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documenta 001, Junho de 2010 Doc’s Kingdom 2010: a imagem-arquivo Inaugurando uma série de cadernos da responsabilidade da Apordoc (associação pelo do- cumentário), este número é totalmente dedicado à próxima edição do Seminário Interna- cional sobre Cinema Documental Doc’s Kingdom (Serpa, 16-20 de Junho) e ao seu tema de partida – a imagem-arquivo. O que é o Doc’s Kingdom? Lançado há exactamente dez anos, o seminário é um en- contro de visionamento e discussão de filmes que se oferece como alternativa à dimensão quantitativa dos festivais. Um mesmo grupo de participantes (sem divisão em eventos paralelos) vê alguns filmes fortes e diversos e conversa informalmente sobre eles. O seminário é a experiência grupal, cumulativa, dos seus participantes em três vertentes inseparáveis: os visionamentos; as conversas livres em torno dos filmes na presença dos seus autores; o encontro em sentido lato. A referência-tributo ins- crita no nome tem dimensão programática: o filme homónimo de Robert Kramer rodado em Portugal na década de oitenta é uma obra de quem filmou sempre entre o documentário e a ficção e a questionar o próprio gesto de filmar. Este é um encontro sobre o documentário contemporâneo em que se olha a área de forma aberta, sem preocupação de definições, com o único objectivo de discutir o cinema. É um encontro com filmes resistentes à pa- dronização e à facilidade que desejavelmente consiste, ele próprio, numa plataforma de resistência ao visionamento-consumo. Finalmente, é um encontro disponível para abarcar a dinâmica dos participantes, e em que o tema é (só) uma sugestão de partida. Na origem do programa deste ano esteve então o conceito de imagem-arquivo. Propomo- -lo com a vontade explícita de ultrapassar a habitual formulação de “filmes com imagens de arquivo”. Vendo por este último prisma, estaríamos a falar de algo que acompanhou a história do cinema desde, pelo menos, as vanguardas da década de vinte do século passa- do – o filme-compilação, ou filme-de-montagem, que veio depois a triunfar com renovadas facetas nos últimos anos do século (pela primeira vez o balanço dum século foi passível de articulação com um século de imagens, e a ideia de trabalhar sobre imagens anteriores independentemente do estatuto delas veio também dar testemunho das grandes muta- ções que, entretanto, tinham incidido sobre o conceito de património e a forma de ver a “imagem em movimento”). Não se trata portanto apenas disso, mesmo que a génese do novo conceito não seja alheia a isso. O que acontece é que, a par da explosão do recurso aos arquivos para revisitar a História – ou as histórias, cruzando memórias individuais e familiares com dimensões comunitárias, nacionais ou outras – foram surgindo autores para quem a ideia de arquivo já tinha outra natureza, muito menos memorialística do que seminal. Cruzando-se com movimentos oriundos da história de arte ou com o trabalho de artistas plásticos que não raro integraram a fotografia e o cinema, estes realizado- res usaram a ideia em sentido lato – não só arquivos de imagens mas arqui- vos tout court, colecções, listas, séries, ou simplesmente a seriação de um tema com as respectivas variações… – ligando-a à busca de um novo fio condutor do seu próprio percurso. Neste caso, a imagem-arquivo tanto pode ser uma imagem “de arquivo” como uma imagem nova, sem que o princípio se altere com a passagem de uma a outra. A imagem-arquivo pode ser uma releitura da História, ou da história do cinema e da arte – como em Cozarinsky, ou na ponte que vai de Godard a Bitomsky. Mas pode ser toda aquela em que, na dimensão interna do plano ou na liga- ção entre planos, se faz a exploração sistemática dum universo particu- lar (que pode abarcar objectos, gestos, comunidades, quaisquer elementos materiais, referências…) e em que esse universo é visto como microcosmo, em termos metafóricos ou metonímicos. Na acepção que aqui nos interessa, é, sempre, um espaço refundador. Esta é uma sugestão, entre várias possíveis, para entrar no mundo de alguns autores que es- tarão connosco em Serpa – Hartmut Bitomsky, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, Ed- gardo Cozarinsky, Susana de Sousa Dias. Uma sugestão de arranque, não – repito – um tema fechado. Como sempre, no próprio encontro, cada projecção individual será um novo ponto de partida e o rumo das conversas será também aquele que o grupo de participantes determinar. x José Manuel Costa Organização: Apordoc T (+ 351 218 885 266) Informações e inscrições: www.docskingdom.org [email protected] HARTMUT BITOMSKY Não existem filmes novos e filmes antigos, só existem filmes que vimos e filmes que não vimos. YERVANT GIANIKIAN & ANGELA RICCI LUCCHI Os caminhos na película são infinitos, especialmente quando se começa a descer em profundidade para dentro do fotograma. EDGARDO COZARINSKY O que me atrai é um jogo talvez mais próximo daquele que levava Borges a inventar histórias a partir de notas de rodapé num livro de História. SUSANA DE SOUSA DIAS Como se transfigura uma imagem através da duração que lhe é imposta? Quanto tempo aguenta um grande plano em ‘grande plano’? Staub, Hartmut Bitomsky Doc’s Kingdom Seminário Internacional sobre Cinema Documental Serpa 16-20 Junho 2010 documenta cadernos de documentário 001 Os cadernos documenta são uma publicação mensal da Apordoc distribuída com o Le Monde diplomatique – edição portuguesa. A publicação tem uma direcção editorial rotativa e cada número privilegia um tema ou autor. O nº 1, dedicado ao Doc’s Kingdom, é coordenado por José Manuel Costa, Joana Frazão e Ana Eliseu. Apordoc – Associação pelo Documentário, Largo da Madalena, 1 – 1º 1100-317 Lisboa, tel : 218 883 093 – [email protected] - www.apordoc.org

