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 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA Instituto de Ciências Políticas e Relações Internacionais Departament o de Relações Internacionais Hans Morgenthau sobre a Natureza Humana e a Política Um Estudo sobre o Problema da Vontade de Poder e o Dilema Moral da Ação Política  Autor : Dermeval de Sena Aires Jr Graduado em Relações Intern acionais, UnB Orientador: Prof. Paulo Kramer Departamento de Ciência Política, UnB Brasília, Dezembro de 2000

Hans Morgenthau Sobre a Natureza Humana e a Politica

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Hans Morgenthau Sobre a Natureza Humana e a Politica. Um Estudo sobre o Problema da Vontade de Poder e o Dilema Moral da Ação Política.Monografia apresentada ao Instituto de Ciência Política e Relações Internacionais da UnB em Dezembro de 2000.

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIAInstituto de Ciências Políticas e Relações Internacionais

Departamento de Relações Internacionais

Hans Morgenthau sobre a Natureza Humana e a Política 

Um Estudo sobre o Problema da Vontade de Poder 

e o Dilema Moral da Ação Política  

Autor: Dermeval de Sena Aires Jr Graduado em Relações Internacionais, UnB

Orientador: Prof. Paulo Kramer Departamento de Ciência Política, UnB 

Brasília, Dezembro de 2000

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...e uma vez que as convenções normais da vidacivilizada tornaram-se confusas, a natureza humana,

  sempre disposta a ofender até mesmo onde existe lei,mostrou-se em toda sua cupidez; em suas verdadeirascores; mostrou-se como algo incapaz de controlar 

 paixão, insubordinada à idéia de justiça, inimiga de tudoo que lhe é superior.

Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, III, § 84.

 Deve-se fazer com que a ambição de um homem se torneum contrapeso à ambição de outro (...). Certamente queestamos refletindo sobre a natureza humana, na medidaem que tais mecanismos se tornam necessários para

controlar os abusos do governo. Mas o que é o próprio  governo, se não a maior de todas as reflexões danatureza humana?

Se os homens fossem anjos, não precisaríamos de  governo. Se os anjos governassem os homens, nemcontroles internos nem externos seriam necessários. Masao pensarmos no governo de homens por homens (...), ahistória já ensinou à humanidade que precauçõesauxiliares são necessárias.

Tal política de contraposição de interesses rivais,a fim de se precaver contra más intenções, pode ser traçada em meio a todas as questões humanas, tanto

 privadas quanto públicas.

 Hamilton e Madison, O Federalista, Artigo 51. 

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 Johannes Ver Meer Woman Holding a Balance 

c. 1664National Gallery of Art, Washington

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Hans Morgenthau sobre a Natureza Humana e a Política Um Estudo sobre o Problema da Vontade de Poder 

e o Dilema Moral da Ação Política  

Sumário

 Agradecimentos

Introdução   11

Capítulo 1: Os Fundamentos Teóricos e Normativos  17

A Importância de Uma Visão de HomemA Irracional Crença na RacionalidadeA Negligência do ‘Político’ e o Escapismo da Política 

Capítulo 2: A Vontade de Poder e a Realidade da Política   27

Auto-Afirmação, Vontade de Poder 

As Três Formas de Auto-AfirmaçãoO Problema Central da Vontade de Poder  

Capítulo 3: Limitações Reais, Sociais e Morais à Vontade de 

Poder 39 

A Balança de Poder A Moral, o Costume e o DireitoA Apresentação dos Elementos Filosóficos em Politics Among Nations A Precariedade dos Freios e a Proposta do Realismo

Capítulo 4: O Dilema Moral da Ação Política   49 Ser versus Dever Ser na PolíticaÉtica Política: A Arte do Menor MalSobre Valores, Interesses e PrudênciaUm Comentário Crítico e uma ElucidaçãoO Idealismo Transcendente 

Conclusão: O Lugar da Natureza Humana para Morgenthau  63 

Homem: A Variável IndependenteDois Mal-Entendidos sobre o Realismo 

Bibliografia   71

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 Agradecimentos 

Esta monografia é o resultado final do tempo de permanência na Universidadede Brasília, e por ele ninguém merece maior gratidão neste momento do quemeus pais, Dermeval e Jussara, e meus irmãos, André e Ana Flávia. Desdesempre, eles têm sido o meu grande incentivo ao estudo e minha fortalezaemotiva e espiritual. O entusiasmo e a generosidade com que apoiaram todas asminhas iniciativas nesse período me encantam. Seria impossível fazer justiça

  para com os sacrifícios que enfrentaram por mim, lembranças que sóintensificam o profundo respeito e a admiração que sinto por todos eles.

Especificamente sobre este trabalho, é uma grande satisfação poder contar novamente com a orientação de Paulo Kramer, uma vez que ele foi o professor capaz, talvez – ainda – sem sabê-lo, de despertar minha curiosidade intelectual

  para os temas nele envolvidos. Ressalto sua disponibilidade em ajudar-mesempre que necessário e sua franqueza em compartilhar pontos-de-vista sobreassuntos tão complexos, além do interesse pelos grandes autores, que, em suas

 próprias palavras, ‘são verdadeiros continentes em si’.Fortuna, imperatriz do mundo, é capaz de sorrir por meio de diversas

faces. Uma delas, a quem gostaria de agradecer, é a do professor Antônio Jorgeda Rocha, que gerou o meu interesse por Hans Morgenthau ao me presentear com uma cópia do livro Scientific Man versus Power Politics. A segunda faceimportante no decorrer do tempo que separa o então do agora é a de ChristophFrei, biógrafo de Morgenthau. Aquilo que inicialmente estava previsto para ser apenas uma entrevista continuou nos últimos meses na forma decorrespondência, em um intercâmbio de idéias franco e bem-humorado.

Dentre todos os temas com os quais tive contato na universidade, estamonografia versa sobre aqueles que se me apresentaram como sendo os maisrelevantes. Em relação a eles, é também uma honra poder contar com oscomentários críticos e sugestões de algumas das pessoas mais brilhantes que

conheci nesse mesmo período. Sou grato a Cris Rocha, Érico Duarte, GuilhermeCanela, Jhoney Barcarolo, Marília Mochel, Matias Spektor, Railssa Alencar eSusan César, que muito gentilmente leram o texto original, ou partes dele,levantaram problemas grandes e pequenos, tanto de forma quanto de conteúdo esugeriram modificações importantes. Muitas delas foram integralmente aceitas,outras, parcialmente. E a responsabilidade final por eventuais imprecisões edistorções neste trabalho, obviamente, pertence apenas ao seu autor.

Agradeço ainda a Jefferson Cohen e Steffen Schoolmann pela ajuda comdiversas traduções difíceis, o segundo, no começo deste ano, e o primeiro, mais

recentemente. A fim de precisar melhor algumas delas, ora cruciais, ora

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  problemáticas, decidi incluir suas versões originais no decorrer do texto, entre parênteses, ou, em alguns momentos, em formato de notas de rodapé.

Finalmente, gostaria de expressar minha satisfação por contar com os

nomes de Vamireh Chacón e Marcus Faro de Castro para a banca examinadora.Certamente não me esquecerei das lições de sistemas de direito regadas aMaquiavel e T.S.Eliot, ministradas pelo professor Faro; tampouco, doinigualável conhecimento de história política e sociologia alemã e brasileira do

 professor Chacon.

Este trabalho é dedicado, com muito carinho, a JussaraPercilio Aires, Fábio Carneiro Lobo e Leonardo Fleuryde Sena Ayres.

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Introdução

A melhor maneira por mim encontrada de iniciar este trabalho é deixando claraminha concordância com a visão de Morgenthau sobre a nossa natureza: o ser humano é movido em todas as esferas de sua ação por uma necessidade, dentreoutras, de se auto-afirmar. E essa necessidade é forte o suficiente ao ponto de ser capaz de subjazer até mesmo às suas aspirações mais nobres. Também concordocom a observação de que ela pode causar efeitos potencialmente catastróficos nodomínio da política, cuja essência é a luta por poder. Essa afirmação, tal como o

leitor verá no decorrer do trabalho, é realmente importante. Pois quando é possível pensar que o homem não é assim, ou que ele só é assim às vezes (e emque medida?), é também possível chegar a conclusões bastante diferentes sobrea política.

Demonstrar concordância ou discordância com as idéias de um autor emestudo não é um gesto deselegante, tampouco é uma atitude metodologicamenteincorreta. Omitir a posição pessoal também não é uma garantia de que o estudoserá mais ou menos distorcido ou tendencioso do que ele seria, caso talconcordância ou discordância fosse manifestada.

Ao contrário. A clareza sobre o próprio ponto-de-vista é uma questão deintegridade intelectual e até mesmo de honestidade metodológica,

 principalmente face a uma questão tão delicada quanto a natureza humana. Poiscomo estamos tratando aqui de premissas filosóficas que não podem ser objetivamente comprovadas de uma vez por todas, o analista político, ao ser 

  pelo menos honesto quanto a suas próprias crenças, torna-se tãometodologicamente correto quanto possível. Ao situar-se de maneira clara, ele

  passa a assumir responsabilidade por suas idéias e considera o real perigo deestar fazendo uma má interpretação, ou de cometer eventuais distorções, com agravidade de alguém que se preocupa com as conseqüências de seus atos, muito

além da simples admiração, ou repulsa, por um conjunto de idéias. Assim,tornam-se mais claras as verdadeiras dificuldades de sua tarefa: a distância notempo e no espaço, a rapidez no tratamento do tema e a inexperiência em aceitar e deixar-se intoxicar pelas idéias alheias, ou confrontá-las de alguma maneira.

 Não é possível àqueles que se aventuram pelas sendas da filosofia escapar intocados de suas excursões como se nada tivesse acontecido; como se fosse

  possível não ser influenciado, em maior ou menor medida, pela argumentaçãode um pensador do porte de Hans Morgenthau. Os sistemas de idéias da filosofianão são como uma coleção de peças em um antiquário, expostas para serem

friamente listadas, descritas e comparadas, sem que isso tenha significado para oseu estudioso na maneira como ele vê a própria vida. Os pensadores são homens

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que se apresentam diante de nossos olhos tentando mostrar-nos aquilo quesomos. E a discussão de questões filosóficas não é apenas um exercíciointelectual desinteressado, mas sim uma colisão, consciente ou não, de

concepções de mundo que, em sua forma e seu conteúdo, buscam apresentar   justificativas para a própria existência, além de constituírem parâmetros ético-valorativos para a ação.

Ora, dizer o que é o homem é um dos empreendimentos intelectuais maisambiciosos que existem. Uma interessante prova disso é o fato de que mesmoFriedrich Nietzsche, a principal influência filosófica sobre o pensamento deMorgenthau, admite categoricamente que o homem é “o animal ainda nãodeterminado”.1 Daí podemos perceber a primeira grande dificuldade teórica datarefa que ele se coloca.

Mas existe ainda uma segunda dificuldade. Em seus primeiros esforçosintelectuais, Morgenthau fundamenta sua teoria política sobre bases

 psicanalíticas do estudo de pulsões humanas. E em um momento tão avançadoem sua carreira quanto 1924, o próprio pai da psicanálise, Sigmund Freud,admite de forma um tanto desiludida que “a teoria das pulsões é a parte maissignificativa, mas também a menos avançada da teoria psicanalítica”.2 

Certamente, aqueles que conhecem a discussão freudiana sobre as pulsões  perceberão que o reducionismo principal de Morgenthau é mais simples, ecertamente menos refinado, do que o da teoria psicanalítica. No entanto, a frasede Freud é um bom indício da magnitude do problema enfrentado por qualquer 

teoria, política ou não, que se proponha a estruturar-se sobre essa base.3 Da filosofia e da psicanálise até uma teoria da política internacional, o

 passo é menor do que se poderia imaginar. De fato, uma característica comumaos grandes pensadores, à medida em que eles exploram os limites do própriosaber, é a capacidade de transgredir aquilo que em tempos de especialização se

1 “Das noch nicht festgestellte Thier”.   Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der  Zukunft , § 62. A influência da análise de Nietzsche sobre o pensamento de Morgenthau foiestudada por Frei, Christoph (1994),   Hans J. Morgenthau. Eine Intellektuelle Biographie,

 principalmente no capítulo 5. Por meio do exame de cartas e diários, Frei demonstra como aidéia da Vontade de Poder  de Nietzsche influenciou decisivamente o pensamento deMorgenthau, que, no entanto, em sua proposta realista, adota uma postura normativa opostaàquela de Nietzsche. 

2 ¨Unfertigste”. Citado em Kaufmann, Pierre (1996: 436). Em 1926, Freud mantém a posição sobreessa dificuldade, ao declarar: “a doutrina das pulsões é um campo obscuro, até mesmo para a psicanálise”. E, em 1933: “A teoria das pulsões é, por assim dizer, nossa mitologia (...). As pulsões são seres míticos, magníficos em sua imprecisão”. Ver Rondinesco e Plan (1998: 631),Hanns (1996: 348). 

3 Ao final de sua carreira, Morgenthau expressava ceticismo quanto à possibilidade de umreducionismo psicoanalítico explicar complexidades da política. No entanto, como seu  pensamento evidencia uma enorme continuidade de posições do princípio até o fim, a

descoberta de seus manuscritos não-publicados e a exploração de suas primeiras obras  possibilita saber de onde ele partiu para chegar onde chegou. Morgenthau (1976: 14-15) eSelzer (1984: 140, nota no. 4). 

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convencionou chamar ‘fronteiras’ entre diferentes disciplinas, ao buscaremclareza de pensamento, lógica e lucidez.

Tal atitude encontra no teste do tempo, face à efemeridade de toda

aceitação presente, a sua última fonte de comprovação. Em diferentes momentose lugares, esses notáveis intelectos enfrentam o desafio da permanência,enquanto, na tentativa de entender e resolver os problemas imediatosapresentados por sua própria realidade, terminam por entrar em contato comquestões permanentes da existência e da ação humanas.

Esse processo de ‘superação de fronteiras’ implica necessariamenteenfrentar de alguma forma questões básicas da filosofia, um processo deautoquestionamento que demanda do pensador, como conseqüência, a clarezaacerca de sua própria concepção sobre a vida e o homem. O termo alemãoWeltanschauung descreve com precisão essa “visão geral do universo e do lugar nele ocupado pelo homem, que afeta a sua conduta”4. Raros são os autores quese tornam ao mesmo tempo conscientes dessa necessidade e capazes de levar atarefa a cabo.

Weltanschauung, enfim, é o tema deste trabalho. Seu objetivo é mostrar aimportância da visão de homem para o pensamento de um dos grandesintelectuais do século XX, Hans Joachim Morgenthau (1904-1980). Pretendoalcançar esse objetivo por meio de duas tarefas. A primeira delas é sistematizar asua concepção de natureza humana, explicitando o papel dessa visão na sua

 produção teórica de ciência política. Busco chamar a atenção para as premissas

filosóficas do realismo que, a exemplo de Politics Among Nations, seu títulomais conhecido, permeiam toda a sua obra. Ao caracterizar essa visão dehomem, procuro avaliar a sua importância para o estudo e a prática da política,de acordo com esse autor. Assim fazendo, estaremos lidando com o seu

  pensamento sobre a política internacional à luz de considerações filosóficas e  psicológicas, tais como desenvolvidas em trabalhos anteriores, publicados ounão.

O véu que encobria as origens do pensamento de Morgenthau foi retirado  por seu Fragmento de Autobiografia, pela coletânea Truth and Tragedy e, de

maneira aprofundada, pela biografia intelectual escrita por Christoph Frei5

.Ainda que Morgenthau tenha sempre escrito com grande clareza nos diversoslivros que o projetaram internacionalmente entre os anos 40 e 70, sua biografiaaborda, pela primeira vez, os primeiros textos, escritos ainda na década de 30. A

 produção acadêmico-filosófica de Morgenthau que antecede a sua chegada nosEUA em 1937, praticamente desconhecida pelos especialistas em realismo

4 M.J. Inwood, “Weltanschauung”, The Oxford Companion to Philosophy, pg. 909. 5 Morgenthau, Hans, “Fragment of an Intellectual Autobiography: 1904-1932” e “Bernard Johnson´s

Interview with Hans J. Morgenthau”, ambos em Thompson, Kenneth e Robert J. Myers(1984), Truth and Tragedy. A Tribute to Hans J Morgenthau; Frei, Christoph (1994),  Hans J. Morgenthau. Eine Intellektuelle Biographie. 

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  político, lida com questões básicas da filosofia política de uma forma direta,atravessando o autor, para isso, as fronteiras entre a filosofia, a psicanálise, odireito e a ciência política. Seu objetivo é compreender a realidade política, por 

um lado libertando-se dos estreitos limites que o estudo do Estado em seu tempose auto-impusera, e, por outro, buscando compreender a realidade tal como ela é,como primeiro passo para se lhe imprimir qualquer forma de dever ser, qualquer que seja a definição desse dever ser.

Assim, proponho-me a, utilizando o instrumental teórico explicitado pela biografia intelectual de Morgenthau, analisar algumas de suas principais obras e partes de sua produção anterior à carreira nos EUA, descrevendo a sua visão dehomem como uma criatura submetida a uma tensão entre a vontade de poder inerente à sua natureza, de um lado, e os freios associados a valores ideais quelhe imputam um comando moral, de outro.

Busco demonstrar que a visão de homem é o ponto central e principal do pensamento de Morgenthau. É a partir dessa visão que surgem seus parâmetros para a compreensão teórica e o julgamento da realidade. E é a partir dessa visãoque surgem todas as críticas por ele feitas a outras escolas de pensamento. Ela éuma espécie de coluna vertebral de suas idéias, o núcleo duro que dá sentido elógica à sua obra teórica. Portanto, argumento que a visão de homem é aconstrução mais importante para o entendimento do realismo político, tal como

 por ele formulado. Sem a devida compreensão dessa visão, o entendimento desua obra torna-se comprometido, uma vez que o leitor estaria, neste caso,

acessando as aplicações teóricas sem consciência das premissas filosóficas e psicológicas subjacentes.

De fato, os leitores mais atentos da obra de Morgenthau não terãodificuldade em perceber que estão, em verdade, diante de uma discussão sobre anatureza humana que transcende o questionamento empírico para adentrar ocampo da filosofia. Dentre as interpretações disponíveis, o referido biógrafo deMorgenthau também reconhece que as discordâncias envolvendo realismo eidealismo, a principal discussão normativa já existente na teoria das relaçõesinternacionais, nada mais são que a colisão de diferentes concepções acerca da

natureza humana e da natureza da sociedade.6

No entanto, o objetivo da  biografia de Frei é explicitar “o surgimento das idéias, conceitos e categorias  para a compreensão adequada da obra” de Morgenthau7. Dessa forma, esperoque com este trabalho seja possível adicionar um ponto ao debate sobrerealismo, uma vez que ele se concentra no estudo específico da relação entre anatureza humana e a política, e das suas implicações teóricas e ético-normativas.

Como já mencionado, a idéia de natureza humana é a questão maisimportante para aqueles que desejam compreender o pensamento deMorgenthau. As suas idéias e as construções teóricas não mudam no tempo. E as

6 Frei (1994: 212) 7 Frei (1994: 8 e 239) 

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suas polêmicas se repetem sempre com base nos mesmos argumentos. Assim, procuro demonstrar como as idéias e críticas formuladas por ele têm como pontode partida e retorno uma espécie de fiat lux filosófico: a sua visão de homem. A

recente descoberta dos antigos manuscritos e textos produzidos pelo autor sóajudam a comprovar essa tese.O lado teórico de tal discussão está distribuído ao longo dos primeiros três

capítulos deste trabalho. No capítulo 1, busco examinar os fundamentosintelectuais da obra de Morgenthau, por meio do estudo de suas críticas a outrasescolas e formas de pensamento. Esse capítulo se baseia amplamente na análisede seus primeiros livros e manuscritos, visando a situar a sua postura intelectual.Ainda que todos os elementos de sua concepção teórica só tenham sidofinalmente trazidos a claro em 1948, a análise de suas críticas a outrosintelectuais permite entender sua posição por contraste. Assim, antes dedescrever a sua teoria, proponho-me a explicitar suas críticas, que demonstramenorme continuidade de posições desde o começo de sua carreira acadêmica, em1929.

Os capítulos 2 e 3 lidam de forma direta com as proposições filosóficas e  psicanalíticas do seu pensamento, e a sua aplicação à proposta teórica dorealismo, explicitada em maior detalhe em Politics Among Nations. No capítulo2, descrevo a preocupação com a esfera política e o surgimento do ‘político’ nanatureza humana; como esse caráter se manifesta nas questões sociais e o

  problema gerado para a paz e para a ordem social pela vontade de poder. No

capítulo 3, busco chamar a atenção para uma face de sua visão de homem queconsidero fundamental para a compreensão apropriada de sua proposta: acaracterização do ser humano como uma criatura suscetível a freios morais e,

  portanto, responsável por um destino moral, em uma doutrina apelidada de“idealismo transcendente”.

O estudo do idealismo transcendente, enquanto proposta ético-normativade ação política, é a segunda tarefa deste trabalho, e tema de seu quarto capítulo.O termo corresponde a um determinado grau de consciência no qual o analista eo político não perdem de vista a busca por valores ideais, ainda que filtrando-os

 pelas circunstâncias presentes, mediante o reconhecimento das realidades da luta  por poder 8. Assim, pretendo explicitar como o pensamento de Morgenthauidentifica no dilema ético que surge na ação política uma conseqüência danatureza humana, e a sua solução filosófica para lidar com esse dilema. Oidealismo transcendente é caracterizado por uma visão trágica da experiência

8 Frei (1994: 217). Todos os tópicos a serem explorados nesta monografia já foram abordados pela  biografia intelectual escrita pelo professor Frei; entretanto, o propósito deste trabalho éexplicitar em detalhe alguns dos temas por ele abordados – a visão de homem e suasconseqüências para o pensamento teórico e ético-normativo realista de Morgenthau. Até onde

  pude constatar, a  Intellektuelle Biographie é a única obra que descreve com precisão e emdetalhe os fundamentos filosóficos da obra de Morgenthau, motivo que explica o fato de estar eu utilizando-a amplamente ao longo deste trabalho. 

