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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (3): 400-407, jul/set, 1994 401 interpretações mais comuns do fenômeno; o valor simbólico do sangue e do uso comunitário de agulhas se analisa com base na categoria “processos de liminaridade”; destaca-se a opção por fugir da ordem social ligada ao status e a criação de uma communitas com seus tipos específicos de relações. Também se aborda o perigo de reduzir os riscos envolvidos na práti- ca do uso de drogas, à infecção com HIV-AIDS. A terceira parte do livro traz um histórico dos discursos associados ao controle das doenças sexualmente transmissíveis no Brasil, como introdução ao estudo das políticas públicas contemporâneas sobre AIDS. Um outro capítulo analisa a gestão governamental relacionada com o sangue e hemoderivados no Brasil, na conjun- tura criada pela crise atual, a revisão do modelo assistencial, o estado da atual jurisprudência sobre a atual constituição, o movimento da reforma sanitária e a presença da AIDS. Poste- riormente, mediante um paralelo entre a situação de outras minorias oprimidas no passado, como é ilustrado pelo holocausto dos judeus, analisa- se a situação dos homossexuais, descobrindo-se como a AIDS revela as fraturas sociais, e a crise da saúde pública. Constata-se que se trata de um problema mais histórico, político e ideológico, do que estritamente médico. Conclui-se que as respostas devem ser articuladas ao nível da sua complexidade, e não sob a forma de medidas paliativas. Neste sentido, mais um capítulo aborda o ativismo como forma de resposta da comunidade organizada à epidemia. O livro consegue seu objetivo de fornecer uma visão abrangente da AIDS no Brasil tanto do ponto de vista dos pesquisadores em diversas áreas do conhecimento, como da perspectiva das pessoas comprometidas com a luta contra a AIDS. Esta visão é menos técnica, teórica e reducionista, e mais pragmática e interdiscipli- nar. Ela valoriza o discurso e a prática dos sujeitos estudados. Edgar Hamman Escola Nacional de Saúde Pública Fundação Oswaldo Cruz Health Affairs: The Quarterly Journal of the Health Sphere, volume 12, número 4 (Special Issue: Violence and the Public’s Health). Jane H. White (Executive Editor). Publicação do Project HOPE: Bethesda, Maryland, EUA, Winter 1993. ISSN 0278-2715 Health Affairs é um periódico interdisciplinar dedicado ao aprofundamento de políticas de saúde no âmbito nacional dos Estados Unidos e internacionalmente. Este número em especial está dedicado à reflexão e ao debate da Política Pública de Saúde para prevenir a Violência. A revista se organiza em sete partes, cinco das quais concernentes ao tema da violência: (1) artigos de pesquisa e análises; (2) comentários; (3) publicação de dados; (4) informações sobre financiamentos concedidos para pesquisas; (5) informações sobre publicações e relatórios; (6) resenhas de livros; (7) cartas dos leitores. 1. A primeira parte contém, em primeiro lugar, um artigo de James A. Mercy et al. sobre a “Política da Saúde Pública para prevenir a Violência”. Os autores colocam a violência como uma epidemia moderna que ameaça a América não apenas fisicamente, mas nas suas instituições básicas como a família, a comuni- dade e o próprio sistema de saúde. Partindo do princípio de que a saúde pública tem uma inegável experiência em prevenir doenças, combater epidemias, os autores afirmam que essa área de conhecimento e de ações traz para a sociedade uma nova visão de como prevenir a violência: praticando uma ciência integral capaz de identificar políticas e programas; articulan- do esforços de diversas disciplinas científicas, organizações e comunidades; discutindo as prioridades para a ação inclusive com a participação da sociedade. O artigo apresenta dados de uma série histórica dos homicídios nos Estados Unidos desde 1900 a 1990. É muito interessante a articulação desse texto com os que vêm logo a seguir, na medida em que todos passam a se referir ao primeiro e a discuti-lo, criticando suas premissas, propostas e conclusões.