HARTMUT BITOMSKY YERVANT GIANIKIAN EDGARDO ......do – o filme-compilação, ou filme-de-montagem, que veio depois a triunfar com renovadas facetas nos últimos anos do século (pela

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documenta 001, Junho de 2010

Doc’s Kingdom 2010: a imagem-arquivo Inaugurando uma série de cadernos da responsabilidade da Apordoc (associação pelo do-cumentário), este número é totalmente dedicado à próxima edição do Seminário Interna-cional sobre Cinema Documental Doc’s Kingdom (Serpa, 16-20 de Junho) e ao seu tema de partida – a imagem-arquivo.O que é o Doc’s Kingdom? Lançado há exactamente dez anos, o seminário é um en-contro de visionamento e discussão de filmes que se oferece como alternativa à dimensão quantitativa dos festivais. Um mesmo grupo de participantes (sem divisão em eventos paralelos) vê alguns filmes fortes e diversos e conversa informalmente sobre eles. O seminário é a experiência grupal, cumulativa, dos seus participantes em três vertentes inseparáveis: os visionamentos; as conversas livres em torno dos filmes na presença dos seus autores; o encontro em sentido lato. A referência-tributo ins-crita no nome tem dimensão programática: o filme homónimo de Robert Kramer rodado em Portugal na década de oitenta é uma obra de quem filmou sempre entre o documentário e a ficção e a questionar o próprio gesto de filmar. Este é um encontro sobre o documentário contemporâneo em que se olha a área de forma aberta, sem preocupação de definições, com o único objectivo de discutir o cinema. É um encontro com filmes resistentes à pa-dronização e à facilidade que desejavelmente consiste, ele próprio, numa plataforma de resistência ao visionamento-consumo. Finalmente, é um encontro disponível para abarcar a dinâmica dos participantes, e em que o tema é (só) uma sugestão de partida.Na origem do programa deste ano esteve então o conceito de imagem-arquivo. Propomo--lo com a vontade explícita de ultrapassar a habitual formulação de “filmes com imagens de arquivo”. Vendo por este último prisma, estaríamos a falar de algo que acompanhou a história do cinema desde, pelo menos, as vanguardas da década de vinte do século passa-do – o filme-compilação, ou filme-de-montagem, que veio depois a triunfar com renovadas facetas nos últimos anos do século (pela primeira vez o balanço dum século foi passível de articulação com um século de imagens, e a ideia de trabalhar sobre imagens anteriores independentemente do estatuto delas veio também dar testemunho das grandes muta-ções que, entretanto, tinham incidido sobre o conceito de património e a forma de ver a

