao se caminhar no solo. Então o processo de desenho acontece — e não o inverso. Este seria a abordagem “Alexandrina” para “cidades medievais com encanamentos”. Embora isto possa ocorrer antecipadamente, como parte do processo “código gerador” pela comunidade, ele tem que acontecer gradualmente. O layout não deve ser baseado em um modelo ou desenhado para ser visto de um avião.

Para conseguir a complexidade emergente de uma vizinhança viva, ela tem que ser descontinuada e determinada no sítio. Deve ser garantido que o desdobramento orgânico possa acontecer, e isto não é fácil em um mundo rigidamente codificado. Nós temos o desafio de invocar bons processos a partir de circunstâncias que apresentam muitos condicionantes e obstáculos.

Isto reflete o padrão medieval de projetar ruas e lotes. Isso também segue o princípio de Leon Krier de que os prédios e os espaços sociais vêm antes, e depois vêm as ruas (Krier, 1998). Nas cidades medievais, o processo era altamente regulado. Uma cidade baseada numa malha também pode ser bem ordenada: nosso ponto é que se use a malha que mais se adapte ao local, e que surge do terreno. A implementação prática, mesmo de um processo gerador radical, não é tão difícil como se poderia pensar. Pode-se contornar os problemas legais colocados pela lei convencional de loteamentos ao criar uma seqüência de lotes irregulares “encaixados” que serão após detalhados de acordo com o processo gerador, então é feita a versão final do esquema, com os ajustamentos na linha dos lotes e oferecidos os acessos para direito de passagem. Normalmente há alguma maneira de passar por cima dos processos convencionais para esse tipo de atividade, mas o governo precisa apoiar e não bloquear o processo, porque isso parte de práticas já estabelecidas.

Entrando ainda mais no detalhe do layout, a rua principal deve ser proposta com base na topografia e na conexão com a parte externa. Depois, decidir sobre os espaços urbanos, que devem ser vistos como nós de atividades para pedestres, conectados pelas ruas. Nova decisão: as ruas laterais que alimentam a rua principal são decididas — mesmo pensando que essa decisão significa a marcação com estacas no solo. Depois: definir a posição das casas (não ainda do lote, apenas a construção) usando estacas marcadas no solo, de tal maneira que as fachadas frontais reforcem o espaço urbano. Agora, cada família decide o plano total da casa que considera um pátio e um jardim, nos fundos. Este processo sofre limitações pelas ruas do entorno, caminhos de pedestres e vizinhos, mas espera-se que o pátio e o jardim formem um conjunto o mais

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coerente possível, isto é, uma área semi-aberta confortável para as pessoas ficarem e trabalharem, e não apenas um espaço residual. Esta parte, finalmente, permite fixar o lote, que é então, gravado. Os planos são desenhados com gravetos no chão.

À medida que as linhas dos lotes começam a ser decididas, então as ruas podem começar a tomar uma forma mais definida no plano (mas ainda não construídas). Espera-se que as ruas conectem e alimentem os segmentos dos espaços urbanos, que são definidos pelas frentes das casas. (Note-se que isso é o oposto de posicionar as casas para seguir as ruas existentes). A flexibilidade no desenho das ruas será mantida até que todas as casas sejam construídas. Claramente, não se verão muitas ruas retas cortando o loteamento (para o espanto dos burocratas do governo), porque elas não foram colocadas no início. Nem as ruas precisam ter uma largura uniforme, elas se abrem para o espaço urbano. As ruas surgem à medida que surge todo o loteamento. Agora começa a construção. Primeiro construir os passeios, depois então as casas, e, por último, pavimentar as ruas — se é que isso vai ser feito.

Uma seqüência de layout mais detalhada está incluída no Anexo.

SEÇÕES 12-16: SUGESTÕES PRÁTICAS PARA FAZER OS PROJETOS FUNCIONAREM

12. O papel do arquiteto / coordenador.

Nossa experiência com a construção de projetos nos leva a propor uma regra administrativa. É a de fazer um único indivíduo responsável por conseguir a “humanidade” de um projeto individual. O governo ou a organização não-governamental que financia o projeto irá apontar a pessoa que vai supervisionar o desenho e a construção e que vai coordenar a participação dos usuários. Nós sugerimos que esta tarefa não seja desempenhada por um empregado da burocracia governamental ou da empresa construtora, pela simples razão que esta pessoa não tem a necessária especialização no processo de desenho que nós estamos defendendo aqui. Idealmente, seria uma pessoa que tivesse um entendimento profissional dessas questões e que tivesse um sentido de responsabilidade profissional independente para supervisionar a apropriada implementação.

Este arquiteto / gerente de projeto será o responsável por fazer a diferença entre criar uma aparência militar / industrial versus um projeto construído final que seja

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humano e que propicie um sentimento de vida. De novo: isto não é uma questão de estética (que seria imediatamente descaracterizado pela agência financiadora como irrelevante para as pessoas pobres), mas de sobrevivência básica. Um projeto percebido pelos seus habitantes como hostil será eventualmente destruído por eles, e ao mesmo tempo destruirá, neles, o próprio sentido de si mesmos. Tanto quanto nós acreditamos em participação, tem sido mostrado que as pessoas que necessitam de habitação social não têm, sempre, a capacidade organizativa para trabalharem juntas e terminarem o projeto. O seu aporte é absolutamente necessário nos estágios de planejamento, mas aqui nós estamos falando de alguém “de fora” que será responsável junto aos residentes e que irá garantir o bem-estar quando forem pressionados a cortar custos e alterar o projeto de construção.

Uma parte crucial no papel do gerente de projetos tem que ser definida em termos da facilitação do processo em vários níveis. O gerente terá com freqüência, não apenas que encorajar o engajamento no trabalho, mas também ensinar às pessoas que não estão acostumadas a ele, e que podem não ter a habilidade e o hábito de uma ação efetivamente participativa. Os participantes podem vir para o processo com uma profunda descrença em qualquer método que dependa do esforço dos outros. Parte do desfio em um novo assentamento será, então, criar um ordeiro, confiável e efetivo processo colaborativo que engaje a população — mas estas pessoas podem estar traumatizadas devido a experiências com re-assentamentos anteriores e com violência social. Não se pode assumir que a comunidade pré-existente já tivesse estabelecido normas adequadas e comprometimento requerido para esse tipo de engajamento. Ao gerente vai ser requerido um papel que inevitavelmente envolverá uma parte do que é chamado de “construir a comunidade”, organização e treinamento em liderança.

Quando o projeto estiver completo, arquiteto / gerente do projeto deverá ter um pagamento pelo seu trabalho, ajustado pelo grau de quanto o projeto estiver bem-feito. O depoimento dos residentes sobre o processo, ao invés das declarações dos críticos de arquitetura deve ser a base para julgar esse sucesso. Não é impossível que um projeto que se mostrará sustentável e de sucesso pelas décadas futuras seja julgado e condenado pelas mentes estreitas dos ideólogos como parecendo antiquados e /ou muito parecidos com favelas, para permitir conforto político. Muitas pessoas no poder fixaram a visão de que uma cidade deve ser “limpa, industrial e moderna” — baseados em irrelevantes conceitos científicos fora de moda — e referem-se a estes modelos utópicos quando julgando um ambiente vivo.

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Nós estamos, na verdade, defendendo uma abordagem de-baixo-para-cima, com um nível intermediário, estritamente administrativo, do tipo de-cima-para-baixo. A não ser que uma clara responsabilidade e um sistema administrativo autônomo sejam colocados, o que nós queremos ver acontecer não vai jamais ocorrer. A burocracia impessoal do governo nunca vai se incomodar em fazer um lugar vivo e humano, porque eles podem com muito mais facilidade seguir regras não-criativas de modulação e combinação mecânica. O grupo que constrói não é responsável: ele quer terminar o seu trabalho no menor tempo e com as menores alterações possíveis. Os residentes não são suficientemente poderosos para garantir um ambiente vivo. Na realidade da construção, um projeto requer um defensor com o poder de coordenar todas estas forças.

13. A necessidade de materiais adaptáveis.

O mais difícil e negligenciado fator na escolha de materiais é a sua atração ao usuário. As pessoas ricas pagam muito por materiais “amigáveis” para que seu entorno propicie um preenchimento emocional. As casas auto-construídas seguem os mesmos princípios inconscientes, utilizando material barato e descartado, em maneiras criativas para criar um ambiente emocionalmente satisfatório (descaracterizado meramente como “primitiva” expressão artística). Compare-se isto com as superfícies hostis que são regularmente escolhidas para habitação social, num esforço de fazer aquelas estruturas mais duráveis. Estes tipos de materiais e de superfícies “duras” dão a impressão de dominação e de rejeição. É possível criar superfícies duráveis e que sejam amigáveis, mesmo que os planejadores não tenham pensado que valesse a pena ter esse trabalho para fazer habitação social.

Para complicar este quadro ainda mais, a questão dos materiais de construção desejados, vai diretamente agir sobre os preconceitos escondidos e as imagens de auto-estima, que são específicas culturalmente e talvez, até mesmo, localmente. As agências de controle, em alguns casos, banem certos materiais considerados de “baixo status”, como, por exemplo, o adobe (cuja superfície é tanto amigável como fácil de ser moldada, diferentemente do concreto). Em muitos casos são os próprios donos / proprietários os que rejeitam os materiais adaptáveis, nas regiões onde eles são usados na construção tradicional. Hassan Fathy não conseguiu fazer com que os pobres aceitassem viver nas casas de barro (Fathy, 1973). Este é um grande problema em todo o mundo: é a imagem representando um passado desprezado ao invés de um futuro utópico, promissor.

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A solução definitiva para este problema deve ser cultural. Os cidadãos devem descobrir orgulho nas suas heranças e construções tradicionais, e o grande prazer e valor que eles trazem. Ao mesmo tempo, o mito de uma utópica abordagem tecnológica precisa ser exposto pelo que ele é — uma imagem de marketing para feita para um público inocente — enquanto os reais benefícios da modernidade são mostrados como sendo inteiramente compatíveis com as práticas tradicionais (os encanamentos de água, a eletricidade, eletrodomésticos, etc.). Desta forma nós podemos gerar a “inteligência coletiva” que está incorporada na tradição cultural e imbuí-la com as melhores novas adaptações.

Como foi colocado por Jorge Luís Borges: “entre o tradicional e o novo, ou entre a ordem e a aventura, não há uma real oposição; o que nós chamamos de tradição hoje é a trama de séculos de aventura”.

Quando um governo constrói habitação social, ele está querendo resolver dois problemas de uma só vez: abrigar as pessoas que não tem os meios para prover a sua própria moradia e para promover a indústria de materiais e estimular a economia. Há uma boa razão para a última, pois o governo é associado aos maiores produtores de indústria de materiais de construção. É do interesse da economia consumir estes materiais em projetos financiados. No entanto, esta pode não ser a melhor solução para a moradia. Há duas razões para isto: uma relacionada à economia e outra com conexão emocional.