Health Affairs: The Quarterly Journal of the Health Sphere · 1. A primeira parte contém, ... dos comerciantes e dos usuários. 2. A segunda parte da revista que consiste de

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Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 10 (3): 400-407, jul/set, 1994 401

interpretações mais comuns do fenômeno; ovalor simbólico do sangue e do uso comunitáriode agulhas se analisa com base na categoria“processos de liminaridade”; destaca-se a opçãopor fugir da ordem social ligada ao status e acriação de uma communitas com seus tiposespecíficos de relações. Também se aborda operigo de reduzir os riscos envolvidos na práti-ca do uso de drogas, à infecção com HIV-AIDS.

A terceira parte do livro traz um histórico dosdiscursos associados ao controle das doençassexualmente transmissíveis no Brasil, comointrodução ao estudo das políticas públicascontemporâneas sobre AIDS. Um outro capítuloanalisa a gestão governamental relacionada como sangue e hemoderivados no Brasil, na conjun-tura criada pela crise atual, a revisão do modeloassistencial, o estado da atual jurisprudênciasobre a atual constituição, o movimento dareforma sanitária e a presença da AIDS. Poste-riormente, mediante um paralelo entre a situaçãode outras minorias oprimidas no passado, comoé ilustrado pelo holocausto dos judeus, analisa-

se a situação dos homossexuais, descobrindo-secomo a AIDS revela as fraturas sociais, e a criseda saúde pública. Constata-se que se trata de umproblema mais histórico, político e ideológico,do que estritamente médico. Conclui-se que asrespostas devem ser articuladas ao nível da suacomplexidade, e não sob a forma de medidaspaliativas. Neste sentido, mais um capítuloaborda o ativismo como forma de resposta dacomunidade organizada à epidemia.

O livro consegue seu objetivo de fornecer umavisão abrangente da AIDS no Brasil tanto doponto de vista dos pesquisadores em diversasáreas do conhecimento, como da perspectiva daspessoas comprometidas com a luta contra aAIDS. Esta visão é menos técnica, teórica ereducionista, e mais pragmática e interdiscipli-nar. Ela valoriza o discurso e a prática dos sujeitosestudados.

Edgar HammanEscola Nacional de Saúde Pública

Fundação Oswaldo Cruz

Health Affairs: The Quarterly Journal of theHealth Sphere, volume 12, número 4 (SpecialIssue: Violence and the Public’s Health). JaneH. White (Executive Editor). Publicação doProject HOPE: Bethesda, Maryland, EUA,Winter 1993.ISSN 0278-2715

Health Affairs é um periódico interdisciplinardedicado ao aprofundamento de políticas desaúde no âmbito nacional dos Estados Unidos einternacionalmente. Este número em especialestá dedicado à reflexão e ao debate da PolíticaPública de Saúde para prevenir a Violência. Arevista se organiza em sete partes, cinco das quaisconcernentes ao tema da violência: (1) artigosde pesquisa e análises; (2) comentários; (3)publicação de dados; (4) informações sobrefinanciamentos concedidos para pesquisas; (5)informações sobre publicações e relatórios; (6)resenhas de livros; (7) cartas dos leitores.

1. A primeira parte contém, em primeiro lugar,um artigo de James A. Mercy et al. sobre a

“Política da Saúde Pública para prevenir aViolência”. Os autores colocam a violência comouma epidemia moderna que ameaça a Américanão apenas fisicamente, mas nas suasinstituições básicas como a família, a comuni-dade e o próprio sistema de saúde. Partindo doprincípio de que a saúde pública tem umainegável experiência em prevenir doenças,combater epidemias, os autores afirmam que essaárea de conhecimento e de ações traz para asociedade uma nova visão de como prevenir aviolência: praticando uma ciência integral capazde identificar políticas e programas; articulan-do esforços de diversas disciplinas científicas,organizações e comunidades; discutindo asprioridades para a ação inclusive com aparticipação da sociedade. O artigo apresentadados de uma série histórica dos homicídios nosEstados Unidos desde 1900 a 1990. É muitointeressante a articulação desse texto com os quevêm logo a seguir, na medida em que todospassam a se referir ao primeiro e a discuti-lo,criticando suas premissas, propostas econclusões.