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humana e apresenta uma proposta ética específica, baseada na idéia de prudência, como sendo a virtude número um na ação política, e no princípio domenor mal.

O fato de que este trabalho inicia-se pelo estudo de uma proposta teórica etermina com o estudo de uma proposta ético-normativa também não deve ser visto com espanto. Toda forma de filosofia implica necessariamente um sistemavalorativo específico, uma atitude perante a realidade e a própria vida. Queira o

  pensamento político ou não, ele é necessariamente permeado por, e implica,considerações sobre “o bom governo”, “a boa sociedade”, sobre aquilo que éverdadeiro, correto, sobre aquilo que é “bom, belo e justo”. Esteja ele conscientede seus eventuais efeitos práticos ou não, ele acarreta conseqüências reais,enquanto fornecedor de parâmetros para a ação, uma vez que sempre a justificaem forma de um sistema ético próprio.

Por esse motivo, torna-se necessário discutir o dilema moral da ação  política dentro do pensamento de Morgenthau, bem como dentro de qualquer outro sistema de idéias em filosofia política. Assim como sua teoria, sua

 proposta normativa flui de sua visão de mundo de forma natural. E o que torna o pensamento de Morgenthau peculiar é o fato de que ele insiste em ser explícitoquanto a esse normativismo, como se a própria ciência, e não somente a política,fosse também uma questão de responsabilidade.

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  – CAPÍTULO 1 – 

FUNDAMENTOS TEÓRICOS E NORMATIVOS DE

MORGENTHAU 

... assim, o pensamento sobre essa realidade [do Estado] devecomeçar novamente pelo início de tudo o que é político, e esseinício não pode ser outro que o homem. Pois o ‘político’,entendido como a essência da realidade estatal, não aparece

 por acaso na vida das pessoas, sem origem e sem objetivo; ele  surge e centra-se, como todas as objetivações de nosso

  pensamento e ação, na alma do homem. Buscá-lo naquelas suas ‘últimas fontes psicológicas’ (...) é, portanto, a primeiratarefa de uma teoria do Estado que se presta com seriedade àtarefa de conhecer a realidade estatal.

Morgenthau, 1932: 27-28

O público que teve acesso à teoria e filosofia de Hans Morgenthau a partir dofinal da década de 40 nos Estados Unidos conheceu a sua forma prontaintroduzida pelas seguintes palavras: “o realismo político acredita que a política,assim como a sociedade em geral, é regida por leis objetivas que possuem suasraízes na natureza humana. Para se melhorar a sociedade, é necessário entender as leis pelas quais ela vive. Uma vez que a operação dessas leis é indiferente àsnossas preferências, o homem somente poderá desafiá-las sob o risco defracassar”.9 

Tanta certeza sobre a importância de se pensar em termos de ‘naturezahumana’ certamente não existe sem uma história. E o que esse mesmo públicomuitas vezes não sabe sobre Morgenthau é que, antes mesmo de emigrar da

9 Morgenthau, Hans (1948), Politics Among Nations. The Struggle for Power and Peace, pg. 4. Apesar do vocabulário aparentemente empoeirado frente à discussão teórica atual, não está claro até

que ponto os analistas do realismo político levam a sério a centralidade da idéia de “leisobjetivas, que possuem suas raízes na natureza humana” para Morgenthau. Em meio a toda pesquisa sobre o realismo, e considerando a importância do seu pensamento para a ciência política, além da centralidade de sua concepção de homem para as suas próprias formulações,salta aos olhos que não exista sequer um estudo na academia americana, ou fora dela, centradoespecificamente na visão desse autor sobre a natureza humana. Até onde é de meuconhecimento, dentre todas as obras conhecidas, as tentativas mais detalhadas talvez estejamem Smith (1984, cap. 6) e Selzer (1984). De fato, quase todos os comentaristas do realismomencionam a idéia de uma visão “má” (‘evil’), “pessimista”, “sombria”, de natureza humanaem Morgenthau, e alguns chegam até mesmo a listá-la como um dos fundamentos do realismo,sem entrarem, no entanto, em minúncias. Até onde se saiba, a tese de sua centralidade como o

 fundamento para toda a obra, tal como defendida por mim nesta monografia, nunca foi tema

de uma exploração mais detalhada até o surgimento da biografia intelectual escrita por Christoph Frei em 1994 (que descreve a visão de homem de Morgenthau integralmente),tampouco nos anos que se seguiram à sua publicação. 

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Europa para a América em 1937, todas as fundações de seu pensamento jáestavam estabelecidas em cerca de 1000 páginas por ele escritas, seja em trêslivros efetivamente publicados, seja nos seus diversos manuscritos que

 permaneceram inéditos.

10

  Neste capítulo, proponho-me a descrever a proposta de teoria política, talcomo feita por Morgenthau. Se, antes de 1948, não esteve sistematizada em umamesma obra, ela se deixa, no entanto, perceber por meio de suas partesconstituintes relacionadas ao direito internacional, a área temática onde o autor inicia sua carreira acadêmica, e, também, por suas críticas a outros autoresalemães do direito e da ciência política da mesma época, como Hans Kelsen eCarl Schmitt. Ou seja, analisando as primeiras contribuições acadêmicas deMorgenthau, o que busco aqui é reconstruir a visão de mundo do autor, aindaque ela não estivesse explícita e detalhada em suas primeiras obras; pois aobservação de regularidades em suas críticas nos permite ver onde ele se situa eo que ele demanda. As mesmas críticas, como procuraremos mostrar, repetem-seem momentos posteriores durante a vida acadêmica nos EUA, o que contribui

 para a tese da continuidade de sua visão de mundo e de sua atitude intelectualdesde o princípio e até o fim de sua carreira.

Como todo conhecimento filosófico é gerado num contexto social e político específico, e dele é, ao mesmo tempo, produto e vetor de mudança oucontinuidade, as críticas de Morgenthau se dirigem indivisivelmente tanto àsconstruções teóricas quanto às escolhas morais de seus autores, o que permite

delimitar sua postura própria em relação ao conhecimento: para ele, a produçãode conhecimento envolve decisões intelectuais e principalmente morais que sãoinseparáveis e inevitáveis.

 No decorrer desses primeiros anos de sua carreira, os principais aspectosrecorrentes nos diferentes trabalhos são: 1) a crítica à ausência de clareza dosoutros autores quanto às suas visões de mundo e de homem, e a relação entreessa falta de uma visão de mundo e suas construções teóricas; 2) à confiançaexagerada nos poderes da razão humana e da ciência, em detrimento doreconhecimento da irracionalidade como uma realidade determinante na vida; e

3) à negligência do caráter político na vida humana e o escapismo das realidadesda política. Tais críticas permanecem praticamente inalteradas até o fim de suacarreira.

A Importância de uma Visão de Homem

10 Os três livros publicados ainda na Europa são, em 1929,  Die Internationale Rechtspflege, ihr Wesenund ihre Grenzen; em 1933,   La Notion du ‘Politique’ et la Théorie des Différends

 Internationaux; e, em 1934,   La Realité des Normes, en Particulier des Normes du Droit 

 Internationaux, além de 10 manuscritos não-publicados e alguns artigos para jornais e revistas.A listagem completa de sua obra foi levantada e publicada por Christoph Frei (1994): 242-245. 

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 Ao examinarmos os trabalhos de Morgenthau mais detalhadamente, chama aatenção a recorrência com que as suas discussões remontam a considerações

sobre natureza humana, como se nenhuma tentativa de teorização bem-sucedida pudesse acontecer sem a clareza a respeito de uma visão de homem como pontode partida para a teorização sobre a realidade social, incluindo, portanto, arealidade política.11 De fato, como se pode perceber na epígrafe a este capítulo,tal posição é por ele defendida desde as suas primeiras iniciativas acadêmicas.Para Morgenthau, o cientista político que não reserva atenção paraconsiderações sobre a natureza humana está sujeito a grandes contradiçõesinternas em suas declarações, além de comprometer sua própria capacidade defazer sentido da realidade.

Em sua visão, teoria só pode dar sentido aos fatos na medida em queinquietações filosóficas básicas possam ser satisfeitas. Tal afirmação se justificasobretudo pelo fato de que, para ele, uma visão filosófica inerente às construçõesteóricas é simplesmente inevitável, ainda que o analista não esteja conscientedisso. As mesmas críticas são apresentadas mais tarde em sua carreira, de forma

 bastante incisiva, da seguinte maneira:

Uma ciência política somente envolvida em um quadro mental empírico é umacontradição em termos e uma monstruosidade (...). Esteja ele [o cientista político] deacordo ou não, perceba ele ou não, ele é um filósofo da política antes de ser umcientista político. Todos os observadores da política, portanto, trazem às suas

observações um quadro de referências da filosofia política, não importa o quãodesarticulado e fragmentário. É somente dentro de tal quadro filosófico que umainquietação empírica pode ter sentido e ser frutífera (...). Em política, umainquietação empírica desprovida de um quadro mental filosófico é necessariamentecega, assim como uma filosofia política sem verificação empírica é meramenteespeculativa.12 

Ao criticar outros intelectuais, Morgenthau deixa transparecer sua visão sobreuma necessidade da ciência: a idéia de “avançar até as últimas raízes darealidade estatal”13, raízes essas que, como já vimos, estão no próprio homem. Oautor defende, assim, a necessidade de um pensamento sistemático, no qual a

11 Por “bem sucedida”, Morgenthau entende um duplo teste: teoria é para ele um conjunto de  proposições que a) traz sentido aos fatos, correspondendo à realidade e b) é coerente emrelação às suas premissas, isso é, possui lógica interna (1948: 3). Ver também (1934a): 15 e, posteriormente, (1972): 20-22. 

12 Morgenthau (1958): 22-23. Compare-se com o que ele escreve quinze anos mais tarde: “A filosofia(...) está implícita em toda ciência genuína. (...) Portanto, o pensamento científico movimenta-se imperceptivelmente em direção ao pensamento filosófico” (Morgenthau (1972): 61. Noinício de sua carreira, Morgenthau (1932) critica em um só manuscrito Hans Kelsen, CarlSchmitt e Rudolf Smend. Dentre os diversos motivos de crítica, o principal é justamente a

falta de premissas filosóficas ou a falta de lógica interna e correspondência entre premissas eteorias.13 Morgenthau (1932): 25. Também (1932a): 1. 

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observação e a tentativa de teorização sobre a realidade façam sentido comrelação às premissas filosóficas do intelectual; pois se as bases de umaconstrução científica não estão de acordo com a realidade, ou consigo mesmas,

então todo o edifício teórico é um empreendimento que nem sequer começa. E,se começa, ele simplesmente não se sustenta. O importante é a visão de mundo eo sentido que se dá aos dados: assim, conceitos como ‘conhecimento’ e, emconseqüência, ‘ignorância’, adquirem para ele conotação qualitativa (isto é,capacidade de se fazer sentido sobre dados), mais que quantitativa (quantidade eespecialização de dados).14 Assim, toda forma de ciência humana está para eleindivisivelmente ligada à ‘ciência da ciência’. A meta-ciência, que ocorre no

 plano filosófico.Sendo essa estreita relação entre o conhecimento e a consciência de seus

  propósitos e limitações inevitável, seria, portanto, para Morgenthau, umaquestão de honestidade da parte do acadêmico dar conta para si mesmo, e paraos outros, de suas premissas filosóficas, do lugar onde ele se situa. Uma questãode integridade intelectual.15 

A Irracional Crença na Racionalidade

Integridade intelectual seria para ele, também, a sinceridade de se admitir, emostrar, a existência de elementos irracionais na realidade. “Eliminá-los da

teoria geral do Estado será sempre um começo impossível de ser levadoadiante”.16 

Essa é a segunda crítica, dentre as três que aparecem repetidamente emsua obra. Sua mais enfática manifestação é, em 1946, o livro Scientific Manversus Power Politics, seu primeiro em língua inglesa e também aquele de queele mais gostava.17 Nessa obra, Morgenthau se coloca em campo de batalhacontra as “premissas intelectuais, geralmente inconscientes, pelas quais a eravive; suas convicções básicas a respeito da natureza do homem e da sociedade,que dão sentido ao pensamento e à ação”.18 Assim, torna-se claro em que nível o

14 A seguinte declaração, escrita pela primeira vez em 1934, é repetida em 1972: “Portanto, nós pensamos mais no acadêmico filosoficamente orientado do que no especialista, não importaqual o tipo de conhecimento que eles descubram; e talvez nós até mesmo preferiremos asconclusões dúbias do primeiro às descobertas factuais incontestáveis do segundo”. (1972): 8; e(1934a): 4. 

15 Integridade intelectual, no alemão, Intellektuelle Redlichkeit , significa o compromisso do pensador de relatar tudo o que se conclui, ainda que essas conclusões e constatações sobre a realidadenão sejam aceitas pela sua sociedade, que muitas vezes não está pronta, nem disposta a ouvir eentender. A versão acabada dessas críticas pode ser vista em Morgenthau (1958): capítulos 1 e2. Elas aparecem todas no entanto já em Morgenthau (1932) e (1932a). 

16

Morgenthau (1932): 17. 17 Em uma carta de 1975, “o meu livro favorito”, ver Frei (1994): 219. 18 Morgenthau (1946): 2-3. 

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seu criticismo se situa: no embate entre diferentes crenças sobre a naturezahumana, onde, em suas próprias palavras, “religião, filosofia e arte buscam fazer sentido” (pg 124). São atacados a) a falta de reconhecimento de limites bastante

estreitos, modestos, para a ciência e b) o excesso de confiança nos poderes darazão para a resolução de problemas políticos por meio de soluções científicas.Ou seja, a crença de que a expertise do cientista possa vir a substituir anecessidade de juízo moral do político.19 

O ponto específico de crítica neste caso é exatamente a questão danatureza humana. Se a sociedade e seus pensadores mais notórios se permitemacreditar que o ser humano é por natureza uma criatura somente boa e generosa,ou capaz de se pautar sempre pela razão, ou passível de aprendizado e correção

  por meio da lembrança de seus erros anteriores, Morgenthau chama a atenção  para o reduzido lugar da razão, frente a forças mais básicas e poderosas, oegoísmo e a vontade de poder, presentes na essência do homem desde o

 princípio dos tempos.20 Para ele, é necessário que se perceba que o lugar da razão é muito mais

modesto: ela serve a impulsos irracionais, estes sim, os verdadeirosdeterminantes do comportamento humano (pg. 154). Dessa forma, “o elementocomum que a mente, a natureza e a sociedade compartilham não é mais a razão

 pura e simples, mas sim, razão cercada, eivada e subjazida pela falta de razão;uma ilha precariamente situada em meio a um oceano obscuro e tempestuoso”(pg. 145). Dessa forma, é criticada a confiança nos poderes ilimitados da razão,

e argumenta-se sobre a sua precária condição na realidade humana e política.Portanto, a consciência e o entendimento a respeito desses elementos ‘maisfortes’ que a razão são o melhor começo para qualquer tentativa de controlá-losou minimizá-los. Negligenciar a permanência deles seria para Morgenthau umaforma cega e inconseqüente de se preparar o terreno para que eles floresçamdesenfreadamente. É à manifestação desses elementos que tanto o analistaquanto o político devem estar atentos.

19

A título de clarificação, a palavra  Racionalismo se refere, no caso, a uma crença filosófica atacada por Morgenthau: a fé na capacidade da ciência resolver os problemas existenciais e políticosdo homem. Essa filosofia não teria compreendido (e esta é a visão do autor) que o homemseria uma criatura não somente racional, mas também biológica e espiritual (1946: 5), e teria portanto compreendido mal a verdadeira natureza da razão humana. E Razão para ele adquireduas conotações diferentes:

Em primeiro lugar, a razão “é como uma luz que por sua própria força interior não pode ir a lugar algum. Ela deve ser carregada para se mover. E ela é carregada pelas forças irracionais dointeresse e da emoção, para onde essas forças querem que ela vá” (pg. 155). Em segundolugar, a razão é um poder interior ao homem, que executa para ele uma função harmonizadoraquádrupla: a) harmoniza o conflito entre diferentes impulsos irracionais; b) harmoniza meios efins para os impulsos irracionais; c) harmoniza fins conflituosos; harmoniza meios e fins (pg.

155-167). 20 Ambos termos e as definições a eles dada por Morgenthau são tratados em detalhe no próximocapítulo. 

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Em Scientific Man, Morgenthau encontra na crítica à crença nos poderesexagerados da razão uma aplicação prática de posições que ele já defendia noinício da década de 30: o reconhecimento do lugar da irracionalidade na vida é

  já então para ele um primeiro passo imprescindível para aquele que quer compreender a realidade. No início de sua carreira, essa mesma crítica estavadirecionada a dois objetos. No campo da ciência política, condenava-se “oesforço de se libertar a teoria do Estado de todos os seus componentesirracionais”, classificado já nessa época como um esforço “vão”, “condenado aofracasso”. No direito internacional, Morgenthau ataca a crença no “poder ilimitado do direito”, frente a realidades políticas que transcendiam onormativismo e agiam indiferentemente às normas legais acertadas entre os

 países.21 As conseqüências dessa atitude de negligência, tanto para os teóricos do

Estado quanto para os do direito, seria a própria impotência teórica, ao falhar emreconhecer justamente aquelas forças “que na verdade dominam a sociedade egeram o próprio direito como produto”22. Enquanto os teóricos do Estadoterminam por falhar na busca de consistência lógica entre seus conceitos e suasteorias, os teóricos do Direito evitam abordar justamente aquelas questõesconsideradas decisivas para o estudo do direito como uma ciência social: “asquestões do sentido e do valor de teorias e instituições estatais, sobre as leis quedeterminam seu surgimento, seus efeitos e seu desaparecimento; sobre a

 justificação da dominação do homem pelo homem; sobre as limitações da esfera

do indivíduo perante o domínio da comunidade”.23 A crença exagerada nos poderes do direito internacional associa-se a uma

outra postura intelectual criticada por Morgenthau: a negligência da possibilidade de que as questões humanas possam assumir caráter político, umasituação na qual o próprio ordenamento legal encontra-se permeado e, em algunscasos, até mesmo ameaçado pela dinâmica da busca por poder.

A Negligência do ‘Político’ e o Escapismo da Política24 

Esta crítica surge pela primeira vez já na publicação de sua tese doutoral de1929, A Aplicação do Direito Internacional, sua Essência e seus Limites. Nesse

21 Sobre a teoria do Estado, ver Morgenthau (1932); para a crítica à crença no poder ilimitado dodireito, ver Morgenthau (1929), especialmente caps. 4 a 8, (1930a): 2 e Morgenthau (1933). 

22 Morgenthau (1930a): 2. 23 Especificamente, esta crítica se dirige à redução da teoria do Estado de Hans Kelsen a uma teoria do

direito que se omite de considerar aspectos sociológicos e filosóficos, considerados inevitáveis por Morgenthau (1932): 14. 

24

Para evitar mal-entendidos: a palavra escapismo está sendo usada neste contexto como uma crítica  baseada em um julgamento moral sobre outros intelectuais. Assim, quem evita asresponsabilidades da vida, fugindo para um mundo interior de ilusão, é um escapista. 

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23

trabalho, Morgenthau delineia os fundamentos de sua visão sobre o conceito do‘político’, ao criticar uma visão da política que é predominante nas ciênciassociais até hoje: a separação metodológica entre diferentes esferas da vida

humana (como por exemplo, a esfera econômica, jurídica, política, etc), comosendo mutuamente exclusivas. Contra a classificação vigente na época, quetendia a separar os temas internacionais entre questões exclusivamente jurídicas,de um lado, e exclusivamente políticas, de outro, Morgenthau apresenta umaclassificação própria. Para ele, o ‘político’ não é uma categoria, tal comoelaborada por exemplo por Carl Schmitt em seu Conceito do Político, mas simum caráter, que se manifesta nas diferentes questões e domínios da sociedade25:

  Ademais, é necessário esclarecer que uma diferenciação entre questões políticas enão-políticas baseada em objetos específicos é impossível, uma vez que o conceito do

 político não é necessariamente ligado a determinados objetos, nem necessariamenteexcluído de outros. O domínio das querelas políticas não é definitivamenteestabelecido em razão de seu conteúdo material. Nenhuma questão possui caráter necessariamente político em função de seu conteúdo material, ao mesmo tempo quequalquer questão pode adquirir caráter político em função de circunstâncias externasa seu conteúdo material. O conceito do político não é trazido por substância algumade uma vez por todas. Ele é muito mais uma propriedade, uma qualidade, umacoloração, que pode aderir a todas as substâncias, sendo que a algumas,

  preferencialmente, mas a nenhuma, necessariamente. Há determinadas substânciasque adquirem a coloração política com especial facilidade e freqüência, mas ela nãoé uma propriedade natural própria de substância alguma. Uma questão que possuihoje caráter político pode perder esse caráter amanhã mesmo; e uma questão que

hoje possui pouca importância pode se tornar, de um dia para o outro, uma questão política de primeiríssima ordem. O que existe é um grupo limitado de certas questões,que possuem um caráter político relativamente duradouro, como questões de

  fronteiras, minorias, e economia mundial. Essas poderiam ser descritas comoquestões políticas de primeira ordem; ao seu lado, há um grupo de questões das quaiso elemento flutuante do ‘político’ se apodera aqui e acolá, sem se estabelecer, noentanto, de forma duradoura. Aqui estão as questões políticas de segunda ordem.26  

  Na crítica feita por Morgenthau ao escapismo das realidades da política é  possível identificar com mais clareza do que em qualquer outro lugar em suaobra que para ele a atitude de um intelectual reflete, em primeiro lugar e sempre,

a sua postura moral. Para ele, reconhecer a realidade central da política – a lutacontínua por poder – é a grande tarefa de um cientista social que realmentequeira entender seu objeto de estudo. A negação desse reconhecimento é paraele fonte de fracasso, tanto para a teoria, quanto para a prática da política.27 

25 Menciona-se Carl Schmitt (1932) por este ser justamente o maior alvo de críticas por parte deMorgenthau (1932), (1932a) e (1933). Schmitt (1996) apresentava o ‘político’ como umacategoria passível de reconhecimento pela distinção entre ‘amigo’ e ‘inimigo’. 