Uma favela auto-construída usa material barato e disponível tal como madeira, papelão, folhas de metal corrugado, pedras, plástico, restos de blocos de concreto, etc. Embora haja uma óbvia deficiência quanto a durabilidade destes materiais (o que se torna catastrófico durante tempestades e inundações) a enorme vantagem que estes materiais possuem é a adaptabilidade. Os proprietários têm uma enorme liberdade para determinar a forma e os detalhes de suas casas. Eles utilizam esta liberdade de desenho para adaptar a estrutura às sensibilidades humanas. Isto não é possível quando o governo constrói módulos habitacionais com materiais muito mais duráveis, tais como concreto armado. As pessoas têm que poder fazer modificações em suas casa como uma questão de princípio. Aqui nós temos uma oposição entre permanência/rigidez e impermanência / liberdade, no que influencia a forma dos prédios.

A habitação social deve ser feita de materiais permanentes, pois construções baratas e frágeis são um desserviço para a população. Favelas construídas com gravetos e papelão são modelos inaceitáveis de serem seguidos. No entanto, nós desejamos preservar tanto quanto possível, a LIBERDADE DE DESENHO, inerente à utilização

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de materiais impermanentes. Isto é essencial para garantir os ajustamentos no desenho que irão permitir uma geometria viva. Nas melhores casas auto-construídas, cada lasca de material é utilizada em uma maneira muito precisa para criar um tecido urbano vivo — um processo sofisticado que se compara às grandes aquisições arquitetônicas em qualquer lugar. A única solução que nós vemos para este conflito é o governo prover material apropriado (permanente, mas fácil de organizar, de cortar e de modelar) para que seja usado pelos moradores na construção ou na modificação de suas casas.

Nós voltamos sempre para a competição entre permanência e adaptabilidade. Mudanças adaptativas na forma são próximas do reparo e da auto-cura de um organismo, mas são com freqüência mal interpretadas como uma degradação do projeto. Na verdade a geometria está tentando curar-se (através da ação humana) depois da imposição de uma forma não-natural, alienada. Esta é a evolução orgânica natural e não deveria ser desencorajada só porque ela contradiz a visão “pura” de um arquiteto sobre como as pessoas DEVERIAM viver. Nós devemos enfaticamente condenar como não humana esta prática de proibir qualquer modificação na habitação social feita por seus moradores. Desde que amarradas a nossas sugestões para a propriedade, nós defendemos o direito fundamental de um proprietário / residente de modificar sua moradia de qualquer maneira desde que não invada os direitos dos vizinhos ou o espaço urbano.

Embora a intenção original da legislação de proibir mudanças na moradia fosse bem intencionada, ela não atingiu os seus objetivos. Sua intenção era de impedir legalmente que o prédio construído pelo governo, e onde ele investiu dinheiro, fosse destruído. Isto, no entanto, nunca funcionou. Prédios que são odiados por seus residentes (devido a suas superfícies e geometrias hostis) têm sido sistematicamente vandalisados e destruídos, e nenhuma legislação tem sido capaz de prevenir isto. O crescente uso de materiais duros, leva a unidades habitacionais que parecem fortalezas, mas os seus moradores, cada vez mais, as odeiam e as destroem. Espaços e superfícies opressivas impedem o sentido de bem-estar, gerando reações hostis. A solução está numa diferente direção: fazer unidades habitacionais que os moradores amem, e eles as manterão ao invés de destruí-las.

Em seu projeto em Mexicali, México, Alexander introduziu um método inovador para produzir tijolos, no sítio, usando uma prensa manual e o barro local (Alexander et. al. 1985). Ele enfatizou isto como um aspecto determinante do projeto, mesmo considerando que havia blocos de concreto prontos e disponíveis. Uma razão era a de estabelecer um suprimento local para todos os futuros residentes. Blocos de concreto

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não são caros, mas eles colocam um desafio financeiro. Outra razão é que eles limitam as possibilidades de desenho. Blocos de concreto padrão levam a configurações estruturais padrão, inviabilizando algumas das formas adaptativas que Alexander desejava introduzir.

Há oportunidade para a indústria da construção participar — através dos esforços diretos dos governos — provendo elementos industrializados, que podem, em muitos casos ser incluídos nos projetos. Um dos autores (EPP) desenvolveu um modelo para a auto-construção com materiais baratos e disponíveis no local, tais como terra socada para os perímetros, junto com a introdução de módulos sanitários industrializados de baixo custo. Estes módulos incluem depósito de água, vaso sanitário, pia, chuveiro e um filtro para o tratamento de águas usadas, para reciclagem. Eles podem ter também usos estruturais e incluir células solares para eletricidade e painéis solares para aquecimento de água e mesmo para cozinhar. Estes módulos podem ser construídos em grandes quantidades, baixando os custos e oferecendo tecnologia, ao mesmo tampo em que permitem a necessária flexibilidade e liberdade para o desenho e o desenvolvimento futuro das unidades.

Um de nós, (AMD), investigou este conceito mais recentemente para um projeto em Kingston, na Jamaica. Este “módulo-molhado” oferece, de modo custo-efetivo, os elementos básicos mecânicos e sanitários de uma casa, que são justamente os mais caros, ao mesmo tempo em que se combina com a habilidade dos moradores de construírem suas próprias casas bem adaptadas.

Nós devemos mencionar um caso em que estes módulos industriais foram reduzidos em complexidade, de maneira que a construção pode ser inicialmente mais adaptável às necessidades sociais. Alexander, em 1980, trabalhou em habitação social na Índia, e pensou em usar uma caixa de concreto pré-fabricado, contendo encanamentos para banho, vaso sanitário e cozinha (Alexander, 2005, livro 2, página 320). Esta solução seguiu as soluções de sucesso, anteriormente desenvolvidos por Balkrishna V. Doshi. No entanto, logo se mostrou claro que construir, para cada casa, uma base sólida (um espaço que representasse um padrão tradicional) era na verdade mais importante na seqüência da construção (porque era uma prioridade para os residentes) do que ter um módulo de concreto pré-fabricado com as instalações hidro-sanitárias. Então Alexander decidiu gastar a quantidade limitada de dinheiro disponível em um terraço, deixando uma passagem para a futura adição de encanamentos. Os residentes, então, utilizaram água e sanitários comunitários até que puderam construir os seus próprios. A fundação

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era mais vital para a vida da família do que o módulo de concreto pré-fabricado com as instalações.

14. A estratégia de financiamento se concentra na pequena escala.

A construção de habitação social não pode ser financiada apenas pelos residentes, desta maneira o governo e as entidades não-governamentais tem que sustentar os custos. Esta simples dependência traz a tona questões que afetam a forma da construção. Envolver os residentes na construção de suas casas reduzirá os desembolsos iniciais. No entanto, quanto maior o valor investido por uma agência externa, na habitação social, maior será o controle que a mesma vai querer ter sobre o produto final. Essa conseqüência natural leva inevitavelmente à subconsciente adoção de uma geometria de controle, nos moldes em que foi mostrado em seções anteriores.

Nós podemos oferecer alternativas:

1. As fontes de financiamento determinam agora a morfologia da habitação social. O governo central querendo construir da maneira mais eficiente, investe em uma abordagem altamente prescritiva, que sacrifica a complexidade da forma. Esta atitude não pode gerar um espaço urbano. Nós precisamos desenvolver um padrão flexível e baseado no desempenho para a morfologia. Nós também precisamos identificar fontes alternativas de financiamento para quebrar o monopólio prescritivo e assim, acabarmos com este anti-padrão.

2. Levantar fundos, a partir de várias fontes, para garantir casas que sejam acessíveis para os moradores das vizinhanças. Uma parceria-público-privada (PPP) é o caminho mais efetivo para usar a economia de mercado para gerar espaços urbanos, ao invés do monstro monolítico favorecido pela burocracia do governo.

3. O envolvimento com uma organização não governamental (ONG) irá impedir um governo central suspeito, de tentar sabotar o uso da linguagem de padrões na construção de um espaço urbano ou em transformar um projeto disfuncional em um espaço urbano.

Nós estamos tristemente conscientes sobre numerosos projetos de habitação social que não servem aos pobres, mas apenas oportunidades para os construtores e donos de terras de drenar dinheiro do governo. Se o governo subsidia aluguéis, então a

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oportunidade para a construção especulativa, que irá recuperar os investimentos iniciais na construção existe (como juros) dos próprios aluguéis. Nestes casos, a condição física das residências tem pouca importância. Além disso, a manutenção e a futura condição do tecido construído não é uma parte da equação dos lucros, pois não há expectativas de recobrar os investimentos feitos nas estruturas construídas. É esperado que as estruturas construídas sofrerão deterioração, então (porque não) encorajar construções não-permanentes desde o início. Claramente, aluguéis subsidiados podem trabalhar contra uma habitação social humana, contrariando a intenção da legislação original.

Freqüentemente, soluções sustentáveis, factíveis e possíveis de serem financiadas, são rejeitadas motivadas por excessiva avidez. Boas casas possíveis de serem compradas têm a desvantagem de que as margens de lucro são sempre pequenas (exceto se o mercado for manipulado para criar uma artificial escassez). Se o governo ou os promotores imobiliários não conseguem ver uma oportunidade de enriquecer no processo, eles decidem abandonar seu apoio para o projeto, mesmo que inicialmente eles tenham empenhado seu apoio. Você precisa de um lucro para encorajar a participação, mas este tem que ser equilibrado com o retorno por estar resolvendo um sério problema social.

O envolvimento com ONGs requer que as autoridades voltadas à habitação social construam não apenas PPP para a reurbanização, mas também para elaborar networks de parceiros locais. Todos se beneficiam do dinheiro alocado. No entanto, um dos pontos fracos aqui é que embora as agências sejam boas em conseguir provedores para os serviços sociais e os órgãos municipais para colaborar, elas não são tão boas em conseguir o engajamento dos ocupantes das terras. A maioria dos provedores de serviço social ainda está operando de acordo com o velho modelo de provisão de serviço, ao invés do novo modelo emergente de soluções “baseadas na comunidade” para uma ampla gama de problemas. O velho modelo de serviço social engaja as pessoas em redes baseadas em suas patologias particulares (e há uma inteira indústria de serviços que depende daquilo que as pessoas necessitam). O novo modelo engaja as pessoas baseando-se nas suas habilidades e no que elas aportam à rede (e não no que elas “precisam”). Este novo modelo, assentado na idéia de desenvolvimento comunitário baseado-nos-recursos, tem tido ampla aplicação na saúde pública e de uma maneira geral, na organização das comunidades.

Nós também enfrentamos um problema com as fontes de financiamento que desejam minimizar a incumbência administrativa concentrando-se nos trabalhos de larga escala. É muito mais fácil entregar dinheiro numa grande soma, do que controlar a

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mesma quantidade dividida e distribuída para muitos diferentes tomadores de empréstimos. Reduzir o número de transações toma precedência sobre os outros sistemas baseados em oferta e demanda. No entanto, é fundamental para as pessoas exatamente essa flexibilidade do micro-financiamento para terem a possibilidade de construir suas próprias casas. Restaurar um bairro requer um vasto número de pequenas intervenções. Um trabalho promissor tem sido feito para desenvolver um sistema efetivo de gerenciamento que permita esses micro-empréstimos (por exemplo, o Banco Grameen). Novamente, este é um modelo de financiamento muito mais sofisticado e avançado, pois é altamente diferenciado.