“imagem em movimento”). Não se trata portanto apenas disso, mesmo que a génese do novo conceito não seja alheia a isso. O que acontece é que, a par da explosão do recurso aos arquivos para revisitar a História – ou as histórias, cruzando memórias individuais e familiares com dimensões comunitárias, nacionais ou outras – foram surgindo autores para quem a ideia de arquivo já tinha outra natureza, muito menos memorialística do que seminal. Cruzando-se com movimentos oriundos da história de arte ou com o trabalho de

artistas plásticos que não raro integraram a fotografia e o cinema, estes realizado-res usaram a ideia em sentido lato – não só arquivos de imagens mas arqui-

vos tout court, colecções, listas, séries, ou simplesmente a seriação de um tema com as respectivas variações… – ligando-a à busca de um novo fio

condutor do seu próprio percurso. Neste caso, a imagem-arquivo tanto pode ser uma imagem “de arquivo” como uma imagem nova, sem que o princípio se altere com a passagem de uma a outra. A imagem-arquivo pode ser uma releitura da História, ou da história do cinema e da arte – como em Cozarinsky, ou na ponte que vai de Godard a Bitomsky. Mas

pode ser toda aquela em que, na dimensão interna do plano ou na liga-ção entre planos, se faz a exploração sistemática dum universo particu-

lar (que pode abarcar objectos, gestos, comunidades, quaisquer elementos materiais, referências…) e em que esse universo é visto como microcosmo, em

termos metafóricos ou metonímicos. Na acepção que aqui nos interessa, é, sempre, um espaço refundador.Esta é uma sugestão, entre várias possíveis, para entrar no mundo de alguns autores que es-tarão connosco em Serpa – Hartmut Bitomsky, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, Ed-gardo Cozarinsky, Susana de Sousa Dias. Uma sugestão de arranque, não – repito – um tema fechado. Como sempre, no próprio encontro, cada projecção individual será um novo ponto de partida e o rumo das conversas será também aquele que o grupo de participantes determinar. x José Manuel Costa

Organização: Apordoc T (+ 351 218 885 266) Informações e inscrições: www.docskingdom.org [email protected]

HARTMUT BITOMSKYNão existem filmes novos e filmes antigos,

só existem filmes que vimos e filmes que não vimos.

YERVANT GIANIKIAN & ANGELA RICCI LUCCHIOs caminhos na película são infinitos,

especialmente quando se começa a descer em profundidade para den tro do fotograma.

EDGARDO COZARINSKYO que me atrai é um jogo talvez mais próximo daquele que levava Borges a inventar histórias a partir de notas

de rodapé num livro de História.

SUSANA DE SOUSA DIASComo se transfigura uma imagem através

da duração que lhe é imposta? Quanto tempo aguenta um grande plano

em ‘grande plano’?

Staub, Hartmut Bitomsky

Doc’s KingdomSeminário

Internacional

sobre Cinema Documental

Serpa

16-20 Junho 2010

documenta

cadernos de documentário 001

Os cadernos documenta são uma publicação mensal da Apordoc distribuída com o Le Monde diplomatique – edição portuguesa. A publicação tem uma direcção editorial rotativa e cada número privilegia um tema ou autor. O nº 1, dedicado ao Doc’s Kingdom, é coordenado por José Manuel Costa, Joana Frazão e Ana Eliseu.Apordoc – Associação pelo Documentário, Largo da Madalena, 1 – 1º 1100-317 Lisboa, tel : 218 883 093 – [email protected] - www.apordoc.org

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documenta 001, Junho de 2010

No seu ensaio “Die Dokumentarische Welt”, o realizador docu-mental Hartmut Bitomksy avançou a ideia da imagem do filme documental enquanto ready-made. Como o artista, o realizador transporta um objecto do seu ambiente original para um novo contexto. Levando esta ideia mais longe, não é só o facto de ele tratar as imagens como objectos, mas o facto de as imagens também serem de ob-jectos: a Autobahn, o carocha, o bombardeiro B-52. Contrariando o interesse actual dos documentários pelo retrato de vidas enquanto casos individuais ou bizarros, Bitomsky interessa-se pelos efeitos sócio-económicos e planeados destes objectos funcionais de transporte e guerra. […]Para Bitomsky, o diálogo com as imagens é imperativo. As ima-gens não são meramente material “objectivo”, que permaneça inal-terado ao ser visto. […] “Não existem filmes novos e filmes antigos, só existem filmes que vimos e filmes que não vimos.” É a relação ao mesmo tempo entre o visível e a imaginação do realizador, por um lado, e o espectador, por outro, que produz uma nova entidade. Os seus documentários não se limitam a representar uma superfície empírica e visível – tornam-na visível. Bitomsky está interessado não só em criar imagens originais, mas em produzir novas imagens através da interacção do espectador com imagens já existentes. Os seus filmes examinam os processos de produção e desenham o ca-minho do seu material no modo como são feitos, tal como naquilo que mostram. […]Em muitos dos seus documentários, Bitomksy encontra “realida-de” em fotografias e imagens de arquivo. Na sua análise do cinema através dos meios do próprio medium, o fragmento mantém-se enquanto tal e não é subsumido num novo todo. O interesse de Bi-tomksy “começa depois de realidade e acontecimento já terem to-mado a forma de uma história” (Jutta Pirschat). O fragmento pode ser uma parte de uma máquina ou uma secção de uma imagem em movimento. O facto de a found footage ser exposta como um conjunto de fragmentos que não são integrados permite ao espec-tador examinar a sua construção sem se envolver. Nos filmes de