26 Morgenthau (1929): 67, grifos meus. Também em Morgenthau (1933): 32-33. 27 A preocupação em delimitar ‘o político’ é a primeira fonte de criação nas obras de Morgenthau,

  perpassando boa parte de sua produção desde o primeiro livro em 1929. Ver tb. (1930),(1932), (1932a) e (1933). As mesmas preocupações são retomadas em (1946), principalmentenos três últimos capítulos e (1948) em forma de teoria sistematizada e constituem uma crítica

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Aquilo que ele considera enfaticamente em 1946 como uma ‘doença’ do  pensamento ocidental moderno e contemporâneo – o cientificismo, a crençaexacerbada nos poderes da razão para a resolução de problemas políticos – seria

um sinal da relutância do pensamento político dos últimos séculos emreconhecer e admitir a política como uma realidade irrevogável da existênciahumana. Para Morgenthau, a tentativa de fuga dessa realidade se manifestadentre os pensadores desta época em diferentes formas de escapismo.

Em sua crítica às teorias do Estado alemãs, Morgenthau observa nanegligência do político o mesmo problema de inconsistência teórica para com arealidade observado na negação da irracionalidade; e, o que é pior, ele vê nessainconsistência a própria irrelevância teórica, em função de sua limitadacapacidade de compreensão. Na década de 30, ele analisa primeiramente a totaleliminação de elementos políticos da teoria do Estado. Sua polêmica seguintedirige-se contra a atitude de se ‘vender’ para os poderes políticos do momento,ao oferecerem arcabouços teóricos que desconsideram uma visão de mundo,necessariamente normativa e, por isso, possivelmente conflituosa. Tal forma deciência, ao seu ver, termina por tornar-se uma espécie de “escritório deadvocacia, que se coloca à disposição de todo aquele que seja capaz de pagar 

  por seus serviços, no qual o intelectual se torna um defensor desonesto dos  poderes vigentes e, portanto, um mascarador de todos aqueles valorestranscendentes ao político; como um jesuíta que não mais crê em Deus”28.

Assim, na relação entre o cientista político e a política, onde um

influencia a outra e vice-versa, em uma dinâmica inevitável, Morgenthau vê umdilema entre os valores e constatações do teórico e as expectativas sociais a seurespeito. A crítica ressurge em 1958, em uma discussão sobre o “compromissomoral do cientista político”, e é colocada nos seguintes termos:

Uma ciência política que é fiel ao seu comprometimento de dizer a verdade sobre omundo político terminará necessariamente dizendo à sociedade certas coisas que elanão quer ouvir. A verdade sobre ciência política é a verdade sobre o poder, sobre

 suas manifestações, sobre suas configurações, suas limitações, suas implicações eleis. No entanto, um dos principais propósitos da sociedade é o de esconder essas

verdades de seus membros. A tarefa de esconder essa verdade sobre a natureza dohomem político e da sociedade política, um processo elaborado, sutil e proposital, éum dos pilares sobre os quais todas as sociedades são fundadas.29 

Uma ciência política que é maltratada e perseguida provavelmente ganha essainimizade porque ela coloca o seu compromisso moral para com a verdade acima daconveniência social e da ambição. Ela penetra por baixo do véu ideológico com oqual a sociedade esconde a verdadeira natureza das relações políticas, perturbando acomplacência dos poderes vigentes e mexendo com a consciência da sociedade. [Emcontraposição,] uma ciência política respeitada possivelmente ganhou esse respeito

em (1958), a cinco grandes autores contemporâneos: Harold Laski, E. H. Carr, Bertrand de

Jouvenel, Arnold Toynbee e Walter Lippmann (caps. 20-24). 28 Morgenthau (1934a): 55. Também (1972): 50-51. 29 Morgenthau (1958): 27-28. 

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 porque executa funções úteis para a sociedade. Ela ajuda a encobrir as relações políticas com o véu das ideologias que amolecem a consciência da sociedade. Ao justificar as relações de poder existentes, ela garante a vigência dos poderes atuais, o seu quinhão de poder; ela ilumina certos aspectos das relações de poder vigentes; eela contribui para a melhoria das operações técnicas do governo. A relevância destaciência política não reside primariamente na descoberta de verdades sobre a política,mas sim, em sua contribuição para a estabilidade da sociedade (...).

[No entanto], o cientista político que quer permanecer absolutamente seguro,  precisa dar ainda outro passo para baixo. Neste papel final, preocupando-se comtemas pelos quais ninguém se interessa, ele evita o risco de desaprovação e busca aaprovação social. No final, sua preocupação com a conveniência social triunfa [atémesmo] sobre a ambição social.

[Portanto], o comprometimento para com a verdade em assuntos políticos é perigoso o tempo todo, mas carrega consigo a promessa de triunfo último e perfeiçãoespiritual. O compromisso para com a sociedade tal como ela é pode ser perigoso nolongo prazo, mas traz consigo a promessa de recompensas sociais. E abrir mão de

qualquer comprometimento, seja para com a verdade, seja para com a sociedade, élivre de perigos, enquanto carrega consigo nenhuma outra recompensa além dessa

 própria segurança.30 

Ou seja, o cientista político traz em sua vocação um dilema moral perante aescolha entre dizer aquilo que vê como a verdade, e a aprovação social. Aalternativa à verdade se manifesta em formas diversas de escapismo dasrealidades da política, manifestadas principalmente de quatro maneiras: a) aatribuição à ciência de poderes exagerados na resolução de problemas políticos;

 poderes que, em sua visão, a ciência não possui; b) a justificação de um padrão

duplo de moralidade, que separa aquilo que é feito na política da ética que regeos outros domínios da vida humana; c) a crença na maleabilidade da naturezahumana, o perfeccionismo de se acreditar que o ser humano é maleável por meiode exortação e reforma educacional; e d) o oposto do perfeccionismo, que emsua visão é o próprio totalitarismo, a identificação da vida com a própriarealidade crua da disputa desenfreada por poder na política: é a rendição àglorificação do poder por si mesmo, sem a preocupação com outros valores.31 

Tais dilemas são inevitáveis para o cientista político. Ao buscar fazer sentido entre suas premissas filosóficas e teóricas, ele estabelece conexões

lógicas básicas que fazem do seu pensamento um todo sistematizado. Noentanto, a busca da verdade demanda e resulta em constatações valorativas sobrea desejabilidade de sistemas políticos, arranjos políticos, engenharias políticas ecursos de ação sobre questões específicas. Nessas manifestações e juízos devalor, o cientista político expõe o produto de suas fraquezas e virtudes;intelectuais e, principalmente, morais. Assim, os pensadores que viessem aaspirar a um ideal de integridade intelectual possuiriam, a seu ver, a obrigaçãode serem condizentes com suas premissas filosóficas e juízos de valor.

Essa é a difícil tarefa que Morgenthau se coloca. Contra o estado de coisas

30 Morgenthau (1958): 31-32. 31 Morgenthau (1958), Capítulo 12: “The escape from power”, 239-245. 

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delineado nas três críticas acima, ele se propõe a apresentar um pensamentoteórico sobre a política que, consciente da inevitabilidade de julgamentosvalorativos, 1) tenha lógica interna em relação às próprias premissas filosóficas

e consistência frente à realidade tal como ela é; 2) aponte a determinação darealidade humana por elementos irracionais e demonstre as limitações daciência; e 3) entenda a política em seus próprios termos, buscando apontar comoela se relaciona com a natureza humana e quais são as suas implicações para arealidade.

Começando pela caracterização de natureza humana, Morgenthau se propõe a entender o homem em suas fontes psicológicas. Ainda em sua primeiraobra, de 1929, ele afirma que a compreensão do caráter político norelacionamento entre os Estados se encontra “na psique” das partes; logo emseguida, em 1930, ele produz um texto (que permanece não-publicado)

 buscando explicar “As Origens do Político na Natureza Humana”; em 1932, eleclama por uma teoria do Estado “psicologicamente fundada”, em contraposiçãoà atitude intelectual de se evitar o contato tanto com a filosofia, quanto com a

 psicologia.32  No próximo capítulo, ofereço um resumo da visão desse pensador sobre a

natureza humana e a política. Como Morgenthau vê o homem? Qual é essaconstrução filosófico-teórica e psicológica, que busca compreender a realidadetal como ela é, dando conta de supostas “leis objetivas”, enraizadas na naturezahumana?

32 Morgenthau (1929): 57; (1930); (1932): 34. 

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 – CAPÍTULO 2 –  A VONTADE DE PODER E A REALIDADE DA 

POLÍTICA 

A luta por poder é universal em tempo e espaço,e é um fato inegável da experiência. 

 Morgenthau 1948: 33

Para Morgenthau, a discussão empírica sobre a realidade entre os homens,incluindo, portanto, a realidade política, é inevitavelmente engolfada peladiscussão filosófica sobre a natureza humana e pela observação psicológica docomportamento humano. Dentro da ciência política, sua observação talvez fossemenos óbvia se não fosse tão incomum: a defesa do fenômeno homem comosendo a grande variável independente (em termos metodológicos, aquela da qualtodas as outras dependem) para que se compreenda a realidade humana.

A discussão sobre natureza humana surge, como pudemos demonstrar nocapítulo anterior, como uma demanda central já nos primeiros escritos deMorgenthau no início da década de 30 e projeta-se em toda a sua carreira comofonte das principais críticas a outras correntes e modos de pensamento. Nomesmo período inicial, ele já desenvolve sua visão sobre a relação entre a

natureza humana e a política, que viria a encontrar uma aplicação teórica em Polítics Among Nations e em outros livros anos mais tarde: “forças sociais são o  produto da natureza humana em ação” (1948: 18). Se pudéssemos conhecer ohomem tal como ele é, teríamos então a chave para entender a realidade social.E a maneira como ele constrói a sua história.

Sua argumentação básica é bastante simples: se existe de fato umanatureza humana – e ele afirma que sim –, então o nosso comportamento éregido por certas leis objetivas passíveis de serem compreendidas por meio daobservação. Sob a diversidade de tipo e diferenças em intensidade dessas

manifestações em meio à realidade, residiria o fato de que elas remontam a umnúcleo duro, que as gera. Ou seja, a natureza humana se manifesta de diferentesformas, mas elas todas, independente de suas especificidades, são os mesmosfenômenos. Dentre esses fenômenos, aquele que salta aos olhos na concepção deMorgenthau, e é fundamental para a compreensão da política seria “a vontade de

 poder”.As bases de sua compreensão sobre o tema são sugeridas já em sua tese de

1929, e estão sistematicamente delineadas pela primeira vez em seus trabalhosde 1930 e 193333. No primeiro, são explicadas as fontes e a lógica própria da

33 A tese de 1929 trata da  Aplicação do Direito Internacional, sua Essência e seus Limites; um anodepois, Morgenthau busca explicar o surgimento do ‘político’ em Sobre a Origem do Político

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‘manifestação’ política na natureza humana; no segundo, são especificadas asmodalidades de sua manifestação. Neste capítulo, buscarei expor sua visão doinício da carreira, comparando-a com a maneira como ela foi utilizada décadas

mais tarde. Procurarei demonstrar como para ele o ‘político’ emana da naturezahumana, como ele se manifesta, e as conseqüências disso para a realidade.

Auto-Afirmação, Vontade de Poder

Bem ao estilo do dito machadiano de que ‘nada dói mais do que a verdade’,vimos no capítulo anterior que Morgenthau identificava nas posturasexageradamente cientificistas e legalistas uma forma generalizada de escapismoe acovardamento intelectual perante certas verdades ‘dolorosas’ da vida dohomem: “Os duros fatos da política”, o reconhecimento do ‘político’ na vida dassociedades como uma realidade perene e irremovível. Como ele mesmo viria adefender durante toda sua vida, o político está incondicionalmente ligado à

  própria natureza humana. Não como uma condição social , tal como expõeAristóteles em seu tratado “A Política”, mas sim como um fenômeno específico:“poder sobre outros homens”. As duas afirmações seguintes, colhidas emmomentos, entre si, bastante distantes de sua carreira, indicam precisamente oteor de sua discussão.

Em 1930:O político é um conceito social. Sua natureza, que surge na própria alma do homem,não está confinada interiormente ao domínio espiritual, assim como o ético ou o religioso, que por si sós podem se desenvolver na alma do homem isolado. O político

 precisa, necessariamente, para existir, que o seu portador busque alcançar para forado campo de sua alma isolada e associe-se a um objeto que resida fora dela. Este objeto é, necessariamente, a alma de outro homem.34 

Em 1972:Quando falamos em política, temos em mente uma força universal inerente à naturezahumana e necessariamente buscando poder sobre outros homens.  Embora essa força

 se manifeste em diferentes períodos da história de diferentes maneiras, ela encontra  sua expressão específica na competição pelo, e exercício do, poder supremo do Estado. Da mesma forma como a política nesse sentido específico nada mais é que

na Natureza do Homem, que permaneceu sem publicação. Em 1933, as idéias de 1929 sãoteoricamente refinadas em A Noção do Político e a Teoria dos Litígios Internacionais. 

34 Morgenthau (1930): 2. Grifos meus. Em sua versão original: “Das Politische ist eingesellschaftlicher Begriff. Sein Wesen, das in der Seele des Menschen zwar seinen Ursprunghat, ist nicht auf den Bereich des Innerseelischen beschränkt, so wie etwa das Ethische oder das Religiöse auch in der isolierten Seele des Individuums allein ihr Wesen entfalten können;  ja das Politische bedarf, um überhaupt als solches existent zu sein, seinem begrifflichen

Wesen nach des Hinausgreifens aus dem Bezirk des isolierten Seelischen und der Anknüpfungan einen Gegenstand, der ausserhalb der Seele seines Trägers liegt und der, ebenfalls mit begrifflicher Notwendigkeit, die Seele eines anderen Menschen ist.” 

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uma manifestação especial da vontade do homem de ter poder sobre outros homens,também essa vontade não passa de uma manifestação especial da vontade humana de

 poder que se expressa também em esferas não-políticas, isto é, esferas onde os objetosnão são humanos, mas, sim, outros objetos animados e inanimados.

 Assim, o acadêmico que busca conhecimento busca, na verdade, poder; assimtambém o poeta que procura expressar os seus pensamentos e sentimentos em

 palavras. E assim também aquele que escala montanhas, o caçador, e o colecionador de objetos raros. Todos eles procuram afirmar-se como indivíduos em contraposiçãoao mundo, na tentativa de dominá-lo. E é somente quando eles escolhem como seuobjeto outros homens que eles entram na esfera política.35 

A citação de 1930 é extraída do único manuscrito produzido por Morgenthau emtoda sua vida, onde ele busca descrever de maneira sistemática, ao longo demais de 100 páginas não publicadas, “A Origem do Político na Natureza doHomem”.36 

  Nele, Morgenthau trabalha com um reducionismo filosófico-psicológicoque descreve o ser humano como uma criatura movida por duas pulsões básicas,causas últimas de suas motivações e objetivos: a   pulsão de autopreservação (Selbsterhaltungstrieb) e a   pulsão de auto-afirmação (Bewährungstrieb)37. A

  primeira se manifesta em todas as necessidades básicas relacionadas àalimentação, proteção e defesa da própria existência. A segunda, cada vez que oser humano, como uma criatura que se encontra consciente de sua existência,sente a necessidade de se comprovar e de se afirmar perante o mundo e todas asoutras criaturas e objetos. Enquanto que a pulsão de autopreservação é uma

característica comum a todos os seres viventes, responsável pela manutenção davida, desde as amebas ou outras criaturas primitivas, e comum aos outros seresna natureza e ao homem, a pulsão de auto-afirmação, por sua vez, é acaracterística por excelência do último, presente em um estado ‘mais

35 Morgenthau (1972): 31. Grifos meus. A penúltima frase, no original: “They all seek to assertthemselves as individuals against the world by mastering it.” 

36 Morgenthau (1930), “Über die Herkunft des Politischen aus dem Wesen des Menschen”. Osnúmeros a seguir entre parênteses se referem ao número das páginas no manuscrito. 

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O termo alemão Trieb possui na sua tradução acepções diferentes e polêmicas, podendo adquirir ossignificados de termos tão díspares quanto “instinto” (em uma conotação biologista),“impulso” e, na linguagem amplamente disseminada na psicanálise, que utilizamos nestetrabalho, “pulsão”. De acordo com a discussão interna à psicanálise, a interpretação do próprioSigmund Freud é controversa, uma vez que ele também se utiliza da palavra com significadosdiferentes. Ainda assim, o sentido geral do uso do termo é o de “grandes forçasimpulsionadoras”, das quais o ser humano não consegue escapar, e que lhe causam umadolorosa pressão interior, urgindo por satisfação. A tradução para o inglês oscila normalmenteentre “instinct” e “drive” e, para o francês e espanhol, “pulsion” e “instinct” (pulsión yinstinto). Ver Hanns, Luiz (1996), 338-354.

Para Morgenthau, as duas pulsões são vistas como   forças básicas que representam a realidade da própria vida e atuam sobre a motivação e objetivação humana, sendo que ele, como veremos

adiante, prefere adotar uma tradução própria do alemão para o inglês. A pulsão deautopreservação se torna, em suas palavras, “Egoísmo”: Selfishness; e a pulsão de auto-afirmação é traduzida simplesmente como “Vontade de Poder”: Will to Power . 

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desenvolvido’ de vida.As duas pulsões interagem continuamente no homem, buscando servir-se

de suas forças e, de acordo com a situação externa na qual ele se encontra,

constituindo diferentes formas de equilíbrio entre si. O mundo exterior, noentanto, vive destruindo os equilíbrios existentes na luta dos dois impulsos pelasforças do indivíduo, e por isso este equilíbrio é sempre provisório. O exemplodo homem selvagem, sozinho na floresta, sem sociedade, em meio aos perigosda natureza, certamente privilegiaria a pulsão de autopreservação em detrimentoda pulsão de auto-afirmação. Já na sociedade moderna, onde muitas ameaças àexistência do homem são em boa parte minoradas pelos avanços gerais daciência e da técnica e pelas conquistas da organização social, a pulsão deautopreservação tende a ceder espaço e tornar-se latente (ela não desaparece, noentanto: somente aguarda as condições necessárias para que se manifeste: por exemplo, as necessidades básicas e o senso de perigo – 80).

O princípio que move ambas pulsões é o mesmo, ainda que sua função  para cada uma delas seja completamente diferente. É o  Princípio do Prazer  (“Lustprinzip”). Toda a preocupação de Morgenthau, tanto neste manuscritoquanto no decorrer de sua vida, remete-se à pulsão de auto-afirmação, que ele,em momentos posteriores, chama de ‘vontade de poder’. A causa disso já estáexplícita em 1930: a maneira pela qual as duas pulsões são satisfeitas édiferente. A pulsão de autopreservação é passível de ser atendida em meio à

  própria natureza, de acordo com as necessidades de cada ser. Assim, a sua

satisfação obedece a uma medida estabelecida de maneira natural: se o ser sentefome, se alimenta; se ele se sente desprotegido, busca abrigo; para o homem,como para os outros animais, é possível que suas necessidades deautopreservação sejam realmente satisfeitas: comida, segurança, proteção.Assim, o princípio do prazer possui neste caso uma função meramenteregulativa, evitando o desprazer da fome, do não-respirar, da sensação deameaça à própria existência. E a escolha dos objetos para a satisfação é feita por meio de leis naturalmente dadas e atendem necessariamente a proporçõesfornecidas pela natureza ao ser vivo. Comida, em determinada quantidade,

acima da qual o organismo não suporta; calor para resolver o problema do frio, eem determinada medida, acima da qual o princípio do prazer se encontraameaçado pela real possibilidade de desprazer; um abrigo para satisfazer anecessidade de proteção de um indivíduo, uma vez que ele não pode estar aomesmo tempo em dois ou mais lugares.

