Hamlet (trad. José Rubens)

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  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    Tive o privilgio de traduzir Hamletpara a montagem dirigida por Francisco Medeiros

    no Teatro Popular do Sesi em So Paulo.

    O elenco e a ficha tcnica eram os seguintes:

    Cludio e Fantasma do PaiHlio Ccero

    HamletMarcos Damigo

    GertrudesSelma Egrei

    OfliaRosana Seligman

    Polnio/CoveiroPlnio Soares

    HorcioMarat Descartes

    Laerte/AtorGustavo Machado

    Cornlio/MensageiroDaniel Granieri

    Rosencrantz/OsricAndr Custdio

    Guildenstern/FortinbrsLuciano Gatti

    Marcelo/Voltimando/AtorRodrigo Bolzan

    Bernardo/Coveiro 2/AtorMarcelo Andrade

    Francisco/Ator Rei/SacerdoteAndr Frateschi

    Corte/Trupe/SoldadoTnia Ripardo

    Cenrio e figurinoMrcio Medina

    Trilha sonoraLivio Tragtenberg

    IlimunaoDomingos Quintiliano

    LutasLuis Louis

    Coreografia - Ins Aranha e Lucienne Guedes

    Assistente de direoBel Kowarick

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    A TRAGDIA DE HAMLET, PRNCIPE DA DINAMARCA

    de William Shakespeare

    Traduo de Jos Rubens Siqueira

    Dramatis Personae

    Cludio, rei da Dinamarca

    Hamlet, filho do rei morto, sobrinho do rei atual

    Polnio, secretrio de estado

    Horcio, amigo de Hamlet

    Laerte, filho de Polnio

    Voltimando, corteso

    Cornlio, corteso

    Rosencrantz, corteso

    Guildenstern, corteso

    Osric, corteso

    Um cavalheiro, corteso

    Um sacerdote

    Marcelo, oficial

    Bernardo, oficial

    Francisco, soldado

    Reinaldo, criado de Polnio

    Atores

    Coveiro

    Coveiro 2

    Fortinbras, prncipe da NoruegaUm capito noruegus

    Embaixadores ingleses

    Gertrudes, rainha da Dinamarca, me de Hamlet

    Oflia, filha de Polnio

    Fantasma do pai de Hamlet

    Damas, cavalheiros, oficiais, soldados, marinheiros, mensageiros, criados

    CENAElsinore, Dinamarca

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    ATO I

    Cena 1

    Castelo de Elsinore. Uma plataforma diante do castelo

    Francisco de sentinela.

    Entra Bernardo.

    BERNARDOQuem ?

    FRANCISCONo, voc responde. Alto, diga quem .

    BERNARDOViva o rei!

    FRANCISCOBernardo?

    BERNARDOEu.

    FRANCISCOTeve o cuidado de chegar bem na hora.

    BERNARDOAcabou de dar meia noite. V para a cama, Francisco.

    FRANCISCOEu agradeo muito por esse alvio. Est frio demais! D at tristeza.

    BERNARDOFoi calma a sua guarda?

    FRANCISCONo vi nem um rato.

    BERNARDO Boa noite, ento. Se encontrar Horcio e Marcelo, meus parceiros de

    guarda, apresse os dois.

    Entram Horcio e Marcelo.

    FRANCISCOAcho que so eles. Alto l! Quem ?

    HORCIO Bons patriotas.MARCELOFiis ao rei dinamarqus.

    FRANCISCOBoa noite ento.

    MARCELOAh, adeus, meu bom soldado. Quem te rendeu?

    FRANCISCOBernardo ficou no meu lugar. Boa noite ento.

    Sai Francisco.

    MARCELOBernardo!

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    BERNARDOQuem... O que? Horcio?

    HORCIOUm pedao de mim.

    BERNARDOBem vindo, Horcio. Bem vindo, Marcelo.

    MARCELOE ento? A coisa apareceu de novo?

    BERNARDOEu no vi nada.

    MARCELO Horcio diz que no passa de fantasia nossa, que no vai se render

    crendice dessa viso horrenda que duas vezes j apareceu para ns. Ento

    insisti que viesse junto, vigiar conosco os minutos desta noite, para, no

    caso da apario surgir de novo, ele acreditar no que ns vimos e falar com

    ela.

    HORCIOQue o qu! No vai aparecer.

    BERNARDOSente um pouco, e deixe a gente atacar mais uma vez o seu ouvido, to

    defendido contra a nossa histria, com o que a gente viu nessas duas

    noites.

    HORCIOBom, vamos sentar e ouvir Bernardo contar o que sabe.

    BERNARDONoite passada, quando essa mesma estrela que est para c do polo j

    tinha ido iluminar essa parte do cu onde est queimando agora, Marcelo e

    eu, o sino batendo uma hora....

    Entra o Fantasma.

    MARCELOShh! Fique quieto! Olhe! Vem vindo ali de novo!

    BERNARDOIgualzinho ao rei que morreu.

    MARCELOVoc intrudo. Fale com ele, Horcio.

    BERNARDONo igualzinho ao rei? Olhe bem, Horcio.

    HORCIOIgual. espantoso. D medo.BERNARDOQuer conversar!

    MARCELOFale com ele, Horcio.

    HORCIOO que que usurpa assim esta hora da noite e a figura nobre e guerreira

    com que marchou um dia a majestade da finada Dinamarca? Por Deus, eu

    ordeno que fale!

    MARCELOFicou ofendido.

    BERNARDOOlhe, est indo embora!HORCIOPare! Fale! Fale! Eu ordeno: fale!

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    Sai o Fantasma.

    MARCELOFoi embora e no quis responder.

    BERNARDOE ento, Horcio? Est tremendo, plido. No acha que isto mais que

    fantasia? O que voc acha?

    HORCIOJuro por Deus, eu no podia acreditar sem a prova concreta e verdadeira

    de ver com os meus prprios olhos.

    MARCELONo idntico ao rei?

    HORCIO Como voc com voc mesmo. Foi essa a armadura que usou para lutar

    com a ambiciosa Noruega. E desse jeito franziu a testa numa violenta

    conferncia em que esmagou no gelo os poloneses com os seus trens.

    estranho.

    MARCELO J duas vezes antes, nesta hora morta, passou por ns com esse passo

    guerreiro.

    HORCIONem sei que rumo dar para o meu pensamento. Na minha opinio, isso ,

    por assim dizer, sinal de alguma estranha comoo no reino.

    MARCELO Bom, vamos sentar. Me diga s uma coisa: por que esta guarda to

    severa, to estrita, que toda noite cansa o cidado? Por que fundir tantos

    canhes de bronze e comprar tantas armas no estrangeiro? Por que tanta

    presso nos estaleiros, onde a semana no tem mais domingo? O que ser

    que nos espera, que em suor e pressa iguala a noite e o dia de trabalho?

    No sei quem poderia me informar.

    HORCIO Eu posso... Ao menos, o que se diz por a. Nosso ltimo rei, cuja figura

    acabou de aparecer, foi desafiado, como vocs sabem, pelo rei Fortinbras

    da Noruega, que picado de orgulho e de inveja, queria combater. E ovalente rei Hamlet, por sua valentia amado nesta parte do mundo, matou

    esse Fortinbras que, por contrato, selado e aprovado por lei e costume,

    junto com a vida perdeu as suas terras, que passaram para o vencedor. Por

    sua vez, uma parte equivalente, dada como garantia pelo nosso rei,

    passaria s mos de Fortinbras, se ele vencesse, assim como, pelo que

    rezava o acordo, as dele passaram para Hamlet. Ento, o jovem Fortinbras,

    cheio de ardor, mas ainda inexperiente, foi pelos confins da Noruega,caando aqui e ali um bando de renegados, que em troca de cama e

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    comida, engolem qualquer coisa que exija coragem. O que vem a ser,

    como bem entendeu o nosso reino, recobrar de ns, com mo pesada e

    termos humilhantes, aquelas terras que o pai dele perdeu. essa, eu acho,

    a causa principal desses preparativos, a razo da nossa guarda e o motivo

    de tanta pressa e agitao no reino.

    BERNARDO Eu tambm acho que no nada mais que isso mesmo. uma boa

    explicao para essa figura armada que vem assombrar a nossa guarda, to

    igual ao rei que foi e a razo dessas guerras.

    HORCIO como um cisco incomodando o olho da razo. No apogeu do esplendor

    de Roma, um pouco antes da queda do poderoso Jlio, as tumbas todas se

    esvaziaram e os cadveres com suas mortalhas saram pelas ruas

    guinchando e gemendo para as estrelas com rabos de fogo, e o orvalho de

    sangue, e os desastres nos astros. E a lua mida, que com sua fora regula

    o reino de Netuno, adoeceu, quase morreu at, num eclipse. E esses

    mesmos sinais de fatos assustadores, como arautos que anunciam os

    destinos e prlogo da desgraa futura, o cu e a terra juntos esto

    mostrando para a nossa terra e os nossos conterrneos.

    Entra o Fantasma de novo.

    Mas calma! Olhem! Ele vem de volta! Vou impedir a passagem dele, nem

    que me fulmine. Pare, iluso!

    Abre os braos.

    Se capaz de som ou uso da voz, fale comigo. Se alguma boa ao podeser feita, que seja alvio seu e paz a mim, fale comigo. Se conhece o

    destino secreto do seu reino, que, revelado, se possa evitar, oh, fale! Se

    acumulou em vida um tesouro extorquido no ventre da terra, desses que

    dizem que os mortos vm buscar...

    O galo canta.

    Fale! Pare e fale! Pare ele a, Marcelo!

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    MARCELOQuer que ataque com a alabarda?

    HORCIOAtaque, se ele no parar.

    BERNARDOAqui!

    HORCIOAqui!

    MARCELOSumiu!

    Sai o Fantasma.

    Est errado, diante dessa majestade, a gente usar violncia. Ele igual ao

    ar, invulnervel, e o nosso ataque uma bobagem, cruel, ridculo.

    BERNARDOEle ia falar, quando o galo cantou.

    HORCIO E a se assustou como quem tem culpa se assusta quando ouve um

    chamado. Ouvi dizer que o galo a trombeta do amanhecer, e com a sua

    voz aguda e alta acorda o deus do dia. E que com esse alerta, seja no mar

    ou no fogo, em terra ou no ar, o esprito errante, perdido, corre para o seu

    claustro. O que a gente acabou de ver a prova de que isso verdade.

    MARCELO Se desmanchou quando o galo cantou. Tem gente que diz que quando

    chega a poca de festejar o nascimento do nosso salvador, o galo da manh

    canta a noite inteira e a, dizem, nenhum esprito pode sair fora. As noites

    so sadias, os astros no azaram, nenhuma fada aparece, nenhuma bruxa

    tem poder de fazer encantamento, to santa e cheia de graa essa data.

    HORCIO Foi o que ouvi e que acredito em parte. Mas olhe, a manh, com o seu

    manto rosado j vem pisando o orvalho daquele monte do nascente.

    Vamos encerrar a nossa guarda, e o meu conselho que a gente v contar

    o que viu aqui para o jovem Hamlet, pois aposto a minha vida que o

    esprito, mudo para ns, com ele vai falar. No acham que a gente devecontar para ele, como exige o afeto e manda o dever?

    MARCELOVamos, sim, eu concordo. E agora de manh eu sei com certeza onde ele

    vai estar.

    Saem.

    Cena 2Elsinore. Sala do trono no castelo.

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    Toque de clarins.

    Entram Cludio, rei da Dinamarca, Gertrudes, a rainha, membros do Conselho,

    Polnio, seu filho Laerte e sua irm Oflia, o prncipe Hamlet, vestido de preto, mais

    Voltimando e Cornlio, cavalheiros, cortesos.