Bitomsky, torna-se sempre o espectador consciente do processo que é ver imagens. Isto consegue-se tornando a própria imagem um objecto, por exemplo enquadrando-a. Bitomsky segue o dictum

de Lévi-Strauss segundo o qual para compreender me-lhor as imagens é preciso resistir a experienciá-las, e

isto consegue-se tornando-as mais pequenas. Em Die UFA, por exemplo, a câmara filma vários monitores ao mesmo tempo, cada um mostrando imagens di-ferentes. Outra maneira de Bitomsky distanciar o espectador é mostrar fotografias em vez de imagens

em movimento, com a mão do realizador mexendo no material e virando as páginas de livros cheios de ima-

gens, em vez de ter as imagens a encher todo o ecrã. Isto dá ao espectador espaço para se afastar da imagens, mas tam-

bém mostra o realizador como um trabalhador manual, dado que as imagens fixas são impulsionadas por um trabalho manual. […]Apesar de os documentários de Bitomsky abordarem as conse-quências concretas de uma ideologia, não são directamente políti-cos. Os seus filmes traçam os conflitos entre os conceitos de ideo-logia e as causas e efeitos da indústria, não só no que diz respeito ao assunto dos filmes, mas também à indústria cinematográfica, de que os seus documentários fazem parte o menos possível. […]O seu estilo de escrita é semelhante ao das vozes off dos seus fil-mes: profundo e – o que é atípico em textos analíticos em alemão – construído em frases curtas. Bitomsky não só analisa imagens encontradas nos seus documentários mas, o que é pouco habitu-al para um realizador de documentários, publicou textos sobre os seus filmes. A “citação” visual de imagens encontradas nos filmes de Bitomsky pode talvez ser vista como uma continuação das suas frequentes citações de textos nas críticas de cinema mais antigas. Ao escrever sobre a recepção dos seus documentários que já re-flectem processos de produção de outros objectos da modernida-de, Bitomsky constrói uma trajectória circular na qual o processo de escrever sobre os seus filmes é semelhante ao de filmar ima-gens encontradas e objectos.x Silke Panse, Encyclopedia of the Documentary Film, ed. Ian Aitken,

Routledge, Nova Iorque, 2006

Alguém que lida com imagens de coisas

Foi classificado como um realizador de fil-mes de ensaio.Talvez isso seja um mal-entendido; eu faço documentários, e o documentário para mim ainda é um conceito útil, que cobre um grande número de possibilidades. Um filme de ensaio cria o seu próprio assun-to; inventa de certo modo o seu assunto no processo de fazer o filme. Estabelece o seu assunto.Enquanto que o documentário se refere a um assunto que existe independentemen-te dele e que foi estabelecido pela realida-de. Mas pode-se separar tão claramente os dois?É uma boa pergunta. Não se podem sepa-rar claramente porque o cinema não é uma ciência e não é literatura. Estou a pensar numa coisa que o Pavese escreveu no diá-rio, uma exigência que fazia à escrita, e que na verdade o cinema é muito mais capaz de satisfazer. Ele exige que a análise não seja

abertamente enunciada, mas que possa surgir, de uma maneira rítmica, a partir de uma apreensão intrincada e coesa da reali-dade. Intrincada e coesa! A análise tem de estar incluída na vida.[Falando a propósito da Nouvelle Vague.]Em termos gerais podia-se redescobrir que a base do cinema é o plano. O filme é uma série de planos que às vezes ficam juntos e às vezes se afastam uns dos outros. É uma lição que nunca hei-de esquecer. In-felizmente, o plano perdeu-se um bocado no documentário, sob a influência do Cine-ma Directo americano. Eles disseram: fora com isso, nada deve apontar para o proces-so de fazer um filme, deve dar a ideia de que, no momento de filmar, não estava ne-nhuma câmara em posição. Antes de mais, eu vejo-me como um realizador, como al-guém que faz imagens de coisas e lida com imagens de coisas.Primeiro, é preciso uma pessoa avançar para o objecto – ele não se apresenta numa bandeja de prata, tem de ser conquistado. Antes de mais é preciso desenvolver co-nhecimento, estudar as coisas de todos os ângulos, e depois acumular ideias, acu-mulá-las e esquecê-las e depois voltar a descobri-las. As regras não estão escritas em lado nenhum, e é assim que começa o trabalho num documentário.A partir daqui, há quem tire a conclusão de que seria melhor não saber nada de nada antecipadamente, de modo a abordar o assunto com uma atitude completamente imparcial, e colocarmo-nos a nós e ao filme nas mãos do assunto. Mas eu acredito que todos os tipos de ignorância são terríveis e que não levam senão à estupidez.x Theo Bromin conversa com Hartmut Bitomsky,