Por outro lado, a satisfação da pulsão de auto-afirmação, característica dohomem, não encontra parâmetros naturalmente estabelecidos e possui comoúnica referência o seu próprio portador, perante o universo (59). Assim,contrapondo-se à imensidão do mundo, o homem somente encontraria a

satisfação de sua pulsão de auto-afirmação, em teoria, quando ele se afirmasse  perante o próprio mundo de forma absoluta. Quaisquer que sejam as

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manifestações e níveis de intensidade em que essa pulsão se manifesta, elanunca seria satisfeita e buscaria contrapor-se e afirmar-se sempre a mais e maisobjetos. Nesse processo, a satisfação da pulsão de auto-afirmação procura se

apoderar de objetos de todos os tipos, animados e inanimados, humanos e nãohumanos, de diferentes maneiras em diferentes ambientes.A pulsão de auto-afirmação impele o seu portador a ‘tornar a sensação de

estar vivo’ (“Bewusstmachung des eigenen Lebens”) o mais intensa possível(23), na medida em que, ao buscar mais e mais perante o mundo e os outrosseres, ele percebe-se vivo e afirma-se capaz para si mesmo. Trazendo aobservação da pulsão de auto-afirmação para a vida real, Morgenthau ilustra suaconstrução com os exemplos históricos mais famosos, no espírito conquistador de Napoleão e Alexandre; já na literatura, cita ainda Dom Juan na conquistasexual e Fausto na busca do conhecimento (70-71). Impelidos por essa força,que é nos casos acima mais forte que suas capacidades racionais, todos essesexemplos personificam a ação de avançar de um objeto de conquista para outroe outro, num movimento indefinido de busca de satisfação, que é eterno enecessita ser atendido com intensidade cada vez maior (16). No processo deauto-afirmação, o homem aspira a tornar-se senhor do universo, sempreinsatisfeito, buscando impor-lhe sua vontade e submetê-lo ao seu controle. Cadavez que sua vontade prevalece, a sua necessidade de prazer é atendida. Cada vezque ela é derrotada, ele sofre. Surge então o termo ‘poder’ como a capacidadede impor a própria vontade, e fazê-la prevalecer , independentemente de qual

seja essa vontade.38 O elemento importante é a afirmação da sensação de estar vivo, de poder fazer coisas e gerar efeitos (Freude am Können), a manifestaçãoespecífica do sentimento de prazer que surge na satisfação da pulsão de auto-afirmação (24). Quando o homem ‘derruba uma árvore, mata ou prende umanimal, cria uma ferramenta, ele tem a sensação imediata de auto-afirmação

 perante o mundo exterior (24-26)’. Vontade de poder é, portanto, a força que nosmoveria a buscar controlar o mundo ao redor, afirmando-nos cada vez mais

 perante ele.Encontrando algum obstáculo que nos impeça efetivamente de alcançar a

satisfação da pulsão de auto-afirmação, restar-nos-iam ainda algumasalternativas. A primeira é tentar de alguma forma fortalecer o impulso, buscandoforças interiores até então desconhecidas para lutar pelo seu objeto. A segunda éa desistência do objeto e a diminuição da aspiração (a fábula da raposa e dasuvas parece ser um bom exemplo dessa atitude de se evitar o desprazer por meioda desistência do objeto). E a terceira forma de se enfrentar o impedimento é por 

38 Curiosamente, a palavra ‘poder’ para Morgenthau, não tem o significado de sua acepção alemã, Macht (análoga ao verbo ‘machen’,  fazer ), mas sim à sua acepção latina, como entendida no próprio português: “ poder fazer”. Em suas próprias palavras: “todas as vezes que o homem

 busca mostrar ‘o que ele pode’ (“was er kann”), quando ele busca dar-se conta da dimensão desuas forças; neste momento está atuando o fenômeno que denominamos busca da auto-afirmação” (6).

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meio da sublimação: a transferência ou canalização do impulso para outro nível,geralmente mais elevado, por exemplo o nível das idéias e do desenvolvimentodas faculdades mentais, ou transformando-o em aspirações espirituais. Assim, a

canalização do impulso naquele que é fisicamente fraco permite que ele busquea sua satisfação em um outro nível da interação humana. E assim argumentaMorgenthau que, em meio à complexidade das relações humanas, é possívelobservar o mesmo fenômeno geral se manifestando em diversos níveis, dediversas formas.

  Nesse princípio básico, atuante de forma geral sobre a motivação eobjetivação humana, Morgenthau diferencia o  político do não-político, comoduas formas distintas de manifestação da mesma pulsão de auto-afirmação (23-25): a vontade de alcançar para fora do eu e buscar satisfazer-se em todo tipo deobjeto. É  política, quando o homem, por ela movido, busca impor sua vontadesobre a vontade de outros homens; e não-política quando ele, movido pelamesma pulsão, busca impor sua vontade sobre outros objetos.39 Em ambos oscasos, o fenômeno que se observa como resultado final da interação entrehomem e objeto (seja ele outro homem ou não) é a dominação, relacionada à“força que motiva o homem em relação a outro ser, principalmente outroshomens” e que caracteriza a “situação (Zustand) em que o homem, seja emfunção de sua força corporal, mental, ou ambas combinadas, é capaz de gerar efeitos psicológicos e também, em função de suas conseqüências, físicos, isto é,mudanças sobre outros [objetos e] homens” (35).

 Na manifestação política da pulsão de auto-afirmação, o objetivo é sempreo mesmo: “guiar o aparato motivacional [do outro ser humano] na direçãodesejada” (42: “den Motivationsapparat (...) in die gewünschte Richtung zulenken”). Portanto, a dominação é um fenômeno psicológico da interação entrediferentes vontades, ainda que em seus meios ele possa ser físico. Dessa forma,compreende-se então quando Morgenthau fala, em 1933, que a palavra ‘político’

  pode assumir diversas conotações: “pode-se falar, por exemplo, na política deuma cidade, na de um cartel, de uma associação; de fato, mesmo da política deum indivíduo, como por exemplo sua política a respeito de seus colegas ou

clientes, de um homem em sua profissão, daquela de um devedor em relação aosseus credores, de uma esposa a respeito de seu marido ou de um povo a respeitode seus habitantes”40. Ou seja, a ‘interação política’ (isto é, o confronto entre

39 Neste momento é possível vislumbrar a primeira manifestação filosófica, ainda rudimentar, da Balança de Poder , uma construção teórica que Morgenthau considera ser uma das leis básicasque governam a realidade humana. Pois uma vez que o primeiro homem da terra, movido por sua pulsão de auto-afirmação, encontra em seu caminho um segundo homem, portador damesma natureza e, portanto, aspirando também à totalidade do mundo, eles são obrigados, emconseqüência disso, a lidar com essa colisão de aspirações de alguma maneira. A questão da

 balança de poder é mais bem desenvolvida no próximo capítulo, “Limitações Reais, Sociais eMorais à Vontade de Poder”. 40 Morgenthau (1933): 42. 

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diferentes vontades de se afirmar e a tentativa de um indivíduo submeter avontade de outro à sua própria) e a dominação que dela resulta são, dessa forma,fatos corriqueiros da vida em sociedade. Novamente, torna-se claro entender sua

concepção de poder, por exemplo tal como delineada em 1948, especificamentea propósito da política:

Poder   pode incluir tudo o que estabelece e mantém o controle de um homem por outro. Portanto, poder cobre todos os relacionamentos sociais que servem a esse fim,desde a violência física até os laços psicológicos mais sutis pelos quais uma mentecontrola outra.

(1948: 9, grifos meus)

A separação entre as pulsões de autopreservação e auto-afirmação permaneceintacta no início da carreira de Morgenthau nos EUA em Scientific Man versus  Power Politics, de 1946. A utilização dos termos, no entanto, apresenta umadiferença. Ao contrário das traduções inglesas normalmente utilizadas para otermo ‘pulsões’ (instincts ou drives), Morgenthau prefere valer-se dos termos“egoísmo” ( selfishness) para a pulsão de autopreservação, e “vontade de poder”(will to power , lust for power ) para a pulsão de auto-afirmação. Ascaracterísticas permanecem as mesmas:

Os objetivos típicos do egoísmo, tais como comida, abrigo e segurança; e os meios pelos quais eles são obtidos, como o dinheiro, empregos, casamento e semelhantes,  possuem uma relação objetiva com as necessidades vitais do indivíduo; a suaobtenção oferece as melhores chances para a sobrevivência sob as circunstâncias

 sociais particulares nas quais ele vive.O desejo de poder, por outro lado, não está ligado à sobrevivência do

indivíduo, mas sim com a sua colocação entre os seus semelhantes, uma vez que a  sobrevivência já foi assegurada. Consequentemente, o egoísmo possui limites; avontade de poder, não. Pois enquanto as necessidades vitais do homem são passíveisde satisfação, o seu desejo de poder somente seria satisfeito se o último de todos oshomens viesse a se tornar objeto de sua dominação, não restando, assim, pessoaalguma ao seu lado ou acima. Ou seja, como se ele se tornasse um deus. (1946: 193-194)

Dessa forma são, portanto, descritos os ‘realistas’ da política: aqueles que sãocapazes de entender a política como uma interminável “luta por sobrevivência – e – poder” (pg. 42, grifo meu). No rol de seus mais notórios representantes, sãocitados, dentre outros, Tucídides, Richelieu, Maquiavel, Hamilton e Disraeli.

A pulsão de autopreservação, traduzida em 1946 como ‘egoísmo’, deixade ser mencionada na primeira edição de Politics Among Nations em 1948.Ainda neste livro, Morgenthau coloca sua discussão em um ponto em termos de“impulsos (drives) biopsicológicos elementares, pelos quais a sociedade écriada. Os impulsos para viver, propagar e dominar [,que] são comuns a todos os

homens (pg. 33)” Mas deste momento em diante, a referência a um quadro deidéias psicanalítico é abandonada, ao ponto de chegar o autor a escrever, em

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seus últimos anos de vida, sobre o seu ceticismo pessoal à respeito da possibilidade de se entender a política por meio da psicanálise41.

  No entanto, a temática central de toda a preocupação de Morgenthau

continua sendo, até o fim de sua vida, o problema da vontade de poder. Elacontinua sendo a principal construção filosófica a respeito da natureza humana,onde ele identifica “a força-motriz da política internacional” (1948: 400). Aomesmo tempo, o poder político, bem como definido da maneira acima descrita,segue sendo o ponto central de toda a sua obra, a ponto de afirmar ser ele

 justamente o conceito característico, o marco fundador de toda a ciência política,definindo, ao mesmo tempo, o seu objeto de estudo e a sua preocupação (1948:cap. 3).

 As Três Formas de Auto-Afirmação

  No realismo político, a observação de tais ‘leis objetivas’ conduz aoreconhecimento de que as mesmas forças humanas se manifestam em grausdiferenciados de intensidade em diferentes contextos. Na observação de fatoscorriqueiros da realidade cotidiana, Morgenthau observa a manifestação dosmesmos fenômenos vistos como determinantes no âmbito da política. Como ohomem é uma criatura movida pela mesma natureza, independentemente doâmbito de sua ação, é possível em seu caso identificar as já mencionadas ‘leis’

objetivas da realidade humana em qualquer domínio da ação/interação humana.Independente de estar agindo política ou economicamente, ou em qualquer outraesfera de ação, seria preciso entender que o homem continua sempre o mesmo,sujeito às mesmas vontades, sentimentos e reações, em qualquer tempo.

Em seu trabalho de 1933, Morgenthau mantém as mesmas premissasrelacionadas ao princípio do prazer como elemento central da ação política:

  poder é um fator psicológico na base da ação política entre os Estados, assimcomo de outros fatos sociológicos: “a fim de afirmar” e de “renovar” asatisfação que ele traz (pg. 42/43). Três anos após a caracterização do ‘político’,

ele se dá ao trabalho de reconhecer as formas de manifestação da pulsão de auto- 41 Em seu  Fragmento de Autobiografia (1976), Morgenthau escreve: “após preparar a publicação de

minha tese de doutorado em 1929, voltei minha atenção para o desenvolvimento de uma teoria política que provesse os fundamentos gerais para as relações específicas entre a política e odireito, descobertas durante minha tese. Busquei esses fundamentos na antropologia e na psicologia, e estava particularmente atraído pela psicanálise (...) eu não tinha dúvidas de queFreud, assim como Marx, tinha aberto todo um novo mundo à compreensão humana, e por umano experimentei trabalhar com conceitos e insights freudianos. O resultado foi um manuscritoque sequer tentei publicar, tanto então quanto agora, tão certo estava eu do fracasso desseempreendimento. O que vence uma teoria psicoanalítica da política é aquilo que venceu uma

teoria marxista da política: a impossibilidade de se explicar complexidades e variedades daexperiência política com o simplismo de uma teoria reducionista, seja ela econômica ou psicológica.” 

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afirmação, adicionando novos elementos à sua primeira formulação de 1930.  Nesta adição de elementos ao quadro teórico, a pulsão de auto-afirmação, jáneste texto denominada “vontade de poder” (‘volonté de puissance’) pode se

apresentar de três formas: “ela pode visar a manter o poder adquirido, aaumentá-lo ou a manifestá-lo” 42.

Por mais incomum que tenha sido a idéia, e por mais inconvencional que tenhasido a utilização de tal vocabulário na Europa do início da década de 30, é

 justamente com base nessa interação entre pulsões básicas da vida humana queMorgenthau justifica as suas considerações a respeito da realidade entre osEstados e o direito internacional de então (e a partir de então). As suasconstruções teóricas, continuamente expressas nas obras publicadas, bem comonão-publicadas, baseiam-se essencialmente nessa visão, teoricamentetranspostas para os diversos níveis sociais: por via de conseqüência, para a

 política e, analogamente, para a política internacional. Já em 1933, analisando a política e o direito internacional, ele afirma:

Toda política externa nada mais é que vontade de manter, de aumentar ou de afirmar  seu poder, e as três manifestações da vontade política se traduzem aqui pelas formas

42 Christoph Frei (1994:137) nos chama a atenção, e com muita propriedade, para o fato de que alistagem das diferentes formas de aparição do ‘político’ em Morgenthau é bastante semelhanteàquela delineada por Max Weber em A Política como Vocação:

“Isso se relaciona essencialmente ao uso corrente na linguagem. Quando se diz de umaquestão: ‘esta é uma questão política’ ..., então significamos sempre: interesses nadivisão do poder, interesses na preservação do poder ou interesses nodeslocamento do poder são determinantes. ... Quem pratica política, aspira a poder:seja poder como meio a serviço de outros objetivos ..., seja poder ‘por si próprio’: afim de se desfrutar o sentimento de prestígio que ele proporciona” (do texto deWeber, negrito adicionado por Frei).

A biografia intelectual traz, inclusive, o indício da admissão de Morgenthau, já quase no fim de suavida em 1976, de que na tipologia de sua construção teórica fora influenciado mais

decisivamente por Weber: “eu arriscaria o palpite de que Max Weber me influenciou maisfortemente” (pg. 137). A proximidade intelectual entre Morgenthau e Weber é mencionada emdiversas passagens do livro de Frei. A diferença é que, no caso do primeiro, o trinômioaumentar-manter-manifestar possui uma ligação lógica com a sua visão de homem acimadescrita, enquanto que no caso do segundo, ela surge no ensaio sem maiores explicações sobresua origem e considerações sobre a natureza humana. “O pensamento político de MaxWeber”, afirma Morgenthau, “possuía todas as qualidades intelectuais e morais que eu havia buscado em vão na literatura contemporânea dentro e fora das universidades” (Frei, pg. 113).

Entretanto, não devem restar dúvidas de que a descoberta do vínculo e das discordâncias entreMorgenthau e Nietzsche é a maior de todas as contribuições feitas pela  Intellektuelle

 Biographie. De fato (principalmente nos capítulos 5 e 6, “Sobre o surgimento de uma perspectiva” e “Em busca da realidade”), trata-se de uma obra que deveria ser lida por todos

aqueles que se interessam por Nietzsche, uma vez que no pensamento de Morgenthau  podemos observar a sua construção da vontade de poder transformando-se em uma preocupação explícita no âmbito da vida social e política. 

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empíricas fundamentais da política de status quo, da política imperialista e da política de prestígio

(1933: 61)43.

E a essa denominação se prende Morgenthau durante toda a sua carreira, sendo  prova disso sua principal obra, Politics Among Nations, continuamente publicada com a tradução quase literal das mesmas palavras:

  A política doméstica e a internacional nada mais são que duas manifestaçõesdiferentes do mesmo fenômeno: a luta por poder (...). Toda política, doméstica einternacional, revela três regularidades básicas; isto é, todos os fenômenos políticos

 são redutíveis a um de três tipos básicos. Uma ação política (political policy) busca  sempre manter poder, aumentar poder, ou demonstrar poder. A esses três padrõestípicos da política correspondem três ações políticas (policies) típicas. (...) status quo(...) imperialismo (...) prestígio (1948: 38-39)44 

Sua argumentação é bastante simples. O jogo da política é um símile da vidasocial em geral, com toda a sua irracionalidade, as suas disputas e conflitos devaidade e poder. Sendo o homem portador de necessidades que se manifestamnas mais diferentes esferas de sua ação, é natural que ele se comporte da mesmamaneira estando em posições políticas no jogo de interesses nacional einternacional, e é natural que essas pulsões se manifestem em meio à dinâmicade qualquer forma de organização humana, estatal ou não. O que potencializa oconflito entre diferentes vontades de poder, inicialmente presente de maneira

teórica no conflito entre o primeiro e o segundo homem sobre a terra, ao setransferi-lo para o conflito entre diferentes coletividades, que o materializam, nocaso extremo, na forma da guerra, é justamente o surgimento de identificações,marcos, que gerem em diferentes indivíduos numa sociedade uma identificação,um senso de ‘pertencimento’45; capazes de fomentar lealdades (allegiances)

  primárias, esses marcos de identificação se manifestam, na vida real dassociedades, nas escolhas valorativas que movem a ação política de seuscomponentes46.

43

Grifos meus. Também citado em Frei (1994): 137. 44 Smith (1984: 142) interpreta a tríade manter-aumentar-demonstrar como se fosse possível reduzí-laa um dueto: manter e aumentar , escudados pela demonstração. Vejo essa interpretação comoinadequada, uma vez que a tríade surge da concepção original de Morgenthau em um nívelfilosófico. Antes da aplicação teórica em   Polítics Among Nations, as três formas demanifestação do político são também tratadas no âmbito filosófico em Scientific Man (1946:192). 

45 Esse ‘sense of belongingness’ como sendo um marco crucial para se entender a dinâmica dorelacionamento político entre diferentes sociedades é também mencionado por Max Weber emseu ensaio “A Alemanha entre as Potências Européias”. Morgenthau se preocupa com o papeldas ideologias em potencializar essas identificações, uma vez que elas dariam a umacoletividade uma ‘desculpa’ para se manifestar agressivamente em relação a outras.

46

A questão das lealdades primárias é importante para se entender o inevitável choque entre diferentesvalores no dia a dia da política internacional. Choques como nacionalismo versus paz: até que ponto um indivíduo é fiel à sua crença no ideal da paz entre os homens em comparação à sua

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Essa transposição do nível filosófico e individual para o âmbito da políticainternacional entre Estados já acontece em seu primeiro trabalho em 1929, sendono entanto mais bem desenvolvida em obras posteriores. As questões por ele

definidas como políticas no relacionamento interestatal são aquelas que serelacionam com a “individualidade dos Estados”, à “sua preservação eafirmação dentro da comunidade de Estados”47. Sendo o político aquele caráter,aquela coloração mencionada no capítulo anterior, Morgenthau argumenta que éimpossível saber seu grau de intensidade com certeza por meio de mediçãocientífica, um julgamento necessariamente qualitativo, que parte para a análisedas circunstâncias do momento.48 

O Problema Central da Vontade de Poder 

Atuando por trás das motivações do homem, a pulsão de auto-afirmação, avontade de poder, é vista por Morgenthau como um potencial problema para aordem social, a causa certa de conflitos na sociedade e motivo provável decatástrofes no curso da história. Pois a pulsão em si, expressão cega de vida, éalheia a qualquer forma de moralidade e moderação, e, a não ser quecontrabalançada de alguma forma, manifesta-se desenfreadamente na vidasocial, tendendo a só aumentar. Como não obedece a princípio algum além damaximização do prazer, ela poderá surgir de forma violenta onde quer que seja

deixada sem controle, sem um check, entregue unicamente à sua própria lógicainterna.

Ela tende a só aumentar porque o objeto de satisfação em um momento

fidelidade à pátria, face a uma escolha que envolva a possibilidade de guerra pela defesa dointeresse nacional? Nesse sentido, ver Morgenthau (1948), principalmente os capítulos 7, 15,16 e 20. 

47 Morgenthau (1929): 59, 60 e 69, grifos meus. 48 Uma vez mais, percebemos aqui que a análise da política para Morgenthau está necessariamente

associada a uma visão pessoal sobre os próprios limites da ciência. Quanto à idéia de ‘grau de

intensidade’, já em (1929), pg. 70 (grifos meus): “A característica desse conceito do políticoreside, portanto, unicamente em uma coloração especialmente forte, em uma determinadanuance (...); o político é uma propriedade (Eigenschaft), que pode se apoderar de uma matériaem maior ou menor grau, como a qualidade do calor nos corpos; tão pouco quanto se possadizer de um corpo, que ele estaria relativamente quente em relação a um outro corpo, pode-setambém atribuir a uma matéria da vida interestatal. Em ambos casos, trata-se sempre do  graude intensidade, que varia de acordo com a mudança das circunstâncias que lhe condicionam.Existe somente uma diferença: é possível determinar o grau de calor de um corpoobjetivamente com a ajuda de uma coluna de mercúrio e uma régua. No entanto, tal critério demensuração objetiva inexiste no domínio do político.” A idéia do grau de intensidade é justamente o marco por meio do qual é possível ver a política como um domínio separado daação humana: pois nela, a luta por poder (que ocorre em todas as esferas de ação) alcança um

grau exageradamente maior de intensidade, fazendo com que a luta chegue mesmo a se tornar a própria razão de ser dessa esfera. O mesmo grau de intensidade exageradamente elevado permite que se identifique ‘poder’ como o conceito característico dessa esfera. 