    REI Mesmo ainda verde na lembrana a morte de Hamlet, nosso caro irmo, e

    envoltos em luto os nossos coraes, e todo o reino como uma s testa

    vincada de dor, manda a razo que enfrentemos a natureza e com o mais

    sbio pesar lembremos dele sem esquecer com isso de ns mesmos. A

    nossa antiga irm, hoje rainha, consorte imperial deste reino guerreiro,

    tomamos por esposa com alegria por assim dizer vencida, um olho

    esperanoso, o outro tristonho, com risos no funeral e rquiem nas bodas,

    com igual peso a delcia e a dor. E em nenhum momento ignoramos os

    seus bons conselhos, que liberalmente nos orientaram nesta questo.

    Somos gratos a todos. Prosseguindo: como vocs sabem, o jovem

    Fortinbras, avaliando errado a nossa fora, ou achando que pela morte de

    nosso irmo nosso estado estaria desunido e desequilibrado, a isso

    somando o seu sonho de conquista, vem nos importunando com

    mensagens em que exige a devoluo das terras que seu pai perdeu, no

    rigor da lei, para o nosso mais valente irmo. Mas basta dele. Agora ns e

    o motivo desta reunio. Trata-se do seguinte: escrevemos Noruega, ao

    rei, tio do jovem Fortinbras, que, impotente, de cama, mal sabe das

    intenes do sobrinho, para que impea imediatamente que ele prossiga

    em seu intento, uma vez que o alistamento, a convocao e o treinamento

    so questes que lhe dizem respeito. E por isso estamos enviando voc,

    meu caro Cornlio, e voc, Voltimando, como portadores desta saudaoao velho noruegus, sem atribuir aos dois nenhum outro poder pessoal para

    tratar com o rei qualquer outro negcio alm desse j vasto assunto. Vo.

    E que a sua rapidez d provas do seu empenho.

    CORNLIO, VOLTIMANDONisso, e em tudo o mais, cumprimos o nosso dever.

    REI Temos f que sim. De corao, adeus.

    Saem Voltimando e Cornlio.

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    E agora, Laerte, qual a novidade? Voc nos falou de um pedido. O que ,

    Laerte? Nenhum pedido justo ao rei dinamarqus, deixa de ser ouvido. O

    que voc pode pedir, Laerte, que j no seja uma oferta minha? A cabea

    no mais irm do corao, nem a mo melhor instrumento para a boca,

    do que o trono da Dinamarca para o seu pai. Diga o que deseja, Laerte.

    LAERTE Meu temido senhor, a sua permisso e bno para voltar Frana.

    Embora tenha vindo com prazer para assistir sua coroao, confesso que

    agora, cumprido esse dever, minha cabea e meu corao mais uma vez se

    voltam para a Frana e se curvam sua graciosa bno e permisso.

    REI J tem a permisso do seu pai? O que diz Polnio?

    POLNIOEle conseguiu, senhor, devagarinho, com muito empenho, arrancar de mim

    essa permisso e acabei cedendo ao que queria. Imploro a sua permisso

    para a viagem dele.

    REI Aproveite o seu bom momento, Laerte. O tempo seu para gastar com seu

    melhor critrio! Mas agora, meu sobrinho Hamlet, meu filho...

    HAMLET( parte) Mais que parente, menos que parelho.

    REI Por que essas nuvens ainda sua volta?

    HAMLET Nada disso, meu senhor, eu estou sempre ao sol.

    RAINHA Hamlet, meu bem, afaste de voc essa noite escura e faa o seu olho ver

    como amigo o rei da Dinamarca. J chega de andar sempre de olhar baixo,

    procurando na poeira o seu nobre pai. Voc sabe que isso normal: tudo o

    que vive tem de morrer, tem de passar da natureza para a eternidade.

    HAMLET , me, normal.

    RAINHA Se normal por que parece to difcil para voc?

    HAMLET Parece, me? No, . No entendo nenhum parece. Nem este manto cor

    de tinta, minha me, nem os suspiros profundos, nem os rios que corremdos olhos, nem o ar de desnimo do rosto, junto com toda forma, jeito e

    demonstrao de dor podem me revelar de verdade. Isso tudo, sim,

    parece. Porque so atitudes que uma pessoa pode representar. Mas o que

    eu tenho por dentro ultrapassa o que se pode mostrar... Essas coisas so

    apenas enfeites, paramentos da tristeza.

    REI uma prova da sua boa natureza, Hamlet, respeitar esses deveres de luto

    por seu pai. Mas voc deve saber que seu pai tambm perdeu o pai; e queesse pai perdido, perdeu o dele; e que o sobrevivente tem por obrigao

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    filial durante algum tempo manter o luto. Insistir na dor, porm, mostra

    de teimosia, lamento indigno de um homem. Revela uma vontade muito

    incorreta ao cu, um corao sem fora, uma mente impaciente, um

    entendimento simplrio e inculto. Por que questionar com essa

    impertinncia uma coisa que sabemos que tem de acontecer, que to

    normal, at vulgar para o entendimento? No! ofensa ao cu, ofensa

    aos mortos, ofensa natureza, absurdo total para a razo, que sabe que

    normal a morte dos pais, e que sempre afirmou, desde o primeiro morto at

    o que acaba de morrer agora: Assim tem de ser. Ns solicitamos que

    jogue fora essa tristeza inconveniente e pense em ns como pai. Que o

    mundo todo saiba: voc o herdeiro mais imediato de nosso trono e no

    menos nobre que o amor de um pai verdadeiro por seu filho o amor que

    dedico a voc. E a sua inteno de voltar aos estudos em Wittenberg muito

    contraria o nosso desejo. Pedimos que concorde em ficar aqui, para alegria

    e conforto de nossos olhos, nosso mais importante corteso, parente e filho

    nosso.

    RAINHA No deixe que se percam as preces de sua me, Hamlet. Estou pedindo:

    fique conosco, no volte para Wittenberg.

    HAMLETFarei o melhor possvel para obedecer, me.

    REI Isso, sim, uma resposta correta e carinhosa. Fique entre ns na

    Dinamarca. Minha rainha, venha. Meu corao est sorrindo porque

    Hamlet concordou assim de boa vontade e sem resistncia. E em honra

    disso, que no se faa hoje um s brinde na Dinamarca sem que seja

    anunciado s nuvens pelo grande canho, para que a alegria do rei se

    espalhe pelo cu, repetindo o trovejar da terra. Vamos embora.

    Fanfarra. Saem todos, menos Hamlet.

    HAMLETAh, se esta carne to, to slida pudesse derreter, e degelar, se dissolver

    em orvalho. E se o Eterno no tivesse uma lei proibindo o suicdio! Oh,

    Deus, oh, Deus, que cansativo, velho, chato e intil me parece este mundo!

    Que horror, oh, horror, horror! um jardim de ervas daninhas crescendo

    sem parar, tomado apenas por coisas baixas e grosseiras. Que tenhachegado a isto! Morto h menos de dois meses... no, nem tanto, nem

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    dois... Um rei to bom que diante deste era como um deus para um mortal,

    to amoroso com minha me que no deixava um vento mais forte roar o

    seu rosto! O Cu e a Terra. Por que tenho de lembrar? Ah, ela se agarrava

    nele como se a sua fome aumentasse com aquilo que saciava. E um ms

    depois... No quero mais pensar. Fragilidade, seu nome mulher... Um

    pequeno ms. Ainda nem gastou a sola do sapato com que acompanhou o

    corpo de meu pai, banhada em lgrimas, ela, ela mesma... oh, uma fera que

    no tem uso da razo teria chorado mais! ...casou com meu tio, irmo de

    meu pai, mas to diferente de meu pai quanto eu de Hrcules. Em um ms.

    O sal das lgrimas honestas no tinha ainda secado nos seus olhos

    vermelhos e ela casou. Ah, pressa maldita. Saltar com tamanha agilidade

    para os lenis do incesto! Isso no bom, no pode acabar bem. Mas

    explode, corao, porque eu tenho de domar a lngua.

    Entram Horcio, Marcelo e Bernardo.

    HORCIOSalve, prncipe.

    HAMLET Que bom ver voc bem. Horcio!... eu me esqueo at de mim.

    HORCIOSou eu mesmo, prncipe, seu pobre servidor de sempre.

    HAMLET No: meu amigo, querido. isso que somos um para o outro. O que faz to

    longe de Wittenberg, Horcio? Marcelo.

    MARCELOMeu senhor.

    HAMLETEstou contente de ver vocs. (para Bernardo) Boa noite... Mas, ento, o

    que voc est fazendolonge de Wittenberg, Horcio?

    HORCIOFugindo das aulas por preguia, prncipe.

    HAMLETEu no deixaria um inimigo seu dizer uma coisa dessas, nem voc deveviolentar o meu ouvido com uma acusao contra si mesmo. Sei que no

    preguioso. Mas o que est fazendo em Elsinore? Vai aprender a beber

    antes de ir embora.

    HORCIOVim para o enterro de seu pai, meu prncipe.

    HAMLET No brinque comigo, colega. Acho que veio foi para o casamento de

    minha me.

    HORCIO, meu prncipe, foi logo em seguida.

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    HAMLET Economia, Horcio, economia. Os assados do funeral serviram como frios

    na mesa do casamento. Eu preferia encontrar meu inimigo mais ntimo no

    cu do que ter vivido esse dia, Horcio. Meu pai... parece que estou vendo.

    HORCIOOnde, prncipe?

    HAMLET Dentro do meu corao, Horcio.

    HORCIOEu vi seu pai uma vez. Era um belo rei.

    HAMLET Era um homem. Em tudo e por tudo. Nunca mais vou ver outro igual.

    HORCIOPrncipe, acho que vi seu pai ontem noite.

    HAMLETViu? Quem?

    HORCIOO rei seu pai, meu prncipe.

    HAMLET O rei meu pai?

    HORCIO Tempere o seu espanto com um pouco de ateno. Escute o que eu vou

    contar com esses dois homens por testemunhas.

    HAMLET Pelo amor de Deus, me conte!

    HORCIOJ duas noites seguidas esses dois homens, Marcelo e Bernardo, estavam

    de guarda na imensido morta da meia-noite, quando tiveram o encontro.

    Um vulto igual ao seu pai, armado exatamente do mesmo jeito, da cabea

    aos ps, apareceu na frente deles, e com passo solene passou por eles

    majestoso e sem pressa. Trs vezes passou diante dos seus olhos confusos

    e surpresos, distncia de um brao, enquanto eles se desmanchavam de

    medo, como gelia, e ali ficaram, mudos, sem falar com ele. Isso eles

    vieram me contar no mais estrito segredo e fui fazer a guarda com eles na

    terceira noite, quando, exatamente como haviam contado, tanto na hora

    como na forma, confirmando cada palavra, surgiu a apario. Eu conheci

    seu pai. Estas duas mos no so mais parecidas.

    HAMLET Mas onde foi isso?MARCELONa plataforma onde a gente fica de guarda, meu senhor.

    HAMLET No falaram com ele?

    HORCIO Eu falei, prncipe, mas no me respondeu nada. Acho que levantou a

    cabea e fez um movimento para falar, mas bem nesse momento o galo da

    manh cantou e ele recuou depressa, desapareceu de nossa vista.

    HAMLET muito estranho.

    HORCIOPela minha vida, meu querido prncipe, verdade. E ns achamos que eranosso dever vir lhe contar o acontecido.

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    HAMLET Claro, claro. Mas isso me deixa confuso... Vo ficar de guarda esta noite?

    BERNARDO E MARCELOVamos, sim, senhor.

    HAMLET Armado, vocs disseram?

    BERNARDO E MARCELOArmado, sim, senhor.

    HAMLETDa cabea aos ps?

    BERNARDO E MARCELOSim, senhor, da cabea aos ps.

    HAMLET Ento no viram o rosto dele.

    HORCIOVimos, sim. Estava com a viseira levantada.

    HAMLET E parecia estar como? Carrancudo?

    HORCIOMais triste que zangado.

    HAMLET Plido ou vermelho?

    HORCIONo, muito plido.

    HAMLETE olhava para vocs?

    HORCIOO tempo todo.

