Hegel e Haiti - Susan Buck-Morss

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    1.

    No sculo xviii, a escravido havia se tornado a metfora fundamental da filosofia poltica ocidental, conotando tudo o que havia de mau nas relaes de poder.1 A liberdade, sua anttese conceitual, era considerada pelos pensadores iluministas o valor poltico supremo e universal. Mas essa metfora poltica comeou a deitar razes justamente no momento em que a prtica econmica da escravido a sistemtica e altamente sofisticada escravizao capitalista de no europeus como mo de obra nas colnias se expandia quantitativamente e se intensificava qualitativamente, ao ponto de, em meados do sculo xviii, ter chegado a sustentar o sistema econmico do Ocidente como um todo, facilitando, paradoxalmente, a expanso global dos prprios ideais do Iluminismo que to frontalmente a contradiziam.

    HEGEL E HAITI*

    Susan Buck-Morsstraduo de Sebastio Nascimento

    RESUMO

    O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prtica da escra

    vido marcou a ascenso de uma srie de naes ocidentais no interior da nascente economia global moderna. O artigo

    explora o uso da metfora da escravido no iluminismo filosfico europeu, e sugere que a dialtica do senhor e do

    escravo hegeliana tem razes mais na histria contempornea particularmente, nas notcias que chegavam Europa

    da Revoluo Haitiana de 1791 do que na tradio herdada pelo filsofo alemo.

    PALAVRAS-CHAVE: Iluminismo; Dialtica do senhor e do escravo; Hegel;

    Revoluo Haitiana.

    ABSTRACT

    The paradox between the discourse of freedom and the prac

    tice of slavery marked the ascendancy of a succession of Western nations within the Early Modern global economy. The

    article considers the use of slavery as a metaphor by 17th and 18th Century philosophers, and suggests that that Hegels

    dialectic of master and slave has its roots not only on the philosophical tradition, but in contemporary events such as

    the 1791 Haitian Revolution.

    KEYWORDS: Enlightenment; Dialectic of master and slave; Hegel; Haitian

    Revolution.

    [*] Publicado originalmente em Critical Inquiry, vol. 26, n 4, 2000, pp. 82165. Republicado em BuckMorss, Susan. Hegel, Haiti and universal history. University of Pittsburg Press, 2009. Devido quantidade, as notas e referncias esto excepcionalmente dispostas ao final do artigo.

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    Essa discrepncia gritante entre pensamento e prtica marcou o perodo de transformao do capitalismo global de sua forma mercantil para sua modalidade protoindustrial. Seria de se esperar que nenhum pensador racional e esclarecido deixaria de percebla. Contudo, no era esse o caso.

    A explorao de milhes de trabalhadores escravos coloniais era aceita com naturalidade pelos prprios pensadores que proclamavam a liberdade como o estado natural do homem e seu direito inalienvel. Mesmo numa poca em que proclamaes tericas de liberdade se convertiam em ao revolucionria na esfera poltica, era possvel manter nas sombras a economia colonial escravista que funcionava nos bastidores.

    Se esse paradoxo no parecia incomodar a conscincia lgica dos contemporneos, talvez seja mais surpreendente que alguns autores, ainda hoje, se disponham a construir histrias do Ocidente na forma de narrativas coerentes do avano da liberdade humana. As razes no so necessariamente intencionais. Quando histrias nacionais so concebidas como autnomas ou quando aspectos distintos da histria so tratados por disciplinas isoladas, as evidncias contrrias so marginalizadas e consideradas irrelevantes. Quanto maior a especializao do conhecimento, quanto mais avanado o nvel de pesquisa, quanto mais antiga e respeitvel a tradio intelectual, tanto mais fcil se torna ignorar os fatos desviantes. Vale lembrar que a especializao e o isolamento representam um risco tambm para as novas disciplinas, tais como os estudos afroamericanos ou os estudos diaspricos, que foram criadas precisamente para remediar essa situao. Fronteiras disciplinares fazem com que as evidncias contrrias virem problema dos outros. Afinal de contas, um especialista no pode ser especialista em tudo. razovel. Mas argumentos assim so uma forma de evitar a verdade incmoda segundo a qual se certas constelaes de fatos forem capazes de penetrar fundo o bastante na conscincia intelectual, ameaaro no apenas as narrativas venerveis, mas tambm as disciplinas acadmicas entrincheiradas que as (re)produzem. Por exemplo, no h lugar na universidade em que a constelao de pesquisa especfica Hegel e Haiti pudesse encontrar abrigo. Este o tema que me interessa aqui, mas seguirei um caminho tortuoso para chegar at ele. Peo que me desculpem, mas esse aparente desvio o prprio argumento.

    2.

    O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prtica da escravido marcou a ascenso de uma srie de naes ocidentais no interior da nascente economia global moderna. Os holandeses so o primeiro exemplo que deve ser considerado. Sua era de ouro, de meados do

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    sculo xvi a meados do sculo xvii, foi possibilitada pelo controle que exerciam sobre o trfico mercantil global, incluindo, como um componente fundamental, o comrcio de escravos. Mas se conferirmos o trabalho do mais formidvel entre seus historiadores modernos, Simon Schama, cuja descrio densa da Era de Ouro da cultura holandesa se tornou um modelo no campo da histria cultural desde sua publicao em 1987, haver uma surpresa nossa espera. impressionante que os temas da escravido, do trafico de escravos e da mo de obra escrava jamais sejam discutidos na obra de Schama, The embarrassment of riches [O desconforto da riqueza], um relato de mais de seiscentas pginas sobre como a nova repblica holandesa, ao desenvolver sua prpria cultura nacional, aprendeu a ser ao mesmo tempo rica e benigna2. Seria difcil depreender dali que a hegemonia holandesa no trfico de escravos (substituindo Espanha e Portugal no papel de potncia escravista)3 contribuiu substancialmente para a imensa sobrecarga de riqueza que ele descreve como algo que se tornou social e moralmente problemtico ao longo do sculo da centralidade holandesa para o comrcio mundial4. Ainda assim, Schama descreve exaustivamente o fato de que a metfora da escravido, adaptada ao contexto moderno a partir da narrativa do Antigo Testamento sobre a fuga dos israelitas do Egito, havia sido crucial para a autocompreenso holandesa ao longo de sua luta pela independncia (15701609) contra a tirania espanhola que os escravizava e portanto para a autocompreenso das origens da moderna nao holandesa5. Schama claramente reconhece a contradio mais evidente: o fato de que poca os holandeses discriminavam os judeus6. Ele dedica um captulo inteiro discusso da estigmatizao e da perseguio de uma longa lista de forasteiros que, em funo da obsesso psicolgica holandesa pela purificao, precisavam ser removidos, como se fossem uma mcula, do corpo social: homossexuais, judeus, ciganos, ociosos, andarilhos, prostitutas mas no diz nada, porm, a respeito dos escravos africanos nesse contexto7.

    Schama mostrase francamente farto das histrias econmicas marxistas que tratam os holandeses apenas como uma potncia capitalista mercantil8. Prefere dedicar seu projeto reconstruo da causalidade cultural. Examina como as inquietaes da afluncia, decorrentes da abundncia de bens, despertaram no holands moderno o temor de um tipo diferente de escravido, a escravizao ao luxo que ameaava o livre arbtrio, o medo de que a avareza do consumo pudesse converter almas livres em vis escravos9. Schama apresenta a famlia como o fulcro do carter nacional holands, e no o comrcio mundial, permitindo que seus leitores adentrem a vida privada, domstica, vislumbrem casas e lares, mesas fartas e afetos ntimos, na poca em que ser holands era ser local, paroquial, tradicional e costumeiro10.

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    Estaramos quase dispostos a perdolo, no fosse pelo fato de que os escravos tampouco eram estranhos ao ambiente domstico holands. Seria o silncio de Schama um eco do silncio de suas fontes? Eu no saberia dizer11. Mas a cultura visual holandesa oferece evidncias claras de uma realidade distinta. Uma pintura de Franz Hals, de 1648, retrata exatamente no centro da tela a figura de um jovem negro, provavelmente um escravo, como parte da vida domstica, visvel no seio de uma abastada e afetuosa famlia holandesa em meio a uma paisagem holandesa local, paroquial (Figura 1). No livro de Schama, ricamente ilustrado, essa pintura de Hals no aparece (apesar de que outra pintura de Hals, representando marido e esposa holandeses sozinhos em meio a uma paisagem, ter sido includa). Tampouco h quaisquer outras imagens de negros12. Obviamente, em vista da ausncia de escravos no relato escrito de Schama, eles pareceriam deslocados se aparecessem nas ilustraes. A consequncia desse tipo de trabalho acadmico uma cegueira parcial em meio a oceanos de perspiccia, e isso tpico da literatura acadmica ocidental, como veremos.

    3.

    A partir de 1651, a GrBretanha passou a desafiar os holandeses numa srie de guerras navais que resultaram no domnio britnico no apenas da Europa, mas de toda a economia global, incluindo o trfico de escravos13. Naquele momento, a revoluo cromwelliana contra a monarquia absoluta e o privilgio feudal seguiram o precedente holands, fazendo uso metafrico da histria dos israelitas do Antigo Testamento sendo libertos da escravido. Mas no campo da teoria poltica estava em curso o abandono das escrituras antigas. A figura central nesse caso Thomas Hobbes. Apesar de Leviat (1651) ser um hbrido de imaginao moderna e bblica, a escravido discutida ali em termos bastante seculares14. Para ele, ela uma consequncia da guerra de todos contra todos no estado de natureza, fazendo parte, portanto, das s disposies naturais do homem15. Envolvido por meio de seu patrono, Lord Cavendish, com os negcios da Companhia da Virgnia, que administrava uma colnia na Amrica, Hobbes aceitava a escravido como parte inalienvel da lgica de poder16. Mesmo os habitantes de naes civilizadas e florescentes poderiam retornar a esse estado17. Hobbes encarava a escravido com honestidade e sem conflitos John Locke, nem tanto. A sentena inicial do primeiro captulo do livro primeiro de seu Dois tratados sobre o governo (1690) declara inequivocamente: A escravido uma condio humana to vil e miservel e to diretamente oposta ao generoso temperamento e coragem de nossa nao que seria difcil conceber que um ingls, menos ainda um cavalheiro, fosse capaz de a defender.

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    Mas o ultraje de Locke contra as cadeias para toda a humanidade no era um protesto contra a escravizao de africanos negros em plantaes do Novo Mundo, e muito menos em colnias que fossem britnicas18. Pelo contrrio, a escravido era nesse caso uma metfora para a tirania legal, conforme o uso corrente nos debates parlamentares britnicos sobre teoria constitucional. Como acionista da Real Companhia Africana, envolvida na poltica colonial americana na Carolina, Locke claramente considerava a escravido negra como uma instituio justificvel19. O isolamento do discurso poltico do contrato social em relao economia da produo domstica (oikos) tornou possvel essa viso dupla20. A liberdade britnica significava a proteo da propriedade privada, e os escravos eram propriedade privada. Enquanto os escravos se situassem no mbito de autoridade domstica, sua condio era protegida pela lei (Figuras 2 e 3)21.