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será provavelmente um meio na satisfação da busca de outro objeto no momentoseguinte. Sendo assim, na busca de amanhã, o indivíduo estará mais forte a

 partir dos meios que conquistou hoje, e certamente buscará um objeto que seja

maior e mais intenso na satisfação de seu impulso. Mais, mais, sempre mais.O momento dessa constatação é o ponto em que o realismo deMorgenthau se descola de um de seus mais comuns mal-entendidos: a crítica deque ele seria uma apologia pura e simples da vontade de poder. Talincompreensão interpreta a realidade de maneira errada, ao identificar a vontadede poder, em meio às pulsões básicas, como sendo a única característica danatureza humana digna de nota; o que levaria o leitor a concluir que ela é a únicaface relevante da natureza humana.

Mal perceberam esses críticos que o realismo político é na verdade a  própria preocupação com os eventuais efeitos da vontade de poder, quandodeixada ao seu bel-prazer. Assim, temos aqui nada menos que o mesmo objetode Tucídides, de Burke e dos Federalistas: a reflexão sobre o que poderia ser contraposto a certas manifestações nocivas de vida, de maneira a evitar que elasse apoderem da realidade e com isso destruam o equilíbrio, gerando tirania.Ademais, Morgenthau considera a vontade de poder como apenas uma dascomponentes da natureza humana. Nesse sentido, parece-me lícito argumentar que se há uma pergunta que move o seu pensamento teórico, permeando toda asua preocupação com a política, essa pergunta certamente será algo muito

 parecido com “considerando que a vontade de poder é uma realidade indiferente

às nossas preferências, como lidar com ela de maneira a minimizar os seusefeitos nocivos?”. A proposta teórica, atenta à premissa de que uma tal forçaexiste de fato, e considerando-a em toda a seriedade como um perigo históricoreal para além do contexto e das auto-imagens de uma sociedade, é investigar aquilo que faz com que elas atinjam seus extremos mais brutais, a fim de evitar que isso aconteça.

Do ponto de vista da tensão entre poder e moral, a resposta para essequestionamento surge já tão cedo quanto 1930. Se o homem fosse uma criaturasomente sujeita à sua vontade de poder, ele seria totalmente inepto à vida em

sociedade e levaria sua vida como um bárbaro sem tribo, em constante lutacontra tudo e contra todos aqueles que cruzassem seu caminho. Ela é a sua

 perigosa inclinação asocial.Mas, ao contrário do que uma leitura apressada do realismo político

 poderia sugerir, o homem não é só vontade de poder.

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 – CAPÍTULO 3 – LIMITAÇÕES REAIS, SOCIAIS E MORAIS À VONTADE

DE PODER  

O homem é um animal político por natureza; (...) e eleé um moralista porque ele é um homem.

 Morgenthau 1946: 168

As questões retóricas de Morgenthau espelham osseus próprios postulados: o homem jamais poderáfugir de sua natureza – e ainda assim necessita fazer da “humanização” da satisfação de suas pulsões umatarefa.  Frei 1994: 175

  Na identificação de forças básicas que movem a motivação humana,Morgenthau argumenta estar a fonte para a compreensão da realidade social, e,

 portanto, dos problemas sociais, como a violência e a guerra. Abaixo estão trêsexcertos de sua obra que exemplificam essa tese de forma clara.

Em 1930(a), ao condenar a glorificação da guerra

  Ao mesmo tempo em que a história ensina que sempre houve guerra, também nãoensina ela que aquela necessidade interior (‘seelische Not’), que busca a sua

  satisfação na guerra, encontra outros meios de se satisfazer no decorrer dodesenvolvimento da civilização humana? A história da humanidade é ao mesmotempo a história da humanização, da socialização da necessidade humana de

 satisfação, da sublimação dos instintos originalmente animalescos. (1930a: 33)

De 1948 em diante, citando outros autores:

  A filosofia moderna do desarmamento parte da premissa de que os homens lutam porque eles possuem armas. Dessa premissa segue a conclusão lógica de que se oshomens desistissem de ter armas, a luta entre eles se tornaria impossível. (1948: 407)

E expondo, em contraposição, uma visão própria de causalidade:

Os homens não lutam porque eles possuem armas. Eles possuem armas porque julgam necessário lutar. Tire as armas de suas mãos, e eles continuarão lutando comos próprios punhos ou darão um jeito de encontrar novas armas para lutar. O que

 provoca a guerra são condições nas mentes dos homens que fazem a guerra parecer omenor de dois males. Nessas condições, o que deve ser procurado é a doença da qual o desejo por, e a posse de, armas, é apenas um sintoma.

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(1948: 408, grifos meus)

Assim, temos uma noção de onde se situa Morgenthau em meio à discussãosobre a temática da guerra e quais seriam, a seu ver, as causas primárias (rootcauses) do fenômeno. Essas causas não residem em dados palpáveis eobjetivamente mensuráveis, como a quantidade e qualidade de armas. Mas sim,dentro do próprio homem, quando sua vontade de poder logra projetar-secruamente na dominação de objetos, atendendo ao princípio do prazer. As

  pulsões, que são sempre as mesmas e apenas operam em circunstânciasdiferentes, ‘urgem por serem liberadas’ (‘drängen zur Entladung’ – 1930a: 31),cabendo a outras realidades humanas limitar as suas opções de satisfação (1930:95).

Essa possibilidade de limitação ocorre, portanto, quando a pulsão de auto-

afirmação é contrabalançada por outras realidades. Vejamos agora quais são, aseu ver, as possíveis limitações à vontade de poder.

A Balança de Poder

Ainda que fôssemos criaturas compostas somente por vontade de poder, àsemelhança do bárbaro “solitário, pobre, perverso, embrutecido, finito” deHobbes, não estaríamos sozinhos no mundo. A presença de outros homens,

grupos e sociedades com as mesmas aspirações de serem absolutos obrigaria uma aprender a conviver com os outros, cada um na medida de suas forças. Essaconvivência gera uma forma de equilíbrio dinâmico, que é perturbado na medidaem que a discrepância entre as forças das partes é alterada. Este é, no planofilosófico, o princípio da balança de poder. Ele permite, em primeiro lugar que oindivíduo isolado venha a se tornar um ser social.

A própria sociedade em si já é um freio a cada homem. A socializaçãodemanda que o ser abra mão das aspirações geradas por sua vontade de poder,limitando, portanto, já em grande medida as suas expectativas de dominação

(1930: 83-91).Assim, quando Morgenthau afirma que a balança de poder é umarealidade inevitável da vida entre os Estados, ele está apenas aplicando um

  princípio filosófico extraído de sua concepção sobre natureza humana àrealidade estatal. O mesmo princípio que ele identifica dentro de sociedades

 pluralistas como um sistema de pesos e contrapesos (checks and balances). Um  princípio que ele clama ser universal, naturalmente encontrado em qualquer âmbito da sociedade, onde quer que homens ou coletividades se encontrem. Pois“o desejo de alcançar o máximo de poder é universal” (1948: 210). E esse desejo

representa, para Morgenthau, um perigo real de destruição para as outras partes.À constatação de que no encontro entre dois homens no estado primitivo,

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  prevalece sempre o mais forte, segue-se em sua formulação teórica uma real  preocupação: descendo aos mesmos princípios básicos da própria vida,Morgenthau identifica que dentro de um sistema, sem um equilíbrio de forças,

um membro tenderá a crescer, englobar os outros e, “em último caso, destruí-los” (and may ultimately destroy them – 1948: 169). Portanto, a busca de umequilíbrio de forças atende a uma dupla tarefa em qualquer sistema: não somenteà manutenção da estabilidade do todo, mas, ao mesmo tempo a garantir aexistência de cada um dos seus componentes. (1930: 83 e 1948: 169).

Que as nações busquem poder mais no âmbito internacional é para eleuma premissa, assim como no comportamento entre os homens: seria impossível

 pensar em um outro tipo de política que não fosse uma luta por poder (‘power  politics’ – 1948:167). Nesse contexto, “A Balança de Poder e as ações políticas(policies) direcionadas à sua preservação no âmbito internacional não são apenasinevitáveis, mas são também um fator essencial de estabilidade” (1948:169),uma vez que elas são nesse caso, assim como em todos os outros, “umamanifestação de um princípio social geral” (1948: 167 e 170 – rodapé), “tãovelho quanto a própria história política”(1948:187).

Estando a necessidade de auto-afirmação na base do princípio do prazer, afunção de se limitá-la, exercida em primeiro lugar pela balança de poder, obtémsucesso com base na possibilidade do desprazer (do medo do desprazer). Aameaça física e a punição são formas encontradas pela sociedade de domar oanimal que existe dentro de cada um de seus componentes. Essa concepção já

está contida no manuscrito de 1930 (pgs. 91 a 95). Para exercer essa mesmafunção de limitar as opções de satisfação, a sociedade conta, ainda, com outrasrealidades.

A Moral, o Costume e o Direito

Socialmente, o homem está submetido a outras forças normativas: “uma série desistemas de valor, especificamente os do direito, do costume e da moral, em

alguns casos fortalecidos pelas sanções da religião” (1930: 91). A sociedadeimprime valores nos novos membros que, ao chegarem ao mundo, são do ponto-de-vista valorativo, uma página em branco. Influenciando-os de diferentesmaneiras, ela determina o seu comportamento e os faz sociáveis49. Elas são“regras de conduta pelas quais [a] sociedade busca fazer com que os seus

49 Neste subtítulo do capítulo, utilizo-me amplamente da descrição feita por Frei (1994): 139-146. Aodescrever a postura de Morgenthau sobre o Direito Internacional na década de 30, Freiexplicita os pilares básicos da visão de natureza humana e socialização, apresentados emmaior detalhe em um livro de 1934 sobre o direito internacional, publicado com o título  La

  Realité des Normes; en Particulier des Normes de Droit International. Fondements d´uneThéorie des Normes. Paris: Félix Alcan. Nos EUA, a discussão é retomada nos capítulo 15 a18 de Politics Among Nations. 

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membros se limitem a certos padrões objetivos, restrinjam suas aspirações de  poder, domestiquem-se e pacifiquem-se em todos os aspectos socialmenterelevantes” (1948: 231).

Tanto a balança de poder, quanto as normas, o costume e o direito preenchem a mesma função: a de contrabalançar a vontade de poder, cada umacom seu mecanismo específico, porém aplicadas ao mesmo princípio motor: o

  princípio do prazer, explicitado no capítulo anterior. Para Morgenthau, o  princípio do prazer é um “axioma fundamental de toda psicologia humana”(1934:46 – ver abaixo) e, agindo sobre ele, a realidade logra, por meio dasnormas, proteger a sociedade e seus indivíduos dos comportamentos anti-sociaisnaturalmente trazidos por cada um deles.

 A vontade do homem normal é, a título de regra geral, buscar o prazer e evitar o

desprazer; deduzimos que a vontade humana não pode ser determinada, senão pela perspectiva de um prazer ou pelo medo de um desprazer (...) É precisamente o medode um desprazer o meio mais apropriado de provocar a reação requerida pela norma  (1934: 46).

O livro de 1934, La Realité des Normes, expressa a preocupação do autor em sesaber o que torna as normas efetivas em sua função de conter a auto-afirmação,a vontade de poder, em suas manifestações mais nocivas. Morgenthau buscasaber “qual é a qualidade específica que permite ao dever-ser participar nodomínio do ser” (pg. 57), na tentativa de entender “a relação real entre homens e

a possibilidade deles se deixarem influenciar por normas” (Frei 1994:141).Baseada no estudo do princípio do prazer, a ‘qualidade específica’ acima

mencionada é justamente a possibilidade de uma sanção – de um desprazer. Sema real existência de uma sanção, qualquer norma putativa tende a se tornar “umamera idéia, um desejo, uma sugestão, mas não uma regra válida”50, uma vez que,ao deixar de impor restrições reais às ações movidas pelo princípio do prazer,torna-se refém da eventualidade dele: a ela só poderá ser atribuído um efeito seele não se manifestar.

Identificam-se em seguida as três instâncias onde a ação humana é

 passível de sanção. A primeira delas é a própria consciência, “o tribunal interior ao homem” que, gerado pelo senso moral do indivíduo é capaz de evitar que eletenha atitudes anti-sociais (1934:59). A consciência pesada, causada pela crençaem valores morais, é a primeira forma de freio à vontade de poder.

A segunda instância limitadora é a do costume, e sua forma específica desanção é a reação do ambiente social em que o indivíduo se encontra, caso elecometa transgressões àquilo que é considerado aceitável. A opinião pública dacomunidade na qual ele está inserido se encarrega de, por meio de difamações e

50

Citado por Frei (1994): 144, de um texto de Morgenthau escrito já nos EUA, em 1940, com o título“Positivism, Functionalism and International Law”, no   American Journal of International  Law, 34/1940, 260-284. 

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acusações, promover o desprazer que sanciona seus atos nocivos e causa, portanto, o medo da represália e do ostracismo, que na prática pode terminar por  possuir o mesmo efeito de lhe conter (1934: 65).

A terceira instância, a do direito, é aquela com a qual Morgenthau seocupou durante todo o início de sua carreira na Alemanha, e da qual o livro de1934 é mais um exemplo. Se dentro dos Estados modernos pode-se identificar uma jurisdição legal bem-definida, delineada ao longo de instituiçõesconsolidadas e com autoridade para se valer legitimamente da violência e dasanção se preciso for, por outro lado, Morgenthau identificava que no ambienteinternacional essa forma de limitação dos impulsos destrutivos estariaorganizada muito precariamente, de maneira alguma capaz de coibir aagressividade mútua das coletividades. A possibilidade de represália não estácentralmente organizada e depende da anuência das outras partes que compõema comunidade de nações. Dessa forma, a incapacidade de aplicação de sançõesque desmotivem a vontade de poder na esfera dos Estados evidencia a condição

  primitiva em que as relações interestatais se encontram, ao contrário dasrelações entre os homens dentro dos Estados. A preocupação com a ausência demecanismos coercitivos na esfera do direito internacional é o centro de todo oargumento, que permanece inalterado na fase norte-americana de sua carreira.

Sem essas restrições normativas, a vida do indivíduo se tornaria bárbara,impassível de convivência em sociedade. O problema para Morgenthau é queessa possibilidade de ascensão aos extremos da violência é real e recorrente,

 bastando para isso que as condições apropriadas se apresentem; no momento emque o ‘político’ logra extravasar suas limitações, existe um risco real de que elevenha a se tornar a “medida de todas as coisas”.51 

A Apresentação dos Elementos Filosóficos em Politics Among Nations

 Politics Among Nations não é apenas o livro mais famoso de Morgenthau, mastambém aquele que permite observar a sua visão filosófica sobre a natureza

humana e sobre a convivência em sociedade de maneira detalhada, apresentadaem formato de teoria das relações internacionais52.

O livro foi escrito com um duplo propósito. O primeiro, em suas palavras,é “detectar e entender as forças que determinam as relações políticas entre asnações, e compreender as maneiras pelas quais essas forças agem entre si esobre as relações e instituições políticas internacionais” (pg. 16).53 

51  Mass aller Dinge – 1934a: 47, 1972: 45-46. 52 Como já vimos, a idéia de ‘teoria’ para Morgenthau é a de um conjunto de proposições que, além de

fazerem sentido entre si, façam sentido da realidade, trazendo ordem a um conjunto de dados

outrora desconexos. 53 Os números de página referidos a seguir e todas as outras referências a  Politics Among Nations contidas nesta monografia se referem à sua terceira edição, de 1960. 

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O segundo propósito é investigar como a política externa norte americana,operando nesse contexto, deve agir para contribuir ao ideal da paz. Levando-seem consideração que o livro é escrito em um momento de crescentes tensões

 políticas internacionais, geradas no contexto da Guerra Fria (sua primeira ediçãofoi publicada em 1948), a consideração do problema da paz seria para os EUA,na condição de uma das duas grandes potências mundiais de então, uma questãode responsabilidade (22).54 

Os primeiros capítulos do livro situam a discussão filosófica no âmbito da  política internacional: a política é luta por poder, que pode-se manifestar deforma violenta no relacionamento entre Estados, quando é deixada à mercê desua própria lógica, sem ser cultivada pelas limitações acima citadas. Essa luta

  por poder é um dado da vida em sociedade e emerge da vontade de poder inerente à própria natureza humana. Universal no tempo e no espaço, ao longoda história humana, a busca por poder obedece a três padrões básicos: manter ostatus quo (cap. 4), aumentar – o imperialismo (cap.5) –, e manifestar-se em

 busca de prestígio (cap. 6). A parte três, incluindo os capítulos 8 a 10, situa adiscussão a respeito de poder nacional, buscando defini-lo e compreender osfatores que permitem avaliá-lo.

O livro é claro quanto a sua preocupação com a tensão existente entre ainteração de vontades de poder e o ideal da paz, apresentando-nos os elementosanalíticos que o tornam digno de seu subtítulo,  A Luta por Poder e a Paz (‘TheStruggle for Power and Peace’)55:

 Em um mundo cuja força-motriz é a aspiração de nações soberanas por poder, a paz pode ser mantida apenas por meio de dois mecanismos. Um é o mecanismo das forças  sociais, que se manifestam na luta por poder na cena internacional. Ou seja, abalança de poder. O outro consiste de limitações normativas a essa luta, na forma de

54 A proposta do realismo político também demonstra a postura do autor perante a produção deconhecimento em ciência política: “  Nenhum estudo da política – e, certamente, nenhumestudo da política internacional na metade do século vinte – pode ser desinteressado no

 sentido de ser capaz de divorciar conhecimento de ação e buscar conhecimento por si só” (pg.

22). 55 Apesar de ser uma nuance linguística, é importante frisar que a tradução correta de   struggle for  power para o português é “luta por poder”; e não “ pelo poder.

Como já foi apresentado no capítulo anterior, Morgenthau vê a luta por poder como um fenômenonatural da interação humana, ocorrendo em todos os seus níveis. Ao utilizarmos a tradução“ por ”, expressamos mais fielmente a idéia correta do termo  poder : “ poder fazer coisas, gerar efeitos”. A tradução ‘luta pelo poder’ poderia dar a entender que existe uma só fonte de poder disputada somente na política, o poder, abrindo portanto margem para interpretações errôneas.O perigo desse quase imperceptível lapso de tradução para a compreensão do realismo é queele propicia a identificação de algum marco específico capaz de descrever o poder, quando naverdade Morgenthau emprega a idéia de luta por poder de forma genérica. Tal identificaçãonegligenciaria o fato de que essa busca por poder não está associada a um objeto específico,

nem encontra uma justificativa externa racional, obedecendo, sim, a uma lógica própria (o princípio do prazer). A luta, como já vimos, é um fenômeno natural que se manifesta cada vezque as vontades de dois ou mais homens manipularem os mesmos objetos se cruzam.  

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direito internacional, moralidade internacional e opinião pública mundial (23). Da  Bíblia à ética e os arranjos constitucionais da democracia moderna, a principal  função desses sistemas normativos tem sido manter as aspirações por poder dentro delimites socialmente toleráveis (228).

Um rápido olhar sobre seu sumário permite obter uma idéia do conteúdo dadiscussão que se forma entre as partes quatro e seis, pré-entituladas “Limitaçõesao Poder Nacional”. Sob esses capítulos, o livro se propõe a investigar ainfluência de cada uma das formas de freio à vontade de poder disponíveis. E a

  preocupação principal, por diversas vezes reiterada, passa a ser com a possibilidade de que se possa exercer alguma influência sobre a dinâmica da luta  política, limitando-a e mitigando os seus efeitos nocivos (como a violênciadeclarada). A parte quatro examina o fenômeno da Balança de Poder; a parte

cinco avalia os conceitos de ‘moralidade internacional’ e ‘opinião públicamundial’; e a parte seis se encarrega de investigar o direito internacional56. Nodecorrer do livro, o texto é cravejado de manifestações sobre “a função queinteressa acima de tudo; especificamente, a imposição de restrições efetivassobre a luta por poder no cenário internacional” (307).57 

Como a vontade de poder é um dado da natureza humana, é impossíveldestruí-la ou eliminá-la da vida em sociedade. É possível, no entanto, evitar queela se manifeste em suas formas mais destrutivas, uma realidade presente nassociedades plurais em função de sua organização e lógica de funcionamentointernas:

... até onde pudemos observar, o melhor que uma civilização pode alcançar tem sidomitigar a luta por poder na cena doméstica, civilizar os seus meios e direcioná-la

  para objetivos que, caso alcançados, minimizam o comprometimento da vida, daliberdade e da busca da felicidade pelos membros da sociedade para com a luta por 

  poder. Mais especificamente, os métodos cruéis do combate pessoal têm sido  substituídos pelos instrumentos refinados da competição social, comercial e profissional. A luta por poder tem sido feita não com armas mortais, mas sim, por meio de exames competitivos, pela competição por distinções sociais, por eleições

 periódicas para cargos públicos e privados e, acima de tudo, pela competição pela posse de dinheiro e de coisas nele mensuráveis (231).

Assim, fica claro que Morgenthau está falando de um mesmo fenômenoocorrendo sob circunstâncias diferentes. Essas circunstâncias, dentro desociedades pluralistas modernas, são responsáveis pela diminuição dos efeitosdestrutivos da vontade de poder, e pela manutenção dos embates por poder dentro de limites socialmente aceitáveis. O problema no caso da políticainternacional, é que esses limites existiriam de forma ainda primitiva e precária.São analisados um a um, com vistas a examinar quão bem eles cumprem a sua

56

Note-se a correspondência entre as três esferas normativas sociais: direito – direito internacional;costume – opinião pública internacional; moral – moralidade internacional. 57 Ver tb. pgs. 23, 204, 228, 231, 260, 309, 329/330, 335, 346, 386, 389, 501, 508, 513, 539, 559.  