    HAMLET Eu queria estar l.

    HORCIO - Teria ficado assombrado.

    HAMLET Pode ser, pode ser. Demorou muito?

    HORCIOO tempo de contar at cem, sem muita pressa.

    BERNARDO E MARCELOMais, mais.

    HORCIONo quando eu vi.

    HAMLET A barba grisalha, no?

    HORCIOIgual eu tinha visto em vida: escura e grisalha.

    HAMLET Eu vou fazer a guarda hoje. Quem sabe aparece de novo.

    HORCIOGaranto que sim.

    HAMLETSe assumir a forma nobre de meu pai, falo com ele nem que o inferno se

    abra e me mande calar. Peo a vocs todos, que esconderam essa viso atagora, para triplicar o silncio e, acontea o que acontecer esta noite, vocs

    assistam, mas no digam nada. Eu no esquecerei o carinho de vocs.

    Agora, adeus. Entre onze e meia-noite vou at a plataforma.

    OS TRS O nosso dever est a seu servio.

    HAMLET Dever, no, carinho, como o meu por vocs. Adeus.

    Saem todos, menos Hamlet.

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    O esprito de meu pai. Armado! Nem tudo vai bem. Desconfio de um

    crime. Queria que j fosse noite. At ento, calma, minha alma. A

    podrido acaba aparecendo aos olhos dos homens, mesmo quando coberta

    pela terra toda.

    Sai.

    Cena 3

    Sala na casa de Polnio.

    Entram Larte e sua irm, Oflia.

    LAERTE Minha bagagem j foi embarcada. Adeus. E, minha irm, quando houver

    vento propcio e um barco ligeiro, no durma: me mande notcias de voc.

    OFLIA Voc duvida?

    LAERTE Quanto a Hamlet e aessa bobagem desse interesse dele, voc veja como

    um capricho, uma brincadeira, uma violeta juvenil, precoce, mas no

    permanente, doce, mas no duradoura, perfume e pedidos passageiros,

    nada mais.

    OFLIA Nada mais que isso?

    LAERTE Melhor pensar que no. Porque o fermento da natureza no faz crescer s

    os msculos e o corpo, mas medida que este templo cresce, l dentro as

    funes da mente e da alma crescem junto. Talvez ele te ame agora, e

    agora no haja nada sujo nem dissimulado que comprometa a pureza da

    vontade dele. Mas voc deve ter cuidado porque a prpria realeza no

    permite que ele seja senhor da prpria vontade, escravo de seu

    nascimento. E no pode, como as pessoas comuns, escolher por si prprio,porque da escolha dele depende a boa sade do reino todo. Ento, a

    escolha dele tem de se limitar s ordens e s imposies desse corpo do

    qual ele a cabea. Se diz que te ama, manda a sabedoria que voc

    acredite apenas na medida em que ele, do seu jeito e dentro dos seus

    limites, puder provar o que diz, e isso no nada mais nada menos que a

    voz da prpria Dinamarca. Ento pese bem o quanto a sua honra pode ficar

    comprometida se voc ouvir com ouvido confiante demais as canes dele,ou entregar o corao, ou abrir o tesouro casto do seu corpo s insistncias

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    dele. Cuidado, Oflia, cuidado, minha querida irm, e fique na retaguarda

    com o seu afeto, fora do alcance dos perigos do desejo. Mesmo a donzela

    mais pura j se arrisca s de mostrar sua beleza lua. Nem a prpria

    virtude escapa dos golpes da calnia. A lagarta muitas vezes ataca o broto

    antes de ele se abrir em botes, e no sereno molhado da manh da

    juventude os contgios so muito perigosos. Tome cuidado, ento. S se

    tem segurana na cautela. contra si mesma que a juventude se rebela.

    OFLIA Eu vou guardar os seus conselhos como sentinelas do meu corao. Mas,

    meu irmo, no faa como alguns maus pastores que mostram para a gente

    o caminho mais difcil e espinhoso para o cu, enquanto eles, libertinos,

    seguem, inchados e orgulhosos, pelo caminho florido, desprezando os

    prprios conselhos.

    LAERTE Ah, no se preocupe comigo.

    Entra Polnio.

    Estou atrasado. O pai vem vindo. Uma dupla bno uma dupla graa. E

    a ocasio sorri para uma segunda despedida.

    POLNIOAinda aqui, Laerte? Para bordo, para bordo, que absurdo! O vento j est

    enfunando a sua vela e voc aqui. Pronto, Deus te abenoe! E guarde mais

    estes preceitos na memria. Nunca d voz aos seus pensamentos, nem ato

    a um pensamento desmedido. Seja simples, mas de jeito nenhum vulgar.

    Os amigos que tiver, depois de comprovado que so fiis, voc prenda na

    alma com correntes de ao. Mas no gaste a mo agradando qualquer

    camarada recm-sado do ovo, ainda sem penas. Evite entrar em briga, mas

    quando entrar, tome o cuidado de fazer o outro ter medo de voc.Empreste o seu ouvido a todos, a sua voz a poucos. Aceite a opinio de

    todos, mas reserve o seu juzo. Gaste em roupas o que a sua bolsa permitir,

    mas sem excesso, ricas, no espalhafatosas. O hbito sempre mostra o

    homem e, na Frana, os de melhor famlia e posio so muito distintos e

    generosos, principalmente nisso. No empreste, nem tome emprestado,

    porque quando se empresta se perde o dinheiro e o amigo, e quando se

    pega emprestado se perde o pulso da prpria economia. Acima de tudo,seja verdadeiro consigo mesmo, assim, como a noite vem sempre depois

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    do dia, voc nunca ser falso com ningum. Adeus. Que a minha bno

    faa isso ficar bem gravado dentro de voc.

    LAERTE Humildemente me despeo, pai.

    POLNIOSua hora te chama. V, os criados esto esperando.

    LAERTE Adeus, Oflia, e lembre bem do que eu te disse.

    OFLIA Est trancado na minha memria e s voc tem a chave.

    LAERTE Adeus.

    Sai.

    POLNIOO que foi que ele disse para voc, Oflia?

    OFLIA Falou do prncipe Hamlet.

    POLNIO Ah, bem pensado! Vieram me dizer que ultimamente ele tem passado

    muito tempo com voc sozinha, e que tem sido muito generosa com ele. Se

    isso verdade, e vieram me contar porque assunto que exige cuidado,

    tenho de dizer que voc no est entendendo bem a sua posio, como

    convm minha filha e sua honra. O que existe entre vocs dois? Me

    conte a verdade.

    OFLIA Ultimamente, pai, ele tem dado muitas mostras de afeio por mim.

    POLNIOAfeio? Que nada! Est falando como uma menina inexperiente, que no

    percebe o perigo da situao. Acredita mesmo nessas mostras dele?

    OFLIA Eu no sei o que pensar, meu pai.

    POLNIO Ah, vou te ensinar! Voc est agindo feito um bebezinho que toma a

    amostra pelo produto real. E, como diz o dito, quem assim se mostra, por

    tolo me demonstra.

    OFLIA Mas pai, ele tem me declarado amor de um jeito muito honrado.POLNIOAh, jeito honrado voc acha. Imagine! Imagine!

    OFLIA E tempera o que diz, pai, com votos ao cu.

    POLNIOAh, arapuca de pegar passarinho! Eu sei muito bem que quando o sangue

    esquenta, a alma fica prdiga e enche a boca de votos. Essas exploses,

    minha filha, do mais luz que calor e se apagam junto mesmo com a

    promessa. No tome isso por fogo, no. A partir de agora, seja mais

    econmica com a sua virginal presena. Ponha nos seus encontros umpreo mais alto que um mero chamado para conversar. Basta saber que o

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    prncipe Hamlet jovem e tem rdea mais solta do que voc pode ter. Em

    resumo, Oflia, no acredite nos votos dele, porque so como corretores

    que no revelam o teor do investimento, meros suplicantes de desejos no-

    recomendveis, suspirando feito uma prostituta piedosa para melhor

    enganar. Para encerrar: no quero, falando com franqueza, que de hoje em

    diante voc jogue fora nenhum momento de lazer trocando palavras ou

    conversas com o prncipe Hamlet. No esquea, uma ordem. Agora v.

    OFLIA Eu obedeo, pai.

    Saem.

    Cena 4

    Elsinore. A plataforma diante do castelo.

    Entram Hamlet, Horcio e Marcelo.

    HAMLET O ar est mordente. Muito frio.

    HORCIODemais, arde.

    HAMLETQue hora agora?

    HORCIO Falta pouco para meia noite.

    MARCELONo, j bateu.

    HORCIO mesmo? Eu no ouvi. Ento est quase na hora que o esprito costuma

    aparecer.

    Um toque de trombetas, dois tiros de canho.

    O que isso, prncipe?HAMLETO rei hoje passa a noite em claro e festeja: muita bebida, danas, e cada

    vez que ele enxugar o copo de vinho, a fanfarra e as trombetas anunciam

    assim o portento dos seus brindes.

    HORCIO algum costume?

    HAMLETAh, , sim, sem dvida. Mas para mim, que sou nativo daqui e criado para

    isso, um costume que seria melhor esquecer que respeitar. Por causa das

    orgias dessas bebedeiras, outras naes a leste e oeste nos insultam ezombam de ns. Nos taxam de bbados e com o nome de porcos mancham

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    nossa honra. E isso rouba a prpria essncia e valor dos nossos feitos, por

    maiores que sejam. Muitas vezes acontece de certos homens, seja por um

    defeito da prpria natureza, de que no podem ser culpados, porque a

    natureza no pode escolher a sua origem, mas o excesso de algumas

    compleies muitas vezes rompem os limites e as defesas da razo, em

    outros algum hbito que fermenta demais a forma das maneiras

    aceitveis, esses homens, como eu dizia, levando assim a marca de um

    defeito, de um capricho da natureza ou do destino, vero suas virtudes,

    sejam elas puras como a graa, infinitas quanto o homem capaz, expostas

    censura geral, corrompidas por aquele defeito particular. Basta um pingo

    de mal para corromper a nobreza de uma substncia.

    Entra o Fantasma.

    HORCIOOlhe, prncipe, est chegando!

    HAMLETAnjos, mensageiros da graa, valei-nos! Seja esprito do bem ou gnio do

    mal, traga consigo ventos do cu ou rajadas do inferno, seja a sua inteno

    perversa ou benfazeja, to difusa a sua forma que eu quero lhe falar. E

    Hamlet te chamo, rei, pai, real dinamarqus. Oh, responda! No me deixe

    chorar sem entender. Conte porque seus santos ossos, na morte sepultados,

    romperam a mortalha. Por que o sepulcro em que, calados, colocamos sua

    urna abriu a boca de mrmore pesado? O que quer dizer isto? Um corpo

    morto assim, de novo em armadura completa, sair para o luar, a assombrar

    a noite, e a ns, joguetes da natureza, to horrivelmente abalados por

    pensamentos que esto alm da nossa alma? Fale! Por que isso? Para que?

    O que ns temos de fazer?

    O Fantasma chama Hamlet.

    HORCIOEst chamando para ir com ele, como se quisesse converar a ss.

    MARCELOOlhe com que nobreza chama o senhor para um lugar mais isolado. Mas

    no v com ele, no!

    HORCIONo, de jeito nenhum!HAMLETNo vai falar. Eu vou com ele, sim.

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    HORCIONo v, meu prncipe!

    HAMLETPor que no? Por que medo? Minha vida no vale um alfinete. E a minha

    alma... O que ele pode fazer contra minha alma, se uma coisa imortal

    igual a ele? Est me chamando de novo. Eu vou.

    HORCIOE se ele atrair o senhor para as ondas, prncipe? Para a tentao do abismo

    que sobe sobre o mar, e l assumir alguma outra forma horrvel que prive

    sua majestade da razo e leve loucura? Pense um pouco. O prprio lugar,

    sem nenhum motivo, j desperta o desespero em qualquer um que olhe

    para o mar e escute o seu rugido.