Conforme foi colocado anteriormente, nós mencionamos o obstáculo que significa ter essas imagens geométricas de controle incorporadas na mente. Elas são também amarradas a um profundo preconceito contra a pequena escala. Um projeto governamental tem uma certa dificuldade para ser administrado, que independe do tamanho do projeto. Naturalmente, os burocratas desejam minimizar o número total de projetos, o que os leva a aprovar um número pequeno de grandes projetos. Por exemplo, em face à construção de um novo espaço urbano, eles querem construir o maior possível e todo ao mesmo tempo, para economizar os problemas burocráticos gerados por sua administração. Esta forma de agir contradiz nossas sugestões para a construção de um espaço urbano pedaço por pedaço, ao longo do tempo, com interrupções e idas e vindas entre os passos do projeto.

15. Trabalhando com o sistema existente.

O atual sistema de planejamento e de construção cria e perpetua uma dependência que é difícil — e, na maioria dos casos, impossível — de quebrar. Ao aumentar os padrões construtivos além do ponto no qual eles podem ser, de maneira razoável, satisfeitos pela auto-construção, ele muda inteiramente a indústria da habitação, que passa de local e de pequena escala, a funcionar somente em grande escala. Os padrões para a construção desenvolveram-se em resposta a ameaças sérias e reais à saúde e à segurança. No entanto, como muitos outros sistemas tecnológicos, suas conseqüências não pretendidas não são triviais e podem ser desastrosas. Isto está acontecendo atualmente na reconstrução da região do Golfo do México, após o furacão Katrina.

O sistema em funcionamento trabalha tanto para beneficiar burocratas do governo quanto grandes empreendedores, que estão freqüentemente ligados por apoio mútuo. Mas o que pode ser visto como benefício para um sistema comercial ou de governo

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pode significar desastre para outro, e maior, segmento da sociedade. Um de nós (AMD) tem defendido, em relação à reconstrução a pós a devastação do Katrina, o uso de estratégias que permitam o florescimento dos mesmos processos sociais que ocorriam anteriormente (Duany, 2007). Estas estratégias enfrentam desafios desencorajadores devido à presença dos atuais sistemas de construção, financiamento e regulação.

Muitas das casas destruídas no furacão, particularmente aquelas dos bairros de baixa renda, eram auto-construídas e não acompanham os atuais códigos ou padrões de financiamento. O tecido urbano existente era o produto de animados processos de auto-construção ao longo de gerações, com a vantagem de que ele não era baseado em dívidas. Esta era uma sociedade de proprietários que eram livres de dívidas, cujas vidas poderiam ser estruturadas ao redor de atividades de suas escolhas (Duany, 2007). Aquelas casas estavam fora do sistema, porque devido à sua construção em desconformidade com os códigos as tornavam impossíveis de serem financiadas. O sistema agora requer um contrato de dívida, já que os novos padrões de construção não podem ser alcançados sem a intervenção comercial. Na maioria dos casos isto significa que o governo deve intervir e construir a habitação social, resolvendo um problema que ele próprio criou (Duany, 2007). E o ciclo de conseqüências não desejadas continua.

Citando Duany: “A barreira criada por desenhos, permissões, construtores, inspeções — o profissionalismo disto tudo — elimina a auto-construção. De alguma maneira deve haver um processo através do qual as pessoas possam construir casas simples, funcionais para si mesmas, seja por construção própria ou por troca (escambo) com outros profissionais. Deve haver projetos gratuitos de casas que possam ser construídas aos poucos e que não requeiram um arquiteto, nem licenças ou inspeções complicadas; deve haver padrões técnicos baseados no senso-comum. Sem isto, haverá o desconforto do débito para todos. E débito, no Caribe, não significa apenas dever dinheiro — é a eliminação da cultura que emerge do lazer.”

Embora isto possa ser “lazer” nos moldes dos padrões da classe média, isto representa uma vida difícil para um tecido cultural fértil e vibrante que é simplesmente negligenciado (mesmo que seja uma parte direta dela) pela economia convencional. Os habitantes da moderna classe média, em todo o mundo, consideram um sistema dominado pelo débito, como dado: muito do tempo de trabalho das suas vidas é gasto apenas para pagar o financiamento da moradia. De fato, o sistema funciona impedindo outras opções para obter um teto sobre a cabeça. A classe média consegue liberação do sistema financeiro somente após a aposentadoria, quando o financiamento de 30 anos é

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finalmente pego. A habitação erigida por auto-construção, com dinheiro e troca (escambo) é uma fuga deste sistema, e é visto pelo governo e pelos grandes empresários como uma ameaça a sua hegemonia. Este é um problema estrutural, não uma intenção malévola. A dívida é a chave, mas ela é apenas uma variável de um sistema interconectado.

Não é fácil implementar este tipo de inovação, porque na maioria dos países e regiões, já existe um sistema bem estabelecido que produz, rigidamente, habitação social inumana (mas que ele acredita, ao contrário, ser uma solução iluminada e progressista). Muitas vezes nos nossos projetos a primeira coisa a ser feita é começar a estudar o sistema de produção habitacional, para superá-lo. Estes sistemas são criados por uma engrenagem composta de burocracias, especialistas, instituições financeiras, entidades políticas, etc. É possível construir os tangíveis físicos, mas não nos sistemas. Há muito que precisa ser superado, mas que resistirá a ser abandonado.

Nós (o grupo de urbanistas) não podemos estar diretamente envolvidos nesta estratégia, que é a responsabilidade do cliente e das organizações de apoio. As entidades locais devem resolver problemas de como proceder e estabelecer as alianças que sustentarão o projeto, onde nós estaremos agindo como catalisadores da mudança. Embora enfrentando a oposição do resto da burocracia, uma pequena parte, ou várias unidades independentes dentro do governo, poderiam estar promovendo nosso projeto. A maior parte do tempo, os problemas com habitação social inovadora, não são as soluções técnicas, sociais ou mesmo financeiras: elas são quase sempre políticas.

Você pode tentar forçar mudanças na abordagem do desenho, e alguma coisa boa pode vir daí, mas só afasta você do processo. Um projeto tende a ser uma luta de poder que tira tempo e esforço da construção. Alternativamente, podemos tentar cooperar com o sistema, juntando financiadores e facilitadores de uma maneira inesperada. Mas isso vai requerer que nós reconheçamos estar trabalhando com um sistema existente como um diferente tipo de problema, não linear, mas multi-variado e “cultural”. É necessário estar mais enraizado no sistema de operação local (uma cultura forte existente) para resolver aqueles problemas, para ter alguma chance de ver onde estão as alavancas (para podermos acioná-las para efetuar a mudança) e ver como as decisões são tomadas, nos vários níveis.

Na maioria dos casos, uma estratégia de sucesso vai combinar aspectos de “trabalhando com o sistema” com “reformando o sistema a partir de fora”. Ao fazer uma avaliação, mostrar as limitações críticas que nós encontramos no sistema de produção existente é o primeiro e mais determinante dos passos a serem dados. Então,

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deveríamos trabalhar para negociar uma forma de “atalho” que considere, desde o início, as limitações encontradas antes de tentar desmantelar, completamente, o sistema existente. Pode ser realmente necessário transformar radicalmente o sistema existente, mas este é um problema separado do desenho e da construção do tecido urbano, e nós não desejamos gastar todas as nossas energias lutando contra o sistema. Por outro lado, se não forem possíveis atalhos, vai haver pouca alternativa que não seja pressionar por uma reforma do sistema.

Alexander (2005, livro 2, página 536) mostra sua própria experiência com este tipo de luta. Ao longo de um período de trinta anos gerando projetos, ele se deu conta que o maior problema é que a implementação exige muito. “Nas nossas primeiras experiências, nós freqüentemente entramos em situações inacreditáveis para fazer um novo processo ser implementado, e funcionar. Mas a quantidade de esforço que nós tivemos que fazer para tê-lo funcionando — a verdadeira fonte do nosso sucesso — era também o lado fraco do que nós conseguíamos. Em muitos casos, a magnitude do esforço especial que tinha que ser feito para sustentar um novo processo era massivo — grande demais, para facilmente ou razoavelmente, ser copiado”.

Alexander, em cada um dos casos, teve sucesso substituindo o sistema existente combinando o procedimento, o processo, a atitude e as suas regras de funcionamento com um sistema inteiramente diferente. Mas o esforço requerido para mudar o sistema inteiro, mesmo nos casos em que ele conseguiu, não era facilmente replicável. Ele conclui que aqui, como em qualquer experimento científico, é a REPLICABILIDADE que é importante, não a singularidade da ocorrência. Se o processo não é facilmente replicável, em última instância, ele não é útil. Então, se um método de produção tem tanto componentes que são totalmente diferentes do sistema que funcionava anteriormente, ele não é facilmente acomodável dentro do velho método, não pode, então, ser copiado amplamente em regiões onde a velha metodologia ainda é aplicada.

Uma analogia genética, proposta por Alexander, sugere caminhos para ter sucesso no longo termo. Um processo apresentado como um sistema complexo, completo (como um código genético para um organismo inteiro) requer que sua implementação seja, ou inteira, ou nenhuma. Neste caso, o sistema existente de implementação deve mudar para permitir o projeto ser construído. Se, por outro lado, nosso projeto é apresentado (e entendido) como uma coleção de peças semi-independentes, cada uma das quais pode ser implementada facilmente, então, há uma chance maior de que uma ou mais das peças se juntem. Grupos pequenos de operadores, desta forma, poderiam aplicar cada peça do processo, sem requerer o apoio do sistema. Alexander tem esperança que

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peças de metodologia copiadas facilmente irão se espalhar independentemente e que, eventualmente, este processo de difusão levará, ao longo do tempo, a um “sistema operacional” inteiramente novo.

16. A estratégia de manutenção se concentra no usuário.

A não ser que se façam provisões, no começo, para a manutenção continuada do ambiente construído, ele irá tornar-se disfuncional. Os projetos de habitação social e as favelas podem ter problemas muito sérios, mas alguns são, claramente, de menor sucesso do ponto de vista social, do que outros, e a deterioração física é vista crescer ao longo do tempo. Esta idéia está de acordo com a concepção orgânica do tecido urbano. Todas as entidades vivas requerem manutenção contínua e reparo: é parte de estar vivo. Aqui nós podemos distinguir os dois componentes principais da vida, separados entre mecanismos genéticos e metabólicos. Em primeiro lugar, processos genéticos constroem o organismo, enquanto os processos metabólicos o mantém e continuamente o reparam.

Os mesmos processos, ou seus análogos próximos são aplicáveis ao tecido urbano como uma entidade orgânica. Uma vez construído, ele tem que incorporar em si mesmo, os mecanismos para sua manutenção. A manutenção não vem de um processo de-cima-para-baixo. Nós estamos desapontados pela ampla negligência das forças responsáveis pela evolução temporal do tecido urbano, e pelo que é requerido para mantê-lo numa ordem saudável. Muitas pessoas têm uma concepção não-realística, estática da forma urbana.