“Dem Kino das Wirkliche zurückgeben”, Hart-

mut Bitomksy: Retrospektive, Goethe-Institut

München, 1997

Hartmut BitomskyUma análise do cinema pelo cinema

De que é que andamos à procura? Duas respostas simultâneas, sempre, misturam-se e dificultam as buscas. Ontem e hoje. O cinema e a História. O documento e a realidade de que ele se reivindica. Como fazer hoje o que ontem proibiu? Como integrar, duma forma que não seja a do arquivo bem-pensante, a véspera na necessidade de amanhã? Militar pela inteligência, à custa de queimar as forças de uma arte manchada pelas cedências, eis a tarefa rara do cinema, também ele raro, de Hartmut Bitomsky. Como ele declarou, parecendo retomar uma famosa análise de Adorno a propósito do sucesso problemático de Mozart: “Um documentarista não inventa o mundo, sucede-lhe. E o trabalho documental é o de dizer sim ao mundo, opondo-lhe ao mesmo tempo um não.”

x Jean-Pierre Rehm , Catalogue du FID Marseille, 2006 (por ocasião da retrospectiva Hartmut Bitomsky)

Hartmut Bitomksy

avançou a ideia

da imagem

do filme documental

enquanto

ready-made.

* Imagens: Flächen , Kino, Bunker (1, 2, 3). Das Kino und der Wind und die Photographie (4) — Hartmut Bitomsky

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documenta 001, Junho de 2010

A nossa intenção não é utilizarmos os arquivos por si só. Não é a arqueologia, nem a nostalgia, mas os arquivos pelo presente. O hoje com os materiais de ontem. Manipulações do ready-made para o futuro.

x Yervant Gianikian & Angela Ricci Lucchi, “Voyages en Russie. Autour des avant-gardes”, Trafic n.º 33, Primavera 2000

A construção de uma “câmara analítica” permite-nos aproximar, entrar em profundidade no fotograma. Intervir na velocidade do filme, no detalhe, na cor. Fixar e reproduzir em formas pouco habituais o material de arquivo. Graças a ela, realizamos as nossas “catalogações”, arquivamos, de entre a massa de imagens encontradas e que possuímos, aquelas que provocam em nós fortes tensões. Usar o antigo para o novo, para fazer emergir actualidades, sentidos ocultos, para inverter os sentidos primeiros. Memórias de fim de milénio sobre os comportamentos, as ideologias.

x Yervant Gianikian & Angela Ricci Lucchi , “Notre camera analytique”, Trafic n.º13, Inverno 1995

Yervant Gianikian & Angela Ricci LucchiNum filme podem caber muitos filmes Documentários feitos à mão

O ensaio cinematográfico poderia ser de-finido como uma permeabilidade ao real e uma visão inquieta do mundo, uma via-gem aos meandros muitas vezes dolorosos da memória e uma escrita no presente, a combinação de materiais objectivos “já existentes” (o arquivo de arquivos segundo os Gianikian) e a reinvidicação subjectiva da montagem. […]O verdadeiro material dos filmes dos Gia-nikian não é a realidade, como é o caso do documentário tradicional. O material que modelam, que manipulam, que “vêem à mão”, é uma realidade registada com a sua temporalidade própria que se oferece à tangibilidade do visionamento, fotograma por fotograma, e da montagem. […]Aumentar, pormenorizar, estender cons-tituem gestos de extracção ideológica de partes da imagem, metamorfoseando os arquivos iniciais manipulados em incon-testáveis discursos ideológicos dos nossos dias. Além disso, estes mesmos gestos ex-traem, aprisionam nos movimentos huma-nos colectivos olhares que sem o saberem, várias décadas mais tarde, individualizam testemunhas tornadas anónimas, olhares reflectidos no dos Gianikian.É assim que os filmes dos Gianikian seriam ensaios por excelência, se nos consentís-semos a fantasia teórica de os definir como documentários feitos à mão.x Danièle Hibon e Dominique Païni, Cinema