    HAMLETEst me chamando. (para o Fantasma) V. Eu sigo atrs.

    MARCELONo deve ir, meu senhor.

    HAMLETTirem as mos!

    HORCIOControle-se. No pode ir.

    HAMLETO meu destino me chama e deixa cada pequena artria deste corpo mais

    forte que os nervos de um leo.

    O Fantasma chama.

    Me chama de novo. Tirem as mos, vocs! Por Deus, transformo em

    fantasma quem me impedir! Estou dizendo: afastem! (para o Fantasma)

    Vamos. Eu sigo.

    Saem o Fantasma e Hamlet.

    HORCIOEst tomado pela imaginao.

    MARCELOVamos atrs. No o momento de obedecer agora.HORCIOEu vou com voc. Onde vai dar isso?

    MARCELOH algo de podre no reino da Dinamarca.

    HORCIOEst nas mos de Deus.

    MARCELONo. Vamos atrs dele.

    Saem.

    Cena 5

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    Elsinore. O castelo. Outra parte da fortificao.

    Entram o Fantasma e Hamlet.

    HAMLETPara onde me leva? Fale! No passo daqui.

    FANTASMAEscute.

    HAMLETEscuto.

    FANTASMA J est perto a minha hora de retornar para as chamas de enxofre do

    tormento.

    HAMLETAh, pobre esprito!

    FANTASMANo tenha pena! Preste ateno ao que vou revelar.

    HAMLETFale. Eu escuto.

    FANTASMADeve tambm vingar, depois de ouvir.

    HAMLETO que?

    FANTASMAEu sou o esprito de seu pai, condenado a vagar por algum tempo pela

    noite e, prisioneiro, de dia jejuar nas chamas, at que se purguem e se

    queimem os crimes cometidos em meus dias de vida. Se no me fosse

    proibido revelar os segredos da minha priso, a palavra mais leve que eu

    contasse arrancaria a alma do seu corpo, gelaria o seu jovem sangue, faria

    seus dois olhos, como estrelas, saltarem das rbitas, e os seus cabelos

    deixaria em p como os espinhos de um ourio. Mas esse segredo eterno

    no para ouvidos de carne e sangue. Escute, escute, ah, escute! Se algum

    dia amou seu caro pai...

    HAMLETOh, Deus!

    FANTASMAVingue este srdido e monstruoso crime.

    HAMLET Crime?

    FANTASMA Crime srdido, como todos so. Este, porm, srdido, estranho,contrrio natureza.

    HAMLETConte depressa, depressa, e que asas rpidas como a meditao, como os

    pensamentos de amor, possam me arrebatar para a vingana.

    FANTASMA Vejo que capaz. Mais frouxo seria do que as ervas gordas que

    apodrecem nas guas paradas dos ancoradouros do rio Lete se isso no te

    abalasse. Agora, Hamlet, escute. O que se disse foi que enquanto eu

    dormia no pomar, uma serpente me picou. A conscincia de toda a

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    Dinamarca assim vilipendiada por uma falsa verso de minha morte.

    Saiba, porm, meu nobre jovem, que a serpente que tirou a vida de seu pai

    agora usa a coroa dele.

    HAMLET Ah, minha alma proftica! Meu tio?

    FANTASMA . Esse animal adltero, incestuoso, com o feitio de sua lbia, com

    presentes traioeiros... ah, prfidos as palavras e os presentes que tm o

    poder de seduzir assim... atraiu para a sua lascvia vergonhosa a vontade

    da minha rainha que parecia to virtuosa. Oh, Hamlet, que queda essa! De

    mim, do amor que tinha ainda a dignidade do voto que fiz a ela em

    matrimnio, descer para um canalha de dotes naturais to menores que os

    meus! A virtude no se abala mesmo que a lascvia lhe faa a corte com

    uma forma do cu. Da mesma forma, a luxria, mesmo ligada a um anjo

    radioso continua se saciando na cama celestial, refocilando na imundcie.

    Mas basta! Parece que sinto o aroma da manh. Serei breve. Dormindo em

    meu pomar, como era meu costume toda tarde, a minha segurana dessa

    hora o seu tio invadiu,levando num frasco o sumo da maldita bona. E na

    cmara do meu ouvido verteu o licor leproso, cujo efeito de tal forma

    inimigo ao sangue do homem que, mais rpido que mercrio, corre pelas

    portas e caminhos naturais do corpo, e com um sbito vigor, como gotas

    de cido no leite, talha e coagula o sangue fino e sadio. Assim fez com o

    meu: num instante uma lepra de escamas se espalhou e com uma horrenda

    crosta cobriu todo o meu corpo. Assim foi, portanto, que dormindo, pela

    mo de um irmo, me vi privado de um s golpe da vida, da coroa, da

    rainha. Colhido na florao dos meus pecados, sem sacramentos, mandado

    a prestar contas com todas as imperfeies pesando sobre a minha cabea.

    Oh, horror! Oh, horror! Que horror! Se voc tem em si sentimentosnaturais, no tolere uma coisa dessas. No permita que o leito real da

    Dinamarca sirva de coxim para a luxria, para um maldito incesto. Seja

    qual for, porm, a atitude que escolher, no contamine sua mente, no

    permita que sua alma conspire contra sua me. Que ela fique a cargo do

    cu e dos espinhos que abriga no peito. Eles picam e sangram. Adeus

    agora. O vagalume apaga j o seu fogo intil, anunciando que a manh

    vem vindo. Adeus, adeus, Hamlet. Lembre de mim.

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    Sai.

    HAMLET Oh, legies todas do cu! Oh, terra! Que mais? Devo juntar o inferno?

    Vergonha! Agente, agente, meu corao! E vocs, nervos, no

    envelheam ainda, me sustentem. Lembrar de voc? , sim, pobre

    fantasma, enquanto a memria tiver um espao neste globo perturbado.

    Lembrar de voc? , sim, vou apagar da memria toda e qualquer

    recordao banal, toda moral dos livros, toda forma, toda impresso que a

    juventude e a observao gravaram nela, e s o seu mandamento h de

    viver no livro, no captulo do meu crebro, longe da baixeza da matria. ,

    sim, por Deus! Oh, perniciosa mulher! Oh, canalha, canalha, sorridente,

    maldito canalha! Minha memria! Minha memria... tenho de gravar que

    possvel sorrir, sorrir, e ser canalha. Pelo menos, tenho certeza que assim

    na Dinamarca. (escreve) Pronto, meu tio, a est. E agora, o meu lema:

    Adeus, adeus! Lembre de mim. Esse o meu juramento.

    HORCIO - (fora de cena) Prncipe, prncipe!

    Entram Horcio e Marcelo.

    MARCELOPrncipe Hamlet!

    HORCIOO cu proteja!

    HAMLETAssim seja!

    MARCELOOl, ho, ho, meu senhor!

    HAMLETOl, ho, ho, rapaz! Venha, falco, venha.

    MARCELOComo o senhor est?

    HORCIO O que aconteceu?MARCELOOh, que incrvel!

    HORCIOConte, meu prncipe.

    HAMLETNo, voc vai falar.

    HORCIOEu no, meu prncipe, por Deus!

    MARCELONem eu, meu senhor.

    HAMLETO que vocs me dizem? Ser que o corao humano jamais sonhou com

    isso? Mas vo guardar segredo?AMBOS Por Deus, senhor, meu prncipe.

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    HAMLET No existe em toda a Dinamarca um s canalha... que no seja um

    rematado malandro.

    HORCIO No precisa nenhum fantasma sair do tmulo para dizer isso, meu

    prncipe.

    HAMLET verdade! Voc est certo! Ento, sem mais rodeios acho melhor a gente

    apertar as mos e se separar. Vocs para os seus negcios e desejos, pois

    todo homem tem sempre algum negcio, algum desejo, assim , e eu para

    o meu pobre lado, vejam vocs, vou rezar.

    HORCIOMas isso s um amontoado de palavras sem sentido, meu prncipe.

    HAMLET Desculpe se ofendi voc, de corao. Desculpe, acredite, de corao.

    HORCIOSem ofensa, meu prncipe.

    HAMLETAh, por So Patrcio, ofensa h, sim, Horcio, e ofensa grande. Quanto

    viso que ns tivemos aqui, um fantasma honesto, eu garanto. E essa

    vontade de saber o que houve entre eu e ele, vocs controlem como

    puderem. Agora, meus bons amigos, porque so meus amigos, estudantes,

    e soldados, atendam s um pedido meu.

    HORCIOO que, meu prncipe? Ns atendemos.

    HAMLET No contem nunca o que viram hoje aqui.

    AMBOS No contamos, meu senhor.

    HAMLETNo, jurem.

    HORCIOPor Deus, meu prncipe, no falo.

    MARCELONem eu, meu senhor. Juro.

    HAMLET Pela minha espada.

    MARCELOJ juramos, meu senhor.

    HAMLET Juraram, mas pela minha espada, jurem.

    O Fantasma grita embaixo do palco.

    FANTASMAJurem.

    HAMLET Ah, rapaz, voc que diz isso? Est a, meu parceiro? Vamos! J ouviram

    o sujeito do poro. Jurem de uma vez.

    HORCIOProponha o juramento, prncipe.

    HAMLET No contar nunca o que viram aqui. Jurem pela minha espada.FANTASMA(embaixo do palco) Jurem. (eles juram)

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    HAMLET - Hic et ubique? [Aqui e em toda parte?] Ento vamos mudar de lugar.

    Venham para c, vocs, e ponham a mo na minha espada. No contar

    nunca o que ouviram aqui: jurem pela minha espada.

    FANTASMA(embaixo do palco) Jurem pela espada.

    HAMLET Falou bem, toupeira velha! Como cava to depressa? Bom cavador! Mudar

    mais uma vez, meus amigos.

    HORCIOOh, dia e noite, isto est ficando muito estranho!

    HAMLET E como um estranho deve ser bem vindo. H mais coisas no cu e na terra,

    Horcio, do que sonha a nossa filosofia. Mas vamos! Aqui, como antes,

    com a ajuda de Deus, por mais estranho ou esquisito que eu parea, porque

    daqui para a frente eu talvez tenha de adotar uma atitude estranha, jurem

    que, ao me ver assim, nunca vo cruzar os braos assim, nem sacudir a

    cabea, nem dizer frases dbias como Bom, eu sabia ou Se eu quisesse,

    eu podia..., ou Se a gente abrisse a boca ou Tem gente que, se

    quisesse... e nem fazer insinuaes ambguas para mostrar que sabem

    alguma coisa sobre mim. No faam nada disso e a gratido e a

    misericrida estaro sempre com vocs. Jurem.

    FANTASMA(embaixo do palco) Jurem

    Eles juram.

    HAMLET Descanse, descanse, esprito perturbado! E agora, amigos, com todo meu

    amor me coloco em suas mos. E tudo o que um pobre homem como

    Hamlet puder fazer para expressar amor e amizade por vocs, Deus

    permita, ser feito. Vamos embora juntos e apertem os dedos nos lbios,

    eu peo. Nosso tempo est fora dos eixos. Ah, maldita hora que eu nascipara endireitar! Pronto, vamos embora juntos.

    Saem.

    Ato II

    Cena 1

    Elsinore. Uma sala na casa de Polnio.Entram Polnio e Reinaldo.

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    POLNIOEntregue a ele este dinheiro e estas cartas, Reinaldo.

    REINALDOPois no, meu senhor.

    POLNIO Antes de encontrar com ele, Reinaldo, seria muito bom voc tomar

    informaes.

    REINALDOEra o que eu pretendia fazer.

    POLNIO Ah, bem falado, muito bem falado. Olhe aqui, voc pergunta primeiro

    quem so os dinamarqueses que vivem em Paris. E como, e quem, e com

    que meios, e onde moram, com quem andam, quanto gastam. E

    investigando desse jeito, com perguntas vagas, se conhecem o meu filho,

    voc vai chegar mais perto do que com perguntas diretas. Faa de conta,

    assim, que conhece de longe o meu filho, assim: Conheo o pai dele, e

    amigos, e ele, em parte. Est entendendo, Reinaldo?