O modelo orgânico leva a várias recomendações:

1. Encoraje e apóie os ocupantes a manter suas moradias ao garantir uma conexão emocional, desde o início do processo. A solução de aluguel tradicional tem sido desastrosa. Não é razoável para um ocupante valorizar uma estrutura material, sem feições, e que é de propriedade de um outro. No entanto, é possível estabelecer um sentimento de propriedade e de responsabilidade coletivas. Numa situação de aluguel, a coisa mais importante é criar condições para controle e auto-gestão coletivos que sejam efetivos e significativos. Propriedade literal não é sempre necessária. Um investidor, no sentido usual, pode também ser alguém com um sentido de propriedade no processo.

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2. Torne possível possuir uma casa que a pessoa possa comprar, mesmo se ela for do tipo mais primitivo de moradia. Encoraje o governo a comprometer-se com o financiamento, visto como uma forma saudável de investimento futuro que previne a habitação social de ser destruída por seus habitantes.

3. Estabeleça um código legislativo estrito de responsabilidade para os residentes. A chave para o sucesso deste tipo de código é que os residentes devem ter um sentido de propriedade em relação ao código. È fundamental que eles participem em sua formulação. Os proprietários podem ser mantidos como os responsáveis pela manutenção do seu ambiente, o que é o mais difícil de conseguir com os que alugam. Já que o suprimento não vai nunca ser suficiente para a demanda, os proprietários podem cuidar de suas habitações.

4. Uma regra observada no urbanismo é que o nível dos serviços providos é proporcional ao nível de regulações e de restrições. As favelas não têm serviços, e não têm regulações. No outro extremo, as comunidades cercadas, de altas rendas, recebem muitos serviços, mas são também altamente reguladas.

A habilidade dos ocupantes em manter suas moradias não pode alcançada através do requerimento de uma autoridade central (com poder suficiente para expulsá-los, caso não cumpram as regras) de que disponham seu tempo trabalhando. “Manutenção” tem que estar conectado com “governança”. Na reurbanização do Columbia Point, em Boston, a companhia de loteamento assinou um contrato que concordava em dividir as responsabilidades de controle do gerenciamento meio a meio com os residentes. O problema tradicional com habitação pública tem sido que as pessoas mantêm a parte interna das suas casas, mas não há uma capacidade coletiva de assumir a responsabilidade pela parte externa. A solução para “o espaço defensável” tem sido o de privatizar ou abandonar as áreas públicas, tanto quanto possível — o que é expresso na geometria do projeto. Isso, no entanto, leva a um crescente isolamento e em mudanças fundamentais, em direção a uma sociedade cada vez mais introvertida.

A melhor solução é simplesmente um padrão com uma distinção bem definida entre as esferas públicas e privadas, MAIS uma capacidade coletiva de tomar responsabilidade pelo espaço. Uma parte desta capacidade tem a ver com um desenho que facilite “olhos na rua” (pórticos frontais, janelas, etc.), mas “olhos na rua” tem sentido somente se estiverem respaldados por condições de confiança, reciprocidade e eficácia coletiva. As pessoas tendem a esquecer, freqüentemente, que o bairro de Jane

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Jacobs funcionava não somente porque as pessoas podiam ver as ruas, mas porque as pessoas possuíam um sentido de obrigação como membros de um tipo de comunidade (Jacobs, 1961). Ela descreveu uma característica do ambiente social que é agora descrito em termos de “capital social”. Isto é como alguém cria um efetivo “código de responsabilidade”. Se você tentar impor isto (como tentam as autoridades que regulam a habitação social), então você gera uma ampliação da recusa, em face da qual nenhum mecanismo de reforço vai funcionar, não importa quanto intrusivo ele seja.

A propriedade das moradias parece ser uma boa coisa a ser encorajada, a partir de todas as evidências. No entanto, não é verdade que os moradores não podem ser responsáveis por manterem seu ambiente de entorno. Os proprietários podem ser responsáveis na medida em que eles tenham interesse em suas casas, o que significa que eles são motivados pela preocupação pelo valor de troca incorporado nas suas moradias. Os que alugam também podem ter um envolvimento no lugar, mas somente se as relações sociais envolvidas não estão reduzidas ao frio nexo do dinheiro — isto é, uma quantidade de metros quadrados por uma quantia mensal de aluguel. È possível, (e freqüentemente acontece) que os inquilinos podem construir seus “investimentos” no valor de uso do lugar, dependendo da extensão a qual eles se beneficiam do network específico de relações sociais que definem a vizinhança. (Note-se que a vizinhança de Jane Jacobs não era uma vizinhança de proprietários).

Também é importante incluir uma mistura de oportunidades de aluguel e de compra. Não é todo o mundo que quer se responsabilizar com a incumbência da propriedade de uma casa, e não são todos que tem possibilidade de manter uma casa. Uma das coisas que deveria ser conseguida pela “habitação social” é que os custos cotidianos da moradia fossem socializados, e não somente o preço de compra. Pense sobre a forma como o movimento de co-habitação tem feito a mesma coisa. Algumas das idéias do movimento de co-habitação devem ser incorporadas para ajudar a garantir a manutenção. (Para os que não são familiarizados com o termo, co-habitação refere-se a um conjunto de moradias que dividem a mesma área de terra, e que normalmente inclui compartilhar um prédio para reuniões e refeições em comum — veja o Padrão 37: Conjunto de Casas, em Alexander et. al. (1977). Na nossa experiência, o padrão funciona melhor quando moradores de classe média são relacionados fortemente por crenças religiosas comuns, como nos kibutzim israelenses ou certas seitas cristãs. Por outro lado, ter em comum a pobreza não é, por si só, um fator unificador suficiente!).

SEÇÕES 1-17: ALGUNS DOS PROBLEMAS A ENFRENTAR

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17. A re-urbanizando e a promoção sanitária da favela: problemas e soluções.

Embora este paper analise o processo de construção de assentamentos sociais NOVOS, nossa abordagem pode ser ajustada para a re-urbanização de favelas. Em termos ecológicos, a partir da competição, nós aceitamos e aprendemos, ao invés de tentar exterminá-las, (no espectro mais baixo do urbanismo, as “espécies”). Os governos desejariam simplesmente que as favelas desaparecessem (recusando, mesmo a desenhá-las nos mapas das cidades) e que seus residentes espontaneamente se mudassem para o campo, mas poderosas forças econômicas globais garantem que isso não vá acontecer. Nós, como urbanistas preocupados em abrigar os pobres, precisamos aceitar as favelas como um fenômeno social e urbano, e tentar fazer o melhor possível dentro da situação existente.

Não é sempre possível, e mesmo desejável, aceitar uma favela existente e transformá-la em um melhor lugar para viver. Primeiro, porque é freqüente que as ocupações cresçam em solo poluído ou tóxico, ou em solo instável, em altas declividades ou em áreas inundáveis. Periodicamente seus habitantes são mortos por desastres naturais e há pouco que possa ser feito para re-urbanizar um assentamento localizado em um solo perigoso de maneira a torná-lo mais seguro. Segundo, os assentamentos irregulares invadem reservas naturais que são necessárias para regenerar o oxigênio necessário para a cidade inteira. Estes são os “pulmões” de uma população urbana, e precisam ser preservados da destruição e de serem invadidos. Terceiro, os assentamentos irregulares produzem poluição e dejetos humanos que causam danos ao resto da cidade. Este problema não pode ser ignorado. Mesmo se o governo não deseja legitimar uma favela particular, tratar o lixo beneficia a cidade inteira.

Vamos assumir, por um momento, que os problemas sociais (que são particularmente presentes e ameaçadores nas favelas) possam ser atacados independentemente dos problemas provenientes da forma arquitetônica e da forma urbana. Alguém pode facilmente ir a um assentamento existente e tentar repará-lo, com o auxílio dos correntes ocupantes. John F. C. Turner (1976) fez exatamente isto, estabelecendo um precedente para várias intervenções de sucesso, na América Latina, especialmente, na Colômbia. O único obstáculo — e esse é um muito profundo — é a convicção filosófica de que a geometria da favela está ultrapassada em uma sociedade moderna. Para este tipo de pensamento, qualquer “reparo” torna-se destruição e substituição. Nós precisamos verdadeiramente compreender o processo de reparação e de auto-cura do

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tecido urbano, sem as influências dos preconceitos correntes.

Discordando das crenças do planejamento convencional, nós aceitamos a geometria da favela e chamamos a atenção para as suas principais deficiências: falta de serviços, falta de condições sanitárias e de espaços naturais. Na maioria dos casos o tecido urbano é perfeitamente adaptado à topografia e às características naturais da paisagem (simplesmente porque os proprietários-construtores não tiveram acesso a buldozzers e dinamite). O que usualmente falta são espaços verdes e árvores. A triste verdade é que as árvores existentes são cortadas e utilizadas como material de construção. A vegetação compete com as pessoas pelo espaço. A pobreza da favela freqüentemente inclui pobreza em plantas vivas: isso é um luxo aqui devido às extremas condições de vida. Mesmo assim, muitos residentes tentam manter um pequeno jardim, se isso for possível.

Nosso método é altamente flexível e seus princípios se mantêm válidos mesmo se a situação muda. Uma série de passos, dados pouco a pouco (e, portanto, muito econômicos) pode recuperar o complexo tecido urbano da favela. Mais do que qualquer coisa, nós advogamos um processo de REFORÇO, adotando muito da geometria ali presente onde ela parece funcionar e intervindo para substituir as estruturas patológicas. Os encanamentos e as instalações sanitárias são fundamentais. Os passeios são as coisas mais importantes e extremamente necessárias em uma favela, que é basicamente o reino do pedestre. A existência de passeios verdadeiros eleva a favela a uma tipologia urbana de mais “alta-classe” e mais permanente. As fachadas frontais existentes determinam exatamente onde os passeios devem ser construídos. As ruas de uma favela são usualmente de má qualidade, isso se elas forem pavimentadas, então as redes de água, esgoto e eletricidade devem ser introduzidas sob as ruas. Depois que muitos prédios sejam reforçados, pode-se finalmente, pavimentar a via.

A adoção de medidas sanitárias, imediatas, pode minimizar a sujeira e a doença. Não é preciso buldozzer a favela para ter uma área mais saudável. Certamente, isso não irá aumentar os níveis de renda de seus residentes, nem melhorar suas condições sociais. Botando as mesmas pessoas em apartamentos do tipo bunkers de concreto pode aparecer bem em uma fotografia, mas na verdade corta as suas conexões societais, tornando piores, em última análise, suas condições. Nós sabemos que quando os pobres são forçados a se mudarem de um bairro de escala humana para blocos de apartamentos em altura, a situação de coesão social piora catastroficamente. Por outro lado, muitos problemas sociais não são solucionáveis através da morfologia urbana por si só.

Uma favela é usualmente construída de materiais frágeis e não-permanentes. O

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governo pode auxiliar seus residentes a reconstruir suas casas gradualmente usando materiais mais permanentes. Nós não queremos dizer, com isso, em substituir a tipologia das suas casas, mas em substituir uma cobertura instável ou as paredes (usando esta oportunidade para inserir as canalizações de água e de eletricidade). Uma casa feita de papelão e de telhas corrugadas de maneira semelhante, usando tijolos, blocos de concreto e painéis mais sólidos providos de maneira barata pelo governo. Algumas vezes os residentes estão apenas esperando até receberem um documento legal para a terra onde eles estão vivendo, e então eles reconstroem suas casa com materiais mais permanentes, financiados pelas suas economias acumuladas. Não sendo assim, eles são relutantes em investir o mínimo que seja na estrutura.

