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7/28/2019 Hegel Vera http://slidepdf.com/reader/full/hegel-vera 1/291 Introdução à Filosofia de Hegel  Auguste Véra Tradução de Luís Alberto Cabral

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Introdução

àFilosofia de Hegel

 Auguste Véra

Tradução de Luís Alberto Cabral

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AO SENHORSYLVAIN DE VANDEWEYER,

EMBAIXADOR DE SUA MAJESTADE E REI DOSBELGAS,

PRÓXIMA À CORTE DA INGLATERRA.

Senhor Ministro,

Quando escrevi essas páginas, não poderia esperar a honra devê-las um dia apresentadas ao público sob os mais altos auspícios.Devo acrescentar que sem o senhor, sem vossos conselhos eencorajamentos, em virtude das indiferenças e das vicissitudes deminha vida, nunca teria chegado este dia. É, pois, o senhor que astornou possível para o público e para a ciência, se desse modoposso me expressar, senão jamais se poderia conhecer um dosmaiores pensadores cuja honorável inteligência faz  –  como dissotenho confiança  –  pois qual autor não teria essa confiança?  – irradiar sementes de verdade, e encorajar o ardor filosófico que,nesses últimos anos, vem parecendo morno, o qual em vós sereacenderá.

Este apoio concedido à ciência, que, para outros, é sempreuma tarefa de condescendência ou de posição, não é, no senhor,

senão a expressão natural e espontânea de vossos hábitos. Os quese interessam pela filosofia sabem que foste um dos primeiros, naBélgica, a relevar e a defender, por palavras e pela pena, a bandeirafilosófica, assim como os que conhecem a história de seu país nãoignoram que foste um dos fundadores de sua liberdade e de suarecuperação política. Mas, em relação ao que foi ignorado,provavelmente tenha sido porque, em meio aos numerosos deveres

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de vossa alta posição, aos cuidados tão sérios e importantes, seencontre afastado do espírito da vida contemplativa, embora

guarde fielmente a ciência, que ocupa em vós os primeirospensamentos, a primeira posição em vossos sentimentos. Somenteposso, aqui, falar em meu nome; mas se me fosse permitido falarem nome da filosofia, vos agradeceria por ela, e acrescentaria quevos deve o fruto que nos foi transmitido de vossas meditações e devossos trabalhos.

A. Véra.Londres, 20 de janeiro de 1855.

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ADVERTÊNCIA (pelo autor)Publico, hoje, a primeira parte de um trabalho cujo prefácio

fará conhecer seu objeto e compreensão. Há partes que nuncapuderam ser corrigidas, por detalhes que teria que modificar oufazer suprimi-los, como em relação a um caráter acidental e local.Preferi, no entanto, deixar o livro tal como havia concebido naépoca em que o escrevi; pois, de um lado, tornou-se difícil corrigirpartes sem comprometer o todo, e, de outro, não me pareceu que opensamento filosófico tenha se tornado obscurecido ou falho poresses detalhes, e pela disposição que adotei no princípio.

Quis compreender neste volume a Lógica. Mas consideraçõesmateriais me levaram a publicar sucessivamente e em volumesdistintos as três partes fundamentais do sistema de Hegel. Casotivesse acrescentado a Lógica neste volume, teria ultrapassado asproporções comuns e, por assim dizer, consagradas de toda apublicação.

Talvez se indague se não teria sido mais racional começarpelo sistema de Hegel, seguindo-se a Introdução que se deu comoum resumo e uma crítica. Trata-se de um caminho sempre adotado,baseando-se nesse princípio de que antes de julgar é preciso ter aspeças do processo, apesar de que sempre se tenha as peças, semque se tenha o juízo. Porém, sem discutir aqui se não teria sido

mais conveniente ter começado pela introdução, pela razão de queum argumento deva estar na parte inicial de um livro, ou umadefinição na da ciência, farei observar que a Introdução atual nãofoge aos padrões das introduções comuns, pois forma uma espéciede um todo, independente, sob todos os aspectos, do sistema deHegel, embora sirva de preparo para se conhecer o pensamentofundamental e os aspectos principais.

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PREFÁCIO

Há alguns anos, Hegel despontou na França como umaaparição extraordinária, como uma dessas inteligências soberanasque o mundo somente vê em grandes intervalos e que deixam naciência e na história traços luminosos que elucidam, ao mesmotempo, o passado e o futuro da humanidade. Quanto a nós,compartilhamos completamente da observação por parte de umhomem ilustre, um dos primeiros1 a chamar a atenção na França ena Europa sobre este grande espírito, e, de nossa parte, nãohesitamos em proclamar Hegel como um dos maiores pensadores,senão o maior. Jamais, com efeito, a inteligência humana elevou-sea um grau tão elevado de força especulativa; nunca houve umavisão tão ampla e profunda de todos os setores do conhecimento.