    REINALDOEstou, muito bem, meu senhor.

    POLNIOE ele, em parte, voc diz, mas no bem, porque se for mesmo quem eu

    estou pensando, muito desenfreado, chegado nisto e naquilo e a imputa

    a ele as invenes que quiser. Ah, mas nenhuma to baixa que possa

    comprometer a honra dele, cuidado com isso, e, sim, audcias,

    irresponsabilidades e deslizes desses que normal serem companheiros da

    juventude e da liberdade.

    REINALDOComo o jogo, meu senhor.

    POLNIO, e a bebida, o duelo, o palavro, briga, mulher. Pode ir at a.

    REINALDOMas isso no vai depor contra ele?

    POLNIO Claro que no, se voc dosar bem a acusao. No atribua a ele nenhum

    escndalo maior, como a devassido, no esse o meu intuito. Mas fale

    dos defeitos dele de jeito que fiquem parecendo pecados da liberdade,brilho e expresso de um esprito fogoso, arroubos do sangue ainda no

    domado, que por tudo se interessa.

    REINALDOMas, meu querido senhor...

    POLNIOPor que fazer uma coisa dessas?

    REINALDO, sim, senhor. Eu gostaria de saber.

    POLNIOAh, esse o meu plano e acho que no vai fazer mal nenhum. Voc coloca

    essas leves manchas no meu filho, como se fosse uma coisa que fica umpouco suja durante o trabalho. Veja bem, a pessoa com quem voc estiver

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    conversando, essa que voc estiver sondando, se j viu o rapaz cometendo

    esses citados crimes que voc insinua, pode ter certeza que ela vai

    concordar com voc ento: Meu caro senhor ou coisa assim, ou meu

    amigo e tal, ou cavalheiro... de acordo com a origem e a formao do

    sujeito e do pas...

    REINALDOMuito bem, meu senhor.

    POLNIO E a ento a pessoa fala... a pessoa... O que que eu estava dizendo?

    Minha nossa! Eu ia dizer alguma coisa! Onde eu parei?

    REINALDOEm ela vai concordar..., em meu amigo e tal e cavalheiro.

    POLNIO Em ela vai concordar. Isso, arre! Concorda assim: Eu conheo o

    cavalheiro. Vi esse rapaz, ontem mesmo, ou ante-ontem, ou noutro dia,

    ou noutro, com um ou com outro, bem como o senhor disse, jogando

    aqui, bebendo ali, brigando l. Ou quem sabe Vi quando estava entrando

    numa casa de comrcio, videlicet [quer dizer], um bordel, e assim por

    diante. Agora, veja: a sua isca de falsidade pescou a carpa da verdade. E

    assim, gente como ns, de sabedoria e de viso, com rodeios, com manha,

    por vias tortas acha o caminho direito. Ento, voc vai seguir esses

    conselhos e preceitos, e fazer assim com meu filho. Entendeu bem, no

    entendeu?

    REINALDOEntendi, sim, senhor.

    POLNIOEnto v, adeus!

    REINALDOMeu caro senhor.

    POLNIOVeja voc mesmo como ele est.

    REINALDOFarei isso, meu senhor.

    POLNIOE deixe ele compor a prpria msica.

    REINALDOMuito bem.POLNIOAdeus!

    Sai Reinaldo.

    Entra Oflia.

    E ento, Oflia? Qual o problema?

    OFLIA - Ah, meu pai, meu pai, fiquei to assustada!

    POLNIOCom o que, pelo amor de Deus!

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    OFLIA Eu estava costurando no meu quarto, quando Hamlet apareceu na minha

    frente, com o gibo todo desabotoado, sem chapu na cabea, as meias

    sujas, sem ligas, cadas no tornozelo, mais plido que a camisa, os joelhos

    batendo um no outro, com um ar de dar pena, como se tivesse escapado do

    inferno para falar de horrores.

    POLNIOLouco de amor por voc?

    OFLIA No sei, meu pai, mas temo que sim.

    POLNIOO que ele disse?

    OFLIA Me pegou pelo pulso e apertou. Depois, se afastou at esticar o brao, com

    a outra mo assim na testa, e ficou olhando tanto para o meu rosto que

    parecia que ia desenhar o meu retrato. Ficou muito tempo assim. Depois,

    sacudiu um pouco meu brao e balanou assim a cabea trs vezes, para

    cima e para baixo, e deu um suspiro to triste e to profundo que parecia

    que o seu corpo ia estalar e acabar com ele. Depois, me soltou e com a

    cabea virada para trs, foi saindo sem usar os olhos, passou pela porta

    sem precisar deles, o olhar pregado em mim at o ltimo instante.

    POLNIOVenha, vamos comigo. Vou procurar o rei. Isso xtase de amor, que se

    destri com a prpria violncia e leva a vontade do homem a atos

    desesperados, como toda paixo que aflige a nossa natureza. Sinto muito.

    Ento, voc disse a ele alguma palavra dura ultimamente?

    OFLIA No, pai. Mas como o senhor mandou recusei suas cartas e no deixei que

    falasse comigo.

    POLNIO Por isso enlouqueceu. Sinto muito no ter tido mais cuidado e melhor

    critrio para avaliar seus atos. Achei que no passava de um capricho para

    se aproveitar de voc. Mas maldito seja o meu cime! Por Deus, o excesso

    de cuidado to comum na minha idade quanto a imprudncia nos jovens.Venha, vamos at o rei. Ele tem de saber. Porque se isso ficar fechado

    pode criar mais sofrimento, escondido, que dio, revelado. Venha.

    Saem.

    Cena 2

    Elsinore. Uma sala no castelo.Fanfarra. Entram o rei e a rainha, Rosencrantz e Guildenstern, e a corte.

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    REI - Bem vindos, queridos Rosencrantz e Guildenstern. Alm da vontade que

    tnhamos de ver vocs, foi a necessidade de seus servios que provocou

    nosso apressado convite. Devem ter ouvido alguma coisa sobre a

    transformao de Hamlet. Eu chamo assim porque nem por dentro nem por

    fora ele parece mais o homem que era. No consigo atinar o que, alm da

    morte do pai, possa ter desviado desse jeito o seu entendimento de si

    mesmo. Ento peo aos dois, que desde to meninos cresceram com ele, e

    to bem conhecem sua juventude e comportamento, que nos brindem com

    sua permanncia em nossa corte por algum tempo, para servir de

    companhia a ele em divertimentos e descobrir assim tudo o que puderem,

    se h alguma causa secreta de sua aflio que, revelada, esteja em nosso

    alcance remediar.

    RAINHA Meus queridos rapazes, ele fala muito de vocs e tenho certeza que no

    existem dois homens de quem se sinta mais prximo. Seria uma prova de

    gentileza e boa vontade se quisessem passar conosco algum tempo,

    alimentando a nossa esperana. Sua visita ser alvo da gratido devida por

    um rei.

    ROSENCRANTZ Majestades, pelo poder soberano que tm sobre ns, podiam nos

    dar uma ordem em vez de um pedido.

    GUILDENSTERN Ns dois obedecemos e renunciamos a ns mesmos, e nos

    curvamos para colocar nossos servios aos seus ps, s suas ordens.

    REI Obrigado, Rosencrantz e caro Guildenstern.

    RAINHA Obrigada, Guildenstern e caro Rosencrantz. E suplico que vo visitar

    imediatamente o meu filho to mudado. Vo, alguns de vocs, e levem

    esses cavalheiros aonde est Hamlet.GUILDENSTERNQue o cu torne a nossa presena e as nossas providncias teis e

    agradveis a ele!

    RAINHA Isso, amm!

    Saem Rosencrantz e Guildenstern, junto com alguns criados.

    Entra Polnio.

    POLNIOOs embaixadores da Noruega chegaram bem, majestade.

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    REI Voc sempre o pai das boas notcias.

    POLNIO Sou, majestade? Garanto, meu soberano, que tanto o meu dever como a

    minha alma esto ambos a servio de Deus e do meu rei. E acho, a menos

    que este meu crebro no descubra mais como antes o rasto de uma intriga,

    acho que descobri a verdadeira causa da loucura de Hamlet.

    REI Ah, diga logo. Isso eu quero saber.

    POLNIO Receba primeiro os embaixadores. Minha notcia ser a sobremesa desse

    banquete.

    REI Faa voc as honras e traga os dois aqui.

    Sai Polnio.

    Ele me disse, minha querida Gertrudes, que descobriu a causa e a fonte do

    destempero de seu filho.

    RAINHA Duvido que seja outra coisa alm do principal: a morte do pai e nosso

    casamento apressado demais.

    REI , vamos ter de ouvir com muito cuidado.

    Entram Polnio, Voltimando e Cornlio.

    Bem vindos, bons amigos. Ento, Voltimando, o que nos manda o nosso

    irmo da Noruega?

    VOLTIMANDO A mais completa retribuio de votos e saudaes. Assim que nos

    recebeu, mandou suspender o recrutamento de soldados do sobrinho, que

    ele havia achado que era uma preparao contra os poloneses, mas que

    examinando melhor, descobriu ser realmente contra Sua Alteza. Lamentouque sua doena, idade e impotncia fossem to desconsideradas, e mandou

    chamar Fortinbras. O jovem logo atendeu o chamado, foi repreendido pelo

    rei e prontamente jurou diante do tio nunca mais ameaar com armas Sua

    Majestade. Diante disso, o velho noruegus, tomado de alegria, lhe

    atribuiu trs mil coroas de penso anual e a permisso de empregar os

    soldados j recrutados contra os poloneses. Props um tratado, aqui escrito

    (entrega um papel) solicitando que o senhor permita ordeira passagem por

  • 7/24/2019 Hamlet (trad. Jos Rubens)

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    seus domnios para essa empresa, respeitadas a segurana e a ordem como

    a vai expresso.

    REI Ficamos bem contentes. E com mais tempo leremos, responderemos e

    pensaremos sobre esse assunto. Por ora, agradecemos seu bem sucedido

    empenho. Sejam bem vindos de volta.

    Saem embaixadores.

    POLNIOEssa questo terminou bem. Meu soberano, senhora, questionar o que seria

    a majestade, o que o dever, por que o dia dia, a noite noite e o tempo

    tempo, seria nada mais que desperciar noite, dia e tempo. Portanto, uma

    vez que a brevidade a alma da razo e o tdio os seus membros, eu serei

    breve. Seu nobre filho est louco. Louco eu digo. Pois, definindo a

    verdadeira loucura, de que se trata seno de se estar louco? Mas basta

    disso.

    RAINHA Mais consistncia, menos arte.

    POLNIO Majestade, juro que no estou usando arte nenhuma. Que ele louco,

    verdade. verdade que pena, e pena que verdade. s uma figura de

    linguagem! Mas basta disso, porque no vou usar arte. Louco, portanto:

    nisso concordamos. Resta saber a causa desse efeito. Melhor dizendo, a

    causa desse defeito, porque esse efeito defeituoso tem uma causa. Mas

    ainda tem mais uma coisa e a coisa que tem o seguinte. Vamos ver.

    Tenho uma filha (tenho enquanto estiver comigo) que por dever e

    obedincia, vejam bem, me entregou isto aqui. Escutem e concluam. (l

    uma carta) Ao dolo da minha alma, a celestial e mais que bela Oflia...

    Uma expresso ruim, infeliz, mais que bela no uma boaexpresso.Mas escutem: (l)

    Que em seu perfeito e branco seio, estas etc.

    RAINHA Foi Hamlet quem mandou isso para ela?

    POLNIOCara senhora, espere um pouco. Vou ler fielmente. (l)

    Duvide que o sol se movimente.

    Duvide que as estrelas sejam fogo e calor.

    Duvide que a verdade nunca mente.Mas nunca duvide deste meu amor.

