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Habitare - Milena de Andrade

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Projeto de conclusão de curso, UFPE 2013.2

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MILENA DE ANDRADERECIFE - 2014

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“O final é imprescindível em todas as coisas” Francisco Brennand

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A Afonso, por querer me orientar, por me desorientar, por me fazer ver milhares de possibilidades que eu não veria sozinha. A Patrícia Horta, por entrar nesse barco comigo me guiando por onde quer que eu fosse. A Bellinha Valle, que topou fazer parte dessa banca assim que o convite foi feito, de coração aberto e cheia de vontades. A Eduardo Duarte, por ter atiçado dentro de mim o olhar curioso, desde o início do curso e por todos os elogios e puxões de orelha. A Fabianna Pepeu, minha pepita, por me indicar livros essenciais para a construção desse trabalho, sem os quais o meu olhar não teria alcançado horizontes tão distantes. A Cybele Miranda, minha cyba, por estar na minha vida desde sempre, pelas conversas, pelo amor, pela ajuda, pelos sermões e por todo o apoio ao longo desses 27 anos. A Augusto Barros, meu xu, por fazer-se parte determinante na realização desse trabalho, pelas ideias e pelo suporte,

pelo amor e pelas risadas, pelo ombro e pelo empurrão. A Vinícius Lucena, meu beeloo, por transpor distâncias e saudades me ajudando e me incentivando, sempre. A Laura Ferraz, por toda lucidez trazida e pelos tapas sem mão que vem me dando ao longo desses meses. A Guilherme Lira, pelo abraço ao projeto, sem medo e com vontade. A Lavínia Rocha, minha preta, por toda preocupação e incentivo. A Igor Cabral, Mariana Mota, Roberto Sotero, Rodrigo Almeida e Jorge Guberte, pelo apoio, pelo incentivo, pelo alívio nos momentos de aperreio, pelo carinho e pela disposição em ouvir e ajudar de alguma forma. Aos ocupantes da casa 75 da Praça Chora Menino, pela revolução sem tamanho que causaram na minha vida, no meu coração. A todos os que de alguma maneira me ajudaram, seja me ouvindo falar sobre o trabalho, me ouvindo reclamar, me ouvindo.

amor. gratidão.

AGRADECIMENTOS

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1. HABITAR, VERBO

ha.bi.tar

(lat habitare) vtd 1 Residir, morar, viver em: Habitamos um apartamento neste prédio. vti e vint 2 Residir, morar, viver: Habitava numa pensão. Onde habita o senhor? vti 3 Coabitar. vtd 4 Povoar.

Habitare fala sobre memórias. Fala daquelas memórias que habitam lugares onde não há mais gente para habitá-los; dos lugares esquecidos pela gente que um dia fez tanta questão em tê-los. Dos caminhos jamais percorridos outra vez e que, um dia, já foram rota principal da gente (toda e qualquer gente). Habitare quer voltar a ser, mas não vai. Com a ajuda do dispositivo fotográfico e da imaginação, reconstruo o local onde hoje só há poeira e abandono; reconstruo? Habito. Habito porque revivo em memórias, fotografias e histórias contadas, cada pedaço desse lugar, desse abandono, desse monte de ruína na qual ninguém quer mais morar, ninguém mais quer habitar, mas eu habito.

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2. HÁBITO

“[A] casa na qual nascemos gravou dentro de nós a hierarquia das várias funções de habitar. Somos o diagrama dessas funções de habitar aquela casa particular, e todas as outras casas são apenas variantes desse tema fundamental. A palavra hábito está desgastada demais para expressar essa relação passional dos nossos corpos, que não esquecem, com uma casa inesquecível,” ele escreve, falando da força da memória corporal. (BACHELARD, 1971, p. 91 apud PALLASMAA, 2011, P. 57)

Nunca mudei de casa. Moro há 27 anos no mesmo lugar com minha família e desde sempre percorri os mesmos caminhos para chegar ao centro da cidade, à zona sul, à zona norte, minhas rotas sempre foram as mesmas. Por esses caminhos vi mudanças acontecerem, casas serem derrubadas para dar lugar aos prédios, casas serem abandonadas, ruas serem pavimentadas, igrejas serem construídas onde antes havia supermercados, padarias, bares. “Eu me experimento na cidade; a cidade existe por meio de minha experiência corporal. A cidade e meu corpo se complementam e se definem. Eu moro na cidade e a cidade mora em mim.” (PALLASMAA, 2011). Vi casas serem abandonadas e se tornarem ruínas em bem pouco tempo. A ação do tempo nesses locais parece exercer uma velocidade maior, como se o tempo existisse de maneira adiantada nas casas em ruínas. O mato cresce rápido dentro das casas, as árvores sujam os jardins que não são mais limpos, pessoas em situação de rua se abrigam nesses locais. Seja pelo mato ou pelos sem teto, esses locais ainda são habitados. A maioria das casas abandonadas que eu visitei para fotografar quase sempre estavam fechadas, como se seus proprietários