Contudo, uma espécie de metamorfose parece que vem seoperando nos últimos tempos em relação a este filósofo.Pronuncia-se seu nome com reverência (e como poderia ser deoutro modo? Pois negar a força deste espírito, seria negar aevidência), mas não se experimenta mais o mesmo entusiasmo,reservas são feitas, o que não compreendemos e nem admitimoscompletamente; há um esforço em diminuí-lo, e apresenta-se ohegelianismo às vezes como uma espécie de acidente na história do

espírito humano, como uma filosofia sem valor e sem futuro, e àsvezes como um monstro, expressão que nos passa, destinado adevorar todas as verdades do mundo.

A que se pode atribuir isto? Trata-se de um conhecimentocerto e completo? No entanto, nos inclinamos em crer no contrário,caso venhamos a nos deparar com uma repetição constante de

1 M. Cousin, Pref. aux Fragments, 1833.

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refutações. Entendemos, com efeito, as opiniões mais singularescomo as mais superficiais.

A doutrina de Hegel, diz-se, considerando-a como método, é arenovação da escolástica, cheia de sutileza, de divisões, dededuções artificiais e puramente verbais. Considerada em seusresultados, enquanto teodicéia, é a filosofia do século XVIII, afilosofia de Diderot e dos Enciclopedistas, ou seja, ateísmo oupanteísmo, o que é a mesma coisa; unicamente, aqui, esta doutrinase disfarça sob o nome de culto à humanidade; em relação àpolítica, é demagogia, indo até o comunismo. Vê-se, portanto, oque se passa além de Rhin. Quem são as cabeças do radicalismoalemão? São os hegelianos, a jovem escola hegeliana, Feuerbach,Ruge, Stirne, Grun, etc., que apenas tiram as consequênciasindicadas por seu mestre. Enfim, como coroação dessaargumentação, acrescenta-se que é necessário deixar para aAlemanha estas vãs especulações, e manter o espírito francês emsua direção própria e nativa. Pois o espírito francês, que em tudoaspira à precisão e à clareza, deve dispensar tais doutrinasnebulosas e ininteligíveis da Alemanha. Eis o que é dito, e o que sevê repetir com constância.

Que nos seja permitido entrar neste assunto com algumasconsiderações gerais e externas que se encontram justificadas e

confirmadas de uma maneira mais direta por estudos dos quais noslivraremos em seguida. Lembremos, primeiramente, que a ciênciae a independência absolutas são inseparáveis; deve-se mesmo dizerque não há ciência que não possua tal privilégio; privilégio que éinerente a sua natureza e a sua essência, de tal sorte que se isto lheé retirado, ou nela limitado, o resultado seria qualquer coisa apenassemelhante ao que é ciência, como uma ginástica do espírito, um

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ensino circunstancial, apropriado a um povo, a uma situação;porém, isto não seria ciência.

Sendo assim, ante uma doutrina filosófica não se deve torná-laobjeto de contestação e demonstração de que se trata de ateísmo,de panteísmo, de demagogia e de comunismo. Pois se as doutrinasforem verdadeiras, é preciso aceitá-las. O que é preciso, pois,demonstrar é se elas não possuem os fundamentos da razão. Nestademonstração, não se deve invocar as opiniões, os hábitos morais eintelectuais de um povo ou de uma época, nem mesmo o que sedenomina como consciência do gênero humano. Pois as palavras eas coisas não têm, na linguagem ordinária e no domínio da opinião,a mesma significação que têm na ciência. Se a ciência pudessegarantir a certeza de seus princípios no campo móvel e variável daopinião e da experiência, ela não seria mais ciência. Pois, aqui, overdadeiro e o falso, o justo e o injusto, a moralidade e aimoralidade, não somente caminham juntos, mas se relacionam umcom o outro e se misturam sem discernimento. Desse modo, taldoutrina é verdadeira, ou tal fato se realiza seguindo os desígniosda Providência quando responde às preocupações, aos interesses eàs paixões de algo particular ou momentâneo, enquanto que todaoutra doutrina e todo outro fato que, caso não concordem comestes, têm em seu favor a razão, a evidência e o testemunho dos

séculos, e são tão-somente acidentes, aberrações do espíritohumano, doutrinas ímpias e fatos que se produzem de fora dosdecretos da Providência.