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    Ah, querida Oflia, eu sou to ruim com versos. No tenho arte para rimar

    meus gemidos, mas que o meu amor perfeito, oh perfeio, acredite.

    Adeus. Seu para sempre, minha querida dama, enquanto esta mquina me

    pertencer. Hamlet. Isso, por obedincia, minha filha me mostrou. E mais

    ainda, medida que ia acontecendo, quando, como e onde, ela me revelou.

    REI Mas como ela recebeu o amor dele?

    POLNIOO que o senhor pensa de mim?

    REI Que um homem honrado e digno de confiana.

    POLNIOEu gostaria de provar que sim. Mas o que o senhor diria se eu tivesse visto

    esse ardoroso amor nascer (como percebi, devo confessar, antes de minha

    filha me contar), o que o senhor, ou minha querida majestade a rainha aqui

    presente, iam pensar se eu tivesse guardado essa histria na memria, ou

    tivesse escolhido calar a boca, ou olhasse esse amor com um olhar

    complacente? O que iam pensar? No, pus mos obra e falei assim para a

    minha filha: Hamlet um prncipe, fora do seu alcance. Isso no pode

    ser. E aconselhei que Oflia impedisse a aproximao dele, que no

    admitisse mensageiros, nem recebesse presentes. O que foi feito. Ela

    colheu os frutos dos meus conselhos e ele, recusado, para resumir a

    histria, caiu numa tristeza, depois perdeu a fome, depois o sono, depois

    veio a fraqueza, depois alucinou e assim, caindo sempre, chegou a essa

    loucura em que se debate agora. E que todos ns lamentamos.

    REI Acha que isso?

    RAINHA Pode muito bem ser que sim.

    POLNIOJ aconteceu alguma vez, eu gostaria de saber, de eu dizer definitivamente

    assim e no ser?

    REI No que eu saiba.POLNIOSepare isto (aponta a cabea, depois o ombro), disto, se for diferente. Se

    as circunstncias exigirem, eu descubro onde a verdade se esconde, nem

    que esteja escondida mesmo l no fundo da terra.

    REI Como podemos investigar mais essa histria?

    POLNIOO senhor sabe que ele s vezes fica andando horas e horas pela galeria.

    RAINHA verdade.

    POLNIONessa hora, eu solto minha filha para ele. Ns dois nos escondemos atrsde uma cortina. Observamos o encontro. Se ele no amar a menina e no

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    tiver perdido a razo por isso, eu no serei mais secretrio de estado, e vou

    ser fazendeiro e carroceiro.

    REI Vamos tentar.

    Entra Hamlet, lendo um livro.

    RAINHA Mas olhe como vem lendo, to triste, coitado.

    POLNIOVo, eu imploro, saiam os dois. Vou falar com ele. Ah, me permitam.

    Saem o rei e a rainha.

    Como vai, meu querido Hamlet?

    HAMLETBem. Deus nos guarde.

    POLNIOSabe quem sou eu, meu senhor?

    HAMLET Bem demais, demais. um pescador.

    POLNIOEu no, meu senhor.

    HAMLET Pois queria que fosse um homem to honesto assim.

    POLNIOHonesto, meu senhor?

    HAMLET , sim. Honesto, neste mundo, s se pesca um entre dez mil.

    POLNIOIsso bem verdade, meu senhor.

    HAMLETO sol gera vermes num cachorro morto quando beija a carnia... Voc tem

    uma filha?

    POLNIOTenho, sim, senhor.

    HAMLET No deixe ela sair no sol. A concepo uma bno, mas no do jeito que

    sua filha pode conceber. Cuidado, amigo.

    POLNIO ( parte) O que quer dizer isso? Sempre tocando na minha filha. E deincio nem me reconheceu. Disse que eu era um pescador. Est com a

    cabea longe, muito longe! Para dizer a verdade, na minha juventude, eu

    sofri muito por amor, quase assim. Vou falar com ele de novo. O que est

    lendo, meu senhor?

    HAMLETPalavras, palavras, palavras.

    POLNIOMas sobre o que, meu senhor?

    HAMLET Sobre o que como?POLNIOQuer dizer, sobre o que isso que o senhor est lendo, meu senhor?

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    HAMLET Calnias, meu amigo. Pois este malandro diz aqui nesta stira que os

    velhos tm barba grisalha, a cara enrugada, os olhos cheios de resina de

    mbar, ou de goma de ameixa, e que no tm nenhum juzo, alm da

    bunda mole demais. E tudo isso, embora eu acredite piamente e concorde

    com todas as foras, no acho que seja decente colocar por escrito. Pois o

    senhor mesmo teria a minha idade, se pudesse, como caranguejo, andar

    para trs.

    POLNIO( parte) Apesar de loucura, tem um certo mtodo. Meu senhor, no quer

    sair do vento?

    HAMLETE entrar no meu tmulo?

    POLNIO fato, no tmulo no venta. ( parte) Como so cheias de sentido as

    respostas dele! So esses achados da loucura que a razo e a sanidade nem

    sempre alcanam. Mas vou deixar que fique aqui, para preparar depressa

    um jeito de ele encontrar minha filha. Meu honrado prncipe, tomo a

    liberdade de me retirar.

    HAMLET Ningum toma nem retira de mim nada de que eu no me separe de boa

    vontade.... a no ser a vida, a no ser a vida, a no ser a vida.

    Entram Rosencrantz e Guildenstern.

    POLNIOAdeus, meu senhor.

    HAMLET Esses idiotas velhos!

    POLNIOVo falar com Hamlet. Ele est ali.

    ROSENCRANTZ(para Polnio) Deus lhe guarde, meu senhor!

    Sai Polnio.

    GUILDENSTERNMeu honrado prncipe!

    ROSENCRANTZMeu querido prncipe!

    HAMLET Meus amigos mais queridos! Como vai, Guildenstern? Ah, Rosencrantz!

    Como vo vocs, parceiros?

    ROSENCRANTZComo simples filhos da terra.

    GUILDENSTERNFelizes por no sermos felizes demais. No chapu da Fortuna, nsno somos a pena.

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    HAMLETNem a sola do sapato?

    ROSENCRANTZNem um, nem outro, prncipe.

    HAMLETEnto vivem mais ou menos na cintura dela, no meio dos seus favores?

    GUILDENSTERN, somos ntimos.

    HAMLET Das partes secretas da Fortuna? Ah! verdade! A Fortuna uma puta.

    Alguma novidade?

    ROSENCRANTZNada, prncipe, s que o mundo ficou honesto.

    HAMLETEnto estamos perto do juzo final! Mas essa sua novidade no verdade.

    Deixe eu perguntar direito. O que voc fizeram, meus amigos, para

    merecer da Fortuna ser mandados para esta priso?

    GUILDENSTERNPriso, meu prncipe?

    HAMLETA Dinamarca uma priso.

    ROSENCRANTZEnto o mundo .

    HAMLETInteiro. Com muitas celas, calabouos e masmorras, a Dinamarca uma das

    piores.

    ROSENCRANTZAchamos que no, senhor.

    HAMLETEnto para voc no nada. Porque uma coisa s boa ou m quando o

    pensamento diz que assim. Para mim, uma priso.

    ROSENCRANTZ a sua ambio que diz que assim. pequena demais para a sua

    alma.

    HAMLET Ah, Deus, eu podia estar preso numa casca de noz e me achar o rei do

    espao infinito, se no tivesse sonhos maus.

    GUILDENSTERNSonhos que so ambio. Porque a prpria substncia da ambio

    no passa da sombra de um sonho.

    HAMLETO prprio sonho no mais que uma sombra.

    ROSENCRANTZ mesmo. E acho a ambio uma coisa to leve e transparente queno passa da sombra de uma sombra.

    HAMLET Ento nossos mendigos so corpos e nossos monarcas e altos heris

    sombras de mendigos. Vamos para a corte? Confesso que no estou

    conseguindo raciocinar.

    AMBOS Estamos s suas ordens.

    HAMLETNada disso! No quero vocs ao lado do resto dos meus criados, porque,

    para falar com franqueza, estou sendo horrendamente mal servido. Agora,no terreno firme da amizade, me digam o que esto fazendo em Elsinore?

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    ROSENCRANTZUma visita ao senhor, prncipe. S isso.

    HAMLET Mendigo que sou, sou pobre at em agradecimentos. Mas agradeo a

    vocs, e meus agradecimentos no valem nem um tosto. No foram

    chamados, no? Vieram porque quiseram? Uma visita de livre vontade?

    Vamos l, sejam sinceros comigo. Vamos, vamos, falem!

    GUILDENSTERNO que podemos dizer, meu prncipe?

    HAMLET Qualquer coisa, ora, mas que no seja fora de propsito. Vocs foram

    chamados. Eu vejo na sua cara um ar de confisso que no conseguem

    disfarar. Eu sei que o bom rei e a rainha mandaram chamar vocs.

    ROSENCRANTZPara que, meu prncipe?

    HAMLETIsso vocs vo me contar. Mas peo, pelos direitos de nossa amizade, pela

    harmonia da nossa juventude, pela obrigao do nosso afeto constante, e

    por tudo mais que um melhor negociador pudesse propor, sejam francos e

    diretos comigo, e digam se foram chamados ou no.

    ROSENCRANTZ( parte, para Guildenstern) O que voc diz?

    HAMLETNo, estou de olho em vocs. Se gostam de mim, no escondam nada.

    GUILDENSTERNMeu senhor, ns fomos chamados.

    HAMLET E vou dizer por que. Assim minha adivinhao dispensa a sua revelao e

    a sua fidelidade ao rei e rainha no perde nem uma pena. Ultimamente,

    por algum motivo que no sei, perdi toda alegria, renunciei a todo costume

    de exerccios, minha disposio anda to pesada que esta bela estrutura, a

    terra, me parece um monte estril. Este excelente dossel, o ar, vejam

    vocs, este admirvel firmamento, majestosa abdada salpicada de fogos

    dourados, no me parece nada mais que uma combinao de vapores

    pestilentos. Que obra prima o homem! Como nobre na razo! Como

    infinito em capacidades! em forma e em movimento to admirvel epreciso! na ao to igual a um anjo! na apreenso to igual a um deus!

    maravilha do mundo, paradigma dos animais! E para mim, porm, o que

    essa quintessncia do p? Os homens no me divertem... no, nem as

    mulheres, apesar de voc com esse sorriso achar que sim.

    ROSENCRANTZMeu prncipe, eu no pensei nada disso.

    HAMLETEnto por que riu quando eu disse o homem no me diverte?

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    ROSENCRANTZ Porque pensei que se o senhor no se diverte com o homem os

    atores vo receber um tratamento bem magro por aqui. Passamos por eles

    no caminho e esto vindo oferecer seus servios.

    HAMLETO que faz o rei vai ser bem vindo, sua majestade receber de mim o seu

    tributo, o aventureiro haver de usar sua armadura e seu escudo, o

    apaixonado no vai suspirar de graa, o dramtico vai terminar sua parte

    em paz, o cmico h de fazer rir os que tm ccega nos pulmes, e a dama

    poder dizer livremente o que quiser, seno o verso branco vira verso de

    p quebrado. Que atores so esses?

    ROSENCRANTZAqueles mesmos com que o senhor tanto se divertia, os trgicos da

    cidade.

    HAMLETE por que esto viajando? Ganhariam mais fama e proveito se ficassem na

    sua terra.

    ROSENCRANTZAcho que tiveram problemas com essa ltima inovao.

    HAMLET Ainda tm o mesmo prestgio de quando eu morava na cidade? Ainda

    atraem pblico?

    ROSENCRANTZNa verdade, no.

    HAMLETPor que isso? Enferrujaram?

    ROSENCRANTZ No, continuam com o empenho de sempre, mas apareceu uma

    ninhada de crianas, meu senhor, uns pintainhos que berram o texto e so

    tiranicamente aplaudidos por isso. Eles so a moda agora, e falam tanto

    mal do teatro comum (como eles dizem) que muita gente que usa espada

    na cinta tem medo desses que usam pena na mo e no tm coragem de

    comparecer.