    Escravos estavam na moda na Inglaterra do final do sculo xvii, acompanhando damas da aristocracia como animais de estimao22. Retratos pintados pelo holands Anthony van Dyck e Peter Lely eram os prottipos de um novo gnero de pintura, representando jovens negros que ofereciam frutas e outros smbolos de riqueza das colnias a seus proprietrios23.

    4.

    Meio sculo depois, o entendimento clssico da economia e, portanto, da propriedade escravista como uma questo privada e domstica foi frontalmente desmentido pelas novas circunstncias globais. O acar transformou as plantaes coloniais das ndias Ocidentais. Intensivas simultaneamente em capital e trabalho, a produo de acar era protoindustrial, gerando um aumento acentuado na importao de escravos africanos e uma intensificao brutal da explorao de sua mo de obra para fazer frente a uma nova e aparentemente insacivel demanda europeia pela doura viciante do acar24. Na dianteira do boom do acar no Caribe estava a colnia francesa de SaintDomingue, que em 1767 produziu 63 mil toneladas de acar25. A produo de acar levou igualmente a uma demanda aparentemente infinita por escravos, cujo nmero em SaintDomingue aumentou dez vezes ao longo do sculo xviii, para mais de 500 mil seres humanos. Na Frana, mais de 20% da burguesia dependia de atividades comerciais ligadas explorao de mo de obra escrava26. Os pensadores do iluminismo francs escreviam em meio a essa transformao. Enquanto idealizavam populaes coloniais com mitos do nobre selvagem (os ndios do Novo Mundo), o sangue vital da economia escravista no lhes importava27. A despeito de existirem movimentos abolicionistas na poca e, na Frana,

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    os Amis des noirs [Amigos dos negros], que denunciavam os excessos da escravido, uma defesa da liberdade com base na igualdade racial era algo de fato raro28.

    O homem nasce livre e por toda a parte vive acorrentado, escreveu Rousseau nas primeiras linhas de seu Contrato social, publicado pela primeira vez em 176229. Nenhuma condio humana lhe parece mais ofensiva ao corao ou alma do que a escravido. E mesmo Rousseau, santo padroeiro da Revoluo Francesa, ao implacavelmente condenar a instituio, reprime da conscincia os milhes de escravos realmente existentes sob o jugo de senhores europeus. A patente omisso de Rousseau foi cuidadosamente exposta pelos especialistas, mas apenas recentemente. O filsofo catalo Louis SalaMolins escreveu uma histria (1987) do Iluminismo atravs das lentes do Code Noir, o cdigo legislativo francs que se aplicava aos escravos negros nas colnias, elaborado em 1685 e sancionado por Lus XIV, sendo erradicado definitivamente somente em 1848. SalaMolins considera detalhadamente o Cdigo, que legalizou no apenas a escravido, o tratamento de seres humanos como propriedade mvel, mas tambm a marcao a ferro, a tortura, a mutilao fsica e o assassinato de escravos que procurassem questionar sua condio desumana. Ele justape esse cdigo, que se aplicava a todos os escravos sob jurisdio francesa, aos textos dos filsofos iluministas franceses, documentando sua indignao em relao escravido na teoria, ao mesmo tempo em que ignoravam formidavelmente a escravido na prtica. SalaMolins se escandaliza, e com razo. No Contrato social, Rousseau argumenta: A legalidade da escravido nula, no apenas por ser ilegtima, mas por ser absurda e vazia de sentido. Tais palavras, escravido e legalidade so contraditrias. So mutuamente excludentes30. SalaMolins nos faz ver as consequncias dessas afirmaes: O Code Noir, o mais perfeito exemplo desse tipo de documento na poca de Rousseau, no um cdigo legal. O direito de que trata no pode ser um direito, por pretender tornar legal algo que no pode ser legalizado, a escravido31. Ele considera, portanto, um despropsito que Rousseau jamais tenha mencionado em seus escritos o Code Noir. O caso real e flagrante daquilo que ele declara ser categoricamente insustentvel no recebe qualquer ateno de sua parte32. SalaMolins esmia os textos em busca de qualquer evidncia que possa justificar o silncio e constata inequivocamente que Rousseau conhecia os fatos. O filsofo iluminista citou relatos de viajantes da poca Kolben, sobre os hotentotes, e Du Tertre, sobre os indgenas das Antilhas , mas evitava aquelas pginas desses mesmos relatos que descreviam explicitamente os horrores da escravido europeia. Rousseau referiase aos seres humanos de todas as partes, mas omitia os africanos; falava dos groenlandeses transportados Dinamarca que morriam de tristeza, mas no da tristeza dos

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    africanos transportados s ndias, que resultava em suicdios, motins e fugas. Declarava a igualdade entre os homens e via a propriedade privada como a origem da desigualdade, mas jamais somava dois e dois para discutir a lucrativa escravido francesa como algo central para as discusses tanto sobre a igualdade como sobre a propriedade33. Como na Repblica Holandesa e na GrBretanha, escravos africanos estavam presentes e eram usados e abusados domesticamente na Frana34. Na verdade, era impossvel que Rousseau no soubesse que h alcovas em Paris onde possvel se divertir sem peias com um macaco e com um jovem garoto negro [ngrillon]35.

    SalaMolins considera o silncio de Rousseau diante dessas evidncias racista e revoltante36. Tal ultraje incomum entre autores que, como profissionais, so treinados para evitar juzos passionais em seus escritos. Tal neutralidade moral inerente aos mtodos disciplinares, que, a despeito de se basearem numa variedade de premissas filosficas, acabam resultando nas mesmas excluses. O historiador intelectual de nossos dias que trate de Rousseau em seu contexto seguir as boas regras do ofcio e relativizar a situao, julgando (e perdoando) o racismo de Rousseau com base no esprito do tempo, com o intuito de evitar assim a falcia do anacronismo. Ou ento o filsofo de nossos dias, treinado para analisar a teoria em total abstrao do contexto histrico, atribuir aos escritos de Rousseau uma universalidade que transcende a prpria inteno ou as limitaes do autor, no esforo de evitar assim a falcia da reductio ad hominem. Em ambos os casos, permitese que os fatos incmodos despaream furtivamente. Esto visveis, contudo, nas histrias gerais da poca, nas quais no podem deixar de ser mencionados, pois, toda vez que a teoria iluminista era colocada em prtica, os promotores das revolues polticas acabavam tropeando no fato econmico da escravido, de maneiras que tornavam impossvel que deixassem eles prprios de reconhecer a contradio.

    5.

    Os revolucionrios coloniais da Amrica que lutavam pela independncia contra a GrBretanha mobilizaram o discurso poltico de Locke para seus fins. A metfora da escravido foi crucial para a luta, mas num novo sentido: Os americanos realmente acreditavam que homens que fossem tributados sem seu consentimento eram literalmente escravos, uma vez que teriam perdido o poder de resistir opresso, e porque a incapacidade de se defender invariavelmente conduz tirania37. Ao evocar as liberdades da teoria dos direitos naturais, os colonos americanos, enquanto senhores de escravos, eram levados a uma monstruosa incoerncia38. Ainda

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    assim, apesar de alguns, como Benjamin Rush, terem admitido sua mf39 e outros, como Thomas Jefferson, terem posto a culpa pela escravizao dos negros nos britnicos40; apesar de os prprios escravos terem apresentado demandas pblicas por sua libertao41 e de alguns estados isolados terem aprovado legislao antiescravagista42, a nova nao, concebida em liberdade, tolerava a monstruosa incoerncia, inscrevendo a escravido na Constituio dos Estados Unidos da Amrica.

    O enciclopedista francs Denis Diderot falava com admirao dos revolucionrios estadunidenses, como cidados que haviam queimado suas correntes e recusado a escravido43. Mas se a natureza colonial da luta pela liberdade nos Estados Unidos permitiu de algum modo sustentar a distino entre o discurso poltico e as instituies sociais, no caso da Revoluo Francesa, uma dcada mais tarde, os vrios sentidos da escravido tornaramse inescapavelmente emaranhados ao serem confrontados s contradies fundamentais entre os eventos revolucionrios na Frana e o que ocorria nas colnias francesas. Foram necessrios anos de derramamento de sangue antes que a escravido no apenas sua metfora, mas a escravido real fosse abolida nas colnias francesas, e mesmo ento os ganhos foram apenas temporrios. Apesar de a abolio da escravatura ser a nica consequncia logicamente possvel da ideia de liberdade universal, ela no se realizou por meio das ideias ou mesmo das aes revolucionrias dos franceses; ela se realizou graas s aes dos prprios escravos. O epicentro dessa luta foi a colnia de SaintDomingue. Em 1791, enquanto mesmo os mais ardentes opositores da escravido na Frana esperavam passivamente por mudanas, o meio milho de escravos em SaintDomingue, a mais rica colnia no somente da Frana, mas de todo o mundo colonial, tomava nas prprias mos as rdeas da luta pela liberdade, no atravs de peties, mas por meio de uma revolta violenta e organizada44. Em 1794, os negros armados de SaintDomingue foraram a Repblica Francesa a aceitar o fait accompli da abolio da escravatura na ilha (declarada pelos comissrios coloniais franceses Sonthonax e Polverel, que agiam por conta prpria) e a universalizar a abolio em todas as colnias francesas45. De 1794 a 1800, como homens livres, esses antigos escravos envolveramse numa luta contra foras invasoras britnicas, das quais muitos colonos proprietrios de terras de SaintDomingue, brancos e mulatos, esperavam o restabelecimento da escravido46. O exrcito negro, sob o comando de ToussaintLouverure, derrotou militarmente os britnicos, numa luta que fortaleceu o movimento abolicionista na GrBretanha e preparou o terreno para a suspenso britnica do trfico de escravos em 180747. Em 1801, ToussaintLouverure, o antigo escravo que se

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    tornou governador de SaintDomingue, passou a suspeitar que o Diretrio Francs poderia tentar rescindir a abolio48. Mesmo assim, ainda leal Repblica49, escreveu uma constituio para a colnia que se adiantou a qualquer outro documento dessa natureza no mundo se no em suas bases democrticas, certamente com relao incluso racial pressuposta em sua definio de cidadania50. Em 1802, Napoleo de fato buscou restabelecer a escravido e o Code Noir, ordenando a priso e a deportao de Toussaint Frana, onde morreu aprisionado em 1803. Quando Napoleo enviou tropas francesas sob o comando de Leclerc para subjugar a colnia, lanando uma guerra brutal contra a populao negra que chegou ao ponto de uma guerra genocida51, os cidados negros de SaintDomingue mais uma vez pegaram em armas, demonstrando, nas palavras do prprio Leclerc, que no basta deportar Toussaint, h 2.000 outros lderes que tambm teriam de ser deportados52. Em 1 de janeiro de 1804, o novo lder militar e escravo de nascimento JeanJacques Dessalines deu o passo final ao declarar independncia da Frana, combinando, assim, o fim da escravido com o fim da condio colonial. Sob a bandeira Liberdade ou Morte (tais palavras foram inscritas na bandeira vermelha e azul, da qual a faixa branca da tricolor francesa havia sido removida)53, derrotou as tropas francesas, eliminou a populao branca e estabeleceu em 1805 uma nao independente e constitucional de cidados negros, um imprio imagem daquele do prprio Napoleo, ao qual deram o antigo nome Arawak da ilha, Haiti54. Esses eventos, culminando na completa liberdade dos escravos e da colnia, no tinham precedente. Jamais uma sociedade escravista havia sido capaz de derrubar sua classe dirigente55.

