Upload
francisco
View
214
Download
0
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Reportagem de Francisco Fernandes Ferreira, publicada na Notícias Magazine, em dezembro de 2011.
Citation preview
Hackers: o seu crime é a curiosidade Um conjunto de jovens portugueses quer libertar a informação pacificamente
Nas últimas semanas, grupos como os LulzSec Portugal ou os AntiSecPT
surpreenderam o país com ataques a diversos sites estatais e privados.
Alegaram agir em retaliação aos incidentes ocorridos em frente ao parlamento,
na recente greve geral. Mas enquanto a indignação levou estes hackers a
actuaram anonimamente, a arte ou o desejo de tornar o país mais justo faz com
que outros não escondam o seu nome. A sua maior transgressão é serem
curiosos.
Apesar do termo hacker ser normalmente traduzido para “pirata”, nem todos na área
se dedicam a pilhagens. O traço que une estes exploradores tecnológicos é o encanto
pelo desconhecido. Ricardo Lafuente e Ana Carvalho são dois exemplos. Ele tem 27
anos, ela 28. Sempre tentados a arriscar, seguem a definição original de hack, que é
“uma forma alternativa, engenhosa e não óbvia de resolver um problema”. Interessa-
lhes estabelecer pontes entre tecnologia, artes e ciências sociais. São designers,
activistas do software livre e empreendedores. Responsáveis por um estúdio de
investigação chamado Manufactura Independente, gostam de “espicaçar a tecnologia,
fazendo projectos à volta de nichos como o hacking tipográfico ou a ressurreição de
impressoras obsoletas”. Fazem parte dos fundadores do Hacklaviva, um espaço hacker
no Porto.
“O Hacklaviva é um grito”. Assim se apresentam no site oficial. Não têm líder, porta-
voz ou orçamento. Provenientes de diferentes origens, une-os uma postura irrequieta
no mundo. Querem sair de casa, pois o lugar da sua intervenção é cá fora, na
comunidade. “Atrás do computador, na nossa zona de conforto, todos temos razão”,
diz-nos Lafuente. Maioritariamente composto por jovens, o grupo orgulha-se da
amplitude de idades registada nas suas iniciativas. “As pessoas que aparecem vão
desde os 14 anos até para cima dos 60”.
Recebem tralha electrónica que tentam reutilizar, sempre através de software não
comercial — um dos princípios fundamentais do colectivo. Entre duas passas num
cigarro electrónico, Ricardo afirma orgulhoso que têm um computador Macintosh de
1992 ainda a funcionar. “Uma autêntica peça de museu”. Dá-lhes prazer editar
constantemente a definição de hacking e reaprender ao fazer muito, com pouco (por
exemplo, construir candeeiros com Macs ou modificar balanças electrónicas).
Recentemente, mudaram o seu local de encontro para a Escola do Alto da Fontinha,
sede do projecto Es.Col.A, um espaço comunitário autogestionado. Foi lá que, num
fim-de-semana de Outubro, realizaram o primeiro Hackmeeting em Portugal, um
evento que reúne hackers e teve a primeira edição em Itália, há 13 anos. A paisagem
que se vê da janela estende-se desde a baixa portuense até ao Douro, espelhando as
intenções do grupo em alastrar as suas acções por toda a cidade. De momento, estão a
tentar que a internet sem fios chegue a toda a população portuense. Universalizar o
acesso grátis facilitaria a criação e a partilha de informação e seria uma forma de
alertar a sociedade para as empresas que monopolizam o mercado, “sem espaço para
concorrentes menores que possam assegurar necessidades mais específicas e locais”.
Também nesta área, actuam os Unimos, outra associação portuguesa. São uma
comunidade de aficionados da tecnologia sem fios e trabalham na expansão de redes
comunitárias, livres e abertas. Já implementaram pontos de acesso em Ourém, Quiaios
ou na Nazaré e ajudam quem estiver interessado na construção do seu próprio
sistema.
O Hacklaviva acredita que o acesso de todos à informação contribui também para uma
maior clareza no desempenho dos órgãos de governação. Na iniciativa Transparência
Hackday, analisam a informação das inúmeras bases de dados públicas e apresentam-
na de forma simplificada no site Demo.cratica. É um “projecto independente, livre e
autónomo dedicado a oferecer uma nova visão sobre o parlamento português”. O
colectivo estima o seu valor em 50 mil euros. “É por ter um valor tão relevante que o
decidimos dar.”