    HAMLETO que? So crianas? Mantidos por quem? Sustentados como? Continuam

    na profisso depois de mudar de voz? No vo dizer depois, se crescerem evirarem atores comuns (o que provvel, se no tm outros meios) que

    foram prejudicados pelos autores, levados a falar contra seu prprio

    futuro?

    ROSENCRANTZ Na verdade, tem acontecido muita coisa dos dois lados. E o pas

    inteiro no v nenhum pecado em promover a discrdia. Durante algum

    tempo, nenhuma pea fazia dinheiro a menos que autor e ator se pegassem.

    HAMLET mesmo?GUILDENSTERNAh, teve muita cabea quebrada.

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    HAMLETE os meninos saem ganhando?

    ROSENCRANTZAh, ganham, prncipe. Em todos os teatros.

    HAMLETNo de estranhar. Meu tio rei da Dinamarca e os que torciam o nariz

    para ele quando meu pai estava vivo, hoje pagam vinte, quarenta,

    cinqenta, cem ducados por um retrato dele em miniatura. Sangue de

    Cristo! Se a filosofia pudesse explicar, diria que tem a alguma coisa que

    vai alm do natural.

    Fanfarra para os atores.

    GUILDENSTERNOs atores.

    HAMLETCavalheiros, sejam bem vindos a Elsinore. Um aperto de mo, vamos l!

    Todo o ritual de boas vindas como do costume e do cerimonial. Quero

    cumprir isso tudo com vocs seno a minha recepo aos atores, que,

    garanto, vai ser bem vistosa, pode parecer maior que a de vocs. Sejam

    bem vindos. Mas meu tio-pai e minha tia-me esto enganados.

    GUILDENSTERNNo que, meu senhor?

    HAMLETEu s sou louco quando sopra o norte-noroeste. Quando o vento sul no

    confundo gavio com passarinho.

    Entra Polnio.

    POLNIOTudo bem, senhores?

    HAMLET Escute, Guildenstern, e voc tambm, em cada ouvido um ouvinte! Esse

    bebezo que vocs esto vendo ali ainda no saiu dos cueiros.

    ROSENCRANTZSorte dele estar assim pela segunda vez. Dizem que a velhice umasegunda infncia.

    HAMLET Pois eu profetizo que ele veio me anunciar os atores. Olhem s. Tem

    razo, foi mesmo na segunda-feira de manh.

    POLNIOMeu senhor, trago uma notcia.

    HAMLET Meu senhor, trago uma notcia. Quando Roscius era ator em Roma...

    POLNIOOs atores chegaram, meu senhor.

    HAMLETEle fala, fala!POLNIOPelo que eles montam...

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    HAMLET Cada ator no seu burro...

    POLNIO...so os melhores atores do mundo, seja para tragdia, comdia, histrica,

    pastoral, pastoral-cmica, histrico-pastoral, trgico-histrica, trgi-

    cmica-histrica-pastoral; seja na cena de unidade, seja no poema infinito.

    Seneca no fica pesado, nem Plauto leve demais. Eles obedecem o texto

    sem perder a liberdade, so os melhores.

    HAMLET Oh, Jeft, juiz de Israel, que tesouro o seu!

    POLNIOQue tesouro era o dele, meu senhor?

    HAMLET Ora, uma bela filha e nica,

    que ele amava mais que tudo.

    POLNIO( parte) Ainda a minha filha.

    HAMLET No tenho razo, velho Jeft?

    POLNIOJ que me chama de Jeft, meu senhor, eu tenho uma filha que amo mais

    que tudo.

    HAMLET No, no assim que continua.

    POLNIOComo ento, meu senhor?

    HAMLET Assim: Deus por sina determina, e depois, voc sabe, Veio a acontecer,

    o que era de se prever. Descubra o resto na primeira estrofe desse hino,

    porque, olhe, a minha interrupo est chegando.

    Entram quatro ou cinco atores.

    Bem vindos, mestres, bem vindos todos. Fico contente de ver todos bem.

    Bem vindos, meus amigos. Ah, meu velho amigo? A cortina do seu rosto

    est mais franzida que da ltima vez que nos vimos. Veio me puxar as

    barbas na Dinamarca? O que? Minha jovem dama e senhora? Minha nossa,sua graa est um salto de coturno mais perto do cu do que da ltima vez

    que nos vimos. Deus queira que sua voz no tenha rachado como uma

    moeda que no circula mais. Mestres, bem vindos todos. Vamos fazer

    como os falcoeiros franceses e voar logo em cima da presa. Quero ouvir

    uma fala. Agora. Vamos l, uma amostra do seu talento. Vamos l, uma

    fala apaixonada.

    PRIMEIRO ATORQual fala, meu caro senhor?

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    HAMLETVoc uma vez me declamou uma coisa que nunca foi encenada. Ou, se foi,

    no mais de uma vez. Porque a pea, eu me lembro, no agradou

    multido, era caviar para o populacho. Mas era, na minha opinio e na de

    outros que entendem mais do assunto do que eu, uma pea excelente, com

    as cenas bem organizadas, escritas com simplicidade sem perder a

    sabedoria. Lembro de algum dizer que o texto no apelava para nenhum

    tempero especial para ser saboroso, e que as frases no mostravam

    nenhuma afetao do autor, que era um trabalho honesto, sadio e suave, e,

    de longe, mais belo do que refinado. O que mais gostei foi uma fala de

    Enas para Dido, e, nesse trecho, principalmente quando ele fala da morte

    de Pramo. Se isso ainda estiver vivo na sua memria, comece com este

    verso... deixe eu ver, deixe eu ver:

    O rude Pirro, como o tigre hircnio...

    No assim, mas comea com Pirro:

    O rude Pirro, com suas negras armas,

    sombrias tal o seu intento, iguais noite

    em que escondido no cavalo hediondo,

    teve a figura j horrenda e sombria manchada

    num braso ainda mais terrvel.

    Da cabea aos ps j ele todo rubro,

    do sangue untado de pais, mes, filhas, filhos,

    que em crostras recobre as ruas ressecadas,

    uma luz tirana e amaldioada lanando

    sobre a morte de seu amo. Ardendo em dio e fogo,

    e assim gigante pelo sangue coagulado,

    olhos como carbnculos, o infernal Pirroo velho senhor Pramo procura.

    Agora, continue voc.

    POLNIO Deus do cu, meu senhor, bem falado, com bela dico e belo

    entendimento.

    PRIMEIRO ATORE logo o encontra,

    nos gregos desferindo golpes curtos demais,

    A velha espada rebelde ao brao, jaz onde cai,hostil ao comando. Em desigual combate

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    Pirro a Pramo se lana, irado, em largos golpes.

    Ao mero sopro e silvo da espada perversa

    cai o velho pai. Ento, a insensata Tria,

    parecendo sentir esse golpe, os tetos chamejantes

    pe por terra, e com horrendo estrondo

    cerra de Pirro o ouvido. Olha! A sua espada

    que j descia sobre a lctea cabea

    do venerando Pramo, no ar se crava.

    E como a pintura de um tirano, Pirro,

    neutralizado na vontade e na matria,

    nada faz.

    E como sempre se v antes da tempestade

    um silncio nos cus, as nuvens paradas,

    o ousado vento mudo, e a esfera abaixo

    quieta tal a morte, para logo o hrrido trovo

    rasgar os ares, assim tambm, aps a pausa de Pirro,

    incendiada vingana o lana ao.

    Nunca o martelo dos cclopes bateu

    a couraa de Marte, forjada para a eternidade,

    com menos d que a sangrenta espada de Pirro

    ento se abate sobre Pramo.

    Fora, fora, meretriz Fortuna! , deuses todos,

    reunidos em conselho, despojai-a de poder,

    quebrai os eixos e raios de sua roda

    e rolai a esfera pela encosta do cu,

    at o fundo dos demnios!POLNIOComprido demais.

    HAMLET o que o barbeiro acharia da sua barba. Por favor, continue. Para ele, se

    no for farsa, nem indecncia, ele dorme. Continue. Vamos para Hcuba.

    PRIMEIRO ATORMas quem, , quem viu a velada rainha...'

    HAMLET - Velada rainha?

    POLNIO - bom! Velada rainha muito bom.

    PRIMEIRO ATOR...correr descala, desvairada, ameaando as chamascom suas cegas lgrimas, um trapo na cabea

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    onde antes pousava a coroa, e por manto,

    envolta no flanco magro e de parir exausto,

    a manta no alarme do terror achada...

    Quem isso visse, com lngua envenenada,

    contra a Fortuna traio clamaria.

    Se os prprios deuses a vissem ento,

    quando ela viu Pirro com prfido prazer

    com a espada retalhar os membros do marido,

    e o clamor em que logo explodiu

    (a menos que coisas mortais o no comovam)

    teria feito chorar os olhos de fogo do cu

    e despertado a compaixo dos deuses.

    POLNIOOlhem, ele mudou de cor, e tem lgrimas nos olhos. Peo que pare!

    HAMLET Tudo bem. Vou querer que me diga o resto depois. Meu amigo, pode

    cuidar para os atores ficarem bem acomodados? Ouviu? Que sejam bem

    tratados, porque eles so a crnica breve e abstrata do tempo. melhor ter

    um epitfio negativo depois da morte do que cair em desgraa com eles

    enquanto vivo.

    POLNIOMeu senhor, vo ser tratados como merecem.

    HAMLET Nada disso, muito melhor! Se todo mundo for tratado como merece, quem

    escapa do chicote? Que sejam tratados como se tivessem a mesma honra e

    dignidade que o senhor. Quanto menos merecerem, maior ser o seu

    mrito. V com eles.

    POLNIOVenham, senhores.

    HAMLET Vo com ele, meus amigos. Amanh veremos uma pea.

    Saem Polnio e atores, menos o Primeiro Ator.

    Ouviu, amigo velho? Podem fazer O assassinato de Gonzaga?

    PRIMEIRO ATORPodemos, sim senhor.

    HAMLET essa que eu quero assistir amanh noite. Podem, se for preciso, decorar

    uma fala de umas doze, dezesseis linhas que vou escrever para intercalar

    no texto, no podem?PRIMEIRO ATORPodemos, sim, senhor.

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    HAMLET Tudo bem. V com aquele homem. E no caoem dele.

    Sai o Primeiro Ator.

    Meus queridos amigos, nos vemos de noite. So muito bem vindos a

    Elsinore.

    ROSENCRANTZMeu caro senhor!

    HAMLET , , Deus lhes guarde!

    Saem Rosencrantz e Guildenstern.