    A autolibertao dos escravos africanos de SaintDomingue lhes assegurou, fora, o reconhecimento dos brancos europeus e americanos mesmo que tenha sido por medo. Entre aqueles que sustentavam simpatias igualitrias, tambm angariou respeito. Por quase uma dcada, antes que a eliminao violenta dos brancos sinalizasse seu recuo deliberado de princpios universalistas, os jacobinos negros de SaintDomingue colocaramse frente da metrpole ao realizar ativamente o objetivo iluminista da liberdade humana, parecendo oferecer prova de que a Revoluo Francesa no era simplesmente um fenmeno europeu, mas um evento com implicaes histricas de alcance mundial56. Se nos acostumamos a diferentes narrativas, quelas que situam os eventos coloniais nas margens da histria europeia, ento fomos seriamente enganados. Os eventos em SaintDomingue foram cruciais para os esforos contemporneos de extrair sentido da realidade criada pela Revoluo Francesa e seus desdobramentos57. Devemos ter em mente os fatos segundo essa perspectiva.

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    6.

    Consideremos a decorrncia lgica da derrocada da escravido na evoluo da conscincia dos europeus que a testemunharam. Os revolucionrios franceses sempre se viram a si mesmos como um movimento de libertao que livraria as pessoas da escravido, das iniquidades feudais. Em 1789, os lemas Liberdade ou morte e Antes a morte que a escravido eram correntes, e a Marseillaise denunciava lesclavage antique [a escravido antiga] nesse contexto58. Era uma revoluo no apenas contra a tirania de um governante especfico, mas contra todas as tradies antigas que violavam os princpios gerais da liberdade humana. Relatando os eventos em Paris, no vero de 1789, o publicista alemo Johann Wilhelm von Archenholz (ao qual ainda retornaremos) abandonou sua usual neutralidade jornalstica para exclamar que o povo (Volk) francs, acostumado a beijar as correntes que lhe prendia [] havia, numa questo de horas, quebrado essas correntes gigantescas com um golpe arrebatador de coragem, tornandose mais livres que os romanos e gregos em seu tempo e que os americanos e britnicos hoje59.

    Mas e as colnias, a fonte da riqueza de uma poro to grande da populao francesa? O significado da liberdade estava em jogo em sua reao aos eventos de 1789, e em lugar nenhum mais do que na joia da coroa, SaintDomingue. Seguiriam os colonos o exemplo dos americanos e se revoltariam, como demandavam alguns dos fazendeiros crioulos de SaintDomingue? Ou congregarseiam fraternalmente para proclamar sua liberdade como cidados franceses? Neste caso, quem seria reconhecido como cidado? Os proprietrios de terras, por certo60. Mas somente os brancos? Estimase que os mulatos eram proprietrios de cerca de um tero da terra cultivada de SaintDomingue61. No deveriam ser eles tambm includos, e no apenas eles, mas tambm os negros livres? Seria propriedade ou raa o teste decisivo para ser um cidado da Frana? E ainda mais premente, se os africanos podiam em princpio ser includos como cidados isto , se os pressupostos racistas subjacentes ao Code Noir afinal no fossem vlidos , ento como poderia ser justificada a continuidade da escravizao legal dos negros?62. E se no pudesse ser justificada, como poderia ser mantido o sistema colonial? O desenrolar da lgica da liberdade nas colnias ameaava decompor toda a estrutura institucional da economia escravagista que sustentava uma poro substancial da burguesia francesa, e essa revoluo poltica era, por certo, sua63. Mesmo assim, somente a lgica da liberdade poderia oferecer revoluo a legitimidade nos termos universais nos quais os franceses se enxergavam a si mesmos.

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    A Revoluo Haitiana era o cadinho, a prova de fogo para os ideais do Iluminismo francs. E cada europeu que fazia parte do pblico leitor burgus sabia disso64. Os olhos do mundo estavam agora em Santo Domingo65. Assim comea um artigo publicado em 1804 em Minerva, o peridico fundado por Archenholz, que vinha cobrindo a Revoluo Francesa desde seu princpio e relatando sobre a revoluo em SaintDomingue desde 179266. Por um ano inteiro, do outono de 1804 ao fim de 1805, Minerva publicou uma srie contnua, totalizando mais de cem pginas, incluindo fontes documentais, sumrios de imprensa e relatos testemunhais, que informavam aos leitores no apenas sobre a luta final pela independncia dessa colnia francesa sob a bandeira de Liberdade ou Morte67! , mas tambm dos eventos dos dez anos que a precederam. Archenholz era crtico da violncia dessa revoluo (como tambm o era do Terror Jacobino na metrpole), mas passou a estimar ToussaintLouverture, publicando, como parte de sua srie, a traduo alem de um captulo do manuscrito de Marcus Rainsford, capito britnico, que celebrava de maneira superlativa o carter de Toussaint, sua liderana e sua humanidade68.

    A revista de Archenholz apropriavase livremente de fontes em lngua inglesa e francesa, de modo que seu relato refletia notcias amplamente veiculadas entre o pblico leitor europeu, e os artigos em Minerva foram aproveitados, por sua vez, por incontveis jornais (um cenrio de comunicao cosmopolita e aberta, a despeito das restries de propriedade intelectual, que talvez somente encontrar seu paralelo na fase inicial da internet)69. Apesar de existir censura na imprensa francesa aps 180370, jornais e revistas na GrBretanha (assim como nos Estados Unidos e na Polnia)71 deram destaque aos eventos da batalha revolucionria final em SaintDomingue entre outros, a Edinburgh Review72. William Wordsworth escreveu um soneto intitulado A ToussaintLouverture, publicado no The Morning Post em fevereiro de 1803, no qual lamentava o restabelecimento do Code Noir nas colnias francesas73.

    Na imprensa de lngua alem, a cobertura de Minerva era especial. J em 1794, dois anos aps sua fundao, havia estabelecido sua reputao como o melhor de seu gnero entre os peridicos polticos. Esforavase por manterse apartidrio, objetivo e factual, buscando uma verdade histrica capaz de instruir [] nossos netos74. Seu objetivo, conforme explicitado em seu lema (em ingls!), era apresentar prpria poca e sociedade de seu tempo sua forma e fora75. Em 1798, sua circulao chegava a trs mil cpias (respeitvel mesmo em nossa poca para qualquer peridico intelectual srio), nmero que se estima haver dobrado em 1809. Nas palavras do bigrafo de Archenholz, Minerva era o mais im

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    portante peridico poltico da virada do sculo, tanto em termos de qualidade do contedo, escrito por correspondentes regulares (que eram, por sua vez, figuras pblicas importantes por mrito prprio), como pela qualidade dos leitores, entre os quais se encontravam algumas das pessoas mais influentes na Alemanha76. O rei Frederico Guilherme III da Prssia lia Minerva constantemente77. Tanto Goethe como Schiller a liam (sendo que este se correspondia regularmente com Archenholz)78, assim como Klopstock (que contribua para o peridico), Schelling e Lafayette. Outro leitor regular de Minerva faz sentido continuar com o suspense? , como sabemos a partir de suas cartas publicadas, era o filsofo alemo Georg Wilhelm Fridrich Hegel79.

    7.

    De onde surgiu a ideia de Hegel sobre a relao entre o senhorio e a servido?, perguntamse especialistas em Hegel, repetidamente, referindose clebre metfora da luta de vida ou morte entre senhor e escravo, que, para Hegel, oferecia a chave para o avano da liberdade na histria mundial e que foi elaborada pela primeira vez na Fenomenologia do esprito, escrita em Jena entre 1805 e 1806 (o primeiro ano de existncia da nao haitiana) e publicada em 1807 (o ano da abolio britnica do trfico de escravos). Vale a pena insistir: de onde? Os que se ocupam da histria das ideias da filosofia alem conhecem apenas um lugar onde procurar pela resposta: nos escritos de outros intelectuais. Talvez tenha sido Fichte, escreve George Armstrong Kelly, apesar de que o problema do senhorio e da servido essencialmente platnico80. Judith Shklar toma o caminho convencional de vincular a discusso hegeliana a Aristteles. Otto Pggeler e dificilmente haver nome mais sofisticado na literatura alem sobre Hegel diz que a metfora sequer provem dos antigos, sendo na verdade um exemplo totalmente abstrato81. Apenas um estudioso, PierreFranklin Tavars, chegou a realmente estabelecer a conexo entre Hegel e o Haiti, baseando seu argumento na evidncia de que Hegel havia lido o abade francs abolicionista Grgoire82. (Seu trabalho, escrito no incio da dcada de 1990, foi, at onde sei, retumbantemente ignorado pela comunidade hegeliana.) Mas mesmo Tavars trata do Hegel tardio, aps a concepo da dialtica do senhor e do escravo83. Ningum ousou sugerir que a ideia para a dialtica do senhorio e da servido tenha ocorrido a Hegel em Jena, entre os anos de 1803 e 1805, a partir da leitura da imprensa revistas e jornais. Porm, esse mesmo Hegel, nesse mesmo perodo de Jena, durante o qual a dialtica do senhor e do escravo foi concebida pela primeira vez, fez a seguinte anotao:

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    Ler o jornal no incio da manh uma espcie de prece matinal realista. [No primeiro caso], nos afastamos do mundo e nos dirigimos a Deus, ou [no segundo caso] nos dirigimos ao mundo, quilo de que ele feito. Ambas nos oferecem a mesma segurana, uma vez que deixam cientes de onde nos encontramos84.

    Restam apenas duas alternativas. Ou Hegel era o mais cego de todos os filsofos da liberdade cegos da Europa iluminista, deixando Locke e Rousseau para trs em sua capacidade de negar a realidade debaixo do seu nariz (a realidade impressa debaixo de seu nariz sobre a mesa do caf da manh); ou Hegel sabia sabia dos escravos reais que eram bemsucedidos em sua revolta contra seus senhores reais e elaborou sua dialtica do senhorio e da servido deliberadamente no quadro de seu contexto contemporneo85.