Na mesma direcção caminha a plataforma Transparência na AP (Administração
Pública), onde se pode aceder de forma simplificada à informação que consta nos
contratos públicos. A ANSOL (Associação Nacional para o Software Livre), responsável
pela ferramenta, quis incentivar a consulta dessa documentação para combater a
corrupção. Esta organização é também muito crítica em relação à verba contemplada
no último Orçamento de Estado para software informático: mais de 100 milhões de
euros. Suportados por um estudo da ESOP (Associação de Empresas de Sotware Open
Source Portuguesas), defendem que com alternativas livres essa verba desceria para
metade.
Os limites da acção de um hacker
Tal como estes colectivos portugueses também movimentos internacionais defendem
ideais de liberdade e igualdade de acesso à informação. É o caso do fenómeno
Anonymous, dos extintos Lulzsec ou dos “velhinhos” Chaos Computer Club. Mas,
nestes casos, há quem o considere apenas fachada. Rogério Bravo, Inspector-Chefe na
Polícia Judiciária (PJ) desde 1991, afirma que os slogans free information e freedom for
information são apenas um pretexto. “Palavras-passe, configurações informáticas de
rede, dados comerciais, segredos de Estado, segredos diplomáticos ou de justiça, são
exemplos de informação da qual estas organizações não precisam”, revelou-nos o
especialista em cibercrime.
Defensores da existência de uma ética hacker, como o finlandês Pekka Himanen ou o
americano Stephen Levy, não aceitam o roubo, o vandalismo ou a quebra de
confidencialidade. A meta deve ser sempre a melhoria do mundo. Para isso, dizem ser
preciso promover a partilha, a descentralização e o acesso total e ilimitado à
informação e a qualquer meio tecnológico que permita a aprendizagem. “O hacker
busca a informação diariamente e tem prazer em passá-la para quem quer pensar e
criar coisas novas”, defende Levy.
Em conversa, o polivalente artista Filipe Melo diz-nos que a razão se perde “quando se
age por interesses de moral dúbia ou para benefício próprio” ou ainda quando “se
prejudicam pessoas inocentes”. Aos 15 anos, ele e os amigos tinham acesso aos
números de cartão de crédito de todos os cidadãos norte-americanos. Podia ter
comprado o melhor computador do mercado ou prendas caras para as namoradas.
Podia ter acumulado um confortável fundo para enfrentar a vida adulta. Nunca se
aproveitou.
Para o Hacklaviva uma acção não deve ser descartada por violar a lei. Mas, ao
contrário dos Lulzsec Portugal ou dos AntiSecPT, não realizam DDoS (ataques que
impedem o funcionamento de um serviço), nem expõe informação. Também não
invadem sistemas como fez Melo. A sua “perspectiva de hacking está mais próxima de
uma dimensão social e criativa”, afirma Ricardo Lafuente. Preferem intervir dentro dos
limites legais e éticos, o que não significa que o tema não lhes interesse.
O colectivo nortenho considera ainda que, por vezes, há quem recorra a abusos para
mostrar uma realidade ainda mais abusiva. Esse terá sido, supostamente, o mote dos
recentes ataques, reivindicados como uma resposta à alegada presença de polícias à
paisana a incitar à violência, entre os manifestantes. A verdade é que durante as
últimas semanas se falou mais dos ataques piratas do que da sua aparente causa. “Há
uma visão algo hipócrita sobre que géneros de abusos são legítimos ou não”. Para
Filipe Melo, estes ataques são importantes “nem que seja para combater o
corporativismo e o capitalismo desenfreado”.
Estes ataques demonstraram a fragilidade de muitos dos sistemas de segurança de
sites estatais e institucionais no nosso país, revelando publicamente que a informação
e os dados de muita gente não estão assim tão seguros. “Ainda bem que há quem o
demonstre”, diz Lafuente.