Alguns leitores irão objetar em aceitar a super-ocupação que existe nas favelas e talvez até mesmo achem ultrajante que se sugira manter estas altas densidades. Aqui nós temos que estudar as altas densidades dos assentamentos de alta-renda, na mesma sociedade, para decidir quanta densidade pode ser tolerada. Não é a densidade por si só que é objetável, mas as condições difíceis de vida que resultam desta densidade. Então se pode ver que porções do tecido urbano podem ser mantidas com altas densidades quando possuem melhores condições sanitárias. Infelizmente, estas sugestões têm sido execradas até agora.

Em alguns lugares, aceitar as favelas e legalizar seus lotes tem vindo sob uma crítica poderosa da parte de vários ativistas sociais, que vêm aí uma solução fácil a ser tomada pelos governos. A acusação é de que ao simplesmente legalizar um assentamento não saudável, o governo se desresponsabiliza de construir habitações sociais mais permanentes. Em nossa opinião a magnitude do problema representado pela habitação social é tão vasta, ao ponto de ser quase impossível de ser resolvido. A simples questão econômica põe uma solução ampla fora das possibilidades. Nossa abordagem atua com um passo a cada momento, re-urbanizando aquelas porções da favela que podem ser tornadas mais saudáveis, e, ao mesmo tempo, construindo novas habitações seguindo o paradigma orgânico. Se estes passos acontecem, então eles podem ser repetidos definitivamente, progredindo na direção de uma melhoria no longo prazo.

Os bancos, os governos e as companhias construtoras são cativados pela economia de escala e são menos sensíveis às economias do lugar e da diferença necessárias para restaurar uma vizinhança. A partir de uma percepção limitada e utilizando relativamente primitivos instrumentos econômicos, eles preferem arrasar um assentamento e construí-lo de novo. Fazer isto é muito menos problemático e menos custoso em termos monetários. Mas claro que a insustentabilidade deste modelo

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econômico desequilibrado (e seu terrível custo para a sociedade) está se tornando dolorosamente evidente.

Os governos são relutantes em preocupar-se com as intervenções urbanas em pequena escala, e ao contrário, financiam somente os de larga-escala, o que economiza a contabilização dos custos (Salingaros, 2005, Capítulo 3). Mais ainda, um tecido urbano vivo tem que ser mantido por um enorme número de intervenções de pequena-escala, que é uma parte essencial do processo de reparo orgânico. Instituições como os bancos (com a exceção antes notada de micro-financiamento do Banco Grameen) não querem se incomodar com pequenos empréstimos para a construção de pequena escala nas áreas pobres. No entanto, todos os bancos operam também em pequena escala, administrando pequenos empréstimos e contas. Eles possuem a habilidade técnica para servir pequenos empréstimos, fazendo isto rotineiramente com cartões de crédito, financiamento de carros e as linhas de crédito pessoal. A tecnologia desenvolveu-se na direção da diferenciação e da customização, ajudada em parte pela revolução na tecnologia dos softwares. Estas inovações têm ainda que ser aplicadas no reino da habitação social, que tende a seguir os velhos e inflexíveis formatos institucionais.

Em uma visão mais positiva, muitos grupos descobriram soluções de pequena escala de enorme valor. Por exemplo, em anos recentes, conceitos do tipo micro-financiamento, geração de micro-energia, centros de mães, centros de tecnologia, fazendas urbanas, banheiros de compostagem e outras idéias vem sendo implementadas com sucesso. Estes processos de pequena escala podem, eventualmente, fazer grandes diferenças, tanto para as favelas como para a habitação social. Elas estão de acordo com nossa insistência na pequena escala como um mecanismo de auto-ajuda nestas comunidades e também em estabelecer um sentido de comunidade para uma população disfuncional (Habitatjam, 2006). Estas soluções de pequena escala que representam independência de recursos, oferecem uma alternativa saudável às forças que atuam tentando impor um controle central.

18. Realidades desconfortáveis: ascensão dos preços da terra, corrupção, desestabilização nacional.

Nós gostaríamos de anteceder alguns dos problemas que poderiam surgir em um sistema imperfeito (como o ambiente da área imobiliária) com o objetivo de analisar a dura realidade do mercado. A decisão de destruir, de reforçar ou de apenas ignorar as favelas é do governo. Nós encaramos decisões desconfortáveis, que afetam as vidas de

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muitas pessoas, já em desesperadas situações. Não há uma solução simples, nem método universal que possa ser aplicado em todos os casos. O máximo que nós podemos sugerir é uma abordagem cautelosa, sem preconceito ideológico que beneficiará a população como um todo. Com freqüência, significativos, embora anônimos assentamentos tem sido destruídos em nome do desenho “racional”, que é nada mais do que uma ferramenta para manter o status quo.

As ocupações requerem proximidade com a cidade, que é o local para onde as populações se mudam, em primeiro lugar. A proximidade é essencial para eles, muito mais do que para as móveis classes médias. Presentear os pobres com bem-construídas casas longe do centro da cidade não é presente valioso. Transferir os pobres para as habitações sociais construídas pelo governo fora da cidade pode empurrá-los ainda mais profundamente na desvalia, pois eles terão que gastar uma maior porção dos seus ganhos em transporte. Nossa recomendação para estabelecer a propriedade contribui para desfazer as soluções visadas, pois as casas bem-construídas são freqüentemente re-vendidas para moradores de classe média, enquanto os pobres retornam para os assentamentos irregulares (tanto para os originais, como constroem outros). Eles preferem usar o lucro da venda das suas casas financiadas pelo governo. Na economia de aluguel, um sistema de sub-locação substitui os residentes de classe média pelos mais pobres.

Logo que uma peça imobiliária é registrada legalmente, o título transferível da terra se torna uma mercadoria negociável e entra no mercado livre (que pode ser um sub-mercado ilegal). Mesmo se um lote é localizado no meio de uma favela, ou em um não muito desejável projeto de habitação social, o seu preço pode subir. As oportunidades para o ganho orientam a consolidação dessas parcelas de terra para poucas mãos, não as dos residentes originais. Isto, na verdade, ocorreu em muitos países ao redor do mundo, levando a um corrupto pós-mercado imobiliário das favelas. Ironicamente, o acréscimo de infra-estrutura na favela aumenta seu valor, o que pode expulsar seus ocupantes originais. Em antecipação a este processo, a especulação pode correr amplamente na terra não construída.

Um sistema ligando oficiais corruptos a organizações criminosas permeia o processo encontrando maneiras de lucrar tanto das favelas como da habitação social. Apesar da aparentemente insolúvel natureza sócio-legal do problema, nós acreditamos que nosso método realmente auxilia no longo termo. Primeiramente, ao estabelecer uma apropriação mais amarrada do tecido urbano (tanto em termos sociais quanto emocionais) são reduzidas as oportunidades para a exploração, evitando-a. Segundo,

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muito dos centros de exploração que oferecem serviços que o governo se recusa a prover para os moradores das favelas, é simplesmente suprido pela demanda, embora a preços exorbitantes.

Uma preocupação muito diferente vem com a nossa recomendação de engajamento em organizações não governamentais (ONGs). Enquanto elas podem ser uma muito melhor opção do que a inflexível burocracia governamental, nós enfrentamos um problema com graves conseqüências. As maiores ONGs freqüentemente promovem “desenvolvimento” tecnológico na forma de grandes projetos como eletrificação, infra-estrutura e construção. Eles vêm o quadro em termos de larga escala, e gostariam de ver os maiores contratos nas mãos das companhias estrangeiras que possuem a experiência comprovada de desenvolverem projetos complexos destes tipos. O problema é que muitos países não podem pagar por intervenções em larga escala.

Apesar desta realidade, os governos com freqüência são seduzidos a entrar nestes contratos, que em última instância, eles não podem pagar. Um país em desenvolvimento conta com suas reservas naturais para pagar a conta para uma rápida modernização. No entanto, as flutuações econômicas e os eventos inesperados são usualmente suficientes para balançar a fragilidade destes acordos. O resultado é que o país fica afundado na dívida. Ao tornar-se um país devedor, a nação pode ser estabilizada apenas com a ajuda do BID ou do Banco Mundial. A reestruturação via os Programas de Ajustamento Estruturais (SAPs), impõem condições econômicas muito duras, que pioram as vidas dos setores mais pobres da sociedade. Não apenas o país perde parte de sua soberania como, deste ponto em diante, fica em posição de não poder ajudar seus pobres de nenhuma forma.

A lição a ser aprendida a partir disto — uma lição que muitos países infelizmente falharam em aprender — é a necessidade de trabalhar na pequena escala. Projetos novos, amplos e caros, são factíveis para as nações ricas, mas muito arriscados para as nações em desenvolvimento. (Projetos em larga escala são, na maior parte, baseados em processos insustentáveis que desperdiçam grandes quantidades de energia e de recursos). A habitação social deveria crescer de-baixo-para-cima, aplicando soluções locais para projetos de pequena escala. Se estas soluções funcionarem, elas poderão ser aplicadas indefinidamente. Há muitas ONGs independentes e que podem auxiliar, e especialistas estrangeiros que oferecem seu conhecimento e experiência graciosamente. É melhor apoiar-se tanto quanto possível nos recursos, no know-how e no capital financeiro local. Uma solução de longo prazo, baseada na evolução adaptativa dos

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padrões e da construção da habitação é mais sustentável do que a tecnologia do “faça rápido”.

19. Os arquitetos contribuem para fazer os projetos existentes alienados.

Um número de projetos construídos na América Latina resolveu uma miríade de problemas sobre como lidar com a burocracia, concordando com os fatores práticos e com a estrutura política existente. Grupos envolveram construção privada com organizações não-governamentais e o governo local para construir e financiar habitação social. No entanto, ainda há uma grande distância entre técnicas para implementação e como o produto final realmente é. Como foi notado anteriormente, a evidência científica sugere que isto não é uma questão de “gosto pessoal”, mas que há uma ampla área de consenso na avaliação humana, enraizada em processos universais de percepção e da biologia humana. Estas áreas de consenso podem ser estabelecidas através de “metodologias de consenso” do tipo das que nós usamos rotineiramente nos nossos processos de desenho colaborativo.

Neste ponto nós estamos menos entusiásticos sobre o que tem sido alcançado na América Latina. Apesar de todas as melhores intenções e da enorme quantidade de esforço investido, nós vemos muitos projetos que, em uma ampla gama de avaliações, são entendidos como tendo um caráter impessoal e industrial. Claro está que nem todos eles possuem o sentimento “mortal” do totalitarismo das habitações dos blocos de apartamento, mas a ambiência do espaço construído varia desde o horrível para o neutro. Em nosso julgamento, a forma e o layout falham em se conectar emocionalmente com os usuários. É interessante pesquisar as razões pelas quais estas soluções não são levadas através de todos os passos do desenho adaptativo.