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A seguir há um artigo de Donna Shalala, se-cretária de saúde do governo Clinton onde aautora coloca as estratégias federais para en-frentar a violência, “Focalizando a crise deviolência”.

O artigo de Mark Moore “Prevenção da vio-lência: Justiça Criminal ou Saúde Pública” é umbelo diálogo crítico da área do direito com aspropostas da área da saúde, onde o autor criticacerta ingenuidade com que os profissionaissanitários estão se dispondo a atuar, empregandoos métodos utilizados para erradicar epidemias.Questiona também o conceito muito simplistade “prevenção” apresentado no texto de JanesMercy e colaboradores. Por ser um professor deDireito Criminal o autor mostra como a justiçaprocura também trabalhar com prevenção nãoa separando das abordagens repressivas. Emsuma, este artigo é um balanceamento doprecoce entusiasmo com que a área da saúde estátendendo a se aproximar do fenômeno daviolência. O autor indica a necessidade de açõescomplementares e não excludentes; critica acoerência interna da abordagem da saúde públicae os fundamentos diferenciados de que partem ajustiça e a saúde dificultando o trabalho solidário.

O texto “Precoces determinantes dadelinqüência e da violência” é uma revisãobibliográfica de textos que se propõem a estudaros fatores de risco na primeira infância para adelinqüência e o comportamento violentofuturos. Embora a finalidade seja chamar aatenção dos políticos e planejadores de saúdepara o momento crucial da primeira infânciacomo etapa para formar atitudes e hábitos,Stephen Buka e Felton Earls dão um peso muitogrande às características das criançasincluindo-se aí problemas biológicos e neu-rológicos. Isso não retira o mérito do trabalhoque desenvolve uma busca de causação decomplexos fatores, mas é necessário não lê-lopara aprofundar preconceitos, pois os seus“preditores de delinqüência e violência” estãotodos voltados para o estudo das populaçõespobres e minorias.

O artigo de Jeffrey Fagan denominado “Inte-rações entre drogas, álcool e violência” mostracomo nos Estados Unidos mais da metade doshomicídios envolvem drogas ou álcool e essesdois elementos estão implicados em larga

proporção de atos violentos não-fatais. Noentanto o autor discute a dificuldade de estabe-lecer uma direta causação entre drogas, álcool eviolência; de separar a influência do ambiente;os traços de personalidade; e o efeito dessassubstâncias. O autor concorda que “o peso daevidência sugere que o uso dessas substâncias promoveum contexto provocativo para violência” porém,continua, “mas é limitada a evidência de que álcoole drogas causem violência”. Essas afirmaçõesvindas de um professor de Justiça Criminalinduzem a pensar na dificuldade de se tomaremmedidas concretas quanto ao uso das referidassubstâncias visando à contenção da violência.

Darnell F. Hawkins trabalha em seu texto aquestão da “Desigualdade, Cultura e ViolênciaInterpessoal”. Os dados dos Estados Unidosevidenciam maior prevalência de violência emalguns grupos sócio-econômicos e étnicos.Hawkins analisando vários estudos, afirma quenem a noção de diferença cultural nem a desi-gualdade sócio-econômica oferecem explicaçõessatisfatórias para o fenômeno. Ele sugere quequalquer estratégia para enfrentar a violêncianos Estados Unidos deve levar em conta am-bos, os efeitos da desigualdade social e da culturaprópria aos grupos em questão.

Os dois artigos finais da primeira parte darevista são sobre a questão das armas de fogopela força desse meio de morte e de violação davida no quadro de homicídios e suicídios nosEstados Unidos; são eles: “Políticas para preve-nir as lesões por armas de fogo” de Stephen Terete Garen Wintemute; e “Política de pesquisasobre armas de fogo e violência” de Franklin E.Zimring. Ambos os artigos mostram como,apesar da mortalidade e morbidade por armasde fogo serem muito grandes nos Estados Unidoshá pouco investimento em pesquisas para avaliara efetividade das políticas que regulam o usodesse meio que se interpõe em larga escala nasrelações interpessoais. Buscando criticar eavançar em novas possibilidades de regulação,Frankin Zimring propõe que maior repressãoao uso deve começar pela produção de armas enão se contentar apenas em normatizar a açãodos comerciantes e dos usuários.