Quanto à consciência do gênero humano, frequentementedenominada desse modo, desejamos, primeiramente, que sejaexposto o que se entende por este termo. Mas isto é o que não sefaz, e vê-se que é mais cômodo o seu emprego de um modo

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superficial e irrefletido do que desenvolvê-lo conforme o seusignificado. Assim, por exemplo, os que recorrem a este argumento

consideram a consciência do gênero humano como um ser e umprincípio real, pois é tão-somente nesta condição que buscam neleum sentido; e depois se apresenta a mesma opinião de outro modo,pois ao invés de se referir à consciência do gênero humano, afirma-se a consciência da humanidade, ou, ainda, simplesmente ahumanidade; acabam por se insurgir contra tal doutrina, e afirmamque a humanidade é somente uma abstração e uma palavra.2

No entanto, sem procurar determinar aqui o que deva ser aconsciência do gênero humano, pois esta definição não pode serdada fora da ciência e de uma maneira esotérica, dando-se a estapalavra um sentido indeterminado, em relação ao seu usoordinário, faremos observar que a consciência do gênero humano éampla e extensa, caso nos seja permitido tal expressão, a ponto deque não se deve desejá-la utilizar como suporte para umadeterminada causa ou opinião. Por exemplo, caso se queirademonstrar o significado de dever, outros poderiam desejardemonstrar o que seja útil, pois o gênero humano deixa muitolevar-se pelo interesse, e, talvez, mais pelo interesse do que pelodever. E, se para combater as paixões, recorre-se ao mesmoargumento, outros poderiam empregá-lo para defendê-las, porque

as paixões referem-se sempre às atividades humanas, e, por isso,necessariamente, pode-se encontrá-las, disfarçadas e sob outraforma, também nos que as condenam e que pretendem que sejamelas somente acidentes.

É o que ocorre, com efeito, na crítica de um sistema ondeprevalecem argumentos similares, no sentido de que, em lugar de

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comparar uma ciência com contra, insiste-se sobre certos pontosque se deseja rejeitar, conforme se considere ser o ateísmo, a

demagogia, etc. Ou, ao invés de submeter tal sistema a umadiscussão séria e refletida, prefere-se amotinar contra elepreconceitos e opiniões do momento, seguir preocupações, que nãodiremos pessoais, mas que não parecem inspiradas pelo verdadeiroamor pela ciência.

Um processo semelhante, isto é, um processo nulamentecientífico é quando se julga uma ciência por seus resultados, sejamteóricos, sejam práticos. Uma ciência não se dá inteiramente porseus resultados, mas também, e, sobretudo, por suas premissas eseus métodos. Há na ciência, assim como em todas as coisas, umcomeço, um meio e um fim, e o fim de uma doutrina filosóficapode ser idêntico à de outra doutrina, sem que o começo e o meiosejam. Seria um engano achar que esta diferença possui poucaimportância. Na vida ordinária e no âmbito da experiência, caso seutilizasse um ponto de vista de um resultado para julgar osignificado e a utilidade das coisas, isto seria insensato. Umabatalha ganha ou perdida é sempre uma batalha ganha ou perdida.Dois cadáveres são dois cadáveres, e dois homens ou dois naviosque permanecem num país, todos os dois chegaram porquechegaram. Neste ponto de vista é que se poderia mesmo dizer que

todas as coisas são iguais. Pois qual diferença há entre tal povo outal época com um outro povo e uma outra época? Todos os homensnascem e morrem, passam por momentos de saúde e de doença, devigília e de sono, etc., e em tal relação não há entre eles nenhumadiferença.

Mas uma coisa é uma batalha que o acaso ocasiona umavitória, e outra coisa uma batalha que foi ganha por força de

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planejamentos sábios e profundos. Uma coisa é o cadáver daqueleem função de morte natural, outra é o daquele que foi morto de

forma violenta. E o navio que, empregando bons instrumentos etendo uma boa visão, chega primeiro ao seu destino, sendo superiorao navio que também chega, mas que chega mais tarde.

A mesma coisa ocorre na ciência. Por conseguinte, doissistemas podem ter certos resultados comuns, e serem diferentes,entretanto, por pontos essenciais e muito importantes. E um podeser mais importante do que o outro em função do método, por suasdemonstrações, pelas questões que levanta e soluções que indica, epor sua visão mais profunda sobre a natureza da inteligência e dosseres em geral. Deve-se mesmo dizer que é isto que consisteprincipalmente o progresso e a perfeição das ciências. Pois, quantoaos resultados, como assim são denominados, estes são apenaspoucos, e sempre os mesmos. Quando, pois, se aprecia umadoutrina por seus resultados, se mistura e se confunde todas ascoisas, não se tem em conta as diferenças essenciais e osdesenvolvimentos próprios e novos de um sistema, os quais sendovistos como uma consequência se deveria renunciar à ciência,porque é por isto mesmo que seus resultados são idênticos. Trata-se do hábito de querer simplificar tudo suprimindo as diferenças, ede somente prender-se a uma face e a uma propriedade das coisas

sem levar em conta outras propriedades e outras relações. Hábitoeste que faz considerar, de um lado, a escolástica como umaciência vã e puramente verbal, e, de outro, o método hegelianocomo uma reprodução da escolástica. Este hábito, é preciso dizer, éuma das características predominantes do espírito francês, presentetanto na educação científica quanto na educação política.