Nossa explicação é a seguinte: aqueles projetos são dirigidos por arquitetos, que ainda carregam suas bagagens intelectuais de tipologia e desenho industrial e relatividade dos gostos pessoais, mesmo quando eles tentam auxiliar as pessoas de maneira pessoal. A linguagem do arquiteto é influenciada pela sua ideologia de desenho, e isto não é universal. Muito poucos arquitetos escaparam da estética modernista que estabeleceu uma parte pivotal em sua formação (uma tradição nas escolas de arquitetura, estabelecida há muitas décadas). É muito difícil escapar destas imagens arquitetônicas entranhadas — para quebrar as tipologias fundamentalistas de cubos, janelas horizontais, blocos modulares, etc. — e a lógica do funcionalismo abstrato que freqüentemente serve como uma justificativa ideológica para posturas de

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auto-engrandecimento estético (Alexander, 2005; Salingaros, 2006). Especialmente na América Latina, as tipologias modernistas arquitetônicas são adotadas como parte do estilo arquitetural nacional, popularmente pensado, de maneira errada, como ligado a crenças políticas progressistas.

Deixar algumas de nossas críticas explícitas auxilia o leitor a saber do que nós estamos falando. Nós encontramos prédios com escala humana modesta (o que é bom), mas eles estão arranjados numa rígida malha retangular que não tem outro propósito do que o de expressar a “claridade da concepção”. O plano aparece perfeitamente regular do alto (sendo concebido para essa simetria que não se percebe) e expressa modulação ao invés de expressar variação. O arranjo matematicamente preciso é arbitrário, em relação à preocupação com a percepção e a circulação humanas, pois não contribui para a coerência urbana. Na escala dos prédios individuais, nós vemos as usuais obsessivamente paredes planas, sem superfície de articulação, retangularidade estrita, telhados planos, portas e janelas sem esquadrias, janelas estreitas, casas levantadas em pilotis, pátios posteriores sem sentido, sem curvas onde elas reforçariam a estrutura tectônica e paredes curvas colocadas por efeitos estéticos, espaços urbanos com tamanhos exagerados ou fragmentados, etc.

Estas são as características identificadoras da tipologia modernista dos anos 1920. Uma afirmação reforçada que está por trás da imposição deste vocabulário formal para a casa das pessoas é que uma pessoa comum, sem treinamento, é incapaz de criar forma e espaço, e somente um arquiteto (agindo como “especialista”) é capaz de fazê-lo. Isso tem a ver com a arrogância abertamente expressa pelos arquitetos modernistas que mostraram seu desdém pelo tecido urbano orgânico. Contrariamente aos hábitos de grande parte do desenho e do planejamento modernista, as necessidades físicas e psicológicas devem ser entendidas não em termos de quantidades abstratas, mas em termos da capacidade de respostas locais, adaptativas às necessidades e aos desejos. As vidas dos indivíduos são experenciadas como parte de comunidades vivas particulares. O processo alternativo proposto aqui pode ser aplicado de maneira geral para chegar a soluções de desenho não estandardizadas e vivas — vivas porque elas são conectadas, enraizadas localmente, e habitadas com o espírito assim como com o corpo.

É muito fácil de reconhecer a diferença entre morfologias orgânicas e industriais, baseado na sua complexidade percebida. Aqui estão três critérios que qualquer um pode usar: (a) A geometria em todas as escalas, desde o tamanho do projeto inteiro até o detalhe de 2mm, é complexa (única, variada) ou simplística (vazia o simplificada demais)? (b) Há uma transição geral regular das grandes para as pequenas escalas, sem

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saltos abruptos? Ou, se há passagens abruptas, elas terminam com geometrias mais complexas na próxima escala? (c) Se a geometria é visualmente complexa, a forma cresce e se adapta às necessidades humanas físicas e psicológicas ou ela é de um complexo “alto desenho” imposto arbitrariamente? Estes três critérios distinguem um tecido urbano vivo das formas industriais mortas. (O terceiro critério é mais difícil de aplicar sem alguma experiência).

Paradoxalmente, o segmento da sociedade (isto é, intelectuais progressistas e ativistas promotores de causas sociais) mais interessado em auxiliar as pessoas é também aquele que, por razões políticas e ideológicas, de maneira naïve assume que a solução deve estar de acordo com a tecnológica “imagem da modernidade”. Eles não podem pensar fora das imagens sedutoras do paradigma militar / industrial do século vinte. Eles sinceramente acreditam nas promessas de liberação feitas pelos ideólogos modernistas, mas falham em ver que estas formas e geometrias são basicamente inumanas. Por contraste, aqueles privilegiados indivíduos que conseguem criar um ambiente quente, vivo e que responde (e que sabe como implementá-lo) o fazem principalmente para si mesmos, mantendo-se despreocupados com as necessidades dos pobres.

20. A imagem irreal que as pessoas possuem sobre casa ideal.

Há um ponto que nós não discutimos ainda, e que pode sabotar a melhor intenção da habitação social humana. È a imagem que o potencial residente tem da “mais maravilhosa casa no mundo”. As pessoas carregam consigo imagens de desejo, freqüentemente o oposto do que eles realmente requerem. A propaganda funciona convencendo as pessoas a consumirem o que elas não precisam, a gastarem seu dinheiro em coisas frívolas ou perniciosas, ao invés de comida saudável, medicina ou educação. Da mesma maneira, nossa cultura propaga imagens artificiais de casas “bonitas” na mente do pobre urbano, e mesmo no mais isolado dos moradores rurais. Quando um indivíduo migra para a cidade, ele/ela irá trabalhar para adquirir a casa que corresponde à imagem dos seus sonhos. Este é certamente o caso quando esta imagem choca-se com as tipologias das casas adaptativas.

Como arquitetos e urbanistas nós estamos constantemente competindo em um universo de imagens e idéias que são validadas por propriedades icônicas mais do que por qualquer outra contribuição a ambientes adaptativos vivos (Alexander, 2005; Salingaros, 2006). A percepção humana do espaço construído é governada por valores

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não declarados e sutilezas. É uma batalha frustrante, porque as pessoas são distraídas da consideração do que é bom ou saudável. A arquitetura vernácula maravilhosamente adaptativa é identificada com a herança da qual os pobres estão tentando escapar. Eles estão fugindo de seu passado com a sua miséria. As pessoas originárias do campo abandonam as tipologias tradicionais rurais: elas estão abandonando os símbolos do campo com todas as suas restrições e correndo para a cidade “libertadora”. Uma nova casa naquele estilo iria desencadear um profundo desapontamento. Prover casa humana, desta forma, entra em conflito com manter a “imagem de modernidade”.

Um morador do campo que se muda para a favela, ou alguém ali nascido, não deseja ver isto recuperado: ele/ela deseja desesperadamente se mudar, logo que for possível, para um apartamento de classe-média. A favela não representa a “imagem de modernidade” amplamente aceita, ao contrário, carrega um estigma social. Escapar da pobreza, na mente de um morador da favela significa escapar da geometria da favela. E esta idéia é reforçada pela dramática transformação na geometria que se vê nas casas da classe média. Residências de classe média tendem a ser monótonos complexos modernistas de apartamentos ou casas isoladas pseudo-tradicionais com gramado e cerca. Aquelas insípidas imagens de modernidade dominam o pensamento das pessoas pobres, que as ingerem de programas de televisão e outros meios de marketing.

Um novo projeto de habitação social que seja de sucesso em nossos termos, inevitavelmente assemelha-se às tipologias tradicionais urbanas e arquitetônicas locais, simplesmente porque estas se desenvolveram para ser as mais adaptáveis às necessidades humanas. Esta semelhança, no entanto, condena sua imagem como não progressista. Muitos residentes esperam ver suas novas casas construídas à “imagem da modernidade”, como elas são definidas pelas casas dos ricos e famosos em todo o mundo. Casas e escritórios em estilo modernista high-tech são constantemente mostradas em filmes e na televisão junto a seus ricos residentes. Os pobres aspiram a este sonho. Por outro lado, os ricos aristocratas, que vivem e trabalham em mansões coloniais não são mais modelos para serem copiados, devido a suas associações com o passado pré-modernista e a ordem política conservadora. Isto é uma pena, pois as tipologias construtivas do século XIX contém muito da herança arquitetônica de um país, e oferece soluções adaptáveis que não tem nada a ver com qualquer ordem política ou social. (As pessoas esquecem que o estilo tecnocrático atual representa agora o domínio econômico global de uma elite poderosa).

Como foi notado anteriormente, acreditamos que o problema é, inescapavelmente, cultural em sua natureza. E parece para nós que o “x” da questão é valorização — como

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a comunidade valoriza suas opções e, então, toma suas decisões de acordo com elas. Ou, mais propriamente, se é a questão de um sistema verdadeiramente inteligente (isto é, que se auto-corrige e aprende) de tomar decisões coletivas que está funcionando. Então, nossa tarefa não é apenas oferecer escolhas, mas também oferecer um quadro (ou a escolha de um conjunto de quadros) que permita fazer aquelas escolhas ao longo do tempo.

Se os moradores escolhem “riqueza” como é definida em simples termos reduzidos pelos mercados monetários, então eles irão logicamente concluir que o caminho ótimo é arrasar o sítio e colocar ali um único edifício de apartamentos com um Big-Box-Mart ao lado. Se eles tem uma definição de longo-termo para “valor” — que inclua noções de “qualidade de vida” que sejam mais sutis, mas não menos vitais — então eles tem a base para acessar e modificar seu ambiente construído de uma maneira mais complexa, mais inter-relacionada e mais “orgânica”. Isto é o que uma cultura tradicional é e faz, por definição.

Esta simples noção de “riqueza”, nos termos reduzidos dos mercados monetários, não pode distinguir entre os sutis processos de vida. Por esta razão, ele não pode combinar os recursos de-cima-para-baixo, como as “instalações molhadas” (caixas de concreto contendo o banheiro e a cozinha com a pia) ou caminhões cheios de material de construção aparecendo nos limites do sítio, com recursos “de-baixo-para-cima” tais como pessoas trabalhando em suas próprias casas, economias locais de pequena escala, ou seguindo códigos geradores adaptáveis.

Combinar métodos de-cima-para-baixo com métodos de-baixo-para-cima é o “x” do problema, e irá requerer uma complexa abordagem integradora, ao invés de uma aplicação linear dos recursos e das soluções de variáveis-simples. Este é um problema complexo, com multi-variáveis de auto-organização e de complexidade organizada, e requer um conjunto de ferramentas diferente daquele que as pessoas estão acostumadas a usar.

Como, então, nós consideramos as aspirações das pessoas seriamente, sem necessariamente valorizar o que pode ser um desejo manipulado deles, um que encoraja a troca de um valor insubstituível de longo prazo por um perecível ganho de curto prazo? Como nós vimos, em um moderno contexto econômico, as culturas tradicionais são desafortunadamente muito vulneráveis a este tipo de troca desigual. Como conselheiros profissionais nós temos a responsabilidade de tomar seriamente suas aspirações, mas também de tomar seriamente suas necessidades de longo prazo, mesmo que eles não as estejam realmente considerando. Nós não devemos agir em seus lugares

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— isto seria arrogante — mas ter um tipo de conversação, onde nós, profissionais, apontaríamos as opções possíveis de uma maneira mais conectada e mais completa.