Anni Vita – Yervant Gianikian e Angela Ricci

Lucchi, ed. Paolo Mareghetti e Enriço Noseil,

Il Castoro, 2000

Mas mais do que pelo seu valor de “documento”, o fotograma pare-ce interessar-vos como superfície a atravessar. Os materiais encon-trados tornam-se “vossos” graças a um trabalho profundo dentro do fotograma, escolhendo coisas que às vezes escapam à exibição normal, aquilo que está em pano de fundo, os pormenores que ao primeiro autor não pareciam os mais importantes.YG O fotograma é entendido como objecto a partir do qual come-ça todo o traba lho de montagem. Basicamente, trata-se de voltar a fotografar a imagem. É como olhar demoradamente uma foto-grafia, imobilizá-la o tempo necessário, isolar alguns pormeno res no interior, aproximar-se mais. Normalmente nunca filmamos o fotograma inteiro, ficamos lá dentro, mais próximos. Em Essen-ce d’Absynthe, por exemplo, estávamos muito interessados nos riscos da película, na grelha de arranhões; era como se tivessem visto o filme milhares de vezes, como se houvesse um véu, com a imagem a aparecer por trás. Conforme o filme, o grande trabalho é juntá-lo. Karagöez é um filme quase montado na câmara, há poucos cortes e poucas colagens; andávamos muito presos aos significados da imagem, e as temáticas eram imen-sas. Pelo contrário, com Dal Polo all’Equatore procu-rámos fazer uma monta gem por blocos, temáticas, grupos de signifi cados. A montagem de Dal Polo all’Equatore foi muito complexa, as filmagens demoraram três anos, tínhamos uma quanti-dade enorme de material e não conseguíamos encontrar o caminho certo, depois fechámo-nos num quarto, sem as imagens, e agrupámos as te máticas. Normalmente começamos a monta-gem pelo início ou pelo fim do filme: em Dal Polo all’Equatore é a imagem do comboio que conduz todo o filme. Com materiais tão violentos não se podia jogar à maneira surrealista, estilo Buñuel, ou de forma literária.ARL A montagem é o momento de maior sofrimento, até porque é um momento de confronto directo entre mim e o Yervant, que é quem filma as imagens. Antes disso, também há trabalho em comum, naturalmente, na fase de planeamento e pesquisa. Depois,

enquanto ele filma, eu leio... Para Dal Polo all’Equatore, por exem-plo, li de tudo: horrores do género Mario Appelius e coisas extraor-dinárias como L’Afrique Fantôme. Voltamos a encontrar-nos para a montagem, tal como no momento em que se decide sobre os cortes, a coloração, etc... Não temos ideias muito diferentes, mas, de qualquer maneira, cada um tem o seu ponto de vista.YG Eu costumo andar muito às voltas en quanto a Angela vai logo directa ao assunto. Mas o problema é que os caminhos na película são infinitos, especialmente quando se começa a descer em pro-fundidade para den tro do fotograma. É um trabalho muito demora-do, não se pode montar mais de dois ou três minutos por dia. […]Uma parte do vosso trabalho, a redescoberta dos arquivos, en-trelaça-se com essa “nova filologia” cinematográfica que levou, nos últimos anos, à descoberta e ao restauro de obras do cinema mudo que se pensava tivessem desaparecido para sempre.ARL Nós utilizamos os arquivos para criar filmes completamen-te novos, diferentes do significado original, tornamo-los filmes

nos sos […]YG O período mais difícil foi o princípio da década de 80,

porque as pessoas não percebiam como é que num filme podiam caber muitos filmes; o único jogo que

os espectadores faziam era o de reconhecer as ci-tações, e isto parecia-nos muito restritivo. Todavia, de um certo ponto de vista, por trás dos nossos filmes está também um cuidadoso trabalho filo-lógico. Nós analisamos em pormenor e cataloga-

mos todos os filmes que nos interessam, contando até os fotogramas que compõem uma sequência.

Fazemos descrições quase completas, sabemos exac-tamente como começam e como acabam todas as sequên-

cias. De qualquer maneira, a pesquisa filológica não passa de uma base para o trabalho. x Sergio Toffeti e Daniela Giuffrida conversam com Gianikian e Ricci

Lucchi, Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi, ed. Sergio Toffetti,

Hopefulmoster, Museo Nazionale del Cinema, Cinemazero,

Florença e Turim, 1992

A Angela e eu

utilizamos os arquivos

para criar filmes comple-

tamente novos, diferentes

do significado original,

tornamo-los filmes

nossos.