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Presente na educação política, porque num povo em que aação predomina sobre a reflexão acostuma-se a ver somente os

resultados, e um pequeno número destes, e chega-se prontamente asuprimir os intermediários e a simplificar as coisas e as situações;simplificando, no entanto, tão-somente para mutilá-los e violentá-los, o que desemboca num resultado precário ou impossível.Apresenta-se na educação científica, conforme se vê em Descartes,e também na filosofia sensualista. Vejam, por exemplo, Condillac.Para este, há somente um princípio, que é a sensação, e que não é omesmo que a sensibilidade, mas é a sensação; a inteligência, comtodas suas faculdades, intuitos e profundidades, enquanto atividadeinfinita que engloba todos os seres, reduz-se somente a umacréscimo, a uma repetição monótona e de um só e único elemento,a sensação. É a simplicidade e a igualdade políticas transportadaspara a ciência.

Descartes obedece a esta mesma tendência quando, de umlado, acredita poder substituir a antiga lógica por quatro regras deseu método, regras que, aliás, a antiga lógica, isto é Platão,Aristóteles e os Escolásticos, também conheciam e aplicavam, e,de outro, pretende encontrar o fundamento da certeza e a refutaçãodo ceticismo no famoso cogito, ergo sum3. Mas a lógica, a certezae a verdade são coisas muito complexas e mais profundas do que

imagina Descartes, que as desejando simplificar, as mutila, esubstitui uma clareza natural, a que se refere somente aoconhecimento real e completo das coisas, por uma artificial. É,sobretudo, mais cômodo suprimir os seres que conhecê-los, mas,desse modo, segue-se tão-somente a abstrações, e ao invés de umavisão clara e profunda da inteligência, do conhecimento da

3  Ver introd., cap. IV, § 3

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igualdade e da desigualdade, da identidade e da diferença, daharmonia e desarmonia das coisas, alcança-se somente uma clareza

aparente e superficial, uma clareza que se transforma numaobscuridade ainda mais profunda e que apaga e simplifica os serese suas propriedades. Desse modo, por conseguinte, nãocompartilhamos em absoluto com a opinião dos que reprovam naescolástica suas distinções, ao que se denomina de suas sutilezas.Cremos, inteiramente ao contrário, que é em relação ao verdadeirométodo que se responde melhor à verdade, que se pode conhecerseu objeto em sua natureza real e concreta. Pois as divisões e asdistinções estão nas coisas, e quando se intenta examiná-las deperto, descobrem-se nos seres, em sua aparência, as mais simples eas mais elementares das propriedades e das relações infinitas. Oessencial, em relação a isto, é que as distinções sejam racionais efundadas na natureza das coisas, e que por tais distinções não seperca de vista a unidade, e se saiba encontrá-la e mantê-la nadiversidade e na diferença.

Deve-se, inclusive, não se atribuir esse procedimentounicamente aos Escolásticos, e de torná-lo o aspecto que sobressaiem sua filosofia. Pois, por tal direção, seguiu-se em todos ostempos e países, porque o seu fundamento finca-se na própriarazão. Quanto mais se penetra no interior das coisas, mais se

distingue e se divide, sendo que apenas o que se consegue édeparar-se com suas aparências, por assim dizer, integradas. É oque vemos em Platão, Aristóteles, nos estóicos e nos alexandrinos,que procedem em dividir, distinguir e salientar, assim comotambém fazem os escolásticos. Quando, para se combater essemétodo, apela-se, conforme se faz ordinariamente, à experiência,deve-se ver que esta não é a verdadeira experiência que se realiza,

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mas uma experiência imaginária que se inventa para ser utilizada.Pois, indo de encontro até a verdadeira experiência, encontrar-se-

iam mais distinções e sutilezas que na ciência. Não há, com efeito,sutilezas tanto na política quanto na jurisprudência? O que são as70 ou 80.000 leis que nos governam, senão distinções e divisões? Ea vida real, não se compõe ela de uma multidão de detalhes enuanças sempre imperceptíveis? Dever-se-ia dizer, ao contrário,que, aproximando-se a ciência da experiência, não ocorre a divisãoda ciência em relação à experiência. Sendo assim, mesmo que ométodo hegeliano retome a escolástica, longe de noscompadecermos disto ou de o censuramos, devemos saber o quantonão preservou de boas e legítimas tradições da ciência.