O que é óbvio para nós, não é necessariamente considerado positivo por uma ampla parte da população. Isso faria sentido e evitaria os perigos, se viesse a partir de um processo colaborativo que estivesse grandemente em mãos dos locais. Isto precisa ser a tradição vernácula deles. De outra maneira há o perigo real deste esforço aparecer como presunçoso e condescendente. Há aí um equilíbrio muito delicado entre o respeito pela cultura local, que é muito uma cultura da pobreza — o urbanismo do dia-a-dia, em certo sentido — e o reconhecimento das aspirações, mesmo dentro desta cultura (e nos indivíduos) por alguma coisa que eles imaginam ser melhor.

Com freqüência, as pessoas precisam aprender a apreciar o que eles realmente possuem (isto é, as capacidades, a riqueza e a beleza de suas adaptações culturais particulares às circunstâncias). Isto é ainda mais urgente porque nós estamos numa cultura global que é principalmente dedicada a dar às pessoas fome pelo que elas não têm. Nós estamos bem conscientes, por exemplo, da tendência das comunidades de baixa renda a defenderem o Big-Box-Marts. Se nós tentamos expor todos os problemas sérios causados pelo Big-Box-Marts como resultado da forma do prédio ou pelo modelo de negócios, as pessoas podem nos acusar de racismo: “Porque vocês não querem que a gente tenha o resto do que vocês já têm?”. É uma coisa muito delicada quando se está trabalhando com pessoas na pobreza — como respeitar aquilo a que o respeito é devido e também reconhecer onde as coisas poderiam estar melhores, sem ofender? Isso requer um processo que irá utilizar a energia criativa e a auto-confiança da cultura local.

21. Está o mundo mudado para aceitar uma habitação social humana?

Em todo o mundo os projetos foram construídos seguindo um paradigma orgânico, usando a participação do morador. Nós observamos um fenômeno cíclico: tanto os governos quanto as organizações não-governamentais apóiam partes do que nós (e outros antes de nós) propomos, então esta proposta cai em desgraça e é substituída por tipologias modernistas inumanas, que voltam quando mudam os oficiais eleitos e os diretores das agências. Esta flutuação temporal mostra o modelo de competição das espécies, onde uma espécie competindo desloca outra (mas não a leva à extinção). Quando as condições mudam, aquelas espécies fazem um modesto retorno.

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O paradigma urbano orgânico tem sido sempre aceito marginalmente pelos poderes em ascensão, mesmo considerando que ele representa a vasta maioria do tecido urbano correntemente construído. Na analogia ecológica, casas não planejadas, construídas pelos moradores, são as espécies dominantes, embora, na mente das pessoas (em gritante contradição com os fatos) é assumido que seja uma espécie minoritária. A explosão da população urbana mundial ocorreu nos estratos mais pobres das sociedades, com uma menor parte sendo abrigada por mecanismos de habitação social do tipo de-cima-para-baixo, enquanto a maior parte emergiu como favelas (assentamentos irregulares). É esse desequilíbrio — entre as poderosas forças que geram, no mundo, a morfologia urbana irregular e as tentativas ineficazes de impor ordem — que nós desejamos corrigir com este paper. Nós dependemos de três estratégias: (a) os leitores verão que alguns dos velhos preconceitos contra a habitação construída pelo próprio morador estão ultrapassados e que são social e economicamente dispendiosos. (b) as pessoas reconhecerão as raízes deste conflito como ideológicas, e não como exclusivamente legais. (c) nós temos, finalmente, ferramentas muito poderosas para um reparo e desenho eficientes, os quais não estavam disponíveis no passado.

O movimento do Novo Urbanismo (encabeçado por um dos autores — AMD), tem ajudado a acordar o mundo para o valor do urbanismo tradicional e para a necessidade de preservar as porções existentes do tecido urbano vivo. Nossa abordagem tenta canalizar a necessidade humana natural por ambientes enriquecedores e sustentáveis, o que foi o caso durante muitos milênios da existência humana. Muitos loteamentos de sucesso feitos pelo Novo Urbanismo foram construídos em um caráter tradicional, mostrando que isto pode ser feito hoje. O planejamento não está mais preconceituoso em relação à visão modernista. Existe uma nova consciência, ao menos nos países economicamente mais desenvolvidos. Enquanto nos anos 1960 bairros de classe média saudáveis eram destruídos impunemente (um ato eufemísticamente chamado de “renovação urbana” (Jacobs, 1961)), esse tipo de agressão urbana é mais difícil de acontecer hoje em dia. Isso ainda não impede que os modernistas mais duros tentem, publicamente, desacreditar o Novo Urbanismo, rotulando-o como algo que serve apenas para os ricos. O presente paper é uma das muitas provas (se é que alguma era necessária) de que as mesmas técnicas se aplicam para abrigar os pobres de todo o mundo.

As pessoas tiveram sempre um conhecimento INSTINTIVO de como construir, mas tudo foi simplesmente abandonado pelas tipologias modernistas que falsamente

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proclamaram uma exclusiva validade “científica” racional. A partir da recente entrada de cientistas treinados em arquitetura e urbanismo, esta confusão vem finalmente sendo desfeita, e nós podemos separar o método genuíno do dogma dirigido pela imagem. Nossos corajosos predecessores, que construíram um tecido urbano vivo, foram todos frustrados por um establishment arquitetônico convencido da absoluta correção do paradigma industrial de desenho do início do século XX. Várias e várias vezes projetos e idéias foram marginalizados e tiveram que ser reinventados em outros lugares e em outros tempos. Nós acreditamos que nossa era está finalmente pronta para aceitar um tecido urbano vivo como parte da própria vida e que esta idéia pode assumir seu apropriado papel central em nossa consciência.

22. Conclusão.

As práticas do século XX para construir habitação social podem ter sido bem intencionadas, mas na verdade estavam equivocadas. Elas não ajudam a conectar os residentes ao seu ambiente. Uma grande parte do tecido urbano poderia ter sido feito mais saudável e sustentável, pelo mesmo custo, mas ao contrário exerce um efeito mortal em seus residentes, e, em última instância torna-se insustentável. Infelizmente, os planejadores dos governos estiveram determinados a impor um experimento social mal concebido como parte de um utópico programa de industrialização. Nós apontamos aqui, por outro lado, soluções práticas e sensíveis que podem ser aplicadas imediatamente a qualquer contexto, com algumas pequenas modificações para atender as condições locais.

Os autores fazem estas recomendações baseados em considerável experiência em projetos práticos. Nós seremos os primeiros a nos comprometermos e a fazer as necessárias adaptações para implementar nossa metodologia a qualquer projeto particular, no espírito da adaptação incremental. È muito melhor se comprometer e ter alguma coisa construída, do que insistir em seguir cada componente de nosso sugerido processo, mas ter o projeto rejeitado. Desta maneira, nós podemos efetivar uma transição rápida para um tipo de casa do futuro mais robusta, mais vivaz e mais sustentável.

Agradecimentos:

NAS é agradecido aos colegas membros do Environmental Structure Research Group (ESRG) que entusiasticamente juntaram-se a ele para escrever este paper. Através da

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ESRG uma eficiente colaboração on-line foi possível. Os membros da ESRG, Besim Hakim e Yodan Rofè nos mandaram incisivos e importantes comentários. Outros indivíduos que contribuíram com material e referências inclui Ana Cecilia Ambriz e Alfredo Ambriz da Universidad Autónoma de Guadalajara, Pablo Bullaude da Fundación CEPA, Andrius Kulikauskas do Global Villages Group e Fausto Martinez, da IPFC.

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Jane Jacobs (1961) The Death and Life of Great American Cities (Vintage Books, New York).

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Léon Krier (1998) Architecture: Choice or Fate (Andreas Papadakis Publisher, Windsor, England).

Nikos A. Salingaros (2005) Principles of Urban Structure (Techne Press, Amsterdam, Holland).

Nikos A. Salingaros (2006) A Theory of Architecture (Umbau-Verlag, Solingen, Germany).

John F. C. Turner (1976) Housing by People (Marion Boyars, London).

Apêndice: Códigos geradores para a habitação social em áreas verdes ou em áreas industriais abandonadas.

O corpo deste paper na verdade demonstra um método de métodos, que pode ser usado para formatar um número infinito de abordagens. Todas as abordagens que surgem de nossas recomendações tem em comum uma adaptabilidade às sensibilidades humanas. Nesta qualidade essencial, no entanto, elas diferem marcadamente dos outros métodos correntemente em uso. Evidentemente, um planejador deve criar um novo método, que sirva melhor as condições e as exigências locais. Para os leitores que desejam implementar nosso método sem demora, nós demonstramos aqui um procedimento que pode produzir habitações em terras vazias. Uma abordagem levemente diferente é necessária para trabalhar num sítio que já tem construções, e ainda outra para re-configurar um assentamento existente. Por favor, lembre-se de que este representa apenas UM de um número infinito de métodos relacionados que satisfazem nosso critério e que não deve ser adotado como um conjunto de regras universais.

Nós assumimos que um conjunto de planejadores irá trabalhar com alguns ou com todos os potenciais futuros residentes em todos os passos do layout. Isto é crucial para ter uma “leitura” de todos os necessários fatores humanos que precisam ser considerados. A construção real é dividida em dois componentes: os que são de responsabilidade da agência financiadora e os que são de responsabilidade dos proprietários / residentes. Uma rápida divisão do trabalho atribuiria ao governo a

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construção do espaço público e aos moradores a construção de suas próprias casas, mas estas responsabilidades podem ser sobrepostas de qualquer maneira, de acordo com as condições específicas do local. Mesmo se os proprietários / residentes vão fazer toda a construção nas suas casas, o grupo de planejadores deve estar preparado para apoiá-los e guiá-los durante o processo. As referências abaixo são para padrões individuais na “Linguagem dos Padrões” (Alexander et. al., 1977).

È extremamente importante fazer uma afirmação inicial de que nós temos aqui um diferente tipo de abordagem para a habitação social e para o planejamento em geral. A novidade desta abordagem é evidente em três de nossos procedimentos. Primeiro, nós começamos delineando a rede de ruas e de lotes com a ativa participação dos residentes, não como um plano pré-concebido, feito em algum lugar. O segundo elemento não comum é permitir (na verdade, encorajar ativamente), que os usuários ornamentem os passeios na frente de suas casas, antes mesmo que a casa seja construída. O terceiro elemento não comum é construir o espaço urbano antes que qualquer das casas seja completada. O espaço urbano irá definir o caráter do assentamento como um todo — sua qualidade espacial e sua identidade na escala grande — mais do que qualquer outro objeto construído. Ele irá jogar um papel importante em fazer com que os moradores sintam o lugar emocionalmente.

Nós recomendamos os passos a seguir, à medida que nós enfatizamos os aspectos não comuns de nosso método, e deixamos os detalhes mais óbvios da construção para o grupo local:

1. Caminhe na área para diagnosticar a sua condição, suas qualidades, seus problemas, suas excepcionais oportunidades, áreas que precisam de reparo, etc. Identifique os espaços candidatos ao lugar sagrado, como por exemplo, montanhas, rochas proeminentes, grandes árvores, etc. Eles deverão ser protegidos e mais tarde incorporados ao espaço urbano.

2. Em muitos casos o assentamento vai ter um limite que determina as conexões das ruas. Onde isto não acontece, (isto é, no campo) a limitação da área deve ser fixada, porque ela terá um impacto no padrão geral das ruas. (Padrão 15: Limites do Bairro, de Alexander et. al. 1977).