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função na esfera internacional.  Nessa discussão, Morgenthau argumenta que infelizmente as limitações

do direito, do costume e da moral não são suficientes para assegurar a paz no

ambiente internacional, uma vez que ele se diferenciaria completamente doambiente de equilíbrio e temperamento das relações de poder dentro de umEstado plural. O autor busca mostrar como a possibilidade de sanções efetivas éextremamente precária na interação das três instâncias limitativas com arealidade política interestatal, e constata que a noção de ordem internacionalreside em um equilíbrio bastante frágil.

Contra essa fragilidade e visando a discutir soluções para o problema daameaça à paz, Morgenthau identifica três reações possíveis, pensadas no planointelectual e propostas no plano político: “(1) A limitação das tendênciasdestrutivas e anárquicas da política internacional; (2) a transformação da políticainternacional pela eliminação dessas tendências destrutivas e anárquicas emconjunto; e (3) a acomodação de interesses divergentes” (391). São os títulos dastrês últimas partes do livro, “paz por meio de limitação”, “paz por meio detransformação” e “paz por meio de acomodação”. A primeira delas discute aquestão do desarmamento, da arbitragem judicial (retomando as discussões de1929 e 1933 com os mesmos argumentos) e do papel de organizações como aLiga das Nações e a ONU. As conclusões, em meio ao contexto da Guerra Friano qual essa discussão se realizou, não são animadoras: buscar a paz por meiode uma política de limitação do poder destrutivo, uma atitude tipicamente

expressa no desejo por desarmamento, não ataca as reais causas doarmamentismo, que são o sentimento de insegurança, a falta de confiança entreas coletividades e a disputa de interesses.

A penúltima parte (‘Paz por Meio de Transformação’) discute acontribuição de outras instituições internacionais (em especial, a Unesco) para acausa da paz e a possibilidade de uma mudança na estrutura política mundial,tipicamente representada pela proposta de um Estado global. Digno de nota éque, apesar de considerar a idéia de um Estado global impossível para ohorizonte próximo, Morgenthau não deixa de discuti-la no plano intelectual.

Finalmente, na última parte, discute-se aquela proposta vista como a maisadequada para se lidar com a ameaça da guerra: “Paz por meio deAcomodação”. O realista, de acordo com essa formulação, busca mitigar eminimizar conflitos, compatibilizando interesses tanto quanto possível. Oinstrumento por excelência desse procedimento é a diplomacia. Como a situaçãodos freios à vontade de poder é bastante precária, a tentativa de paz por meio daacomodação não garante em si que a paz se estabeleça. No entanto, “ela daria amelhor chance de se sair vivo” de um impasse (570).

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A Precariedade dos Freios e a Proposta do Realismo

É impossível possuir um conhecimento adequado da teoria política de

Morgenthau sem se compreender o papel dos freios e limitações à vontade de  poder na vida do homem. Caso contrário, o leitor corre o risco de tomar orealismo por aquilo que ele não é – uma forma de apologia da vontade de poder,como se esta fosse a única componente da natureza humana e, portanto, umaforma de dever-ser por si só. Ou uma forma de apologia de poder político por simesmo.

Tal entendimento violentaria a verdadeira proposta de Morgenthau em sua  própria essência: o comprometimento para com a verdade como um primeiro passo para que se possa transformar a realidade. Esse duplo comprometimentoestá explícito no também duplo propósito de   Politics Among Nations acimadelineado: primeiro, entender as relações de poder, a fim de refletir sobre o queseria o agir bem em meio a elas. Fechar os olhos para as realidades do poder énegligenciar a própria compreensão da realidade política, a própria tarefa daciência política; por outro lado, fechar os olhos para as outras dimensões danatureza humana, “espiritualidade”, “criatividade”, seria negar cegamente o seulado essencialmente humano.58 Caso contrário, tornar-se-ia impossível entender 

  porque um livro de teoria, como  Politics Among Nations se propõe a ser,termina dando conselhos sobre o que seria uma ‘boa política externa’.

Também seria difícil entender frases como a seguinte:

O realismo político está consciente do significado moral da ação política. Tambémestá consciente da inelutável tensão existente entre o comando moral e os requisitosda ação política bem-sucedida. E não está disposto a obscurecer essa tensão,ofuscando, portanto, uma questão que é tão moral quanto política, fazendo parecer que os duros fatos da política fossem mais satisfatórios moralmente do que eles naverdade são, e que a lei moral é menos exata do que ela na verdade é (1948: 10).

Assim, Morgenthau identifica um imenso dilema moral na ação política, aomesmo tempo em que se propõe a apresentar uma reflexão ético-filosófica sobre

ele. Esse dilema moral da ação política é o tema do próximo capítulo.

58 “Geistigkeit”, “Schöpfertum”, Morgenthau 1930a: 52. Sobre a tarefa de entender a realidade talcomo ela é, mas sem fazer disso um dever-ser: “Para se melhorar a sociedade, é necessárioentender as leis pelas quais ela vive. Uma vez que a operação dessas leis é indiferente àsnossas preferências, o homem somente poderá desafiá-las sob o risco de fracassar” (1948: 4).Ver também Frei (1994): cap. 5, onde é descrita a tarefa que o jovem Morgenthau se coloca, a

de “descrever  o que é” (‘feststellen, was ist’). O mesmo desejo expresso por Maquiavel,quando este, em seu ensaio O Príncipe, busca descrever a verità effetuale della cosa.

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 – CAPÍTULO 4 – O DILEMA MORAL DA AÇÃO POLÍTICA  

Ser um Maquiavel é algo perigoso. Ser um Maquiavel sem virtú é algo desastroso.

Morgenthau (1958): 357.

 Nos três capítulos anteriores, foi explicitada a importância da visão filosófica danatureza humana para o pensamento teórico de Morgenthau. Mas a visão dehomem não é importante somente nesse sentido. Nas linhas abaixo, buscoiluminar a proposta ética que deriva de seu reconhecimento, especificamente no

que diz respeito à ação política. Da mesma maneira como a observação empíricae a formulação de teoria são por ele criticadas com base em uma mácompreensão da natureza humana, também a discussão ética e a crítica realista aoutros modos de pensar estão assentadas neste nível. A gravidade do problemareside na função prática que o próprio pensamento filosófico preenche: o defornecer parâmetros que dêem sentido à ação. Teoria e prática, política ou não,são dois ofícios exercidos pela mesma criatura.

O homem (...) não consegue viver sem uma filosofia que dê sentido à sua existência,

explicando-a em termos causais, racionalizando-a em termos filosóficos e justificando-a em termos éticos.

(1946: 7)

Para Morgenthau, certos fenômenos gerais regem a vida em sociedade. Asrealidades básicas da natureza humana, eternas, imutáveis, atuam de maneiradiferenciada em meio a contextos também diferentes. Vimos que a vontade de

  poder, inerente em tese a todos os indivíduos, encontra pelo caminho algunsfreios e formas de limitação em meio à realidade. E que em meio aoreconhecimento de ambos os fenômenos, a vontade e a limitação, situa-se a sua

 preocupação com as questões da ordem social e da paz.A realidade da auto-afirmação gera também um dilema ético para a ação

 política, pois ela colide diretamente com aquele primeiro freio, que o indivíduotrás dentro de si, também como uma dimensão de sua natureza: a capacidade de

 perceber e buscar realizar noções de moralidade – aquilo que o faz humano59 nosentido estrito da palavra. Em  Politics Among Nations, essa tensão se expressa:“a própria ameaça de um mundo onde o poder reina não somente de forma

59 Três referências iniciais para a questão da ética política na obra de Morgenthau estão no capítulo VII

de Scientific Man versus Power Politics, entitulado “The Moral Blindness of Scientific Man”,no último capítulo de   Politics Among Nations, entitulado “The Future of Diplomacy” e ocapítulo 13 de Dilemmas of Politics: “The Moral Dilemma of Political Action”. 

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suprema, mas sem rival, causa aquela revolta contra o poder, que é tão universalquanto a própria aspiração a ele” (1948: 227).

Ser versus Dever Ser na Política

O homem, para a filosofia de Morgenthau, não é uma criatura bestial. Mastambém não é, por assim dizer, um anjo. Na verdade, as forças que movem suaexistência operam entre esses dois pólos, justamente porque ele contém amboselementos. De um lado, atua a vontade de poder, que é amoral e buscamaximizar o prazer sem consideração por suas conseqüências. De outro, há ocomando moral, que o acompanha e o condena em todas as sociedades, comoum segundo dado de sua natureza. Cada indivíduo corre, por sua vez, o real

 perigo de se tornar um animal desenfreado; e, por outro lado, ele pode tentar seaproximar dos ideais morais que é capaz de perceber, aspirando a uma forma de

  perfeição espiritual. O comando moral trabalha como um contrapeso às suasações egoístas e anti-sociais; do outro lado, a vontade de poder faz que elecumpra apenas precariamente para com as suas demandas morais60. Convivendoentre esses dois pólos, o indivíduo experimenta a contradição básica de suacondição:

Suspenso entre o seu destino espiritual, que ele não consegue cumprir, e a sua

natureza animal, na qual ele não pode permanecer, ele está para sempre condenado aexperimentar o contraste entre as vontades de sua mente e a sua real condição, comoa sua tragédia pessoal, eminentemente humana. (1946:221)

60 A maneira como as demandas morais são definidas é eloqüente quanto a seu conteúdo, mas não oestabelece de maneira exata. Uma das defesas mais claras está em Morgenthau (1960c). Sua biografia, por meio da análise de cartas e outros escritos, descobriu os seguintes indícios: “aética é o marco que distingue o ser do dever ser, “sollen”, versus “sein” em termos kantianos”.Sobre a moral: “a moral para mim é a reflexão que a mente dos homens faz dos princípiosobjetivos e perenes da moralidade, que são inerentes à ordem objetiva do universo. Tal

reflexão é apenas uma aproximação da verdadeira ordem de coisas que não pode ser sabidacom certeza absoluta pelo homem.” Apesar de não saber precisamente o que é a moral, todosos homens saberiam dizer o que é moral. Em seguida, numa tentativa de racionalização:“Afirmo dois valores morais básicos: a preservação da vida e da liberdade no sentido judaico-cristão e, mais particularmente, da filosofia kantiana”. “A sociedade não criou esses padrões e,  portanto, não os poderia abolir. (...) A validade desses padrões não deve coisa alguma àsociedade; assim como a lei da gravidade, eles seriam válidos ainda que ninguém osreconhecesse e os respeitasse.” O chamado moral é a expressão de valores ideais que servemcomo corretivos para a conduta humana, aquilo que impede que sua vida caia no barbarismoda satisfação pura e simples do desejo de auto-afirmação em suas formas mais grotescas.Assim como a vontade de poder, e em oposição a ela, o homem traz dentro de si a capacidadede percebê-los, ainda que ele muitas vezes não seja capaz de se pautar em sua vida por eles.

(Frei 1994: 226-231). Apesar de ser capaz de os perceber, o homem não traz os valoresconsigo ao mundo: “os valores mais altos não devem sua existência ao homem – o homem osencontra. Eles são objetivos, independentes, eternos” (Frei 1994: 227). 

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 Assim, “ser” é utilizado para descrever a realidade corriqueira da vida terrestre,as forças sociais (‘a natureza humana em ação’) que movem a história; os seres

humanos em luta entre si e contra o mundo para sobreviver e afirmar suasvontades. “Dever ser”, em contraposição, é o mundo dos valores normativos,que pressionam cada um na forma de comando moral. São valores elevados,transcendentes à realidade e à sociedade, o chamado a um destino que éespecífico ao homem e a mais nenhum outro ser, que ele é capaz de perceber,ainda que não consiga cumpri-lo.61 O dilema moral da ação política é essatensão constante e irremovível, à qual todos, em seus assuntos para com o

  próximo, estariam sujeitos. Cada um quer poder cada vez mais. No entanto,defronta-se com essa tensão, à medida em que precisa conviver em sociedade eagir em relação aos outros. Pois só pode se auto-afirmar, em qualquer medidaque seja, em relação a alguém, ou a alguma coisa. Como vimos, o poder políticoé uma relação entre dois ou mais indivíduos.

A esfera da política profissional é o palco natural dessa tensão, em suaintensidade maior. Como já vimos, Morgenthau identifica a dominação políticacomo um fenômeno corriqueiro da vida: o exercício de poder sobre a vontade do

  próximo, a capacidade de mudar suas opiniões, o curso de suas ações, sua própria conduta e mesmo seus valores pessoais na direção desejada. O princípioque opera sobre as relações humanas em qualquer esfera de ação é o mesmo; e oque faz da política um domínio próprio, passível de identificação por meio do

termo ‘poder’ é o sobrelevado grau de intensidade dessas relações de poder dentro dele, quando comparado com outras esferas.

A ação política em si, o exercício de poder sobre outrem, já rompe paracom os ideais morais:

  A aspiração por poder sobre outros homens, que é a própria essência da política,implica a negação daquilo que é o cerne da moralidade judaico-cristã – o respeito

 pelo homem como um fim em si mesmo. A relação de poder é em si a negação desserespeito; pois ela busca usar o homem como meio para os fins de outro homem.62 

A magnitude da tensão entre moral e política é proporcional ao grau deintensidade da ação política. Se observamos a sua manifestação mais extrema, aguerra, podemos entender com facilidade o drama de toda a questão63. O

61 Como veremos adiante, o chamado moral não se confunde com as justificativas ideológicas para aação: “o realismo político é, por sua própria natureza, oposto a uma cruzada ideológica”(citado em Frei 1994: 211). A ação – política ou não, para Morgenthau, é sempre balizada pelas especificidades e necessidades das circunstâncias de cada momento. Os valores moraisservem na verdade como parâmetros ideais, últimos, para o julgamento do pensamento e daação. 

62

Morgenthau (1958): 247. 63 Dentre as diversas formas de se tentar fazer a vontade prevalecer, a guerra é uma alternativa. Oucomo diria Clausewitz, “a guerra é, portanto, um ato de violência, a fim de obrigar o opositor a

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soldado é, grosseiramente falando, um objeto em meio à competição entrecoletividades por poder e dominação. Da mesma forma, o ‘político’ está

  presente todas as vezes que homens exercem poder sobre a ação de outras

 pessoas, e mobilizam o esforço alheio em função de objetivos, sejam eles gerais(valores como por exemplo a paz, o socialismo, a liberdade, a glória de algumvalor religioso, ou mesmo o próprio poder em si) ou específicos (interesses

  pontuais, objetivos limitados como aquisições territoriais, posses, cargos públicos, a aprovação de uma lei). Ou mesmo cada vez que alguém manipula avontade e o destino alheios sem um objetivo específico, ou seja, somente a fimde experimentar a sensação de prazer que tal atitude proporciona.

É nessa manipulação do próximo como um objeto de dominação queMorgenthau vê um mal (no original, ‘evil’). Não importa qual a causa ou oobjetivo político defendido, não importa o quão nobre ou necessário. Toda ação

  política é necessariamente eivada pelo estigma pecaminoso de se tratar o próximo como um objeto, um meio, e não como um fim em si. A única maneirade se evitá-la seria isolar-se da ação, o que também pode se tornar um problemaético: a pessoa se retrai à abdicação de influenciar a realidade, à irrelevância

 política. O preço que ela paga por tal atitude é o fato de que assim procedendo,ela não contribui em nada para evitar o avanço dos males que possa vir acriticar. Ou seja, o dilema da ação política é a escolha entre agir ou agir, aindaque a ação seja escolher não agir. A inevitabilidade do mal.

Dessa constatação surge assim o caráter trágico da existência do homem,

ser político. Condenado sem possibilidade de escolha a enfrentar um grandedilema moral cada vez que age em relação aos outros, como um planeta atraído

 por um buraco negro no espaço, o ator político precisa dotar a sua ação de umsentido que justifique a inevitabilidade de injustiça, de ruptura em relação aocomando moral. O ‘mal’ da ação política é inevitável, inexpurgável da vida emsociedade – ele só poderia ser eliminado pela eliminação do próprio homem. O

 político profissional, o homem de estado e aqueles que o rodeiam (as figuras deliderança do Estado moderno, no inesquecível ensaio escrito por Max Weber em1919) convivem em seu dia-a-dia com escolhas trágicas, que implicam decisões

necessariamente injustas para com pessoas ou grupos, tornando-se responsáveis  por opções que necessariamente afetam, ou até mesmo suprimem, a vida deoutros, e vivendo como atores em um palco de discórdia inegociável, deconflitos insolúveis, onde mesmo os valores colidem entre si de maneira trágica,quase sem conciliação possível.

Some-se a essa realidade a especificidade de sua sobrevivência profissional: a necessidade de poder, que é a moeda, a precária garantia de queele, juntamente com todos os valores e objetivos que acredita dever defender,não serão reduzidos à impotência. Assim,

obedecer nossa vontade”. Vom Kriege. Berlim: Ullstein, 1999, pg. 27. 

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 ...o ator político possui, além dos deveres morais gerais, uma responsabilidadeespecial de agir espertamente, isto é, de acordo com as regras da arte política; e paraele a agilidade em alcançar o fim (expediency) se torna um dever moral. O indivíduo

que age em benefício próprio pode se permitir agir sem cuidado (unwisely), semrepreensão moral, contanto que as conseqüências de sua ação descuidada(unexpedient) só digam respeito a ele mesmo. O que é feito na esfera política, por sua

 própria natureza, diz respeito a outros, que terminarão sofrendo em função da açãodescuidada (unwise). Aqui, aquilo que é feito com boas intenções, porém de formadescuidada – e, portanto, com resultados desastrosos – é moralmente condenável;

  pois ele estaria violando a ética de responsabilidade à qual toda ação afetando osoutros, portanto, a ação política par excellence, está sujeita” (1946: 186).

O político profissional não vive em uma situação muito diferente da dos demaisindivíduos. O que pesa, moralmente falando, sobre a sua experiência, é o grau

de intensidade e o alcance de suas decisões sobre a vida dos outros; anecessidade de poder com responsabilidade:

O mal que corrompe a ação política é o mesmo mal que corrompe qualquer ação, mas acorrupção da ação política é de fato o paradigma e o protótipo de qualquer corrupção possível. (...) Neste contraste insolúvel entre o que ele precisa e quer, e o que ele consegueobter, o homem de estado é de fato o protótipo do próprio homem social; pois aquilo que ohomem de estado experimenta em seu plano exaltado é a condição comum a toda ahumanidade. (1946: 195 e 221)

O comando moral a que o agente político está submetido é, para Morgenthau, o

mesmo a que estão submetidas todas as outras pessoas. Não há nada deintrínseco em sua profissão que o liberasse da obrigação moral comum a todosos homens. Não existem duas formas de moralidade paralelas, uma para a

 política e outra para as outras esferas da vida. O dilema moral da ação política éo mesmo dilema que surge na competição de vontades em outras esferas. Damesma forma, o vão que existe entre os requisitos de uma ação política bem-sucedida e a necessidade moral e ética à qual cada pessoa está submetida não énegligenciado, ou relativizado.

  Na esteira de tamanho problema, Morgenthau identifica diversas tentativasfracassadas de se pensar e justificar a ação política, formas de se obscurecer areal gravidade do dilema, e das verdadeiras capacidades que ele demanda do ser humano que circula nesse domínio: a força moral da parte do estadista, a suacapacidade de escolher entre opções difíceis e assumir responsabilidade por seusatos64.

64 A atitude mais duramente criticada é a crença na ciência para a resolução dos problemas políticos,tema de Scientific Man versus Power Politics: “o reformista sem responsabilidade encontra naarmadura do pensamento internacional moderno aquilo que ele está procurando” (99): “a

manobra política deve ser substituída pelo ‘plano’ científico, a decisão política pela ‘solução’científica, o político pelo ‘expert’, o legislador pelo ‘engenheiro legal’ (...). Essa filosofia política, portanto, termina em uma teoria científica da sociedade onde a política possui, quando

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 Ética Política: A Arte do Menor Mal

A grande constatação da ação política, portanto, para o realismo, é ainevitabilidade do ‘mal’, nos termos acima definidos. A partir dessa constatação,inicia-se a reflexão sobre princípios de conduta ética para a política e, porquenão dizer, para a vida em geral.

A proposta apresentada por Morgenthau encontra sua versão filosóficamais bem elaborada em Scientific Man versus Power Politics. A ética política, a“ética de se fazer o mal” (pg. 202), tende para ele a se apresentar de duas formaserrôneas, dois perigos de má-interpretação; aliás, perigos aos quais a própria

  proposta realista está sujeita, quando cai em mãos irresponsáveis. O primeirodeles é a adoção de um duplo padrão ético para diferentes domínios na vida; osegundo é a justificativa de meios ‘maldosos’ (evil) de agir com base nos fins: aversão vulgarizada do maquiavelismo.

Ética política, para Morgenthau, não se dissocia do conceito geral deética, como se fosse permitido ao homem pautar-se por um tipo especial decomportamento na vida política, justificavelmente cúpido em função dasdemandas do meio, em contraposição a uma outra forma de comportamentoético apropriado para a vida cotidiana, fora do domínio da política. O duplo

 padrão não é para ele justificável: seja na política, ou fora dela, as demandas docomando ético sobre a conduta humana não mudam, não se tornam negociáveis

ou relativos. O senso trágico sobre a ação política permanece em função danecessidade de transgredir o comando moral. Qualquer que seja a alegação de

 benefício, necessidade ou impossibilidade de se agir de outra maneira, ela nãorelativiza a transgressão e a culpa nas quais o ator político se envolve65.