quisessem guardar o que ainda sobrou, como se quisessem impedir que o tempo passasse, que as paredes desbotassem, que as portas e janelas de cupim apodrecessem. Encontrei várias casas com portas e janelas tapadas por tijolos, como se seus olhos tivessem sido fechados para sempre, como se esse gesto lhes decretasse a morte.

(...) a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (BOSI, 1994, p. 46-47)

Assim como o noema da fotografia para Barthes (1984) é o “isso foi”, para as casas abandonadas, em ruínas, desabitadas, esse noema também as refere. Essas casas já foram um dia a morada de vários alguéns. Nessas casas foram vividas incontáveis situações e hoje, quando lhes sobram as ruínas, nada mais resta a não ser a memória do que um dia foi vivido.

As ruínas contrariam o devir abstrato do tempo, compensando a sistemática tripartição - antes, durante e depois - pela dinâmica pas encore (ainda não) e jamais plus (nunca mais). (...) Instante único, elas atestam um tempo antes do qual nada foi consumado e depois do qual tudo está perdido.

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(MATOS, 1998, p. 83 apud OLIVEIRA, 2010, p. 69)

Embora a fotografia traga consigo esse traço de morte, as fotografias das casas abandonadas dão a elas certa garantia de existir (ou confirmam a morte), colocam-nas no campo da presença.

por mais vivas que nos esforcemos por concebê-la (e esse furor de “dar vida” só pode ser a denegação mítica de um mal-estar de morte), a Foto é como um teatro primitivo, como um Quadro Vivo, a figuração da face imóvel e pintada sob a qual vemos os mortos. (BARTHES, 1984, p. 53-54)

A construção que aqui faço é de um imaginário meu, que se relaciona com esses lugares na forma do encanto, de saudade do que não vivi, do desejo curioso de imaginar realidades possíveis para sanar a minha inquietude. Esses lugares pertencem ao meu imaginário, estão nas minhas lembranças, nas memórias dos vários caminhos percorridos por mim. “A narração da própria vida é o testemunho mais eloqüente dos modos que a pessoa tem de lembrar. É a sua memória.” (BOSI, 1994). Esses lugares abandonados serão eternamente o “isso foi” na minha memória, nos bairros em que se encontram, na história da cidade, na vida de seus antigos habitantes.

(...) refletindo sobre a condição da memória, elabora os seus limites: “assim, posso sonhar como no passado aprendi a andar, Mas isso de nada adianta. Hoje sei andar; porém, nunca mais poderei tornar a aprendê-lo”. É na ambigüidade

dessa condição, na impossibilidade de recompor a experiência na sua totalidade, que todo projeto de memória se abre para a melancolia. (BENJAMIN, 1993 apud CUNHA, 2006, p. 220)

Há uma tristeza residindo nas casas fotografadas por mim e não é só por que elas se encontram abandonadas, sujas, feias e algumas até completamente condenadas ao desmoronamento, é porque a tristeza me parece ser o único sentimento que ainda mora ali.

Os materiais naturais expressam sua idade e história, além de nos contar suas origens e seu histórico de uso pelos humanos. Toda matéria existe em um continuum temporal; a pátina do desgaste leva a experiência enriquecedora do tempo aos materiais de construção. (PALLASMAA, 2011, p. 30)

Pode não parecer normal ao leitor, mas as casas abandonadas me comunicam - através de suas ruínas - quanta saudade ainda há naqueles quartos, quanto lamento cabe na sala de estar, quantas memórias carregarão aqueles tijolos até que sejam enfim derrubados. “Uma sensação de melancolia permeia todas as experiências tocantes da arte; esse é o pesar da temporalidade imaterial da beleza” (PALLASMAA, 2011, p. 51)

A minha busca nesses lugares é uma tentativa de estabelecer as minhas relações de memória e afetividade com esses espaços que não me pertencem (no sentido de serem meus, minhas propriedades), mas que habitam de forma tão saudosa e melancólica o meu imaginário e as lembranças dos bairros por mim percorridos.