    MichelRolph Trouillot escreve em seu importante livro, Silencing the past [Silenciando o passado], que a Revoluo Haitiana entrou na histria com a caracterstica peculiar de continuar sendo impensvel, mesmo enquanto acontecia. Ele certamente tem razo ao enfatizar a incapacidade da maioria dos contemporneos da revoluo, por conta de suas categorias prfabricadas de pensamento, para entender a revoluo em curso em seus prprios termos86. Mas h um perigo em equiparar dois silncios, o passado e o presente, quando se trata da histria haitiana. Pois, se homens e mulheres no sculo xviii no concebiam a igualdade fundamental da humanidade em termos no raciais, como alguns de ns fazemos hoje, pelo menos eles sabiam o que estava acontecendo; hoje em dia, quando a revoluo dos escravos haitianos pode parecer mais pensvel, ela mais invisvel, devido construo dos discursos disciplinares por meio dos quais herdamos o conhecimento sobre o passado87.

    Os europeus do sculo xviii estavam realmente pensando sobre a Revoluo Haitiana precisamente porque ela desafiava o racismo de muitos de seus pressupostos. No era necessrio ter sido um defensor da revoluo de escravos para reconhecer sua importncia crucial para o discurso poltico88. Mesmo na era das revolues, seus contemporneos reconheceram na criao do Haiti algo extraordinrio89. E mesmo seus oponentes consideraram esse evento marcante como algo digno da contemplao dos filsofos90. Marcus Rainsford escreveu em 1805 que a causa da Revoluo Haitiana era o esprito de liberdade91. O fato de que esse esprito pudesse ser contagioso, atravessando a fronteira que separava no apenas as raas, mas tambm os escravos dos homens livres, foi o que tornou possvel sustentar, sem recurso ontologia abstrata da natureza, que o desejo por liberdade era verdadeiramente universal, um evento da histria mundial e, de fato, o exemplo que rompe o paradigma. Antes de escrever

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    A fenomenologia do esprito, Hegel havia abordado o tema do reconhecimento mtuo em termos de Sittlichkeit [eticidade]: criminosos contra a sociedade ou as relaes recprocas na comunidade religiosa ou afeio pessoal. Agora, porm, esse jovem professor, ainda no incio de seus 30 anos, teve a audcia de rejeitar essas verses anteriores (mais aceitveis para o discurso filosfico estabelecido) e inaugurar, como a metfora central de seu trabalho, no a escravido oposta a algum estado mtico de natureza (como todos aqueles entre Hobbes e Rousseau haviam feito antes dele), mas escravos contra senhores, trazendo para dentro de seu texto a realidade presente, histrica, que o circundava como uma tinta invisvel.

    8.

    Consideremos, em maior detalhe, a dialtica de Hegel do senhor e do escravo, concentrandonos sobre as caractersticas mais marcadas dessa relao. (Apoiarmeei no apenas nas passagens relevantes de A fenomenologia do esprito, mas tambm nos textos que a precedem imediatamente, escritos em Jena entre 1803 e 1806.)92.

    Hegel compreende a posio do senhor tanto em termos poltico como econmico. No Sistema da eticidade (1803): O senhor possui geralmente uma superabundncia de necessidades fsicas, enquanto o outro (o escravo) delas carece93. primeira vista, a situao do senhor independente, e sua natureza essencial existir para si mesma; enquanto, em contrapartida, o outro, a posio do escravo, dependente e sua essncia viver ou existir para outrem94. O escravo caracterizado pela carncia de reconhecimento alheio. visto como uma coisa; coisidade a essncia da conscincia escrava como havia sido a essncia de sua situao legal sob o Code Noir95. Contudo, medida que a dialtica se desenvolve, a dominao aparente do senhor se reverte, com sua conscincia de que na verdade totalmente dependente do escravo. Basta coletivizar a figura do senhor para ver a pertinncia descritiva da anlise de Hegel: a classe de proprietrios de escravos depende totalmente da instituio da escravatura para prover a superabundncia que constitui sua riqueza. Essa classe , portanto, incapaz de ser o agente do progresso histrico sem aniquilar sua prpria existncia96. Mas ento os escravos (novamente coletivizando a figura) chegam autoconscincia ao demonstrar que no so coisas, nem objetos, mas sujeitos que transformam a natureza material97. O texto de Hegel tornase obscuro e, por fim, silencia ao chegar a essa concluso98. Considerando, porm, os eventos histricos que ofereceram o contexto para A fenomenologia do esprito, a inferncia bastante clara. Aqueles que chegaram a se submeter escravido

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    demonstram sua humanidade quando preferem enfrentar a morte a permanecerem subjugados99. A lei (o Code Noir!) que os reconhece meramente como uma coisa j no pode ser considerada vinculante100, apesar de que, antes, de acordo com Hegel, era o prprio escravo o responsvel por sua falta de liberdade, ao haver inicialmente optado pela vida em lugar da liberdade, pela mera autopreservao101. Em A fenomenologia do esprito, Hegel insiste que a liberdade no pode ser outorgada aos escravos de cima para baixo. preciso que a autolibertao do escravo ocorra atravs de uma prova de morte: E somente arriscando a prpria vida que a liberdade obtida []. O indivduo que no arriscou sua vida pode, sem dvida, ser reconhecido como uma pessoa (a agenda dos abolicionistas!); mas ele no alcana a verdade desse reconhecimento como uma autoconscincia independente102. O objetivo dessa libertao, da libertao da escravido, no pode ser a sujeio, por sua vez, do senhor, o que simplesmente repetiria o impasse existencial do senhor103, e sim a eliminao completa da instituio da escravido.

    Dada a facilidade com que essa dialtica do senhor e do escravo se oferece a uma tal leitura, de se perguntar por que o tema Hegel e Haiti foi ignorado por tanto tempo. Os estudiosos de Hegel no apenas deixaram de responder a essa questo, como tambm deixaram at mesmo, ao longo dos ltimos duzentos anos, de colocla104.

    9.

    Uma das principais razes para essa omisso certamente a apropriao marxista de uma interpretao social da dialtica hegeliana. Desde a dcada de 1840, com os escritos de juventude de Karl Marx, a luta entre o senhor e o escravo vem sendo abstrada da referncia literal e lida novamente como uma metfora desta vez, para a luta de classes. No sculo XX, essa interpretao hegelianomarxista teve poderosos proponentes, incluindo Gerg Lukcs e Herbert Marcuse, assim como Alexandre Kojve, cujas conferncias sobre A fenomenologia do esprito so uma brilhante releitura dos textos de Hegel atravs de uma lente marxiana105. O problema que marxistas (brancos), dentre todos os leitores, eram os menos propensos a considerar a escravido real como algo significante, uma vez que, em sua concepo etapista da histria, a escravido no importando o quo contempornea era vista como uma instituio prmoderna, banida da histria e relegada ao passado106. Mas somente se presumirmos que Hegel estava contando uma histria que se esgotava na Europa, na qual a escravido era uma instituio mediterrnea vetusta, h muito abandonada, uma tal leitura se tornar remotamente plausvel remotamente, por

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    que mesmo na prpria Europa de 1806, a servido por dvidas e a servido fundiria ainda no haviam desaparecido, e as leis que consideravam a escravido propriamente dita tolervel ainda estavam sendo contestadas107.

    H um elemento de racismo implcito no marxismo oficial, ao menos por conta da concepo da histria como uma progresso teleolgica. Esse elemento se tornava explcito, por exemplo, quando marxistas (brancos) resistiam tese de inspirao marxista do historiador jamaicano Eric Williams em Capitalism and slavery (1944) reforada pelo historiador marxista trinidadiano C. L. R. James em The black jacobins de que a escravido do sistema de plantation era uma instituio quintessencialmente moderna de explorao capitalista108. No que se refere literatura hegeliana especializada, Ludwig Siep e outros criticaram justificadamente a leitura marxista de Hegel sob a tica da luta de classes como algo anacrnico. O resultado disso entre os filsofos, entretanto, tem sido uma tendncia a se afastar completamente da contextualizao social109. A interpretao de Hegel segundo a luta de classes realmente anacrnica, mas isso deveria ter levado os intrpretes a olhar mais de perto os eventos histricos contemporneos de Hegel, e no a abandonar inteiramente a interpretao social.

    A literatura de orientao marxista lanou luz, porm, sobre uma rea inteira de questes de Hegel que haviam permanecido completamente negligenciadas at o sculo XX. Isso se refere ao fato de que, em 1803, Hegel lera a Riqueza das naes de Adam Smith e que isso o levou a uma concepo da sociedade civil die brgerliche Gesellschaft como economia moderna, a sociedade criada pelas aes de troca burguesas. Mas se os marxistas foram provocados pela citao de Hegel do exemplo de Smith da fbrica de alfinetes na discusso da diviso do trabalho (que de modo algum se encaixa no modelo da dialtica do senhor e do escravo!), deixaram de comentar o fato de que Smith incluiu uma discusso econmica da escravido moderna em A Riqueza das naes110.

    H muito que se reconhece que a concepo hegeliana da poltica era moderna, baseada numa interpretao dos eventos da Revoluo Francesa como uma ruptura decisiva em relao ao passado, e que, mesmo sem a mencionar expressamente, ele se referia Revoluo Francesa em A fenomenologia do esprito111. Por que seriam apenas dois os sentidos em que Hegel teria sido um modernista: adotando a teoria econmica de Adam Smith e a Revoluo Francesa como modelo para a poltica? E, mesmo assim, quando se tratava da escravido, a mais candente questo social de seu tempo, com rebelies escravas por todas as colnias e uma revoluo escrava bemsucedida na mais rica entre todas elas por que deveria como poderia Hegel se manter de tal modo fixado em Aristteles?112.

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    Sem dvida, Hegel sabia dos escravos reais e de suas lutas revolucionrias. Naquilo que talvez seja a mais poltica expresso de sua carreira, ele recorreu aos sensacionais eventos do Haiti como o pilar de sua argumentao em A fenomenologia do esprito113. A revoluo real e bemsucedida dos escravos caribenhos contra seus senhores o momento em que a lgica dialtica do reconhecimento se torna visvel como a temtica da histria mundial, a histria da realizao universal da liberdade. Se o editor de Minerva, Archenholz, relatando a histria medida que acontecia, no chegou a ele mesmo sugerir isso nas pginas de sua revista, Hegel, leitor de longa data, foi capaz de ter essa viso. A teoria e a realidade convergiram nesse momento histrico. Ou, para colocar em termos hegelianos, o racional liberdade tornouse real. Esse o ponto crucial para a compreenso da originalidade da argumentao de Hegel, por meio da qual a filosofia explodiu os confinamentos da teoria acadmica e se tornou um comentrio sobre a histria do mundo.

    10.