* Imagens: Prigioneri della guerra (5), Lo specchio di Diana (6), Nocturne (7), Dal Polo all’Equatore (8) — Yervant Gianikian e Angela Ricci Lucchi

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documenta 001, Junho de 2010

Eu trabalho a partir de dados objectivos, mas com uma margem de desconheci-mento, com um vazio central que me per-mite aí verter o meu imaginário. Que vai trabalhar no interior de uma matéria que pareceria à partida exclui-lo. Nesta opera-ção, o que me atrai não é a possibilidade de fazer uma mudança brutal de contexto, como aquela de que beneficia o objet trou-vé exposto num museu, permitindo quer uma reflexão sobre esse mesmo desloca-mento quer um olhar fresco sobre a sua forma, tornada invisível porque demasiado familiar.O que me atrai é um jogo talvez mais pró-ximo daquele que levava Borges a inventar histórias a partir de notas de rodapé num livro de História, a fazer circular, como uma corrente eléctrica, o seu pensamento entre diferentes artigos de uma enciclo-

pédia… Na minha abordagem há manipu-lação e tergiversação, mas estas palavras perdem a ressonância de delito, porque o sentido que eu proponho não aspira a pro-duzir uma verdade mais “verdadeira” que expulsasse outra.Da mesma maneira que o apaixonado in-venta uma personagem, o ser amado, a partir do “modelo” que a realidade lhe fornece, o meu trabalho precisa de re-vestir uma forma, para que o meu prazer não seja só uma fantasia mais ou menos simpática e consoladora. Errância, deriva, palavras-fetiche de um pensamento re-cente, não me prometem prazer nenhum. Só o encontro no trabalho de assemblage, no agenciamento de contradições, no pôr em conversa materiais díspares.x Edgardo Cozarinsky, “Jounal d’un manipula-

teur”, Art Press Spécial, n.º 14, 1993

Cozarinsky inverteu – não hesito em dizê-lo – genialmente o princípio do documentário: aqui são as imagens que compõem o co-mentário em off. Não que elas o denunciem, o filme é mais subtil do que isso. Fazem-no ressoar ironicamente, sublinham o desco-nhecimento de que ele testemunha, en-quadram-no, como o enquadram as vozes comuns, odiosas, pomposas, estridentes, das actualidades de Vichy. Inversamente, o monologo íntimo e delicado do escritor desmente estas vozes estridentes. O prin-cípio do filme, numa palavra, é dialógico. A orquestração da montagem é polifónica, carnavalesca. Cozarinsky não recusa nada, não privilegia nunca um plano por relação a outro; ele mostra com o mesmo fôlego os desfiles de moda, as imagens de destrui-ção, os discursos de propaganda, as mani-festações oficiais, as dificuldades quotidia-

nas, as corridas de cavalos, os campos de concentração. Todas as dimensões da vida são co-presentes, as maiores e as mais pequenas, as mais “profundas” e as mais superficiais, as mais trágicas e as mais ridí-culas. Com este filme, estamos no coração daquilo que o discurso da História é incapaz de encadear, a multiplicidade da vida.E o resultado paradoxal é que este filme expressamente fundado em mentiras (pelo menos duas espécies de mentiras: as men-tiras triviais da propaganda e as mais subtis da literatura) constitui a descrição mais ver-dadeira, mais rica e mais fascinante sobre o período da Ocupação que alguma vez se viu no ecrã. Mesmo os documentos mais conhe-cidos aparecem sob uma nova luz. Tudo é inesperado, tudo é singular, tudo é intenso.x Pascal Bonitzer, “Description d’un Combat”,

Cahiers du Cinéma. n.º 333, Março 1982

Edgardo Cozarinsky

Susana de Sousa Dias

Pôr em conversa materiais díspares

Notas sobre 48

Sobre La guerre d’un seul homme

Quando, há poucos anos atrás, em respos-ta a um pedido meu, a direcção do Arquivo Nacional da Torre do Tombo me recusou a autorização para filmar algumas das foto-grafias dos presos políticos existentes no Arquivo da PIDE / DGS, eu estava longe de saber que um novo filme iria começar a desenvolver-se. Estávamos em 2003 e eu encontrava-me em plena realização de Natureza Morta – Visages d’une Dictature (2005). O filme dependia dessas imagens, algumas das quais eu própria já tinha fil-mado em 2000. Nessa época, registar es-sas fotografias não requeria qualquer tipo de autorização especial, a não ser a que era dada pelo próprio arquivo. Mas a direcção do arquivo entretanto mudara e com ela a interpretação da lei. Após insistência, a direcção justificou o motivo da recusa invocando o “direito à imagem”: para filmar as fotografias, eu teria de obter o acordo dos presos políti-cos. No caso de estes terem entretanto falecido, teria então de obter não só a au-torização dos herdeiros, como também de apresentar uma cópia da certidão de óbito. Não me vou deter aqui nos pormenores do complexo processo que me levou, ao fim de alguns meses, a obter as devidas autori-zações. Nem me vou aqui deter nos efeitos perversos que pode provocar a aplicação do “direito à imagem” às fotografias impo-sitivamente captadas pela polícia política