Mas o método hegeliano não é jamais o da escolástica, ouesta, aquele, como também não é o de Platão, Aristóteles, deDescartes; ele é, numa palavra, um método superior que resume econcentra todos os métodos precedentes.

Não sabemos, agora, se é preciso levar a sério essa espécie deexclusão que certos espíritos desejam para a filosofia alemã,primeiramente por se tratar da filosofia que não é a francesa, edepois porque é uma filosofia obscura e ininteligível.

Caso se deva, com efeito, proibir a filosofia alemã, não vemospor que não estender este decreto proibitivo à filosofia de outros

autores. Ao que se diz que essa filosofia assume para ela aautoridade dos séculos e de seus resultados, se responde que houveum tempo em que essa autoridade não existia, mas que, no entanto,não significou isto uma causa de exclusão; e deve-se observar que,se é uma vantagem assumir para si os séculos, é também a de ter aseu lado a novidade e a renovação, e é muito provável, e mesmocerto, que um grande movimento filosófico, tal o que teve lugar na

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Alemanha, tem sua razão de ser, pelos conhecimentos e verdadesque traz para o mundo.

Quando se leva em conta a ciência e a filosofia de modoexcessivo, em caráter nacional, resulta que suas distinções edelimitações ficam sem sentido. Pois não há uma filosofia alemã euma filosofia francesa, mas uma única e mesma filosofia, uma só emesma verdade a se manifestar num tempo e espaço determinados,uma vez que, desde que se imponha, constitui-se no patrimôniocomum de todos os povos e de todas as inteligências. É o que seconstitui como a condição e essência de toda pesquisa filosófica.Quem se dedica ao estudo do homem, ao invés de estudar oespírito humano, caso se prendesse ao espírito francês ou ao inglês,estaria fora de seu objeto, e estaria produzindo uma obra literária elocal, mas nunca uma obra filosófica.

E mais. Mesmo sob o ponto de vista do espírito nacional, talexclusão não poderia ser justificada. Um povo não é um enteisolado, mas é obrigado a viver, sobretudo, no estado atual domundo, em comunidade de sentimentos, de ideias e de interessescom os outros povos; o que faz com que viva uma vida dupla. A deuma vida própria e individual, e a de uma vida geral pela qualalimenta e completa a primeira. Isolar-se é, pois, diminuir-se,concentrar-se por vaidade ou inclinação pela individualidade; é se

pôr fora da verdade, da história e da vida universal do mundo.Dizer que a filosofia alemã é obscura e ininteligível éabsolutamente não dizer nada, porque o falso em si mesmo éperfeitamente inteligível, e as coisas são somente ininteligíveis poraquilo que não se deseja ou que não se possa compreender.Pretendemos, ao contrário, que ela seja a mais inteligível, porque éa mais profunda, a mais compreensível e a mais sistemática. A

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profundidade e a inteligibilidade são inseparáveis, e as coisas maisprofundas são também as mais inteligíveis. E Deus que é o objeto

mais profundo do pensamento é também o ser mais inteligível, istoé, o ser sem o qual a inteligência não compreende as coisas, nemcompreende a si mesma. É conforme, pois, o significado da palavrainteligível, em que uma coisa é inteligível por adequar-se àinteligência, que esta pode pensar e conhecer tal coisa, ou pensar econhecer por intermédio desta.4

Tais são as considerações gerais que acreditamos deversubmeter aos nossos leitores para preservá-los de certasprevenções, e para que desenvolvam um estudo e uma apreciaçãoda filosofia hegeliana com imparcialidade e liberdade de espírito,sem as quais não se poderia compreender uma doutrina.

Quanto às objeções consideradas em si mesmas, vê-se que nãose pode ter uma resposta de modo direto. Porém, o que afirmamos,e esperamos demonstrar em seguida, é que elas não são de modonenhum fundadas, e que não somente a filosofia hegeliana não éateísmo, demagogia, ou comunismo, como não há, provavelmente,uma outra filosofia que seja mais afastada de tais opiniões. Mesmoquando, para se dar apoio a tais censuras, se cita a jovem escolahegeliana, apresentando suas doutrinas como uma consequência euma aplicação do pensamento de Hegel, vê-se o quão isto não é

sempre lógico e legítimo, pelo julgamento que se faz do mestre porseus discípulos; comparável à apreciação que se faz docristianismo, atacando-o sob a censura que se faz à inquisição, ouàs violências e às injustiças cometidas em seu nome; ou ainda, emrelação ao julgamento que se pode fazer da revolução francesalevando em conta suas aberrações e excessos. Uma doutrina deve