A segunda forma de interpretação errada da proposta realista está contidana frase “os fins justificam os meios”. Os fins não justificam os meios porque osfins na verdade nunca são fins, nunca são um ponto final, que baste em si

 próprio. Como a vontade de poder humana tende ao infinito, os fins de hoje setornam novos meios para a consecução de outros fins amanhã. Cada vez mais

 poderoso, e cada vez justificando a negligência para com o chamado moral nosmesmos termos, aquele que se pauta por esse tipo de justificativa termina naverdade por aceitar a política como ‘medida de todas as coisas’, falhando,

muito, um lugar enquanto um mal finalmente vencido.” (Morgenthau 1946: 29, 32, citaçãoretirada de Frei 1994: 210). Contra essa crença, Morgenthau afirma a permanência do‘político’ na vida social, e a impossiblidade de se vencê-lo de uma vez por todas: (1946: 10 – “a política é uma arte, e não uma ciência. E o que se requer para o seu domínio (mastery) não éa racionalidade do engenheiro, mas sim a sabedoria e a força moral do homem de estado.” 

65 “Não existe um tipo de preceito ético que se aplique à ação política e outro para a esfera privada,

mas sim um e o mesmo padrão ético que se aplica a ambos – observado e observável, noentanto, por ambos com desigual obediência.” (1946: 195-196). Ver tb. Smith (1984): 14 e137. 

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 portanto, terminantemente em sua tarefa de seguir o comando moral. Destacadade um contexto específico, enquanto justificativa de uma ação, e reconhecida,

 por meio da repetição, como um padrão de conduta, a frase “os fins justificam os

meios”, como uma forma de desencargo de consciência, só faz confirmar afrouxidão moral de seu portador e a ruína da moralidade. Assim, não se resolveo problema da aproximação entre ser e dever ser pela afirmação de um fim; naverdade, o dilema ético se renova com toda a sua pressão sobre aquele que age

  politicamente a cada nova ação, e está centrado nela mesma, independente dofim a que ela sirva.

A adequação entre fins e meios, ejetada desse mundo pelas duas  justificativas éticas acima descritas, é justamente o ponto central da discussãorealista. Para Morgenthau, sendo o ‘mal’ inevitável, é possível ao homem pelomenos optar pelo menor mal. A opção pelo menor mal, em meio à antinomia

 poder-versus-moral, materializa-se 1) na escolha dos meios e sua adequação aosfins, onde o praticante da política pode se restringir; e 2) na determinação dos

 próprios fins. A respeito da adequação entre meios e fins – e permito-me fazer aqui uma citação um tanto longa –, nenhuma explicação superaria em clareza as

 próprias palavras de Morgenthau.

 Não pode haver negação da vontade de poder sem que se negue a própria condiçãohumana neste mundo. O fim do maquiavelismo (...) não está ali na esquina. Ele

  simplesmente não é deste mundo. Se ele fosse, a própria salvação do mal (evil)também seria deste mundo.

  Não há como escapar da maldade do poder, não importa o que se faça.Sempre que agimos com referência ao nosso próximo, é necessário pecar; e

 pecaremos também quando recusarmos agir. Pois a recusa em estar envolvido no mal da ação carrega consigo a ruptura para com a nossa obrigação. Nenhuma torre demarfim é remota o suficiente para oferecer proteção contra a culpa inevitavelmentecompartilhada pelo ator e pelo transeunte, o opressor e o oprimido, o assassino e suavítima. A ética política é de fato a ética de causar mal (the ethics of doing evil).

  Enquanto condena a política como o domínio do mal por excelência, ela devereconciliar-se com a permanente presença do mal em toda ação política. Sua última

 saída, portanto, é tentar escolher, uma vez que o mal é inevitável, a ação menos máem meio a diversas possibilidades maléficas (evil).

 É de fato comum, frente a uma escolha tão trágica, invocar a justiça contra a praticidade (expediency) e condenar qualquer ação política escolhida pela sua faltade justiça. Tal atitude é apenas outro exemplo da superficialidade de uma civilizaçãoque, cega para as trágicas complexidades da existência humana, contenta-se comuma solução irreal e hipócrita para o problema da ética política (...). Ao evitar a ação

 política porque ela é injusta, o perfeccionista nada faz além de cambiar uma injustiça por outra, talvez ainda pior, de maneira cega. Ele se abstém de fazer o menor mal   porque ele não quer fazer mal algum. No entanto, sua abstenção do mal, que não  passa de uma forma sutil de egoísmo com a consciência limpa, não possui efeitoalgum sobre a presença do mal no mundo, mas apenas destrói a faculdade dediscernir entre males diferentes. O perfeccionista passa a ser, portanto, uma fonte demal ainda maior (...). É aqui, novamente, que apenas a consciência sobre a trágica

 presença do mal em toda ação política permite ao homem ao menos escolher o menor mal (the lesser evil), e ser tão bom quanto possível em um mundo ruim (evil). Nem a ciência, nem a ética, nem a política podem resolver o conflito entre

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 política e ética com harmonia. Não há escolha entre poder e o bem comum. Agir com sucesso, isto é, de acordo com as regras da arte política, é sabedoria política. Saber em desespero que o ato político é inevitavelmente mau (evil), e ainda assim, agir, écoragem moral. Escolher a opção menos má entre diversas opções eficientes de açãoé julgamento moral. Na combinação de sabedoria política, coragem moral e

 julgamento moral, o homem reconcilia sua natureza política com o seu destino moral.Que essa conciliação não passa de um modus vivendi, difícil, precário, e até mesmo

 paradoxal, pode decepcionar somente àqueles que preferem maquilar e distorcer ascontradições trágicas da existência humana com a lógica sedativa de uma concórdiade fachada.66  

A segunda forma de se buscar o menor mal está na determinação dos própriosfins da ação política. Neste momento, o realismo político de Morgenthauidentifica a sua visão sobre a verdadeira relação entre valores e interesses na

 política. Não só os meios são relevantes: a ação política exige a reflexão sobre

os seus próprios fins como uma questão de responsabilidade.

Sobre Valores, Interesses e Prudência

  Nós, com nossa má fé, mantemos pelo menos o intelectolúcido, e permanecemos homens ruins, porém, homens:enquanto vocês abrem mão de tudo de uma vez e se tornamcriaturas bestiais.

Benedetto Croce67 

Já em um momento avançado de sua carreira, Morgenthau explica: “a grandequestão vista por mim então (em 1948), e ainda hoje (em 1968) está entre uma

 política externa cruzadística, ideologicamente orientada, e uma política externarealística, que enfatize (...) interesses”68.

Por “cruzada”, Morgenthau entende toda ação política que se baseie emuma justificativa moral ou ideológica (a referência-chave para o seu pensamentosobre este tema está na obra clássica de Karl Manheim, Ideologia e Utopia), naqual a preocupação com as circunstâncias ou conseqüências não tenha lugar. A

expressão típica dessa forma de pensamento, no rezar da expressão “Fiat justitia, pereat mundus”, obscurece para ele a verdade: “princípios morais universais não podem ser aplicados à ação dos Estados em sua formulação abstrata universal,mas, sim, filtrados pelas circunstâncias concretas no tempo e no espaço”69.

66 “...That this conciliation is nothing more than a modus vivendi, uneasy, precarious, and even  paradoxical, can disappoint only those who prefer to gloss over and to distort the tragiccontradictions of human existence with the soothing logic of a specious concord.” Morgenthau1946: 201-203. Ver tb. Turner and Factor (1984): 172. 

67 Citado em Morgenthau (1946): 201. 68

Frei (1994): 232; Ver o “Postscript: Bernard Johnson´s Interview with Hans J. Morgenthau”, emThompson and Myers (1984): 380. 69 “Que a justiça seja feita, ainda que o mundo pereça”. Morgenthau (1948): 10. Contra isso, ele

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Seus escritos demonstram duas razões para essa aversão. O primeiro delesé que tal espírito obscureceria a verdadeira magnitude do dilema moral da ação

 política, servindo como justificação para atos desumanos com base na lógica de

que ‘os fins justificariam os meios’. Além disso, essa possibilidade de queverdadeiras monstruosidades possam ser perpetradas em nome de valoresabsolutos encontrava na ameaça de guerra nuclear, uma preocupação típica daépoca, perspectivas catastróficas para a humanidade inteira. Na década de 30,Morgenthau já se levantava, em um de seus manuscritos não publicados, contraa glorificação do belicismo, que em sua visão estava colocando toda a culturaeuropéia em perigo – de fato, como uma voz dissidente em tempos sombrios,não teve vez em meio ao processo de entropia vivido então pelo velho mundocom a ascensão do fascismo. A essa glorificação deu-se o apelido de “o suicídiocom a consciência limpa”.70 O mesmo medo se repete em sua carreira mais tardena América; medo que é materializado pela real preocupação com a

 possibilidade de que uma política externa ideologicamente hostil e cruzadísticaredundasse em um conflito nuclear entre Estados Unidos e União Soviética.Pensando em valores absolutos, inegociáveis, que não se prestam a umarelativização pautada por um sóbrio exame das circunstâncias, tudo é

  justificável; lutar por eles é fazer uma espécie de guerra santa ideológica. Adiscussão sobre os fins de política externa implica para Morgenthau, portanto, aobrigação de reconhecer uma importante nuance da arte de governar (statesmanship):

O valor ético da ação não é aqui julgado pelos seus resultados, mas pela intenção doator. Pois o dilema que perturba as consciências dos homens e levanta esse problemaem suas mentes diz respeito, primeiramente, não à relação entre ações humanas e obem absoluto, mas sim à relação entre ações humanas e objetivos limitados, supondo-

 se que as primeiras sejam más (evil), e os últimos, bons. (1946: 185)

Contra o risco dos valores, potencializados pela crença ideológica, serviremcomo justificativa imediata para a ação, o pensamento realista propõe que o

  praticante da política focalize aquilo que realmente importaria na luta pelo

  poder: o interesse. O porquê dessa maneira de ver a ação política é simples.Como a ação política é aquela capaz de potencializar o sofrimento público, aatenção do seu praticante deve estar voltada primariamente para as

  possibilidades de conseqüências de suas ações, e não cegamente para os

afirma: “um estadista, sem perder de vista os princípios, deve ser no entanto guiado por circunstâncias” (1946: 220). 

70 Morgenthau faz, neste caso, alusão explícita ao aforismo 338 da Gaia Ciência de Nietzsche: “assimque uma guerra é declarada, justamente nos mais nobres de um povo também acaba-sedeclarando uma vontade mantida secretamente; eles se jogam com fascínio em direção ao novo

 perigo da morte, porque acreditam ter finalmente encontrado no sacrifício pela pátria-mãe uma permissão para evitar seus objetivos: a guerra é para eles um atalho para o suicídio, porém, umatalho com a consciência limpa.”.

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  propósitos e ambições, por mais bem-intencionados e sinceros que pareçam.Boas intenções, por si, não bastam na política. É preciso saber estimar e

 ponderar, em primeiro lugar, sobre as conseqüências dos atos.

 Ética no abstrato julga a ação pela sua conformidade com a lei moral; ética política julga aação pelas suas conseqüências políticas. (1948:10)

Surge então o reconhecimento da  prudência – “a reflexão sobre asconseqüências de ações políticas alternativas” – como a virtude número um da

  política para o realista.71 Além da escolha dos meios, o ator político deve ser  prudente ao agir e preocupar-se com as suas conseqüências em meio à realidade;assim, seria a ele possível conciliar a necessidade de sucesso político com aslegítimas preocupações com a justiça, a paz e a ordem, também visando ao

‘menor mal’. Assim entendemos a sua visão da política, que demanda de seu  praticante virtudes morais consistentes, capazes de lhe fazerem perceber afragilidade dos assuntos humanos e a necessidade de comprometimentoconstante:

...a paz e a ordem não dependem primariamente da vitória da lei com a ajuda do xerife e da polícia, mas, sim, daquela aproximação da justiça que a verdadeira açãoestatal (statecraft) descobre na, e impõe à, colisão de interesses hostis. Se por vezes,em nossos assuntos domésticos, relegamos essa verdade básica da política ao oblívio,

 pagamos com distúrbio social, desrespeito à lei, guerra civil e revolução pela nossa falta de memória” (1946:121)

Em Politics Among Nations, essa proposta recebe o nome de “paz pelaacomodação”. Ela seria a forma mais garantida, ainda que sem possuir garantiatotal, de se assegurar a paz internacional. O seu meio nas relações interestatais éa diplomacia (1948, parte X).

... o que está em jogo em conflitos desse tipo não é quem está certo ou errado, mas sim o que deve ser feito para se combinar os interesses particulares de cada naçãocom o interesse geral na paz e na ordem. A questão a ser respondida não é o que é alei, mas sim o que deve ser feito; e essa questão não pode ser respondida pelo

advogado, mas somente pelo homem de estado. Não se trata de uma escolha entrelegalidade e ilegalidade, mas sim, entre sabedoria e estupidez política. (1946:120)

71 Morgenthau (1948):10. Uma lista de citações sobre a virtude da  prudência se encontra em Frei(1994): 238. A idéia de prudência como virtude na escolha política (uma idéia que talvez seorigine na antiguidade na frônese, o “justo meio”, de Aristóteles) encontra ressonância nostermos alemães  Realpolitik  e  Machtpolitik , comumente usados sem discriminação, como sefossem sinônimos.  Machtpolitik  significa na verdade “política de poder”, em alguns casos

substituível por Gewaltpolitik , “política da força”. Por sua vez,  Realpolitik diz respeito à artede governar, ao statecraft : significa o realismo em escolher entre diferentes possibilidades de Machtpolitik, mantendo em vista, no entanto a realização do menor mal. 

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Uma Comentário Crítico e uma Elucidação

 Nas próximas linhas, gostaria de tratar de um comentário crítico que me parece

representativo do tipo de mal-entendido que a reflexão de Morgenthau sobre aética pode gerar. A meu ver, essa dificuldade se deve à própria dificuldade de seaceitar o caráter trágico das suas considerações. O comentarista Michael JosephSmith, em sua obra  Realist Thought from Weber to Kissinger (1984: 146 e 161-163) critica Morgenthau por, em um primeiro momento (Scientific Man),assumir uma unicidade e ausência de relativismo moral, inclusive criticando afilosofia do ‘duplo-padrão’, tal como descrita algumas páginas atrás, e, nomomento seguinte (em Politics Among Nations), introduzir uma dualidade ética“pela porta dos fundos”, tal como mostra a citação que vimos acima (“Ética noabstrato julga a ação pela sua conformidade com a lei moral; ética política julgaa ação pelas suas conseqüências políticas”). Mas essa aparente contradição não éreal. É possível entendê-la a partir da compreensão do dilema moral da ação

 política em seus termos filosóficos e humanísticos.A moralidade em si não é relativizada só porque é necessário

inevitavelmente ‘pecar’. O que Morgenthau quer dizer é que, na prática, o ator  político por vezes termina sem uma alternativa que não seja ‘pecar’, e assumir aresponsabilidade por seus atos. Na prática, ele termina sendo passível de ruptura

  para com o comando moral, primeiramente por uma questão de sobrevivência política e, em segundo lugar, a fim de poder lutar pelos valores e interesses que

se propõe a defender. Suas únicas maneiras de minimizar a ruptura para com os  parâmetros morais são tentando antecipar as conseqüências de suas ações (etomando o caminho potencialmente ‘menos trágico’), escolhendo o meio ‘menosmau’ e definindo os fins em termos de interesse, em vez de adotar uma atitudecruzadística (um bom exemplo do espírito cruzadístico, comprovado em suasconseqüências mais nefastas por toda a história, é a atitude de se matar umhomem em função dos direitos dele, ou da salvação religiosa dele). Essa maneira

 prudente de calcular a ação política o ajuda a ser tão moral quanto possível, natentativa de minimizar a sua inevitável ruptura para com o padrão, que não é

relativizado. Assim, percebemos a enorme diferença entre o julgamento ético  proposto por Morgenthau, que defende mesmo na pior das hipóteses umaaproximação, por mais precária que seja, do ideal moral, baseada em uma

  ponderação sobre conseqüências, e aquele proposto pela filosofia do duplo  padrão. Esta maneira, que ele tanto critica, de se justificar a ruptura moral,relativiza a própria moral e se dá por satisfeita em adotar um duplo padrão demoralidade. Morgenthau se preocupa em minimizar o estigma pecaminoso daação política, e sua visão ‘trágica’ demonstra claramente que ele não estásatisfeito com suas constatações. A própria palavra tragédia é prova disso: só

existe tragédia em um contexto analisado a partir de valores humanísticos. Anatureza entre os animais não conhece tragédia. Os homens, entre si, sim.

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Assim, a visão de Morgenthau carrega consigo o peso de uma condenaçãokafkaniana, uma maldição. Em seus diários de juventude, um segundo pensador realista, Reinhold Niebuhr, também ofereceu algumas reflexões que, de maneira

muito parecida à de Morgenthau, permearam toda a sua obra subseqüente. Niebuhr ensina:

  É verdade que no tratamento das questões de Estado, o talento do estadista podedegenerar facilmente e tornar-se oportunismo, e que muitas vezes o oportunismo não

  pode ser facilmente distinguido da desonestidade. Mas o profeta também precisareconhecer que a sua perspectiva mais elevada, e a natureza incondicional dos seus

 juízos, sempre têm um quê de irresponsabilidade. Francisco de Assis pode ter sido umcristão melhor do que o papa Inocente III. Mas pode-se questionar se a sua

  superioridade moral sobre o segundo foi mesmo tão absoluta quanto pareceu ser.Tampouco há razão alguma para acreditar que Abraham Lincoln, estadista eoportunista, era moralmente inferior a William Lloyd Garrison, o profeta. Aquilo queos estadistas alcançam, do ponto de vista moral, deve ser sempre julgado levando emconta as limitações da sociedade humana, limitações essas que o profeta não precisa,mas o estadista deve, levar em consideração.72 

O Idealismo Transcendente

A expressão “idealismo transcendente” é cunhada pela biografia intelectual

escrita por Christoph Frei. Ela resume a proposta normativa do realismo deMorgenthau: a tentativa específica de realizar valores morais em “um mundomoralmente imperfeito, corrupto”, a tentativa de aproximação entre ser e dever ser vista pelo realismo político como a arte do possível73.

Seu ponto de partida, como pudemos ver no capítulo dois, é oreconhecimento das fontes humanas da política. A dominação política é umfenômeno visto como permanente, ainda que as suas formas sejam semprediversas em meio a diferentes sociedades. E o sucesso na ação política,independentemente da proposta ou dos valores que permeiam uma determinadainiciativa, depende da capacidade de se trabalhar com as forças presentes nohomem. Pois elas permanecem sempre, e não desaparecem da realidadesimplesmente por não as levamos em consideração.

[O realismo político] acredita que o mundo, imperfeito se visto desde um ponto devista racional, é o resultado de forças inerentes à natureza humana. Para se melhorar o mundo, deve-se trabalhar com essas forças, não contra elas. Uma vez que este é ummundo inerentemente composto de interesses opostos, e de conflitos entre eles, os

 princípios morais nunca logram ser completamente alcançados, mas devem ser pelo

72 “The moral achievement of statesmen must be judged in terms which take account of the limitations

of human society which the statesman must, and the prophet need not, consider”. Leaves fromthe Notebook of a Tamed Cynic, Louisville: Westminster/John Knox, reprint de 1980, p. 7. 73 Frei (1994): 227. 

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menos aproximados pelo equilíbrio, ainda que sempre temporário, de interesses, e pela sempre precária administração de conflitos. (1948: 4)

Para o realismo, é necessário portanto dotar a ação política de valores

transcendentes, capazes de dar-lhe sentido. Como ela brota na Terra junto com o  próprio homem, ela ocorrerá naturalmente, com ou sem consciência sobre assuas conseqüências, com ou sem a preocupação com valores morais, quer aqueiramos, quer não. Por isso, Morgenthau busca chamar a atenção para aimportância desses valores morais, para um “padrão ético transcendente”(1958:357, 1960:8). Dotando o inevitável mal de valores, buscando minimizar atragédia ao se preocupar com as conseqüências de seus atos, e assumindoresponsabilidade pelas difíceis escolhas em meio ao turbilhão onde ele seencontra, o homem, ser político, não só se reconcilia com seu comando moral,

atendendo ao chamado que lhe é específico, mas também encontra a justificativae o sentido de sua própria existência.

A amenização do sofrimento neste mundo, na tentativa de aproximação darealidade a valores ideais – prestando no entanto atenção às especificidadesespaciotemporais de cada conjuntura – é certamente uma proposta até mesmometafísica de ética de responsabilidade, na qual Morgenthau compartilha o

 ponto-de-vista weberiano, muito mais conhecido em nossos dias, integralmente.  Na visão de Weber – e de Morgenthau –, a ética de responsabilidade, a

  preocupação com conseqüências (mais o seu famoso ‘dennoch!’), é acaracterística principal daquele que possui a política como vocação. Umcomentário final a este capítulo, dessa forma, e que após a sua leitura se fará

 bastante claro para aqueles que já tiveram contato com as obras e o pensamentode Max Weber, é que a estrutura lógica e a proposta metafísica da argumentaçãoweberiana sobre a dualidade Ética de Convicção e Ética de Responsabilidade éessencialmente igual à da dualidade evidenciada por Morgenthau entreIdealismo e Realismo. Nisto reside a enorme proximidade entre os dois autores.