de um regime ditatorial que durou 48 anos. Refiro apenas que, em todo este processo, falei com dezenas de antigos presos polí-ticos. Inevitavelmente, comecei a ouvir as suas histórias, algumas acompanhadas por comentários às próprias imagens de ca-dastro: “Está a ver a camisola que eu tenho vestida?”; “Sabe por que eu estou com este sorriso?”; “Já reparou no meu cabelo?”.48 partiu de uma certeza: a de que é pos-sível contar uma história do regime ape-nas através destas imagens. Mas partiu também de muitas interrogações. Os rostos fotografados pela PIDE fitam-nos, interpelam-nos, perturbam-nos. Como filmá-los, mantendo a integridade desta interpelação? Que duração atribuir a cada plano para que o espaço de ecos e resso-nâncias que cada rosto comporta, possa ter existência? Como se transfigura uma imagem através da duração que lhe é im-posta? Quanto tempo aguenta um grande plano em “grande plano”? Qual o equilíbrio entre as palavras e os silêncios para que a imagem não fique inteiramente possuída pelo texto? E como construir um espaço que mais do que físico é conceptual? É preciso entender, todavia, em que condi-ções estas imagens foram captadas e o que se esconde por trás da sua funcionalidade. A imagem de cadastro é uma imagem que visa o essencial, providenciar o carácter ana-tómico do indivíduo, os traços fundamentais

para a sua identificação. Não por acaso, des-de a sua sistematização no século XIX por Alphonse Bertillon, têm conservado a sua forma canónica. A “dogmatização” levada a cabo por Bertillon (o termo é do próprio, em La Photographie Judiciaire, 1890), visava não só uniformizar os métodos de obten-ção da fotografia dos cadastrados, mas também torná-los preci-sos, eliminando qualquer factor de variabilidade, fosse este subjectivo ou circunstancial. Todo este processo confe-re uma transparência particular às imagens, originando, simulta-neamente uma desub-jectivação. No entanto, e apesar de concebida para melhor diferenciar os indiví-duos, a imagem de cadastro aca-ba por uniformizá-los, inserindo-os na noção geral de “figura de malfeitor”. Na verdade, apesar da aparente neutralidade operató-ria, estamos diante de imagens fortemente codificadas tanto do ponto de vista estético, como ideológico.48 procura, assim, operar na zona entre o que a fotografia mostra e o que ela não revela; mas também entre a analogia e o estranhamento, o enunciado e o vivido, a imagem e a memória. Pois estas fotogra-

fias também são tempo: o tempo contido dentro da fracção de segundo em que o preso enfrenta o opositor; o tempo que nos permite entrar dentro do universo enclau-surante das prisões políticas e estar dentro do instante onde se cruza o outrora com o agora; um tempo múltiplo que extravasa

as noções de passado, presente e futuro.

Através de uma linha nar-rativa que toma como

base as acções da po-lícia política sobre o corpo e a mente dos prisioneiros e de um dispositivo que procu-ra evidenciar a preg-

nância temporal da ima-gem, o filme organiza-se

através de um conjunto de sequências, cada uma delas

comportando um silêncio especí-fico. Estes silêncios não só criam o espaço

cinematográfico do filme como nos dão a sentir a própria presença corporal de cada um dos ex-prisioneiros, hoje. Através das suas palavras, o filme procura desvelar as imagens cuja função original, captar os sinais distintivos da fisionomia e servir de instrumento de identificação (mas também de poder), ainda hoje cria um véu que as impede de serem realmente vistas. x Susana de Sousa Dias

Inevitavelmente,

comecei a ouvir as suas histó-

rias, algumas acompanhadas por

comentários às próprias imagens

de cadastro: “Está a ver a camiso-

la que eu tenho vestida?”; “Sabe

por que eu estou com este

sorriso?”; “Já reparou

no meu cabelo?”

* Imagens 9 e 10: La guerre d’un seul homme — Edgardo Cozarinsky. Imagens 11 e 12: 48 — Susana de Sousa Dias

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