    Haveria muita pesquisa a ser feita. Outros textos de Hegel teriam de ser lidos com a conexo haitiana em mente114. Por exemplo, a seo de A fenomenologia do esprito em que Hegel critica a pseudocincia da frenologia assume um sentido diverso se vista como uma crtica s teorias do racismo biolgico j estabelecidas115. Assim como a referncia, na Propedutica filosfica (18031813), a Robinson Cruso, que associa esse prottipo de homem no estado de natureza o nufrago numa ilha caribenha a SextaFeira, seu escravo, uma crtica implcita verso individualista do estado de natureza de Hobbes116. As primeiras conferncias de Hegel sobre a filosofia do direito (Heidelberg, 1817188) contm uma passagem que agora se torna legvel. Comea com o tpico crucial da autolibertao do escravo:

    Mesmo que eu tenha nascido escravo [Sklave], que eu tenha sido alimentado e criado por um senhor, que meus pais e antepassados tenham sido todos escravos, ainda assim sou livre no momento que eu desejar, quando me torno consciente de minha liberdade. Pois a personalidade e a liberdade de minha vontade so partes essenciais de mim, de minha personalidade117.

    Hegel continua: mesmo que liberdade signifique ter direitos de propriedade, a posse de outra pessoa excluda e se eu mandar aoitar algum, isso no afeta sua liberdade118. claro que Hegel est falando nesse caso da escravido moderna e claro que a conscincia da liberdade exige que o indivduo se torne livre, no apenas em pensamento, mas no mundo. A nova verso dessas conferncias proferidas

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    por Hegel em seu primeiro ano em Berlim (18181919) conectaram explicitamente a libertao do escravo realizao histrica da liberdade: Os humanos se tornarem livres parte, portanto, de um mundo livre. Que no haja escravido (Sklaverei) a exigncia tica (die sittliche Forderung). Essa exigncia somente satisfeita quando aquilo que um ser humano deve ser aparece como o mundo exterior que ele torna seu119. No teramos por que compartilhar da perplexidade do editor dessas conferncias, que reparou, em 1983, que Hegel falava de escravos de modo surpreendentemente frequente120. E consideraramos uma confirmao (ainda que outros sequer chegaram a notar) de que Hegel, em sua obra tardia, A filosofia do esprito subjetivo, menciona expressamente a Revoluo Haitiana121.

    Seria tambm revelador reconsiderar o argumento do filsofo francs Jacques dHont, segundo o qual Hegel estava ligado maonaria radical durante esse anos, pois a maonaria faz parte de nossa histria a todo momento122. No apenas Archenholz, o editor de Minerva, era maom, assim como seus correspondentes regulares Konrad Engelbert Olsner (que se encontrou com Hegel em 1794) e Georg Foster (a cuja obra Hegel se refere), assim como muitos outros entre os contatos intelectuais de Hegel123; no s era maom o capito ingls Rainsford, autor do livro sobre a histria da independncia haitiana, um captulo do qual fora publicado em Minerva em 1805124, como tambm a maonaria foi (e aqui o relato de DHont silencia) um fator crucial no levante de SaintDomingue.

    No era incomum filhos mulatos de fazendeiros coloniais brancos (no raro sendo suas mes legalmente casadas com os pais) serem levados Frana para receberem ali sua formao. E notvel que as lojas manicas radicais francesas fossem espaos igualitrios, nos quais a segregao racial, religiosa e mesmo sexual podia ser superada, ao menos temporariamente125. Polverel, o homem que dividiu com Sonthonax tanto o posto de comissrio em SaintDomingue como a responsabilidade por declarar a abolio da escravatura na colnia em 1793, havia sido maom em Bordeaux na dcada de 1770126, um perodo em que um nmero surpreendente de jovens mulatos que posteriormente se tornaram lderes da revolta em SaintDomingue tambm se encontravam nessa cidade porturia do circuito do comrcio de escravos127. Dois desses jovens, Vincent Og e Julien Raimond, declararamse, no primeiro ano da Revoluo Francesa, favorveis aos direitos dos mulatos. Sua falta de sucesso levouos em direes bem diferentes. Contando com o apoio dos Amis des Noirs e com provveis conexes manicas, assim como abolicionistas, tanto em Londres como na Filadlfia, Og voltou colnia em 1790 para liderar uma revolta de mulatos livres por direitos civis; derrotado, foi torturado e executado pela corte colonial no ano seguinte128. Raimond foi no

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    meado comissrio colonial pelo governo francs em 1796 e trabalhou em estreita proximidade primeiro com Sonthonax e em seguida com Toussaint, a quem ajudou a redigir a constituio de 1801. Um terceiro mulato bordels, Andr Rigaud, lutou com o exrcito francs na Guerra de Independncia Americana e foi, depois de Toussaint (que se tornou seu rival), provavelmente o mais importante general na luta dominguense contra os britnicos na dcada de 1790129. Um quarto foi Alexandre Ption, que lutou com Dessalines contra os franceses, tornandose presidente da repblica do Haiti, criada no sul da ilha aps o assassinato de Dessalines em 1806. O presidente Ption encorajou Simn Bolvar a exigir a abolio da escravido na luta latinoamericana pela independncia, na qual a maonaria tambm desempenhou um papel decisivo. O historiador Jacques de Cauna escreveu a respeito desse ilustre grupo de lderes dominguenses: Seria interessante investigar se eles tambm teriam feito parte das lojas manicas de Bordeaux. Essa pesquisa ainda est por ser feita130. Ademais, no podemos ficar cegos possibilidade de influncia recproca: os prprios sinais secretos da maonaria podem ter sido afetados pelas prticas rituais dos escravos revolucionrios de SaintDomingue. Existem referncias intrigantes ao vodu o culto secreto dos escravos dominguenses que gerou o macio levante de 1791 como uma espcie de maonaria religiosa e cerimonial131. Sabemos muito pouco sobre a maonaria no Atlntico negro/pardo/branco, um captulo de relevo na histria da hibridez e da transculturao.

    11.

    A coruja de Minerva somente levanta voo quando o sol se pe. Essa muito citada mxima das conferncias de Hegel sobre A filosofia da histria (1822), que podia muito bem ser uma referncia revista Minerva, na verdade marca um recuo da poltica radical de A fenomenologia do esprito a extenso desse recuo em relao posio inicial de Hegel sobre a Revoluo Francesa , porm, objeto de debate h muitos anos133. Mas, ao menos no que diz respeito abolio da escravido, o recuo de Hegel em relao ao radicalismo revolucionrio evidente134.

    Notoriamente condenando a cultura africana prhistria e culpando os prprios africanos pela escravido no Novo Mundo, Hegel repetia o argumento banal e apologtico de que os escravos viviam em condies melhores nas colnias do que em suas ptrias africanas, onde a escravido era absoluta135, e corroborava o gradualismo: A escravido a injustia em si e por si s, pois a essncia da humanidade Liberdade; mas, para tanto, o homem deve amadurecer. A abolio gradual da escravido , portanto, mais sbia e mais equitativa que sua sbita supresso136. Essa postura no era, no entan

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    Figura 1. Um templo erguido pelos negros para comemorar sua Emancipao. Ilustrao para Marcus Rainsford. An historical account of the black empire of Hayti (1805). Gravura de J. Barlow, baseado no autor132.

    Figura 2. Traje manico francs do final do sculo XVIII.

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    Figura 3. Diagrama cosmolgico, maonaria francesa, fim do sculo XVIII. Desenho esotrico por JeanBaptiste Willermoz (Bibliothque Nationale, Paris). Willermoz, um negociante lions, chefiava a Ordem Templria chamada Observncia Estrita, que tinha conexes com Bordeaux e era fortemente influenciada por Martins de Pasqually, fundador da ordem lus Cohens, uma maonaria mstica com o objetivo de remeter os seres humanos ao seu estado original antes da Queda Admica. Martins, nascido em Grenoble, morreu em 1774, na ilha de SaintDomingue. Ver Serge Hutin. Les francsmaons. Paris, 1960, pp. 8590.

    Figura 4. Diagrama cosmolgico, vodu haitiano, sculo XX. Pintura ritual no solo (vv) para deidades vodu, reunidas em torno de um eixo em cruz. Extrado de Leslie G. Desmangles. The faces of god: vodou and Roman catholicism in Haiti. Chapel Hill, 1992, p. 106. Os vvs, traados com substncias pulverizadas em torno de uma coluna central no terreiro cerimonial vodu, tomam sua estrutura emprestada a tradies Fon e Kongo de pintura do solo sagrado. [] No processo, atributos catlicos latinos, a espada de So Tiago Maior, os coraes da Madre Dolorosa e mesmo o compasso sobre o quadrado da Maonaria passaram a ser dispostos ao longo dos subjacentes eixos cruzados da maioria dos sinais vv no solo (Robert Farris Thompson. The flash of the spirit: Haitis africanizing vodun art. Haitian Art. Nova York, 1979, p. 33, grifos meus).

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    Figura 6. Seneque Obin, Haitian Lodge Number 6 (1960), retratando a guia biceflica do rite cossais. Em 1801, o primeiro Conselho Supremo de 33 graus foi estabelecido em Charleston, Carolina do Sul, com irmos tanto americanos como franceses; um destes, o conde de GrasseyTilly, fundou um novo Conselho Supremo na ilha de SaintDomingue (Hutin. les Francsmaons, p. 103).

    Figura 5. guia biceflica coroada. Emblema do Conselho Supremo de 33 graus, a mais alta ordem do rite cossais (rito escocs). Maonaria francesa, sculo XVIII (Bibliothque Nationale, Paris).

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    Figuras 7 e 8. guia biceflica coroada, marca dgua sobre papel produzido por Johann Ephraim Stahl (negociante ativo desde 1799 em Blanckenburg an der Schwarza, Turngia) que foi usado por Hegel em Jena para o ltimo tero do manuscrito de seu System der Sittlichkeit (1803); Hegel utilizou o mesmo papel Stahl em setembro e novembro de 1802 para registrar anotaes sobre a poltica da poca. Ver Eva Ziesche e Dierk Schnitger. Der Handschriftliche Nachlass Georg Wilhelm Friedrich Hegels und die HegelBestnde der Staatsbibliothek zu Berlin Preussischer Kulturbesitz. Wiesbaden, 1995, vol. 1, pp. 912; vol. 2, pp. 312, 86.

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    to, a mais surpreendente em suas conferncias. Pelo contrrio, era o brutal esmero com que privava toda a frica subsaariana, essa terra de crianas, de barbrie e selvageria, de qualquer relevncia para a histria mundial, devido ao que ele considerava serem as deficincias do esprito africano137.

    Seria essa mudana simplesmente uma parte do conservadorismo mais geral de Hegel durante os anos em Berlim? Ou estaria ele, novamente, reagindo aos eventos correntes? O Haiti estava novamente nas manchetes durante as primeiras dcadas do sculo xix, febrilmente discutido por abolicionistas e seus oponentes na imprensa britnica, incluindo a Edinburgh Review, que temos certeza de que Hegel lia poca138.