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 – CONCLUSÃO – O LUGAR DA NATUREZA HUMANA PARA 

MORGENTHAU  

Espero ter contribuído com estas páginas à compreensão do realismo político, talcomo formulado por Morgenthau. E acredito ter demonstrado a importância davisão psicofilosófica de natureza humana para a compreensão de seu

  pensamento e de suas obras. Se o leitor tiver se questionado sobre o quãoimportante e central a visão de homem é para a produção teórica do referidoautor, este trabalho certamente já terá cumprido seu objetivo.

Dois comentários adicionais se fazem necessários. O primeiro versa sobrea maneira específica como Morgenthau desenvolve teoria política: como um

 prolongamento de sua visão de mundo acerca da natureza humana. Em segundolugar, pretendo comentar sobre duas possibilidades de erro na interpretação do

 pensamento realista.

Homem: A Variável Independente

O homem é visivelmente feito para pensar; é toda a suadignidade e todo o seu mérito; e seu dever é pensar corretamente. Ora, a ordem do pensamento é começar por si,

 por seu autor e por sua finalidade. Pascal, Pensamentos sobre a Política, § 34.

O trabalho intelectual de Morgenthau é eivado de considerações filosóficas arespeito do próprio conhecimento científico: sua natureza, seu alcance e seuslimites. Seu pensamento identifica grandes limitações à compreensibilidadehumana no tratamento das questões sociais. Além disso, demonstra ceticismo

em relação à possibilidade de mensuração e previsão para as ciências sociais(um bom exemplo disso é a questão da mensurabilidade do ‘político’, nocapítulo dois) e, porque não dizer, desprezo em relação à possibilidade de que aciência seja capaz de resolver problemas políticos em uma sociedade, umacrença na qual ele identifica uma verdadeira doença moral do pensamentoocidental contemporâneo.

Dentre essas considerações de natureza filosófica, incluindo sua visão daelaboração da própria ciência, salta aos olhos a sua demanda, de si e dos outros

  pensadores, desde o princípio de sua carreira, por clareza acerca de umaconcepção de natureza humana. Para ele, existe um ponto de partida claro para o

  pensamento filosófico e teórico, e este ponto de partida, seja para a realidade política ou não, não pode ser outro que o próprio homem. Ao traçar uma visão

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de natureza humana, um pensador estabelece um marco identificador para a  própria realidade, uma estrutura de causalidades últimas, que necessariamente  permeiam o seu pensamento para dentro da teoria, fornecendo-lhe parâmetros

sobre o ser, o dever ser, o que esperar e, especificamente no domínio normativo,como agir.Mas o pensamento pode começar de outras maneiras. E, de fato, sua

  preocupação com o fenômeno ‘homem’ é, para a teoria das relaçõesinternacionais, mais uma exceção do que uma regra. Prova disso é que grande

  parte de seus comentaristas não toca no assunto conferindo-lhe a importânciaque ele merece. Além disso, teorias alternativas raramente versam sobre a idéiade natureza humana, ou sobre a importância de se pensar nesses termos.

Ao fim e ao cabo, não é difícil entender, nem resumir com precisão, avisão de Morgenthau. Ao contrário. Toda a sua criatividade parte de umreducionismo simples e bastante sucinto. Vejamos então: o homem no princípioda sociedade; do homem, emana uma necessidade visceral de auto-afirmação,que o move a aumentar, manter ou demonstrar poder de diferentes maneiras;contra essa vontade de poder, operam certos freios que limitam suas opções desatisfação e evitam suas manifestações mais grotescas: a existência da mesmavontade em outros homens; o direito, o costume e o senso moral. Existindo demaneira organizada em grupos, instituições ou governos, a lógica da busca por 

 poder e a luta que dela resulta de forma natural não poderiam ter outro destinosenão o de se manifestar e determinar o rumo dos acontecimentos em meio à

realidade. E na intersecção da vontade de poder com os valores morais que acriatura humana é capaz de perceber, encontra-se a fonte dos dilemas morais desua existência, mais intensamente experimentados no domínio da política. Estáaqui o esqueleto básico do pensamento de Morgenthau.

Em sua elegante simplicidade (na expressão inglesa, ‘his Greekness’), eleapresenta um grande desafio metodológico para pares e sucessores em ciênciassociais; talvez, o maior desafio de todos: a tentativa de se colocar o homem nocentro da teoria. Se críticas são dirigidas à sua imprecisão em quantificar fenômenos, dentre outras possibilidades de crítica metodológica, quem poderá

no entanto contradizê-lo em seu juízo principal? Quem conseguirá mostrar que oconhecimento do homem não é um requisito para se entender a realidade, ou queele não está no centro de toda a reflexão sobre essa mesma realidade? É certo:afirmar o que é o homem, assim como toda outra reflexão que caminha paradentro da metafísica, termina sendo sempre um empreendimento precário e, por mais que se esforce, cometer-se-ão sempre injustiças. Mas, ao mesmo tempo, oreconhecimento de que estamos diante de uma questão problemática não nosfornece um substituto para resolver o problema, nem retira a razão da afirmativade que este é, de fato, o princípio correto para o pensar sobre a realidade social.

Poder-se-ia afirmar, por exemplo, que a variável homem, por suaincomensurabilidade e indeterminação, não serve para uma ciência deste tempo.

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Mas ao deixá-lo de lado, estaríamos privando a ciência de considerar a grandeforça motora da história e do próprio conhecimento; seria retrair-se de suaenorme potencialidade útil perante aquele do qual ela emana e ao qual ela serve.

Uma ciência que não é capaz de olhar o homem nos olhos, e contemplar a suareal face, parece estar fadada a circular eternamente ao redor dele, sem  progredir. Digo “circular ao redor dele”, porque ela não faria sentido se nãoestivesse direcionada à sua fonte sensível, que de fato não pode ser outra que o

 próprio homem. Do contrário, estaríamos fazendo uma ciência que abre mão doconhecimento, ainda que incerto, da neblina da qual a criatura humana emerge,

 pela assepsia de formalizações quantitativas que a ignorem e, ao se depararemcom a realidade da vida tal como ela é, consideram-na como uma‘externalidade’ ao modelo.

 Nesse sentido, é lícito chamar uma vez mais a atenção para o fato de queas argumentações teóricas e ético-normativas de Morgenthau, assim comodemonstrado no decorrer deste trabalho, fluem como conseqüência lógica de umconjunto de premissas filosóficas sobre a natureza humana. Se não se acreditaque o homem é da maneira que ele descreve, pode-se permitir também pensar que existem alternativas à balança de poder, ou que o dilema moral da ação

  política não é necessariamente da maneira por ele apresentada. Todas essasconstatações são, para Morgenthau, meras extensões teóricas e ético-normativasde sua visão de homem.

Por isso, é importante que qualquer apreciação de seu trabalho, por 

superficial que seja, deve estar necessariamente apontada para este núcleofilosófico, mais que para as suas implicações teóricas. O acadêmico que serecusa a entender e apreciar o realismo em suas considerações filosóficas erranecessariamente o âmbito de sua discussão, tomando um sistema de idéias pelasua aplicação específica, datada no tempo e no espaço, e atacando proposiçõesfilosóficas gerais – por mera natureza, em busca da atemporalidade – com asuperficialidade de quem só consegue perceber manifestações pontuais.

Proponho-me abaixo a comentar duas possibilidades de má-compreensão.

Dois Mal-Entendidos sobre o Realismo

Que a ‘natureza social do político’, enquanto ligação entrehomens, não leve à falsa idéia de que sua essência é‘determinada pela construção particular do Estado’. Aqueleque assim procede se tornará preso em um círculo, poismesmo o estatal carece de uma explicação: e, justamente, pelo político.

Frei (1994): 131 

Uma leitura mal-feita do realismo político de Morgenthau é capaz de levar o seu

leitor a dois tipos básicos de mal-entendidos, um no plano teórico e outro no plano filosófico. O próprio autor alerta seus críticos a respeito desse problema:

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  Na ocasião do prefácio à segunda edição [em 1954] (...), pude expressar meu

 pesar pelo destino de certos autores, de ‘serem criticados por idéias que eles nuncativeram’. Eu continuo sendo assim criticado. Eu continuo escutando que acredito na

 proeminência de um sistema internacional baseado no Estado-Nação, ainda que a suaobsolescência e a necessidade de se inseri-lo em organizações supranacionais denatureza funcional estavam entre meus principais pontos já na primeira edição de1948. (...) E, é claro, eu continuo sendo acusado de indiferença em relação ao

 problema moral, a despeito de evidência em abundância, neste livro e em outros, aocontrário.

( Politics Among Nations, prefácio à 3 ª Ed., 1960)

O primeiro erro consiste na idéia de que o realismo de Morgenthau é uma teoriadas relações internacionais que se prende à análise do Estado em detrimento deoutros atores políticos, como se ele fosse o único74. Acima de tudo, esse tipo de

crítica trás consigo a ausência da sensibilidade filosófica necessária paraentender que, de acordo com Morgenthau, o Estado não é mais do que umainstituição específica na qual as relações políticas entre os homens semanifestam, datada – como não poderia deixar de ser – no tempo e no espaço.75 

É possível que o erro de se tomar o objeto de estudo pela visão de mundotenda a se intensificar à medida que a preocupação com a ‘unidade’ estatalganha terreno na ciência política (independentemente ou não do Estado estar mais ou menos ‘unitário’ nos dias de hoje do que, digamos, na década de 50). Ofruto desse erro é a crítica ao realismo como uma teoria empiricamente fraca e

ultrapassada diante de novas realidades, sem que se preste atenção à sua  profundidade filosófica. Um exemplo desse fenômeno é o teórico que,acreditando ser o Estado, tal como Morgenthau o via há mais de cinqüenta anos,diferente do Estado de hoje, e observando que a Guerra Fria, identificada entãocomo a principal ameaça à paz, já terminou, constata daí que o realismo, então,também já teve o seu apogeu, mas não serve mais para a compreensão darealidade política de hoje.

O defeito dessa forma de se encarar o pensamento de Morgenthau é queela, cega para as verdadeiras fundações de seu trabalho, ignora solenemente

aquilo que há de mais importante em toda a sua obra, na verdade na obra dequalquer pensador: a própria visão filosófica, fornecedora de sentido a suas proposições teóricas e fonte daquilo que há de atemporal em seus escritos. Seriacomo dizer que Maquiavel e Aristóteles não têm validade teórica hoje porque osobjetos que eles observam – os principados italianos em um mundo pré-estatal,

74 Possivelmente complementada pela constatação também errada de que a sua proposta ético-normativa, explicitada no capítulo 4 deste trabalho, só valha para as relações políticas entreEstados-nações. 

75 “...a conexão contemporânea entre interesse e o Estado-Nação é um produto da história e é,

 portanto, passível de desaparecimento no decorrer da história. Nada na visão realista se opõe à  possibilidade de que a presente divisão do mundo político em Estados-Nação sejasubstituída...” (1948:10) 

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ou a pólis grega – não são mais realidade.76 Como vimos, ao versar sobre os Estados, na verdade o que se está fazendo

é a aplicação de princípios filosóficos gerais a respeito da natureza humana

sobre a realidade estatal (e a teoria da balança de poder é certamente o exemplomais conhecido dessa superposição). Como o político emana, de acordo com orealismo, da própria natureza humana, ele não se prende ao Estado. Na verdade,o político antecede ao Estado, assim como ele antecede a qualquer outra formade organização política. Mas o olhar (pretensamente) desprovido de filosofia, aose direcionar para a obra de Morgenthau, tende a desconsiderar suas premissasmetafísicas (juntamente com a própria desconsideração da importância dafilosofia) e corre o risco de interpretar os objetos de análise (os Estadosnacionais) como se eles fossem a própria visão de mundo. Morgenthau se

 propõe simplesmente a entender as relações políticas entre Estados. Muitos deseus críticos vão além: acusam-no de defender que os Estados são os únicosatores na cena política internacional, e passam então a construir suas teorias‘alternativas’ com base nesta ‘constatação’. Perderam, portanto, o ponto central,e passaram a trabalhar em outro nível de discussão.

Essa forma de entendimento está errada desde as bases, roubando semreflexão alguma nada menos que a própria dignidade da filosofia política. Pois o

 ponto central, neste caso, não é determinar se o Estado é o único ator político nomundo, ou se há outras instituições e organizações relevantes; se há empresastransnacionais e movimentos sociais, ou se há indivíduos agindo soltos por aí

com explosivos amarrados pelo corpo. O que Morgenthau quer dizer é que omais importante é descrever e entender o homem: aquele que, em seu tempo, eem suas circunstâncias, molda com suas ações, e em suas interações, ofuncionamento do Estado, determinando por meio de seus atos a dinâmica da

 política – nacional, internacional, regional, institucional ou como quer que sejaconcebida a sua fronteira. Quanto às discussões sobre se o Estado nacional seenfraqueceu ou fortaleceu, se cedeu espaço para novas organizações e formas delealdades primárias, ou se o homem encontrou novas maneiras e canais paraafirmar identidade, poder e prestígio, nada disso é ainda em si um desafio à

visão de mundo realista; ao contrário, são apenas novos objetos apresentando-seao juízo teórico, cada um com o seu potencial próprio de realidade política econflito humano, a esperar pela impagável mirada, na qual um observador sereconhece e os reconhece. Essa mirada varia necessariamente em nuance, deacordo com o temperamento e a individualidade daquele que olha – e não hánada de errado nisso. Pois os objetos do conhecimento em ciências humanas – o

76 Um ditado medieval nos ensina a “não jogar o bebê fora junto com a água da banheira” (‘don´tthrow the baby with the bathwater’). O ditado resume bem o que quero dizer aqui, quando

observamos que críticas se dirigem mais ao objeto do pensamento de Morgenthau (o Estado)do que à substância de suas premissas sobre política e poder (‘power politics’). Como se estasúltimas, por sua vez, não fossem mais úteis à compreensão da realidade atual. 

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indivíduo, a família, o grupo, o Estado, uma associação, o Congresso Nacional,e quantos outros – são sempre corpos sem vida à espera do anima analítico, eesse anima provêm não de mensurações, não de quantificações, mas sim, e

sempre, do sujeito que os observa. Se a função da ciência par excellence éentender o funcionamento desses corpos, buscando as suas relações ecausalidades interiores e entre si, e se é possível e desejável dominar a lógicados mais finos e sutis detalhes quantificáveis, no entanto a identificação daessência da coisa ela mesma (o elemento político, a luta por poder e prestígio, ofenômeno da dominação e as maneiras como essas três coisas se manifestamfenomenologicamente em diferentes tempos e contextos), será para sempre uma

  prerrogativa intransferível do analista político, sujeito do conhecimento,inescapavelmente prenho de uma visão de mundo filosófica, e aqui estamosfalando de decisões pessoais, íntimas, ou seja, daquilo que se aceitaindividualmente como a fronteira do humano e do real.

O processo de educação em ciência política e ciências sociais, dessaforma, muito mais do que a acumulação de dados e o treino metodológico stritosensu, deve se concentrar no cultivo de qualidades que não podem ser alcançadas pela extensão da quantidade e do método: a intuição, o juízo crítico,a sensibilidade, o talento artístico e, principalmente, aquela tão salutar introspecção que é o mais precioso bem da filosofia desde Descartes e Berkeley(para quem ‘não há objeto sem sujeito’), e que por si só é capaz de gerar umsólido ponto de apoio intelectual para aquele que se propõe a ser um observador 

dos eventos sociais e políticos. Tais qualidades não podem ser encontradas nosnúmeros e nas estatísticas; não podem ser compradas pelo dinheiro, e certamentetranscendem os assentos, as lousas e as paredes de uma instituição de ensino: oseu laboratório é o mundo, a vida. Assim como ontem, amanhã e sempre, elasterminam desenvolvendo o melhor que têm a oferecer, em cada um, ao longo da

  própria existência e do amadurecimento individual, por meio do trabalhointerpessoal e, acima de tudo, da consciência de estar convivendo em sociedade,com todos os seus problemas e a sua diversidade de objetivos e vontadesindividuais; a consciência de ser um homem entre outros homens, entender com

coragem e honestidade aquilo que é o humano, demasiado humano, e também oque ele pode significar na prática – muitas vezes, como podemos observar todosos dias, espetáculos nada agradáveis, ou desejáveis.

***

Existe um segundo mal-entendido possível em relação à proposta normativatrazida pelo realismo político. Enquanto que a idéia de Morgenthau é ‘descobrir as regras pelas quais a sociedade funciona’ para a partir de então saber como

lidar melhor com os problemas que surgem disso, o leitor desatento pode ser levado por uma espécie de choque de compreensão a negligenciar os aspectos

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morais e o idealismo da proposta de sua obra, equacionando o realismo políticocom alguma forma de apologia do poder pelo poder. Quando me refiro a talchoque da compreensão, tenho em mente uma espécie de intoxicação que toma

conta daqueles que, não estando acostumados, ou tendo sido pegos de surpresa  pela crueza e brutalidade das constatações de Morgenthau, perdem os parâmetros para julgar sua obra em sua inteireza.

Esse fenômeno é bastante comum no caso de Politics Among Nations.Todos os elementos normativos do pensamento de Morgenthau estão contidosneste livro; a preocupação com os freios para a vontade de poder e aidentificação de uma grave ameaça à paz são suas próprias temáticas. Noentanto, assombrado pelas afirmações dos primeiros capítulos, o leitor corre orisco de perder o fio-da-meada do livro, tamanha revolta diante daquilo queacabou de ler, e termina por negligenciar a verdadeira preocupação,expressamente manifestada pelo autor em diversos dos capítulos seguintes. Por outro lado, há ainda a possibilidade do efeito justamente contrário: o risco deque ele seja arrebatado por aquilo que é explicitado no começo do livro sem se

  preocupar com a sua continuação, na medida em que a caracterização davontade de poder lhe toca de forma tão profunda em sua experiência sensível einterior, que ele se dá por satisfeito só em saber da existência dela em um

 pensamento teórico.  Nesse sentido, um curioso exercício (pelo menos nos lugares onde

indivíduos se sentem no direito de rabiscar livros que são públicos) é, em uma

 biblioteca, buscar as cópias de Politics Among Nations ou Scientific Man versusPower Politics e ver os comentários de seus leitores, com suas marcações etrechos sublinhados. Em muitas dessas ocasiões, tem-se a impressão de que no

  primeiro caso o leitor é provavelmente um idealista radical, mesmo profético, por vezes capaz de se acreditar diante de uma manifestação quase demoníaca, aover um analista que se aproxima da questão do poder com tanta crueza; já osegundo corre o risco de ser um apologeta do poder.

Certamente que ambas impressões devem ser tratadas com uma boa pitadade sal, e neste ponto encerro minhas considerações. Mas se me for ainda

  possível deixar uma mensagem ao leitor deste trabalho, que me concedeu ahonra de sua companhia até este momento final, que seja um amigável convite ase considerar a obra de Hans Morgenthau em toda a sua seriedade: acima detudo, as clássicas 246 páginas de Scientific Man versus Power Politics, um livroque é pouquíssimo conhecido mesmo nos círculos de relações internacionais,mas que trás dentro de si a rara e densa sabedoria dos grandes pensadores. Amesma seriedade, após um momento de familiarização com o vocabulário, dedecantação do conteúdo, e tomando os seus livros em contraste com boa partedaquilo que se produz em ciência política, trará então o reconhecimento de que

não estamos diante de uma reflexão trivial. Da mesma forma como a própriaexistência individual de nosso autor, ao longo dos seus atribulados 76 anos,

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também não foi nada de trivial – e para conhecê-la melhor, remeto o leitor àexcelente biografia escrita por Christoph Frei, também disponível desde o anode 2001 em língua inglesa.

Como palavras finais, e contra formas potencialmente erradas de se perceber a proposta de Morgenthau, ofereço ainda uma última citação:

 Ainda assim, enquanto a ciência política deve lidar com o problema do poder, deveadaptar sua ênfase às circunstâncias temporais, que estão em constante mudança.Quando os tempos tendem a depreciar o elemento do poder, ela deve enfatizar suaimportância. Quando os tempos se inclinam em direção a uma visão monística de

  poder no esquema geral das coisas, ela deve mostrar suas limitações. Quando ostempos concebem poder primariamente em termos militares, ela deve chamar aatenção para a variedade de fatores que entram na equação do poder e,

  particularmente, para a sutil relação psicológica que dá forma à teia do poder.Quando a realidade do poder perde visão de suas limitações morais e jurídicas, eladeve apontar para essa realidade. Quando lei e moralidade são reduzidas a nada, eladeve mostrar o lugar que lhes diz o devido respeito. (1958: 38)

O realismo não é a apologia do poder; é muito mais o reconhecimento derealidades do poder, frente à necessidade de se materializar a melhor forma

 possível (uma vez que essas realidades não são algo que se possa eliminar destemundo) de ação em meio à sociedade, com vistas a valores que são visivelmentecompartilhados pelos próprios idealistas. A grande diferença entre realismo eidealismo, portanto, não reside nos valores que ambas correntes filosóficas

 buscam realizar; mas sim, em sua discussão filosófica abstrata, no curso de açãoa ser tomado para alcançá-los e nas expectativas de realização desses valores,considerando aquilo que cada uma delas acredita ver no ser humano e narealidade social.

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BIBLIOGRAFIA  

Em meio às referências da obra de Hans J. Morgenthau, aquelas seguidas pelasigla “HJM-B” dizem respeito aos seus manuscritos não publicados. A sigla“HJM” se refere ao seu nome, enquanto que o último “B” se refere a “Box”, àscaixas, seguidas pelo número, nas quais tais manuscritos são guardados naBiblioteca do Congresso, em Washington, EUA.

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