3. Caminhe na área para determinar a rua principal e a rua principal transversal a partir do fluxo de pedestres de acordo com a topografia e as características físicas locais. Elas irão representar o Cardo e o Decumanus romanos, mas não necessitam ser

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retas, nem ortogonais, uma em relação à outra. Marque-as fortemente, com postes e bandeiras vermelhas. Deixe espaço para as ruas e para os passeios nos dois lados.

4. Caminhe na área mais uma vez para visualizar onde o espaço urbano pode ser definido (decidido pelos pontos identificados como os melhores para se estar e que de alguma maneira focalize os sinais positivos de toda a área). Estas serão as saliências na rua principal, próximo do centro, e que deverão conter algum espaço sagrado, se for possível. Aplique o princípio do fluxo tangencial ao redor de um espaço urbano (isto é, as ruas vão ao longo do espaço, não através do seu centro). Um espaço urbano pode ser tão longo quanto for necessário, mas não deve ser maior do que 20 m. (Padrão 61: Pequenas Praças Públicas). Marque os limites dos espaços urbanos com bandeiras vermelhas.

5. Decida as áreas que as casas irão ocupar, para cercar e reforçar parcialmente os espaços urbanos. As paredes frontais das casas, sem recuos, definirão os limites dos espaços urbanos.

6. Agora, algumas das decisões importantes sobre os layouts deverão ser tomadas. Uma possível tipologia é criar quarteirões com a profundidade de duas casas em seqüência, não necessariamente retas, cada um com dimensões de 40-60 m de largura e de mais ou menos 100-150 m de comprimento. A construção dos quarteirões inicia no limite do espaço urbano e das ruas principais. Os seus limites irão definir as ruas secundárias, que são marcadas com bandeiras vermelhas. As ruas secundárias formam junções em T (Padrão 50: Junções em T) nas intersecções e não cruzam a rua principal. As ruas secundárias são mais estreitas do que as ruas principais.

7. Ao mesmo tempo, as questões sobre a drenagem das águas são acertadas porque as direções das ruas devem coincidir com o fluxo das águas. Decida onde será localizado o dreno principal para fora do assentamento, para evitar inundações. Verifique se alguma rua deve ser desobstruída.

8. As ações sobre a terra iniciam somente agora, com o governo fazendo as divisões da terra de tal modo que os lotes drenem para os dois lados das ruas. As ruas deverão ser desimpedidas, onde for necessário, para facilitar o escoamento do fluxo de água, como foi definido anteriormente.

9. Os futuros residentes que estejam participando podem marcar as dimensões de suas casas colocando bandeiras azuis. As casas devem acomodar-se aos caminhos laterais e ocupar toda a frente do terreno. Fora estas restrições, há completa liberdade no planejamento da casa. Se houver um quintal, defina-o usando o volume da casa para

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envolvê-lo parcialmente (Padrão 115: Quintais que vivem). Variações individuais são essenciais para garantir exposição ao sul nos quintais, de outra maneira eles não serão utilizados (Padrão 105: Áreas abertas de face sul). Primeiro defina os prédios ao redor dos espaços urbanos principais e nas entradas principais.

10. Uma vez que um número suficiente de casas alinhadas tenha sido marcado, complete o limite do lote usando bandeiras amarelas. Cada lote deve ser no mínimo 20 m de profundidade e 6 m de largura. Os lotes são separados por uma avenida nos fundos e por um caminho de pedestres, a cada lado. Os lotes são marcados e o trabalho é iniciado. O que é admirável neste processo é que agora é a primeira vez que o assentamento é desenhado em papel (até agora estivemos trabalhando somente com bandeiras no solo).

11. O governo põe a infra-estrutura que ele provê: geradores de eletricidade nas avenidas, sistema de água ou uma distribuição regular de torneiras públicas, canos de esgoto ou algumas latrinas separadas por gênero, etc.

12. O primeiro ato desta construção é fazer um passeio de concreto posicionado ao longo de todas as frentes de casas marcadas. O governo faz isto em todos os lotes demarcados, mas não nas partes do assentamento que ainda não foram planejados. É conveniente completar um quarteirão de casas de cada vez. O passeio, por si mesmo, deveria ser bem amplo (um passeio de 1.5m é inútil para formar uma vizinhança) e levantado da rua (Padrão 55: Passeios altos).

13. Os residentes preparam desenhos usando pedaços coloridos de restos de materiais não mais grossos do que 1 cm (pedrinhas, pedaços de tijolos, etc.) e os empurram dentro do concreto molhado, logo que o concreto seja derramado e alisado. Qualquer coisa pode ser usada, desde que não comprometa a integridade estrutural do concreto. Juntas de dilatação são incorporadas como parte do desenho. Este ato personaliza o pedaço do passeio de cada um e estabelece a prioridade da expressão humana sobre as formas industriais.

14. A construção da casa pode começar, feita pelos próprios residentes, com a fachada frontal se erguendo primeiro, no limite com o passeio. Desta maneira, os espaços urbanos, ao invés das casas, são os primeiros elementos espaciais a serem fisicamente construídos. (Padrão 106: Espaço externo positivo).

15. A entrada, ou as entradas, para o assentamento devem ser claramente definidas por construções mais proeminentes, pois eles são pontos de transição óbvios (Padrão 53: Acessos principais).

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16. O governo pode solidificar o espaço urbano construindo um quiosque — um espaço coberto e aberto (Padrão 69: Espaços públicos cobertos). Garanta que haja degraus confortáveis para que as pessoas sentem (Padrão 125: Degraus para sentar). Este elemento pode catalisar o uso do espaço urbano e reforçar os elementos sagrados tais como uma grande árvore, por exemplo.

17. Os proprietários completam suas casas individuais no seu próprio ritmo. Eles têm completa liberdade no desenho da planta com suas características originais. Se for apropriado para a cultura local, podem construir um muro baixo para sentar ou uma platibanda integrada à fachada frontal, próxima à entrada (Padrão 160: Construindo um avanço e Padrão 242: Banco na porta da frente). Isso poderá, por sua vez, influenciar um avanço da cobertura.

18. A descrição da seqüência da construção depende na disponibilidade local de materiais, do sistema de entrega e das mais econômicas alternativas. As decisões do tipo: preencher o piso e colocar concreto, ao mesmo tempo, nos passeios; se há encanamento disponível que precisa ir embaixo do piso; se é preciso encher de concreto canos para fortalecer os cantos da casa; que material usar para preencher as paredes; escolher ou não um módulo pré-fabricado de concreto para o banheiro; a forma do telhado e como ele vai ser construído são melhor feitas pelos consultores locais.

19. Os consultores podem recomendar aos proprietários / construtores como formar a entrada da casa e as janelas. A entrada principal deve ter os marcos e as bordas engrossadas dramaticamente para representar a transição de fora para dentro (Padrão 225: Marcos como bordas engrossadas). Encoraje as pessoas a construir um espaço de transição, por modesto que seja (Padrão 112: Transição de entrada). Isto enfatiza a entrada como um processo, o oposto de uma porta da frente desenhada como uma imagem de uma descontinuidade mínima na parede reta.

20. Os mesmos princípios também se aplicam às janelas: ajude os construtores / proprietários a criar janelas com profundas aberturas e com esquadrias e marcos grossos. (Padrão 223: Aberturas profundas).

21. Talvez a regra simples mais importante para criar peças em uma construção seja que elas devem ter luz natural de dois lados. (Padrão 159: Luz em dois lados de todas as peças).

22. À medida que as frentes das casas estiverem próximas de estarem completadas, o governo supre os moradores com materiais e tintas e oferece um prêmio monetário

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para a mais artística ornamentação, de preferência usando motivos tradicionais inteiramente escolhidos pelos moradores (Padrão 249: Ornamento). A ornamentação deveria ser mais detalhada e mais intensa ao nível dos olhos e naqueles lugares onde o usuário possa tocar o prédio.

As propostas acima podem parecer interessantes e talvez extraordinárias para os planejadores convencionais. Alguns irão sem dúvida, criticá-las, mesmo que elas sejam apoiadas pelo mais importante documento de planejamento da América Latina: as Leis das Índias. (As Leis das Índias explicitamente orientam um assentamento para que seja projetado ao redor de seu espaço urbano central, que deve ser estabelecido primeiro). Nós acreditamos que nossas sugestões podem ser aplicadas e que nós as devemos tentar e implementar em todos os graus possíveis. Não é necessário ao construtor ter acesso à inteira descrição de cada padrão descrito aqui, um simples resumo e um diagrama são suficientes. Nós listamos os padrões somente com propósitos de referência. O objetivo da ornamentação NÃO é para fazer alguma coisa “bonita” para distrair os moradores das suas difíceis condições de vida. Na verdade, isto serve para conectar os residentes, de uma maneira profunda, ao seu ambiente, dando-lhes a propriedade intelectual da estrutura física. Por esta razão, é absolutamente necessário que os residentes mesmos gerem todos os ornamentos e os criem com suas próprias mãos.

FIGURAS.

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Figura 1. A média dos caminhos que demarcam os fluxos naturais dão a localização da rua principal AB e do cruzamento constituído pela rua CD.

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Figura 2. Cardo e Decumanus são estabelecidos e marcados com bandeiras nas extremidades.

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Figura 3. Os espaços urbanos são identificados com expansões ao longo dos caminhos principais, constituindo-se de áreas onde é agradável estar.

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Figura 4. O espaço urbano é a característica geográfica primária, definida e reforçada pelas construções do entorno.

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Figura 5. Os espaços deixados entre as quadras definem as ruas, os espaços urbanos e a drenagem — o que é o oposto de adequar os lotes às vias já

existentes.

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Figura 6. Os pátios são parcialmente circundados pela planta da casa e são orientados, individualmente, para exposição ao Sul. (Note-se que no

Hemisfério Sul, a orientação é para o Norte).

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Figura 7. Exemplo de um desenho possível feito pelo próprio morador para um padrão de passeio, usando diferentes tipos de materiais pressionados ao

concreto, imediatamente após a concretagem.

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Figura 8. As fachadas dos prédios, os passeios e os muros para sentar envolvem o espaço urbano. Todos os elementos construídos cooperam para

fazer o espaço coerente e vivo.

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Figura 9. A transição com uma moldura grossa e uma entrada larga definem

a porta da frente como uma transição e não como uma imagem plana.

Figura 10. São oferecidos aos moradores tintas e materiais coloridos que os encoraje a ornamentar suas casas.

Nikos A. Salíngaros

Department of Mathematics

University of Texas at San Antonio

One UTSA Circle

San Antonio, TX 78249 USA

David Brain

Department of Sociology

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New College of Florida

5700 N. Tamiami Trail

Sarasota, FL 34243 USA

Andrés M. Duany

Duany Plater-Zyberk & Co.

1023 Southwest 25th Ave

Miami, FL 33135 USA

Michael W. Mehaffy

Structura Naturalis Inc.

900 Cornell Street

Lake Oswego, OR 97034 USA

Ernesto Philibert-Petit

Departamento de Arquitectura y Diseño

Tecnológico de Monterrey, Campus Querétaro

Epigmenio González 500

76130 Santiago de Querétaro, QRO

MÉXICO