4 Cf.. Introd., cap. IV ou VI

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ser considerada em si mesma, conforme o valor intrínseco de seusprincípios, em seu conjunto, e, por assim dizer, conforme o

equilíbrio de todas as suas partes. Caso seja julgada por suasaplicações, e, sobretudo, por suas aplicações parciais, dá-se o riscode se ter uma noção incompleta ou inexata. Pois as aplicaçõesparciais são os resultados de princípios igualmente parciais, i.é, deprincípios que se separam de seu conjunto, que são levados emconta de modo excessivo, e, às vezes, até em forma de substituiçãodo todo. Aliás, não há nenhuma doutrina, qualquer verdade,mesmo grande, que se dê desse modo, que possa escapar dessaconsequência, porque é difícil, ou melhor, impossível que em suasaplicações ela seja conhecida e realizada na unidade e na harmoniade seus princípios. Pretendeu-se que as doutrinas comunistastenham sua origem no cristianismo. Essa opinião funda-se emrelação a alguns de seus preceitos. Porém, o que deve importar éassegurar-se de que tais doutrinas concordam com o seu conjunto ecom o espírito geral de seu ensinamento.

Eis aí o ponto de vista em que se deve apoiar quando se desejalevar em conta a doutrina hegeliana, acima de qualquer outra, porse tratar, inclusive, de uma doutrina essencialmente sistemática e,portanto, todos os seus elementos se envolvem, se engendram e semodificam uns nos outros. A jovem escola hegeliana é somente o

excesso da filosofia de Hegel. Obedecendo-se aos hábitos de umalógica falsa e superficial, impelido por princípios que levam àsextremas consequências, acaba-se por falsear e acrescentar aquiloque não consta nem na palavra nem no pensamento do mestre. Poisestar de posse de um princípio até suas consequências máximassignifica pôr este fora de seus limites naturais, que são os limitesdo verdadeiro e do legítimo; desejar que paire sobre outros

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princípios com os quais é preciso conciliar, porque estes são domesmo modo verdadeiros e tão legítimos quanto aquele.

Sem dúvida, a filosofia de Hegel é liberal e progressiva,expressão que nos vem à mente, e, de outro lado, a noção queHegel possui das coisas não está sempre de acordo com o que é decostume. Porém, qual filosofia não é liberal? Uma filosofia que nãopreencha esta condição não é filosofia. Depois, se há uma censuradirigida, seja à filosofia hegeliana, seja à filosofia em geral, épreciso igualmente dirigi-la à arte e à religião. Pois desde que estasse apresentem ao homem certo ideal, que é o que propõem areligião e a arte, conforme um estado de felicidade e de perfeiçãoabsolutas, desvelam-se em seu espírito desejos infinitos, e odescontentamento com a realidade e com a ordem atual das coisas.Sendo que, conforme esforços em alcançá-lo, acrescenta-se quecomo o absoluto não pertence a este mundo, e a felicidade ideal aque se aspira não se realiza na vida terrena, o espírito não seacomodará em suas reservas e esforços, e reconhecerá que, comefeito, a felicidade e a perfeição absolutas não são alcançadas navida terrena, e desejará, esperando ao mesmo tempo o melhor,realizá-las e alcançar a alegria desde a vida presente; agindo dessemodo, estará obedecendo tão-somente às leis de sua natureza. É,com efeito, ao espírito que é necessário dirigir tais censuras, no

qual, a arte, a religião e a filosofia compõem diversos graus emodelos de atividade. Pois, com o espírito, dá-se o pensamentosobre o eterno e o absoluto, e, por conseguinte, sobre o movimento,o progresso, a liberdade e a ciência.

Com efeito, tais censuras não possuem sentido. E tudo que sepode exigir de uma doutrina filosófica é que o progresso indicado

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por ela seja possível e racional, conforme as leis e necessidades doespírito.

Quanto à outra objeção, esta ultrapassa, do mesmo modo, oseu objetivo, porque não se refere somente à filosofia hegeliana,mas à ciência em geral. E, com efeito, o objeto da ciência consisteem substituir as noções indeterminadas, incompletas ou falsas quese tem vulgarmente das coisas, pelas noções verdadeiras,completas e bem definidas; o que não quer dizer que a consciênciairreflexiva e a consciência científica não possuam nenhumarelação, nenhum ponto de contato. Em geral, a consciênciareflexiva e a consciência irreflexiva possuem um só e mesmoobjeto. Apenas que não veem este objeto do mesmo modo. Ambasveem e pensam a natureza, Deus, o espírito, etc.; mas tais termos etais coisas não possuem para elas um mesmo sentido, e estadiferença significa precisamente que o pensamento irreflexivo nãotem das coisas uma noção tão clara e completa, ao contrário daciência.