2. A segunda parte da revista que consiste deComentários que tratam: da prevenção da

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violência como prioridade da política de saúde;da análise de programas escolares de prevençãoda violência para adolescentes; das dificuldadesde se realizarem pesquisas que articulem armasde fogo e violência; da prevenção da violênciadoméstica como tarefa para os pediatras clíni-cos; do impacto da violência no sistema detratamento de traumas. Na verdade esses co-mentários são, em muitos casos, verdadeirosartigos que permitem o diálogo com os pesqui-sadores que trabalham em temas semelhantes.

3. A terceira parte da revista é uma informaçãode dados sobre: a estimativa de custos das lesõese traumas por armas de fogo; os custos dasvítimas de crimes violentos que resultam emlesões; e pesquisa de opinião sobre a política dearmas.

4. O quarto ponto do periódico é a descrição daspesquisas que têm sido e estão sendo realizadasnos Estados Unidos sobre violência, asinstituições que as sediam, os orçamentos e asestratégias que estão sendo propostas, a partirdaí, para a ação no campo social e da saúde.

5. Por fim, para o que concerne aos interessesdesta resenha, a revista apresenta as principais

publicações atuais sobre violência nos EstadosUnidos, com informações para sua aquisição.

É importante observar que este número temá-tico sai no momento em que se está discutindonos Estados Unidos o plano de reforma dosistema de saúde do Presidente Bill Clinton,onde há uma preocupação especial com a“epidemia da violência”. Donna Shalala, se-cretária de saúde do governo federal resumeassim tal sentimento: “De todos os desafios dosserviços de saúde e humanitários que enfrentamos,talvez o mais devastador e, ironicamente, o maisprevenível é a epidemia da violência que ocorre emtoda a nação”. E o próprio Presidente Clintonconsidera a violência como um tema crítico nodebate sobre a reforma do sistema de saúde.

Este número do Health Affair é, sem dúvida,um passo positivo no debate sobre a articulaçãoda Violência e Saúde e na problematização dasquestões que daí decorrem.

Maria Cecília de Souza MinayoCentro Latino-Americano de Estudos

sobre Violência e Saúde

Fundação Oswaldo Cruz

Food of the Gods: The Search for the

Original Tree of Knowledge. A Radical

History of Plants, Drugs and Human

Evolution. Terence McKenna. New York:Batam Books, 1993. 331 p., figs, biblio.ISBN 0-553-37130-4

É comum nos dias de hoje, à despeito dosgrandes golpes sofridos pelos entusiastas doCriacionismo Teológico — ao perderem omonopólio explicativo da origem da vida e dohomem no mundo —, lançar-se mão do textobíblico do Gênesis como metáfora mítica ante-cipatória do pensamento evolutivoinaugurado por Darwin/Wallace. Com efeito,o texto do profeta Esdras é fecundo aoapresentar em trinta e um versículos, a obra

de Deus, realizada em seis dias, numaseqüencia de eventos que muito se parece como sugerido pelo atual pensamento cosmológicoe evolucionista. Hipóteses de concepçãodivina e probabilidades no tempo geológico àparte, a Bíblia certamente tem suas razões.

Ao criar o homem à sua imagem esemelhança, Deus dispõe sobre aquele opoder de denominar e de dominar sobre todasua obra: “tomou, pois, o Senhor Deus aohomem e o colocou no jardim do Éden paracultivar e guardar. E lhe deu esta ordem: De todaárvore do jardim comerás livremente” (GênesisII, 15 e 16). Porém advertiu ao homem: “masda árvore do conhecimento do bem e do mal nãocomerás; porque no dia em que dela comeres,certamente morrerás” (Gênesis II, 17).

Daqui em diante, a maioria de nós conhece aestória: seduzidos pelas artimanhas da serpente,