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3. DA MEMÓRIA, DAQUILO QUE HABITA

“[O] principal benefício de uma casa [é que] ela abriga nossos devaneios, a casa protege o sonhador, a casa permite que ele sonhe em paz”. (BACHELARD, 1971, p. 6 apud PALLASMAA, 2011, p. 42). A casa de número desconhecido da Rua São Miguel em Afogados me traz lembranças do seu passado habitado. Lembro de passar por ali e ver a casa habitada, com paredes pintadas e a porta de ferro corrediça. Havia duas janelas de basculante com vidro, uma de cada lado da porta, era um comércio. Em pouco tempo tudo aquilo era abandono e ruína. Não sei das motivações de abandono dessa casa, mas ainda consigo vê-la como antigamente, ainda que não haja mais telhado sobre ela. É curioso pensar que eu tenha histórias imaginadas para cada casa fotografada nesse ensaio. Algumas delas estão na minha memória desde que eram habitadas, outras sempre estiveram como ruínas e o exercício de inventar passados para esses lugares me faz desenhar infinitas possibilidades para eles.

O caráter livre, espontâneo, quase onírico da memória é, segundo Halbwachs, excepcional. Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, “tal como foi”, e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que

experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar do passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista. (BOSI, 1994, p. 55)

Estar presente nessas casas para fotografar me colocou diante do silêncio contemplativo que essas ruínas merecem. Permanecer em silêncio, procurando cada cômodo, cada vestígio de vida, cada parede com histórias, me fazia habitar ainda mais esses lugares. “A arquitetura é a arte do silêncio petrificado” (PALLASMAA, 2011) e nesse silêncio as minhas memórias falavam alto dentro de mim. “Pelo ato fotográfico se passa “de um momento evolutivo a um tempo petrificado, do instante à perpetuação, do movimento à imobilidade, do mundo dos vivos ao reino dos mortos, da luz às trevas, da carne à pedra”” (DUBOIS, 2009, p. 168 apud OLIVEIRA, 2010, p. 105). Fotografar esses lugares me fez querer mostrar esse silêncio. Desde as janelas e portas fechadas por tijolos até as portas trancadas com cadeados; desde a sala de estar com entulhos até o velho carro abandonado; Desde a porta da cozinha interditada com telhas até a velha cadeira de ferro descartada no quintal. Esses pequenos encontros silenciosos eram os mais contemplados no momento do registro.

A fotografia deve ser silenciosa (há fotos tonitruantes, não gosto delas): não se trata de uma questão de “discrição”, mas de música. A subjetividade absoluta só é atingida em um estado,

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um esforço de silêncio (fechar os olhos é fazer a imagem falar no silêncio). A foto me toca se a retiro de seu blablablá costumeiro: “Técnica”, “Realidade”, “Reportagem”, “Arte”, etc.: nada dizer, fechar os olhos, deixar o detalhe remontar sozinho à consciência afetiva. (BARTHES, 1984, p. 84-85)

Enquanto eu batia palmas e perguntava ‘tem alguém aí?’, fui abrindo o portão da casa de número 1234 da mesma Rua São Miguel, no bairro de Afogados. Era a segunda casa a ser fotografada e eu estava conseguindo entrar, sem o menor esforço, em sua sala. Não consigo me lembrar desde quando essa casa me causa desejo e curiosidade, mas há muito tempo contemplo-a de dentro do ônibus no caminho para o centro. Os cheiros/odores e a falta de luz, a sujeira e os pedaços de madeira caídos do telhado, as plantas crescendo pelas paredes, grades, janelas, chão, estava tudo ali dentro guardado. Os vestígios de ocupação dessa casa ainda eram bem evidentes, certamente moradores de rua se abrigavam por ali para dormir, havia um colchão, uma sacola com roupas espalhadas pelo chão e uma faca na cozinha. Um velho espelho sobre uma pia no quintal já não refletia mais nada. Um pé de manga, muito mato e um tanque coberto por plantas. Durante alguns minutos fiquei parada no quintal ouvindo as folhas balançarem, ouvindo os sons que habitavam nessa casa enorme. Apesar de abandonada, a estrutura da casa resistia ao passar do tempo, como uma velha senhora que carrega suas rugas.