    No contexto da presso contnua pela abolio da escravatura, os acontecimentos no Haiti, o grande experimento, eram monitorados constantemente e evocavam censuras crescentes, mesmo de seus antigos defensores139. No centro da discusso, estava a suposta brutalidade do rei Henri Christophe140 e o declnio da produtividade na ilha sob o sistema de trabalho assalariado (aqui seria o momento adequado para uma crtica marxista)141. No h registro de se esses debates levaram Hegel a reconsiderar o grande experimento do Haiti. O que est claro que, num esforo para se tornar mais erudito nos estudos africanos durante a dcada de 1820, Hegel estava na verdade se tornando mais tolo.

    Hegel repetiu suas conferncias sobre a filosofia da histria a cada dois anos entre 1822 e 1830, adicionando material emprico obtido de sua leitura dos especialistas europeus na histria mundial142. tristemente irnico que, quanto mais fielmente suas conferncias refletiam a produo acadmica convencional europeia sobre a sociedade africana, menos esclarecidas e mais preconceituosas elas se tornavam143.

    12.

    Por que importante encerrar o silncio sobre Hegel e o Haiti? Diante da aceitao final de Hegel da continuidade da escravido e mais, diante do fato de que a filosofia da histria de Hegel ofereceu por dois sculos uma justificativa para as mais complacentes formas de eurocentrismo (talvez Hegel sempre tenha sido um racista cultural, se no um racista biolgico) por que a recuperao desse fragmento da histria, cuja verdade conseguiu nos escapar, de interesse mais do que hermtico?

    H muitas respostas possveis, mas uma certamente o potencial de resgatar a ideia de histria universal humana dos usos aos quais a dominao branca a condenou. Se os fatos histricos a respeito da liberdade podem ser extirpados das narrativas contadas

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    pelos vencedores e recuperadas para a nossa prpria poca, ento o projeto da liberdade universal no deve ser descartado, mas, pelo contrrio, deve ser resgatado e reconstitudo sobre novas bases. O momento de clareza de pensamento de Hegel teria de ser sobreposto ao de outros da poca: ToussaintLouverture, Wordsworth, abade Grgoire e mesmo Dessalines. Em que pese toda a brutalidade de sua vingana contra os brancos, Dessalines foi quem viu com maior clareza a realidade do racismo europeu. Ainda, o momento de Hegel deve ser sobreposto aos momentos de clareza ativa: os soldados franceses que, enviados colnia por Napoleo, ao ouvirem esses exescravos cantando a Marseillaise, perguntaramse em voz alta se no estariam lutando do lado errado; o regimento polons sob o comando de Leclerc que desobedeceu suas ordens e se recusou a afogar seiscentos dominguenses capturados144. Existem muitos exemplos dessa clareza e eles no pertencem com exclusividade a qualquer lado ou grupo. E se cada vez que a conscincia dos indivduos ultrapassasse as fronteiras das constelaes atuais de poder e percebesse o significado concreto da liberdade, este fosse avaliado como um momento, ainda que transitrio, da realizao do esprito absoluto? Quais outros silncios teriam ainda de ser quebrados? Quais histrias indisciplinares ainda teriam de ser contadas?145.

    Susan Buck-Morss professora de filosofia poltica e teoria social da Universidade Cornell (eua).

    NOTAS

    [1] Para os pensadores do sculo xviii que abordaram a questo, a escravido era a metfora central para todas as foras que aviltavam o esprito humano (Davis, David Brion. The problem of slavery in the age of revolution, 17701823. Ithaca: Cornell University Press, 1975, p. 263).

    [2] Ver Schama, Simon. The embarrassment of riches: an interpretation of Dutch culture in the Golden Age. Nova York: Random House, 1987 (ed. bras.: O desconforto da riqueza. So Paulo: Companhia das Letras, 1992). A questo que se colocava para essa nao afluente era como criar uma ordem moral em um paraso terreno (p. 125).

    [3] O asiento espanhol assegurava a empreendedores individuais o privilgio exclusivo de abastecer a Amrica Espanhola com escravos africanos, mas os prprios espanhis apenas timidamente controlavam o trfico. Entrepostos do trfico escravista na costa africana tambm exibiam bandeiras de Portugal, Pases Baixos, Frana, GrBretanha, Dinamarca e Brandenburgo. A marinha mercante holandesa dominava o comrcio martimo entre os pases do Atlntico Norte, transportando os bens de outras naes, e tambm e se beneficiava dos privilgios obtidos no trafico de escravos baseado no asiento.

    [4] Schama, op. cit., p. 228. Identifiquei, nas minhas leituras, apenas duas menes escravido real: numa discusso sobre os hbitos comensais holandeses, tratando de uma averso ao mengelmoes (mexido), que no passava de um pbulo guisado, um mingau para escravos e bebs (Ibidem, p. 177), e na meno ao fato de que a Companhia Holandesa das ndias Ocidentais fora forada a gastar mais de um milho de florins por ano na defesa do encrave pernambucano no Recife contra os portugueses, enquanto apenas 400 mil florins de lucro eram hauridos das receitas provenientes do comrcio de escravos e da produo de acar e paubrasil (Ibidem, p. 252).

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    [5] A epopeia do xodo tornouse para os holandeses aquilo que havia sido para os judeus bblicos: a legitimao de uma grande ruptura histrica, um corte com o passado, que se havia tornado possvel pela inveno retrospectiva de uma identidade coletiva (Ibidem, p. 113). O rei Filipe II da Espanha era comparado ao fara que reinava sobre o cativeiro egpcio: Um prostrava a casa de Jac com escravido/ O outro, os Pases Baixos, com tirania (Ibidem, p. 105). A referncia holandesa virulenta condenao do missionrio catlico Bartolomeu de Las Casas dirigida aos crimes espanhis da escravido nas colnias mencionada por Schama, ao mesmo tempo em que a prtica holandesa da escravido no o (Ibidem, p. 84).

    [6] Paradoxalmente, a predileo da igreja pela descrio de seu prprio rebanho como os hebreus renascidos no a predispunha em favor daqueles propriamente ditos (Ibidem, p. 591).

    [7] Ibidem, pp. 565608. Schama descreve as conexes feitas pelos holandeses entre no europeus e os excessos do consumo de tabaco, da sexualidade e outras depravaes que ameaavam contaminar os lares holandeses: As antologias visuais e textuais do barbarismo no Brasil e na Flrida, por exemplo, representavam ndios fumando folhas enroladas, enquanto atos de cpula, canibalismo, urinao em pblico e outras formas variadas de bestialidade eram arroladas como elementos rotineiros no segundo plano (Ibidem, p. 204).

    [8] O autor se satisfaz em simplesmente registrar, sem qualquer comentrio crtico, a fantasia mgica de Thomas Mun, segundo a qual, no capitalismo, dinheiro gera dinheiro, como algo que influencia os holandeses que investiga: Capital gerou capital, com impressionante facilidade, e, longe de negarem a si mesmos seus frutos, os capitalistas se regozijam com os confortos materiais que ele pode comprar. Em meados do sculo, parecia no haver limites, nenhum geogrfico certamente, para o alcance de suas esquadras e para a desenvoltura de seus empreendedores. Antes mesmo que a demanda de um consumidor fosse satisfeita ou exaurida, outra matriaprima promissora era descoberta, sua oferta monopolizada, sua demanda estimulada e seus mercados domsticos e exteriores explorados. Chegaria o momento em que a mar da prosperidade comearia a vazar? (Ibidem, p. 323).

    [9] Ibidem, pp. 47, 203.

    [10] Ibidem, p. 62.

    [11] Grotius certamente discutiu a escravido real. Mas Grotius (ver adiante nota 15) citado por Schama apenas em outros contexto (guerras justas, livre comrcio, destino do povo holands, matrimnio, baleias). No de todo infundado suspeitar do silncio de Schama. Tais histrias nacionais seletivas tornaramse moda na historiografia europeia, omitindo grande parte, se no toda, da histria da colonizao.

    [12] No entanto, ver Blakeley, Allison (Blacks in the Dutch world: the evolution of racial imagery in a modern society. Bloomington: Indiana University Press, 1993), que oferece evidncias visuais da presena de negros nos Pases Baixos nessa poca.

    [13] A GrBretanha conseguiu fora da Espanha o asiento no Tratado de Utrecht (1713). Muito da riqueza de Bristol e Liverpool nas dcadas seguintes foi construda sobre a base do trfico de escravos (Palmer, R. R. e Colton, Joel. A history of the modern world. 3 ed. Nova York: Knopf, 1969, p. 171).

    [14] Se os exemplos retricos de Hobbes se apoiam na mquina como uma metfora para o Estado artificialmente construdo, o Antigo Testamento prov o ttulo para o Leviat, assim como para o livro de Hobbes sobre o Parlamento Longo, Behemoth, o nome bblico de um soberano tirnico que j vinha sendo utilizado na narrativa nacional holandesa: Os reis de Espanha, em cujos nomes tais infmias (foram praticadas contra as populaes civis holandesas), [] passaram a ser conhecidos como Behemoth, determinado a destruir os laos que mantinham unidas comunidades e mesmo famlias (Schama, op. cit., p. 92).

    [15] Hobbes considerava a luta elementar entre dois inimigos como a condio natural que tornou a escravido necessria como uma instituio social (Davis. The problem of Slavery in Western culture. Ithaca, Cornell University Press, 1966, p. 120). Aqui, Hobbes seguiu os passos de outros tericos, Samuel Pufendorf e Hugo Grotius, cujo livro Guerra e Paz (1853) inclua opinies favorveis escravido e o argumento de que a escravido era legalmente aceitvel.

    [16] Davis, The problem of slavery in the age of revolution, op. cit., p. 263.

    [17] Hulme, Peter. The Spontaneous Hand of Nature: Savagery, Colonialism, and the Enlightenment, in Peter Hulme e Ludmilla Jordanova (eds.), The Enlightenment and Its Shadows, Londres, 1990, p. 24. Hulme mostrase interessado sobretudo na maneira como Hobbes caracteriza os selvagens indgenas das colnias.

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    [18] Locke, John. Two treatises of government. Ed. Peter Laslett. Cambridge: Cambridge University Press, 1960, 1, p. 141.

    [19] Davis, The problem of slavery in Western culture, op. cit., p. 118. Locke estava envolvido no desenvolvimento das polticas coloniais por meio de seu patrono, o Conde de Shaftesbury, e era um ferrenho defensor de seu empreendimento. Foi autor das Constituies Fundamentais da Carolina e membro de seu Conselho de Comrcio e Plantaes, tendo sido seu secretrio entre 1673 e 1675. As constituies da Carolina proclamavam: todo homem livre da Carolina deve ter poder e autoridade absolutos sobre seus escravos negros (Ibidem, p. 118).

    [20] Na opinio de Locke, a origem da escravido, assim como a origem da liberdade e da propriedade, encontravase inteiramente fora do mbito do contrato social (Ibidem, p. 119). O argumento filosfico de Locke temperava a universalidade da igualdade no estado de natureza com a necessidade do consentimento antes que o contrato social pudesse ser estabelecido, excluindo do contrato, portanto, explicitamente, crianas e idiotas e, por extenso interpretativa, outros que fossem incultos ou incultivveis. Ver Mehta, Uday S. Liberal strategies of exclusion. Politics and Society, n 18, 1990, pp. 42753.