A linha ideológica destes hacktivistas portugueses segue na linha dos internacionais
Lulzsec e Anonymous e não está totalmente demarcada. Ao apresentarem-se, referem
que o importante não é quem são mas sim o que são. As suas acções são assinadas,
mas não rotulam ninguém. Não têm uma identidade. Os nicknames que usam
individualmente também não revelam nacionalidade, profissão, cor da pele ou religião.
Se por vezes adoptam posições radicais contra instituições, noutros casos actuam
apenas com o divertimento como objectivo (for the lulz). Filipe Melo sublinha a
legitimidade dos actos quando o objectivo é “mudar algo que está errado, ou se forem
pura e simplesmente actos humorísticos. O humor justifica quase tudo”. Saber que
existem adolescentes que penetram em estruturas de grandes dimensões como a
Nato, o FBI ou a Sony, apenas para provocar gargalhadas, pode constituir uma
mudança no equilíbrio de poderes.
Já em 1986, Loyd Blankenship, The Mentor, no seu Manifesto Hacker — texto doutrinal
para muitos — dizia que o maior crime dos piratas é a curiosidade. De acordo com a
declaração, privilegiam uma cultura baseada no mérito e julgam as pessoas “pelo que
dizem e o que pensam”. São muito mais do que miúdos sem nada para fazer. Para
Melo, a pirataria acelera o desenvolvimento de tecnologias que, por vezes, ainda não
estão acessíveis por motivos de estratégia financeira das empresas. “Se não houvesse
Napster, não haveria iTunes. Se não houvesse torrents, possivelmente não haveria
MEO videoclube. As empresas copiam os piratas e aprendem com eles”.
Muitos estão espalhados por meios académicos ou nos sistemas de segurança de
empresas. Partilham um sentimento de pertença a uma tribo. Por causa do sentido
pejorativo atribuído ao termo hacker, escondem-se atrás de rótulos como especialista
em TI ou analista de sistemas. Nuno Cardoso, outro jovem pirata português,
apresenta-nos esta subcultura fazendo uma analogia com a imagem dos políticos. São
vistos “por uma grande parte da sociedade como corruptos, ladrões, aldrabões e
mentirosos”, apesar de muitos serem honestos e agirem conscientes dos seus actos.
Resistir pacificamente, dentro do sistema
Nuno Cardoso pertence a um conjunto de hackers portugueses que, ao contrário do
Hacklaviva, dos Unimos ou da ANSOL, desejam entrar na luta partidária tradicional.
Mesmo que de tradicional tenham pouco. Em 2009, a partir de um fórum com alunos
de Engenharia Informática na Faculdade de Ciências em Lisboa, foi criado o Partido
Pirata Português (PPP). Ainda não conseguirão obter estatuto oficial mas sonham
chegar à Assembleia da República e ao Parlamento Europeu. O núcleo duro envolve
uma dezena de membros, mas o seu portal conta já com mais de 400 inscrições. É
difícil traçar um perfil desses utilizadores. “Uma grande percentagem das pessoas
comete actos de pirataria. Faz todo o sentido que se façam representar de uma forma
mais séria”, afirma Filipe Melo sobre o tema.
O PPP foi criado à imagem do Piratpartiet, movimento que em 2009 conseguiu eleger
dois deputados para o parlamento sueco, com sete por cento dos votos. Já são a
terceira maior organização política do país nórdico e inspiraram a criação de cerca de
40 entidades semelhantes em todo o mundo. O seu braço juvenil, o Ung Pirat, é a força
partidária jovem com maior expressão na Suécia e agrega mais de 22 mil membros.
Grande impulso para o crescimento do Piratpartiet foi o mediatismo do caso Pirate
Bay, uma plataforma sueca que facilita o download de conteúdos. É um dos cem
endereços mais visitados na Web e os seus criadores são estrelas. Foram condenados a
penas de prisão, a pagar multas milionárias e o seu espaço foi fechado diversas vezes.
Mas não cederam à pressão dos defensores dos direitos de autor e de indústrias como
a de Hollywood. Os seus servidores já estiveram alojados na Ucrânia ou na Holanda e
regressaram recentemente à Suécia para serem instalados numa caverna secreta nas
montanhas. “Somos o site mais resiliente do mundo”, defendem.