A arquitetura nos emancipa do abraço do presente e nos permite experimentar o fluxo lento e benéfico do tempo. As edificações e cidades são instrumentos e

museus do tempo. Elas nos permitem ver e entender o passar da história e participar de ciclos temporais que ultrapassam nossas vidas individuais. (...) O tempo da arquitetura é um tempo sob custódia; nas melhores edificações, o tempo se mantém perfeitamente imóvel. (PALLASMAA, 2011, p. 49)

Era muito claro para mim que a casa número 75 da Praça Chora Menino era um autêntico exemplar de edificação das melhores e nenhuma janela quebrada, porta trancada, telhado removido, chão sujo, mato crescido, me faria pensar o contrário. Como uma casa tão bonita pode ter sido abandonada? Como alguém pode deixar para trás uma casa, um carro na garagem, alguns móveis, histórias, lembranças, momentos vividos ali? Os moradores de rua que ocupam a parte externa da casa garantem que ela é habitada pelo fantasma do irmão do Sr. Joel, o dono da casa. Não sei há quanto tempo foi deixada para trás, mas soube que o Sr. Joel a visita diariamente. A casa de primeiro andar com um cômodo à parte construído em cima da garagem é hoje o refúgio de algumas pessoas que utilizam o local para esmolar, trabalhar (os homens guardam carros na Praça em frente a casa), para descansar e para fazer uso de substâncias ilícitas. A história desses moradores de rua se assemelha às histórias das casas abandonadas desse ensaio. São pessoas esquecidas, abandonadas, “sem uso”, descartadas. As suas famílias não as querem como elas são, a sociedade lhes ignora, lhes põe na margem, parece até que eles são invisíveis, mas estão bem ali, nas ruínas, vivendo/sendo o abandono.

As imagens que nos ocupam aqui são paisagens em

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si mesmas. O que sobrou delas, na verdade, é a sua memória reciclada no presente - a rigor, um conjunto de elaborações memorialísticas que se chocam, se completam, se sobrepõem, se anulam mutuamente, tornando-se uma dimensão que vai muito além de qualquer fato concreto. Provavelmente seja um bom exemplo daquele choque que nos impossibilita recuperar completamente o que foi esquecido, e que nos impediria de compreender a saudade, como argumentava Benjamin. (Op. Cit.) (BRISSAC PEIXOTO, 1996, p. 181 apud CUNHA, 2006, p. 232)

Em uma esquina da Rua Motocolombó existe uma casa pequena que, para mim, sempre esteve abandonada. Há alguns anos fizeram uma intervenção de grafite e escreveram “A paz é fruto da justiça” em sua parede. Mas que justiça é essa? A paz de quem? para quem? Não é justo com as memórias das pessoas que um dia habitaram aquela casa que hoje ela esteja abandonada. O abandono pode ser considerado um tempo de paz para o abandonado, talvez a ruína seja o descanso dos justos e a impossibilidade de saber o que esses lugares abandonados pensam sobre isso, me faz imaginar que só agora eles descansam em paz, como em um jazigo perpétuo. “A morte não é senão a vitória do tempo. Fixar artificialmente as aparências carnais do ser é salvá-lo da correnteza da duração: aprumá-lo para a vida” (BAZIN, 1991, p. 19 apud OLIVEIRA, 2010, p. 99)

A casa-fachada da Praça Chora Menino de número desconhecido é um exemplo de encerramento, de decreto de morte. Do local só se avista a parede da frente (completamente refeita de tijolos) e uma escadaria em ruínas que dava acesso à casa. A identidade desse lugar foi apagada, suas características destruídas e seu acesso bloqueado. Como pensar a memória dessa casa se fizeram questão de apagá-la?

Assim, a memória em Benjamin assume sua ligação direta com a história. Ambas lutam contra o esquecimento e a sujeição ao passado anestésico. Nas ruínas, nas reminiscências do tempo, mora uma força rejuvenescedora que nos desafia. A melancolia que elas suscitam, como em um spleen baudeleriano, anuncia não apenas vestígios do que foi, mas apelos à vitalidade da recordação. (OLIVEIRA, 2010, p. 55)

Essa casa abandonada se afirma ao longo dos dias através de sua ruína e do seu existir naquela praça. A sua luta diária é contra o esquecimento, o desaparecimento, o fim.