Critica-se o Deus de Hegel por não ser um Deus pessoal. Masdesejamos aos que fazem tal crítica que nos mostrem em que sebaseiam e o que entendem por personalidade divina. É sem dúvidamuito fácil pronunciar os termos personalidade divina, Deus vivo eoutros semelhantes. Mas o ponto essencial é saber o que se entende

por essas expressões, para que não se desenvolva uma ciência daspalavras ao invés dos seres. No entanto, isto é o que não se evita, eaqui, também, prende-se, de modo mais cômodo, à palavra,iludindo-se a si próprio e aos outros.

Quando se torna, conforme uma dada noção, a personalidadedivina como a imagem do que se denomina de personalidadehumana (não se avançando em seu significado), cai-se numa ilusão

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mais profunda ainda. Pois quando se fecha na palavra, deixa-semenos espaço ao espírito em sua liberdade e faculdade de buscar

sua significação; conforme se assimila a personalidade divinaligada à humana, introduz-se no espírito um erro muito arraigado edifícil de ser superado.

Com efeito, essa assimilação equivale à negação de Deus.Pois se a personalidade divina é feita à imagem da minha, Deus éum ser finito, mutável e sucessivo como eu. Bom seria o caso de seacrescentar aí o atributo de infinito, pois seria preciso determinar oseu significado, o que demandaria uma ampliação dos limites doque se denomina de personalidade. Portanto, essa noção que se temde Deus não está mais de acordo com a razão e com a história, enão responde nem ao Deus de Platão, de Aristóteles, dosalexandrinos, nem ao das religiões da antiguidade e docristianismo.

Quando, para se escapar desta dificuldade, se diz que, para seter uma noção da verdadeira personalidade divina, não é precisoconsiderar as faculdades inferiores do espírito, e sim o que há demais elevado nele, a inteligência e a razão, que pensam o eterno e oabsoluto, o que então se pretende, nesse caso, com o termopersonalidade? Conforme a consideração de que a razão éimpessoal. Mas se a razão é impessoal (é necessário admitir que

seja), o ser divino, seja o que consideramos conforme a imagem denossa razão, seja o que representamos como a fonte e princípiodesta, será impessoal do mesmo modo que aquela. Trata-se datentativa de se conciliar, como se pudesse, tais contradições eimpossibilidades. Para nós, basta estabelecer, aqui, que Hegel estáperfeitamente fundado ao nos dar outra noção de divindade, semque possa ser acusado de querer substituir o que se denomina de

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Deus pessoal por um Deus abstrato e indeterminado, além deautorizado, pela razão e pela história. Aliás, é isto o que

pretendemos demonstrar.5

Resta-nos, agora, acrescentar algumas palavras.Desejando conhecer Hegel de uma maneira que não ousamos

que seja completa, mas suficiente, temos que escolher em suasobras o que integra suas partes, seu sistema, ou seja, suaEnciclopédia.

Há dois tipos de Enciclopédia, que denominamos: a grande ea  pequena. Sabe-se que Hegel desejou traçar sua Enciclopédiacomo linhas gerais de seu sistema, apresentando, de formaconcentrada, o conjunto de suas diversas partes, que são tratadasem obras distintas, como a Lógica, a Fenomenologia, a Estética,etc. Sendo que há partes, como a Física e a Antropologia, quesomente se encontram na Enciclopédia.

O método de exposição adotado por Hegel nesta última obraconsiste em pôr a tese (a ideia), em demonstrá-la de uma maneiraconcisa e sumária, e acrescentar, em seguida, uma espécie decomentário ou apêndice ( Zusatz), esclarecimentos que se dãoapenas como desenvolvimentos diretos, corolários dademonstração principal, ou das considerações tomadas de foradesta demonstração, mas que as fortalecem e as complementam.

Tal comentário não se encontra em sua primeira edição, quecontém somente a tese e a demonstração sumária. Somente nasegunda edição que Hegel resolveu acrescentá-la para tornar seu

5 Cf.. Sobre este ponto: cap. IV e VI.

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pensamento menos abstrato e mais acessível. É esta edição quedenomino de a grande Enciclopédia6 .

Entre a grande e a pequena Enciclopédia iremos escolher estaúltima.