    [21] Davis chama a ateno para o fato infeliz de que escravos fossem definidos pela lei como propriedade e que a propriedade fosse considerada como o fundamento da liberdade (Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, op. cit., p. 267). Foi somente aps a deciso de Somerset de 1772 que deixou de ser possvel considerar irrefutvel a legalidade da propriedade de escravos (Ibidem, p. 470), apesar de William Davy, o advogado do caso, haver argumentado que havia um precedente: No dcimo primeiro ano do reinado de Elizabeth, sustentava Davy, havia sido decidido que a Inglaterra tinha um ar demasiado puro para que escravos o aspirassem. No era bem assim, afirma Davis: Na verdade, escravos negros eram comprados e apresentados na corte de Elizabeth e de seus sucessores da dinastia Stuart; sua venda era anunciada publicamente ao longo da maior parte do sculo xviii; e eram legados em testamentos at a dcada de 1820 (Ibidem, p. 472). Quando em 1765 William Blackstone proclamou que, a partir do momento em que seus ps toquem o solo da Inglaterra, um escravo ou negro cair sob a proteo das leis que regem todos os direitos naturais, tornandose eo instanti um homem livre, isso no se aplicava aos escravos nas colnias. Mesmo o advogado de Somerset reconhecia que as cortes inglesas teriam de reconhecer a validade de um contrato de aquisio de escravos firmado no exterior (Ibidem, pp. 4734).

    [22] O London Advertiser de 1756 publicou um anncio feito por Matthew Dyer, informando ao pblico que produzia cadeados de prata para negros ou ces, coleiras etc. [] Damas inglesas posavam para seus retratos ou bem com seu cordeiro de estimao, ou com seu co de estimao, ou ento com seu negro de estimao (Dabydeen, David. Hoggarths blacks: images of blacks in eighteenthcentury English art. Athens: University of Georgia Press, 1987 [1985], pp. 213).

    [23] A respeito da presena de escravos na GrBretanha do sculo xviii, ver tambm Shylon, F. O. Black slaves in Britain. Nova York/Londres: Oxford University Press, 1974, e Limbaugh, Peter. The London hanged: crime and civil society in the eighteenth century, Nova York: Cambridge University Press, 1992.

    [24] Ver Mintz, Sidney W. Sweetness and power: the place of sugar in modern history. Nova York: Voking, 1985.

    [25] Ver Davis, Ralph. The rise of the atlantic economies. Ithaca: Cornell University Press, 1973, p. 257.

    [26] Louis SalaMolins afirma que um tero da atividade comercial na Frana dependia da instituio da escravido (Le Code noir, ou le calvaire de Canaan. Paris: Presses Universitaires de France, 1987, p. 244). Estimativas mais conservadoras situam a proporo em torno de 20%.

    [27] Foi Montesquieu quem introduziu a escravido nos debates iluministas, definindo seu tom. Ao mesmo tempo em que condenava filosoficamente a instituio, justificava a escravido negra em termos pragmticos, climticos e explicitamente racistas (narizes achatados, pretos da cabea aos ps e carentes de bom senso). Conclua: Espritos dbeis exageram demasiado a injustia feita aos africanos pela escravido colonial (Montesquieu. The spirit of the laws. In: Selected political writings. Trad. e ed. Melvin Richter. Indianapolis: Hackett, 1990, p. 204).

    [28] A exceo mais frequentemente citada a obra de um sacerdote, o Abade Raynal, cujo livro Histoire philosophique et politique des tablissements et du commerce des Europens dans les deux Indes, escrito em 1770 em colaborao com Diderot, prenunciava um Esprtaco negro, que surgiria no Novo Mundo e vingaria as violaes contra os direitos naturais. O livro foi lido amplamente, no apenas na Europa; o prprio ToussaintLouverure foi inspirado por ele. Ver James, C. L. R. The black jacobins: Toussaint louverture and the San Domingo revolution. 2 ed. Nova York: Vitage Books, 1963 [1938], pp. 245. MichelRolph Trouillot j advertiu, porm, contra uma leitura muito entusiasta dessa passagem, que deve ser vista antes como uma advertncia dirigida aos europeus do que como uma conclamao voltada aos prprios escravos: No se tratava de uma

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    clara predio sobre o surgimento de uma figura como Louverture, como muitos em retrospecto gostariam que fosse []. A postura mais radical encontrase na inconfundvel referncia unidade da espcie humana (Trouillot, MichelRolph. Silencing the past: power and the production of history. Boston: Beacon Press, 1995, p. 85).

    [29] Rousseau, JeanJacques. On the social contract. In: The basic political writings. Trad. e ed. Donald A. Cress. Indianapolis: Hackett, 1988, livro I, cap. 1, p. 141.

    [30] Ibidem, p. 146.

    [31] SalaMolins, op. cit., p. 238.

    [32] Ibidem, p. 241. Na verdade, os exemplos de Rousseau vm da antiguidade, como quando menciona Brsidas de Esparta se contrapondo ao strapa de Perspolis! Ver Rousseau. Discourse on the origin of inequality. In: The basic political writings, op. cit., p. 72.

    [33] Cf. SalaMolins, op. cit., pp. 2436.

    [34] Ver Cohen, William B. The French encounter with Africans: white response to blacks, 15301880. Bloomington: Indiana University Press, 1980. Em 1764, o governo francs proibiu a entrada de negros na metrpole. Em 1777, a lei foi modificada para suspender algumas das restries, permitindo que escravos coloniais acompanhassem seus senhores.

    [35] SalaMolins, op. cit., p. 248.

    [36] Ibidem, p. 253. Autor tambm de LAfrique aux Amriques: le Code Noir espagnol (Paris: Presses Universitaires de France, 1992), SalaMolins considera os protestos contra a escravido feitos pelo sacerdote seiscentista Las Casas, que defendeu sua abolio imediata, mais progressistas que os dos philosophes.

    [37] Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, op. cit., p. 273. Davis cita Bernard Bailyn nessa passagem. Sigo de perto a apresentao de Davis aqui.

    [38] Jordan, Winthrop D. White over black: American attitudes toward the negro, 15501812, Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1968, p. 289. Seus inimigos, os tories britnicos aproveitaramse disso: Como possvel, perguntava Samuel Johnson, que os mais fortes brados pela liberdade sejam ouvidos do meio dos condutores de negros? (Davis, The problem of Slavery in Western culture, op. cit., p. 3).

    [39] A rvore da liberdade de natureza to tenra que no ser capaz de vingar nos arredores da escravido (Benjamin Rush [1773], citado em Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, op. cit., p. 283).

    [40] Numa das clusulas suprimidas da Declarao de Independncia, Thomas Jefferson acusava o rei britnico Jorge III de haver declarado uma guerra cruel contra a prpria natureza humana, violando os mais sagrados direitos vida e liberdade encarnados numa gente distante, que jamais o havia ofendido, capturandoos e arrastandoos em cativeiro a outro hemisfrio [] decidido a manter aberto o mercado em que homens seriam comprados e vendidos []. Ele agora provoca essa mesma gente a levantarem suas armas contra ns e a comprarem, com o assassinato das pessoas sobre quem ele os forou, a mesma liberdade da qual ele os havia privado, quitando assim crimes anteriores cometidos contra as liberdades de um povo com crimes que ele os conclama a cometer contra as vidas de outro (Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, op. cit., p. 273).

    [41] Temos em comum com todos os outros homens [] um direito natural a nossas liberdades, sem que sejamos delas privados delas por outros homens, pois nascemos como um povo livre e jamais declinamos dessa beno por meio de qualquer pacto ou acordo (citado em Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, op. cit., p. 276).

    [42] Se a Revoluo Americana no pde resolver o problema da escravido, ela ao menos levou percepo do problema. Tampouco o desejo de coerncia consistia em retrica vazia. A questo surgiu nas resolues antiescravistas dos conselhos municipais da Nova Inglaterra, na constituio de Vermont, de 1777, em testamentos individuais que alforriavam escravos, na lei de Rhode Island, de 1774, que proibia a futura importao de escravos, e no ato de emancipao gradual da Pensilvnia, de 1780, adotado, de acordo com um prembulo escrito por Thomas Paine, em grata celebrao nossa afortunada libertao da ocupao britnica (Davis, The problem of slavery in the Age of Revolution, op. cit., pp. 2856).

    [43] Trouillot, op. cit., p. 85. A Encyclopdie, editada por Diderot e DAlembert, inclua verbetes relativos escravido real. Apesar de o artigo intitulado Ngres ter simplesmente mencionado que seu trabalho

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    era indispensvel para o cultivo do acar, do tabaco, do ndigo etc., uma srie de verbetes escritos por Jaucourt foi mais incisiva: Esclavage declarava ser a escravido contrria natureza; Libert naturelle acusava a religio de criar pretextos contra o direito natural por conta da demanda de escravos nas colnias, plantaes e minas; Trait des Ngres afirmava que escravos traficados representavam uma mercadoria ilcita proibida por todas as leis da humanidade e da igualdade, de modo que a abolio era necessria, mesmo que arruinasse as colnias (Sejam antes destrudas as colnias que a causa de tanto mal). Mas o racismo seguia presente nesses textos (SalaMolins, Le Code noir, ou le calvaire de Canaan, pp. 25461) e a abolio era aconselhada sob a forma de um processo gradual, para que os escravos pudessem ser preparados para a liberdade.

    [44] Esse levante de escravos foi liderado por Boukman, um sacerdote do vodu (culto sincrtico que no apenas congregou escravos de diferentes culturas africanas, mas tambm absorveu smbolos culturais ocidentais). Boukman se dirigia aos escravos: Abandonem o smbolo do deus dos brancos, que tanto nos fez chorar, e ouam a voz da liberdade, que nos fala a todos ao corao (James, op. cit., p. 87). Apesar de rebelies de escravos ocorrerem com bastante frequncia em SaintDomingue 1679, 1713, 1720, 1730, 1758, 1777, 1782 e 1787, antes da ampla revolta de 1791 (ver Dupuy, Alex. Haiti in the world economy: class, race, and underdevelopment since 1700. Boulder: Westview Press, 1989, p. 34) , o levante de Boukman provocou, no contexto da radicalizao da Revoluo Francesa, uma mudana na percepo europeia das revoltas de escravos, no mais vistas como uma sucesso de rebelies escravas, mas como uma extenso da Revoluo Europeia: As notcias do vero de 1791 haviam se concentrado na fuga para Varnnes e na captura da famlia real francesa e na revolta dos escravos em Santo Domingo (Paulson, Ronald. Representations of Revolution, 17891820. New Haven: Yale Unioversity Press, 1983, p. 93).