Na Rua Ricardo Salazar, número desconhecido - Madalena, existe uma casa que me conquistou desde a sua fachada e apesar de ter passado por ali poucas vezes antes do registro, esse lugar me chamou a atenção desde a primeira vez. Ainda do lado de fora especulando sobre a possibilidade de entrar, notei no alto do telhado um enfeite de estrela de seis pontas que me remeteu à casa número 121 da Rua da Matriz. Seriam as duas antigas moradas de famílias Judias? Que memórias religiosas havia naquelas casas? As perguntas passaram em minha mente e a impossibilidade de saber da história fez o seu curso natural: criei histórias para esses lugares na intenção de abrandar a minha curiosidade. Quando entrei na casa da Rua Ricardo Salazar repeti o mesmo gesto de bater palmas para verificar se alguém estava a ocupar aquele lugar e a única resposta que obtive veio de uma cadela preta correndo do quintal para o meu braço com uma alegria imensa. Ao observar pelas brechas de portas e janelas pude perceber que havia uma ocupação real ali. Roupas estendidas num varal improvisado dentro de uma das salas, uma mesa com banco, toalhas, sapatos e várias fardas de operários da construção civil. “Roupas e fotografias falam de presença e ausência, de rastro. Nas roupas, a ausência de um corpo e a presença do seu

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invólucro. Na fotografia, a ausência do objeto fotografado mas, ao mesmo tempo, o traço de sua presença.” (OLIVEIRA, 2010, p. 122).

Em todos esses lugares visitados, investigados e fotografados a mesma sensação de melancolia e realização me acompanhavam. A melancolia de ver toda aquela ruína, o abandono, o descaso, o feio, o que não se quer mais e a realização de conseguir registrar e eternizar (ou decretar a morte) aqueles lugares em sua forma de ruína. A minha curiosidade em descobrir os motivos de abandono me transportava sempre ao mundo onírico, onde para cada casa havia uma história imaginada. Não sei dizer em que medida a curiosidade é maior que a minha imaginação, (pois existem lugares que não me interessa saber do passado, não faz sentido para mim querer descobrir o que está sendo gradativamente enterrado pelo tempo), mas confesso imensa satisfação de ter descoberto coisas do passado da casa do Sr. Joel, de me lembrar do comércio da Rua São Miguel e de descobrir que há ocupação na Rua Ricardo Salazar.

Desses exemplos nos fica a idéia de uma apreensão do tempo dependente da ação passada e da presente, diversa em cada pessoa. Um tempo que fosse abstrato e a-social nunca poderia abarcar lembranças e não constituiria a natureza humana. É esse, que ouvimos, tempo represado e cheio de conteúdo, que forma a substância da memória. (BOSI, 1994, p. 422)

Esses pequenos tesouros proporcionados pela saída fotográfica engrandeceram ainda mais as relações afetivas que eu estabeleço com essas casas, me tornaram ainda mais próxima desses objetos de contemplação. Reconhecer esses lugares enquanto parte da minha memória afetiva com a

cidade do Recife vincula-os de forma eterna ao meu mundo. “Por muito que deva à memória coletiva, é o indivíduo que recorda. Ele é o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que são, para ele, e só para ele, significativos dentro de um tesouro comum.” (BOSI, 1994).

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BIBLIOGRAFIA

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: Antologia. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilmes, 1983.

BOSI, Ecléa. Memória e sociedade - Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

CASTILHO, João. Paisagem submersa. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

CUNHA, Paulo. A representação visual da memória - Imagens e melancolia na cidade periférica. In: PRYSTHON, Angela. (Org.). Imagens da Cidade - Espaços urbanos na comunicação e cultura contemporâneas. Porto Alegre: Editora Sulina, 2006. p. 219-234.

DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 1993.

OLIVEIRA, Elane Abreu de. A fotografia como ruína. Recife: Editora Universitária UFPE, 2010.

PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele - A arquitetura e os sentidos. Porto Alegre: Bookman, 2011.

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ÍNDICE

Página 50Rua São Miguel, número desconhecido. Afogados, Recife

Página 23Rua da Matriz, 121. Boa Vista, Recife

Páginas 33, 3, 32, 31, 49, 38 e 38, 36, 40, 44Rua São Miguel, 1234. Afogados, Recife

Páginas 48, 27, 37, 34Rua Ricardo Salazar, número desconhecido. Madalena, Recife

Páginas 26, 24, 28Rua Motocolombó, 193. Afogados, Recife

Página 21Praça Chora Menino, número desconhecido. Paissandu, Recife

Páginas 20, 22Rua Doutor José Mariano, 308. Coelhos, Recife

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Páginas 43, 45, 46, 49, 47, 1, 53, 25, 29, 52, 35, 30Praça Chora Menino, 75. Paissandu, Recife

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