    Agora estou sozinho. Oh, que vagabundo, que escravo eu sou! No

    monstruoso que esse ator a, em mera fico, numa paixo inventada,

    consiga dobrar a alma ao seu prprio capricho de tal forma que, por obra

    dela, seu rosto se entristea, nos olhos, lgrimas, o aspecto se perturbe, a

    voz se embargue, e toda sua ao assuma a forma de seu capricho? E tudo

    por nada! Por Hcuba! Quem Hcuba para ele, ou ele para Hcuba, para

    chorar por ela? O que faria se tivesse o motivo e a deixa para a paixo que

    eu tenho? Inundaria o palco com lgrimas e explodiria o ouvido de todo

    mundo com gritos horrendos, enlouquecia os culpados e apavorava os

    inocentes, confundia os ignorantes, e deixava aturdidas as prprias

    faculdades de ver e ouvir. E eu, patife miservel, mole feito lama, divago,

    sonhador, negligente com a minha causa, e no consigo dizer nada! No,

    nem para defender um rei cuja virtude e vida to preciosas sofreram

    derrota to maldita. Sou covarde? Quem me chama de vilo? Me racha a

    cabea? Arranca a minha barba e me esbofeteia com ela? Me puxa pelonariz? Me empurra a mentira garganta abaixo, at os pulmes? Quem faz

    isso comigo, ahn? Chagas de Cristo, isso que eu mereo! porque no

    pode ser assim. Mas tenho fgado de pombo e me falta fel para amargar a

    opresso, seno j teria engordado os abutres com as entranhas deste

    escravo. Sanguinrio depravado vilo! Desumano, traioeiro, lascivo,

    infame vilo! Oh, vingana! Que burro eu sou! Quanta valentia, eu, filho

    de um pai querido assassinado, obrigado vingana pelo cu e peloinferno, desabafando assim, feito uma vagabunda, o corao com palavras,

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    xingando como uma puta, sim, reles! Que vergonha! Pfhuh! Trabalha

    crebro! Hum, disseram que uns criminosos, assistindo a uma pea,

    ficaram com a alma to tocada pela fora da cena que revelaram os seus

    crimes. Como o assassinato, mesmo no tendo lngua, fala por algum

    rgo milagroso, vou fazer esses atores representarem para meu tio alguma

    coisa parecida com o assassinato de meu pai. E fico observando as reaes

    dele, atento a tudo. Um tremor que seja, e eu saberei meu rumo. O esprito

    que eu vi pode ser um diabo. O diabo tem o poder de assumir uma forma

    agradvel. , e talvez por causa da minha fraqueza, da minha melancolia,

    ele muito potente com espritos assim, tenha me enganado para acabar

    comigo. Preciso de provas mais concretas que isso. A pea a coisa onde

    vou pegar a conscincia do rei.

    Sai.

    ATO III

    Cena 1

    Elsinore. Uma sala no castelo.

    Entram o rei, a rainha, Polnio, Oflia, Rosencrantz, Guildenstern e cortesos.

    REI E vocs no conseguem, sem forar a situao, saber dele o por que dessa

    confuso que agita com tanta aspereza a tranquilidade dos seus dias com

    uma turbulenta e perigosa loucura?

    ROSENCRANTZ Ele confessa mesmo que est perturbado, mas no h meios de

    revelar a causa.

    GUILDENSTERNE no nos parece disposto a aceitar conselhos: ele se isola numa

    loucura ardilosa quando tentamos fazer com que confesse o seu verdadeiroestado.

    RAINHAE recebeu bem vocs dois?

    ROSENCRANTZComo um cavalheiro.

    GUILDENSTERNMas com muito esforo para mostrar que est bem.

    ROSENCRANTZReservado nas perguntas, mas muito generoso nas respostas.

    RAINHAConseguiram fazer com que se interessasse por algum passatempo?

    ROSENCRANTZ Minha senhora, acontece que cruzamos com alguns atores nocaminho. Contamos isso a ele e pareceu ficar alegre com o que ouviu.

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    Esto aqui na corte e acho que j receberam ordens de se apresentar hoje

    de noite.

    POLNIO verdade, e me pediu para convidar suas majestades para ver e ouvir a

    pea.

    REI De todo corao. Fico muito contente de saber que est assim. Meus caros

    senhores, colaborem para ele continuar assim disposto a esses prazeres.

    ROSENCRANTZs suas ordens, majestade.

    Saem Rosencrantz e Guildenstern.

    REI Minha doce Gertrudes, saia voc tambm. Mandamos, secretamente,

    chamar Hamlet aqui, para encontrar Oflia como se fosse por acaso. O pai

    dela e eu, espies leais, vamos nos esconder para, vendo sem ser vistos,

    podermos avaliar o encontro e descobrir pela conduta dele se ou no por

    aflio de amor que tanto sofre.

    RAINHA Eu obedeo. Quanto a voc, Oflia, espero que a bno da sua beleza seja

    a boa causa da perturbao de Hamlet. Como gostaria tambm que a sua

    virtude fizesse meu filho voltar para o seu devido caminho, pela honra de

    vocs dois.

    OFLIA Espero que sim, majestade.

    Sai a rainha.

    POLNIO Oflia, voc fica andando por aqui. Sua Graa querendo, vamos nos

    esconder. (para Oflia) Leia este livro. Vai dar mais colorido para a sua

    solido. Quantas vezes nos acusam, e com toda a razo, de usar caradevota e atos piedosos para adoar o diabo.

    REI ( parte) Ah, como isso verdade! Que chicotada esse discurso para a minha

    conscincia! A cara da rameira, bonita custa de artifcio, no mais feia

    para o cosmtico do que o meu ato para a minha palavra mais pintada. Oh,

    que pesada carga!

    POLNIOAcho que vem vindo. Vamos sair, meu senhor.

    Saem o rei e Polnio.

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    Entra Hamlet.

    HAMLET Ser ou no ser. Eis a questo: mais nobre sofrer na alma as pedras e

    flechadas de um destino ultrajante ou pegar em armas contra um mar de

    problemas, e enfrentando todos, acabar com eles? Morrer, dormir... mais

    nada. E no sono acabar com a aflio e os mil choques naturais que a carne

    traz em si. Essa a consumao que se deve querer como uma bno.

    Morrer, dormir. Dormir, sonhar talvez: isso que difcil! Porque os

    sonhos que podem existir nesse sono da morte, depois que nos livramos

    desta confuso mortal, nos fazem parar para pensar. isso que tanto

    prolonga a calamidade desta vida. Quem h de preferir as chicotadas e o

    desprezo do tempo, a humilhao do opressor, a arrogncia do orgulhoso,

    as dores do amor desprezado, a demora da lei, os desaforos do poder, e os

    chutes que os talentosos pacientemente recebem dos indignos, quando o

    prprio sujeito pode encontrar a paz na lmina nua de um punhal? Quem

    que agenta esse fardo, gemendo e suando numa vida dura, seno pelo

    medo de alguma coisa depois da morte, o pas desconhecido, fronteira que

    ningum cruza de volta, que confunde a nossa vontade, que nos leva a

    preferir os males que j temos do que voar para outros que no

    conhecemos? assim que a conscincia transforma todo mundo em

    covarde, assim que a cor natural da determinao acaba desbotada pela

    palidez do pensamento, e grandes projetos importantes perdem o rumo, e

    no podem ser chamados de ao. Quieto agora! A linda Oflia! Ninfa, nas

    suas oraes, lembre dos meus pecados.

    OFLIA Como tem passado esses dias todos?

    HAMLET Humildemente agradeo. Bem, bem, bem.OFLIA Tenho lembranas suas que j faz tempo quero devolver. Peo que aceite

    agora.

    HAMLET No, no, eu nunca te dei nada.

    OFLIA Meu prncipe, sabe muito bem que deu, e junto com essas coisas, palavras

    to doces que deixaram os presentes ainda mais ricos. Perdido o perfume,

    aceite isto de volta, porque para uma alma nobre o presente rico perde o

    valor se o doador no mais gentil. Pegue, por favor.HAMLET - Ha, ha! Voc honesta?

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    OFLIA Como?

    HAMLET bonita?

    OFLIA O que est querendo dizer?

    HAMLET Que se voc honesta e bonita, no deve deixar a sua honestidade ouvir a

    sua beleza.

    OFLIA E a beleza pode ter melhor companhia que a honestidade?

    HAMLET , est certo. mais fcil o poder da beleza transformar a honestidade em

    cafetina do que a fora da honestidade fazer a beleza ficar igual a ela. Isso,

    um dia, foi um paradoxo, mas o nosso tempo prova que verdade. Eu te

    amei um dia.

    OFLIA , me fez mesmo acreditar que sim.

    HAMLETNo devia ter acreditado em mim. No d para enxertar a virtude em um

    velho tronco sem que ela fique contaminada. Eu no te amei.

    OFLIA Ento me enganei ainda mais.

    HAMLET V para um convento. Por que ser uma procriadora de pecadores? Eu

    prprio at que sou honesto, e mesmo assim poderia acusar a mim mesmo

    de coisas tais que seria melhor minha me no ter me dado luz. Sou

    muito orgulhoso, vingativo, ambicioso, com mais pecados ao alcance da

    mo do que sou capaz de pensar, de imaginar, do que tenho tempo de

    cometer. O que faz um sujeito como eu rastejando entre o cu a terra?

    Somos todos infames, no acredite em nenhum de ns. V para um

    convento. Onde est seu pai?

    OFLIA Em casa.

    HAMLETEnto tranque as portas para ele no sair, para no fazer papel de bobo em

    nenhum lugar que no seja a sua prpria casa. Adeus.

    OFLIA Ah, meu bom Deus, ajude Hamlet!HAMLETSe voc casar, eu te dou esta praga como dote: mesmo casta como gelo e

    pura como a neve, no vai escapar da calnia. V para um convento. V,

    adeus. Ou se tiver mesmo de casar, case com um idiota, porque os homens

    sbios sabem muito bem como se transformam em monstros em suas

    mos. Para o convento, v. E depressa. Adeus.

    OFLIA Oh, poderes do cu, que Hamlet se cure!

    HAMLET Sei tambm das suas pinturas, eu vejo. Deus d um rosto e vocs fazemoutro. E rebolam, requebram, ciciam, pem apelidos nas criaturas de Deus

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    e fingem que sua malcia ignorncia. Basta, no quero mais saber disso!

    Foi isso que me enlouqueceu. No haver mais casamentos. Os que j so

    casados, todos menos um, vivero. O resto ficar como est. Para o

    convento, v.

    Sai.

    OFLIA Ah, uma alma to nobre assim to transtornada! Olho, voz, espada de

    corteso, de sbio, de guerreiro, flor da esperana deste belo reino, espelho

    da moda, modelo da elegncia, centro de todas as atenes... perdido, to

    perdido! E eu, a mais triste e infeliz das mulheres, que provei o mel da

    msica das suas promessas, agora vejo essa cabea to nobre e soberana

    perder o ritmo, perder o tom, como um belo sino que trincou. A forma e a

    fora sem iguais da plena juventude arrasadas no delrio. Ah, pobre de

    mim, ter visto o que eu vi e ver o que vejo!

    Entram o rei e Polnio.

    REI Amor? O jeito dele no tende para esse lado. E o que ele disse, embora um

    pouco confuso, tambm no parece loucura. A depresso est germinando

    alguma coisa na alma dele, e eu desconfio que o que vai nascer pode ser

    perigoso. Para prevenir isso, acabo de resolver o seguinte: ele vai

    imediatamente para a Inglaterra reclamar o tributo que esto nos devendo.

    Quem sabe o mar, terras diferentes, com objetivos outros, consigam lhe

    arrancar do corao essa idia um tanto fixa com que o seu crebro tanto

    luta e faz com que fique perturbado assim. O que acha disso?POLNIO Deve funcionar. Mas ainda acredito que a origem e o comeo dessa

    tristeza esto no amor no correspondido. Ento, Oflia? No precisa

    contar o que disse o prncipe Hamlet. Ns ouvimos tudo. Majestade, faa

    como quiser, mas se achar conveniente, depois do teatro, a rainha, me

    dele, podia tentar convencer o prncipe a confessar a causa do seu

    sofrimento. Ela que seja franca com o rapaz. E eu me coloco, se o senhor

    quiser, ao alcance de toda a conversa. Se a rainha no conseguir que ele se

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    abra, para a Inglaterra ele vai. Ou que seja confinado onde a sua sabedoria

    achar melhor.

    REI Assim ser. A loucura dos grandes no pode ficar sem vigilncia.

    Saem.

    Cena 2

    Elsinore. Salo no castelo.

    Entram Hamlet e trs atores.

    HAMLET Falem a fala, por favor, como eu ensinei, escorregando na lngua. Porque

    se berrarem, como muitos atores fazem, prefiro que o pregoeiro da cidade

    venha dizer os meus versos. Tambm no fiquem serrando o ar assim

    demais com a mo, mas sejam comedidos em tudo. At na torrente, na

    tempestade, no torvelinho da paixo, vocs tm de sentir e demonstrar um

    equilbrio que deixe a paixo redonda. Ah, me ofende a a