O PPP considera que a democratização do conhecimento passa pela partilha e garante
que uma protecção menos vincada dos direitos de autor beneficiaria a sociedade. Num
estudo da Harvard Business School, os economistas Oberholzer-Gee e Koleman
Strumpf reforçaram essa ideia ao mostrarem que a produção musical mais do que
duplicou nos últimos sete anos. Vende-se menos, mas cria-se muito mais. No ano 2000
foram lançados 35,5 mil discos, enquanto em 2007 o número subiu para cerca de 80
mil, incluindo 25 mil álbuns digitais. Com a Internet, “quem deixa de receber não são
os autores, mas as editoras”, afirmou recentemente à Agência Lusa André Rosa, um
dos fundadores do partido.
Para Manuel Lopes Rocha, advogado especializado na área, a economia capitalista não
vive de outra coisa a não ser da Propriedade Intelectual. Algo que pode mudar com o
surgimento de sistemas operativos cloud computing, onde toda a informação passa a
estar armazenada online e não nos computadores das pessoas. “O que é imaterial não
pode ser considerado propriedade”, defende Lopes Rocha. Mas segundo os piratas,
nem actualmente “existe qualquer fundamento legal para que um download possa ser
considerado ilegal”. E desafiam qualquer um a apresentar os artigos da Lei Portuguesa
que o contrariem.
No final de 2010, o movimento contestou a ameaça feita pela ACAPOR (Associação de
Comércio Audiovisual, de Obras Culturais e de Entretenimento de Portugal), que
pretendia efectuar mil denúncias por mês à Procuradoria-Geral da República. A
medida, suficiente para entupir a engrenagem dos tribunais, procurava acabar com a
impunidade no país, onde anualmente são feitos 50 milhões de descargas e onde
quatro em cada dez programas são pirateados. De acordo com o presidente da
associação, Nuno Pereira, foi uma chamada de atenção para a lei actual que, por ser
pesada e desproporcional (pena de prisão até três anos), leva as entidades
fiscalizadoras a optarem por não agir. Para o advogado, a solução seria descriminalizar
o download e passar a aplicar coimas e a bloquear o acesso à internet (seguindo a lei
Hadopi implementada em França por Sarkozy).
Só que para André Rosa, “o problema não é denunciar, mas sim a forma como
arranjam as provas” e acusa a ACAPOR de ter software que espia os cibernautas e de
também fazerem pirataria. “Houve recolha ilegal de dados das pessoas”.
A luta contra monopólios e uma maior protecção dos dados privados da população são
marcas de todos os partidos piratas internacionais. Consideram que certas medidas no
controlo anti-terrorista e na luta contra o crime, por exemplo, podem pôr em causa a
privacidade das pessoas e ser usadas como armas repressivas.
No seu último programa, o Governo português comprometeu-se a reforçar o combate
às várias formas de pirataria e a promover mecanismos de monitorização. O PPP
considera a ideia vaga e obscura e relembra que, em 2009, Fernando Negrão, ex-
director geral da PJ e deputado do PSD, sugeriu a possibilidade das entidades de
investigação criminal introduzirem cavalos de Tróia (software informático malicioso)
em sistemas suspeitos. Para o partido, a repetida falácia apelidada pela comunicação
social de “download ilegal” tornaria qualquer cidadão suspeito. Qualquer um poderia
ser colocado sob vigilância permanente, o que seria uma perigosa violação da
Constituição. “Nada garante que esse sistema não seria abusado”.
Nuno Cardoso acrescenta que, muitas vezes, “quebrar as leis é um conceito subjectivo
e apenas uma interpretação dos poderes instituídos”. Para o jovem, os ataques a
empresas ou governos que atropelam os direitos das pessoas é o equivalente
informático a uma manifestação em massa à porta dessas instituições. Se há direito à
manifestação (que também provoca transtornos), o protesto tecnológico também
deve ser legítimo. Não acredita que estas acções questionem a soberania de estados e
fronteiras. Põe em causa, sim, políticas e alguns políticos. À ideia, acrescenta uma
citação de Thomas Jefferson: "Quando os governos temem as pessoas, há liberdade.
Quando as pessoas temem os governos há tirania".
Francisco Fernandes Ferreira