    [45] A escravido foi abolida por Polverel e Sonthonax em agosto de 1793, agindo autonomamente em relao s ordens de Paris. O papel de ambos foi negligenciado pelos historiadores, outro caso de cegueira acadmica que, para usar a feliz expresso de Trouillot (op. cit.), silencia o passado. Ver o simpsio recente (LgerFlicit Sonthonax: la premire abolition de lesclavage la Rvolution Franaise et la Rvolution de SaintDomingue. Ed. Marcel Dorigny. SaintDenis/Paris: Socit Franaise dHistoire dOutreMer/Association pour ltude de la Colonisation Europenne, 1997), que apenas comea a remediar a situao; em especial, ver Roland Desn, Sonthonax vu par les dictionnaires (pp. 11320), que traa a quase total desapario do nome de Sonthonax das enciclopdias bibliogrficas da Frana ao longo do sculo XX.

    [46] Os britnicos foram pragmaticamente compelidos a garantir a liberdade aos escravos de SaintDomingue que concordaram em lutar ao seu lado como fizeram Sonthonax e Polverel no caso daqueles que lutaram pela Repblica Francesa. O efeito dessas polticas foi comprometedor para a escravido, contradizendo qualquer argumento ontolgico sobre a incapacidade dos escravos para a liberdade; ver Geggus, David Patric. The British occupation of SaintDomingue, 17931798. Nova York: tese de doutorado, York University, 1978, p. 363.

    [47] Geggus destaca: O papel desempenhado pelo Haiti no sbito ressurgimento do movimento antiescravagista em 1804 parece ter sido completamente ignorado pela literatura acadmica. Porm, sua importncia foi aparentemente considervel (Geggus. Haiti and the abolitionists: oppinion, propaganda, and international politics in Britain and France, 18041838. In: Richardson, David [ed.]. Abolition and its aftermath: the historical context, 17901916. Londres/Totowa: F. Cass, 1985, p. 116). Novamente, um caso de cegueira acadmica que silencia o passado.

    [48] Em 1796, o general Laveaux nomeou Toussaint governador e o declarou salvador da Repblica e redentor dos escravos prenunciado por Raynal; ver Blackburn, Robin. The overthrow of colonial slavery, 17761848. Londres/Nova York: Verso, 1988, p. 233. Em 1802, o Code Noir foi restaurado na Martinica e em Guadalupe (mas no em SaintDomingue).

    [49] Louverture haviase aliado anteriormente ao rei de Espanha, realizando operaes militares e operando a partir da poro oriental da ilha, que era uma colnia espanhola; mas to logo soube que a Assembleia Francesa havia abolido a escravido, juntouse a Sonthonax contra os britnicos e foi leal Repblica Francesa at sua priso. Essa mudana de alianas, que foi objeto de controvrsia, analisada por Geggus. From his most catholic majesty to the godless rpublique: the volteface of ToussaintLouverure and the end of slavery in SaintDomingue. Revue Franaise dHistoire dOutre Mer, vol. 65, n 241, 1978, pp. 4889.

    [50] Para ajudlo a preparar o texto constitucional, Toussaint convocou um conselho de seis cidados, incluindo o advogado bordels Julien Raimond: A Constituio Toussaint lOuverture da primeira ltima linha, que nela consagrou seus princpios de governo. A escravido foi permanentemente abolida. Todo homem, independentemente de sua cor, poderia exercer qualquer ocupao e no haveria qualquer distino alm daquela baseada em virtudes e talentos ou qualquer outra superioridade que aquela conferida pela lei

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    no exerccio de uma funo pblica. Ele incorporou Constituio um artigo que preservava os direitos de todos os proprietrios ausentes da colnia por qualquer razo, exceto nos casos em que figurassem na lista de emigrados proscritos na Frana. De resto, Toussaint concentrou todo o poder em suas prprias mos (James, op. cit., p. 263). O regime de Toussaint antecipou o estatuto territorial e poltico do domnio. A Frana perdeu a oportunidade de estabelecer uma poltica de imperialismo esclarecido.

    [51] Geggus. Slavery, war, and revolution in the Greater Caribbean. In: Barry, David Gaspar e Geggus (eds.). A turbulent time: the French revolution and the Greater Caribbean. Bloomington: Indiana University Press, 1997, p. 22.

    [52] James, op. cit., p. 346.

    [53] Ibidem, p. 345. Escrevendo sob pseudnimo em um jornal de Boston, defendendo a revoluo em SaintDomingue, Abraham Bishop lembrou que os revolucionrios americanos, que haviam ensinado o mundo a ecoar o grito de Liberdade ou Morte! no diziam todos os brancos so livres, mas todos os homens so livres (Davis, D. B. Revolutions: reflections on American equality and foreign liberations. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 50).

    [54] A constituio de Dessalines declarava que todos os haitianos so negros, procurando eliminar legislativamente as categorias de mulatos e de todos os vrios gradientes de interracialidade. Dessalines foi assassinado em 1806; o Haiti foi ento dividido em duas partes, um reino setentrional, governado por HenriChristophe, e uma repblica meridional, cujo presidente era Alexandre Ption.

    [55] Geggus, Haiti and the abolitionists, op. cit., p. 114. [Doravante HA.]

    [56] Trouillot considera a Revoluo Haitiana a revoluo poltica mais radical daquela poca (Trouillot, op. cit., p. 98). Blackburn escreve: O Haiti no foi o primeiro estado americano independente, mas foi o primeiro a garantir liberdade civil a todos os seus habitantes (Blackburn, op. cit., p. 260).

    [57] Fora a Revoluo Francesa uma mera reforma dos abusos, como Napoleo dizia que os britnicos a consideravam, ou representava um completo renascimento social, como disse em seu leito de morte? Ver Paulson, op. cit., p. 51. No fim da vida, Napoleo arrependeuse da maneira como havia tratado ToussaintLouverture.

    [58] Ver Blackburn, op. cit., p. 230.

    [59] Ruof, Friedrich. Johann Wilhelm von Archenholtz: Ein deutscher Schriftsteller zur Zeit der Franzsischen Revolution und Napoleons, 17411812. Vaduz: Kraus Reprint, 1965 [1915], p. 29. (A grafia empregada por Ruof para o nome de Archenholz, Archenholtz, inusitada). Archenholz continuava: Deveriam ser exaltados pelo povo alemo, que assim se exaltaria a si mesmo (Ibidem, p. 30). Em 1792, utilizou novamente a metfora da escravido, ao descrever a situao revolucionria francesa, perguntando se o povo de uma das naes mais populosas da Terra, que se havia erguido nos ltimos anos do lodo viscoso da escravido e provado saciedade dos doces frutos da liberdade, [] to cedo voltaria a baixar docilmente a cabea sob o jugo e se entreter com suas cadeias rotas como brinquedos, [] mesmo que toda a fora combinada da Europa naufragasse do choque contra esse rochedo (Ibidem, p. 49).

    [60] Em 1790, uma assembleia colonial em SaintDomingue concedeu direito de voto aos brancos no proprietrios (franqueando o eleitorado a uma base mais ampla do que na prpria metrpole), reforando assim a natureza racial da excluso poltica. Ver Blackburn, op. cit., p. 183.

    [61] Blackburn escreve que possuam 2 mil fazendas de caf no oeste e no sul, em comparao com as 780 fazendas de acar, cuja grande maioria era controlada por brancos: Em SaintDomingue, os homens livres de cor eram quase to numerosos quanto os colonos brancos, talvez at mais numerosos. Os proprietrios de cor possuam cerca de 100 mil escravos: em nenhuma outra parte das Amricas figuravam to alto na escala da classe proprietria aqueles que tinham ascendncia parcialmente africana; com frequncia portavam o prestigioso nome de um pai francs (Ibidem, pp. 1689).

    [62] O baro de Wimpffen perguntou se os colonos no tinham medo de dizer liberdade ou igualdade na frente de seus escravos (ver James, op. cit., p. 82). Porm, ainda era raro em 1792 que republicanos declarassem abertamente, como o fez Sonthonax, que no se pode manter os negros em cativeiro se homens livres que eram iguais aos brancos tambm fossem negros como os escravos (Thibau, Jacques. SaintDomingue larriv de Sonthonax. In: LgerFlicit Sonthonax, op. cit., p. 44).

    [63] Na Assembleia Constituinte (17891791), composta por aproximadamente 1.100 deputados, um de cada dez tinha intereses em SaintDomingue (ver ibidem, p. 41).

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    [64] Os Amis des Noirs (associao fundada em 1788) foram importantes ao preparar o terreno para essa discusso. Apesar de no serem numerosos, eram influentes como escritores e panfletrios (Condorcet, Brissot, Mirabeau, Abade Grgoire), cujos trabalhos deploravam a condio dos escravos coloniais. Rainsford escrevia em 1805 que, como um resultado da circulao de seus escritos, os escravos negros eram objeto de destaque em conversas e contries em metade das cidades europeias; uma vez que caracterizavam, com infeliz eloquncia, as misrias da escravido e eram certamente a causa do chamado ao, com amplo alcance, daquele esprito de revolta dormente no africano escravizado ou em seus descendentes (Rainsford, Marcus. An historical account of the black Empire of Hayti. Londres: J. Cundee, 1805, p. 107). A postura dos Amis des Noirs consistia na defesa unicamente da emancipao gradual at 1791, quando passaram a defender a concesso de direitos a negros livres e mulatos; poca da abolio efetiva da escravido (1794), a associao j havia deixado de existir, vtima dos expurgos de Robespierre. A abolio passou a ser identificada com os girondinos, inimigos de Robespierre: Os girondinos foram acusados de haverem secretamente fomentado os levantes coloniais em favor da GrBretanha e de apoiarem a abolio com o objetivo de arruinar o imprio francs []. O prprio Robespierre mantevese conspicuamente ausente da sesso de 4 de fevereiro (da Conveno, que votou unanimemente pela abolio da escravatura) e no assinou o decreto (Fick, Carolyn E. The French revolution in SaintDomingue: a triumph or a failure?. In: A Turbulent Time, op. cit., p. 68; comparar com Bnot, Yves. Comment la convention atelle vot labolition de lesclavage en lan II?. Rvolutions aux Colonies. Paris, 1993, pp. 1325).

    [65] Archenholz, Johann Wilhelm von. Einleitung zur Zur neuesten Geschichte von St. Domingo, Minerva, n 4, 1804, p. 340. Essa era a introduo editorial de Archenholz ao artigo (pp. 3415), crtica da violncia da revoluo e ctica quanto viabilidade do Estado dos negros.

    [66] Ver Historische Nachrichten von den letzten Unruhen in Saint Domingo: Aus verschiedenen Quellen gezogen, Minerva, n 1, fev. 1792, pp. 296319. O artigo pronunciavase a favor dos direitos dos mulatos, da postura de Brissot e dos Amis des Noirs.

    [67] Esse lema, proclamado por Dessalines em maio de 1803, foi reportado em Zur neuesten Geschichte von St. Domingo, Minerva, n 4, dez. 1804, p. 506.

    [68] A ascenso do Imprio Haitiano pode afetar decisivamente a condio da raa humana []. Ser difcil acreditar, no futuro, que