Vimos que a tradução do comentário de Hegel não nosdispensaria de acrescentar outro para tornar o pensamento do autorsuficientemente claro e para adequá-lo, se possível de modoharmônico, com os nossos leitores. Do contrário, o nosso trabalhonão somente seria duplicado, como haveria dificuldades materiaisque havíamos previsto nessa publicação. É, pois, necessárioobservar que o comentário de Hegel supõe, frequentemente, oconhecimento de outras obras suas. E analisar passagens destaspodia incorrer em falhas.

Achamos, por conseguinte, mais adequado nos limitarmos atraduzir a  pequena Enciclopédia7 , com a introdução de notassuficientemente desenvolvidas e compostas seja de um resumo docomentário de Hegel, seja de explicações tiradas de suas outrasobras, ou, ainda, de nossas próprias explicações.

Quanto à tradução, fomos obrigados a realizá-la de forma tãoexata quanto literal, conforme permitiu o gênio da língua alemã, e,em particular, conforme a linguagem hegeliana, de modo quedeixamos, enquanto nos foi possível, o pensamento hegeliano em

sua fisionomia própria, mesmo com o risco de atentarmos contra oidioma.Na Introdução, não achamos melhor empreender uma análise

do sistema. Uma vez que tais análises são sempre insuficientes,

6 Hegel fez três edições desta obra. A primeira em 1817; a segunda, em 1827, e a terceiraem 1830. Há uma quarta edição que faz parte de suas Obras completas, publicadas porseus amigos e discípulos.

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além de ser inconveniente ter que reunir a obra inteira, correndo-seo risco de se habituar o leitor a ter uma visão geral de uma

doutrina, considerando o conhecimento de seus detalhes comosupérfluo. Daí que decorre a opinião errônea e superficial que delase tem. Pois, ao contrário, somente adentrando-se nos detalhes,pela decomposição de cada elemento do todo, é que se pode teruma ideia nítida e completa deste todo. O inconveniente tornar-se-ia bem perceptível num sistema onde não se soubesse o sentido decada termo e de cada dedução que se tire de suas partes genuínas,na ordem de sua gestação, e com todos seus caracteres edesenvolvimentos internos e distintos.

Pareceu-nos, pois, mais útil e mais racional apresentar umaIntrodução, aos olhos do leitor, como uma pesquisa que nosconduza ao brilhantismo da filosofia hegeliana, isto é, que nosindique seus antecedentes históricos, que trate certas questõesfundamentais da ciência, tais como a sua definição, o problema dasideias consideradas sob seus diferentes aspectos, o conhecimentosob o ponto de vista do ser e da essência, o problema do métodoem geral, e do método de Hegel em particular; que nos mostre, emseguida, em qual princípio se baseia as três grandes divisões de seusistema, traçando-nos um esboço de suas linhas gerais, e nos dandoo seu sentido e importância; e que nos leve, por fim, a discutir

certas questões sobre ontologia, metafísica e teodicéia, as quais seaproximam pouco ou muito conforme seus diversos aspectos, e quetenha por objeto facilitar o conhecimento dos detalhes e doconjunto, ao mesmo tempo. Por isso, nossa introdução significauma preparação para a filosofia de Hegel, e um complemento emrelação aos comentários que adicionamos.

7  Trata-se do texto editado por Rosenkranz (Berlim, 1845)

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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DE HEGEL

CAPÍTULO PRIMEIRO

FISIONOMIA GERAL DA FILOSOFIA DE HEGEL8 

A filosofia hegeliana possui uma característica, ao mesmotempo, dogmática e histórica. Conciliar a ciência e a história, fazercessar, ou melhor, explicar essa luta eterna entre o pensamento e arealidade, justificá-los e controlá-los de um lado e outro, mostrar arazão profunda de sua diferença e de sua relação, conhecer, emuma palavra, a unidade da vida do mundo em todos os graus de suaexistência, na natureza e no espírito, através da variedade infinitadas formas e dos fenômenos, tal é o seu objetivo. Portanto,considerando a ciência e a filosofia como as formas mais elevadas,como o ponto culminante da existência e da atividade humana,Hegel não considera a realidade com o mesmo desprezo quePlatão. Não crê que o objeto da filosofia seja o de construir ummundo ideal para opô-lo ao mundo real, e de separar estes doismundos a ponto de quebrar qualquer contato, toda relaçãosubstancial entre eles, e aumentar, pois, a dificuldade em lugar deresolvê-lo. Toda filosofia que se desenvolve segundo este ponto de

vista, se não for falsa é ao menos incompleta. Pois encara apenasum lado do problema, conhece somente um aspecto da verdade; oque faz com que, no domínio da ciência, assim como no dahistória, ela se encontre na presença de contradições difíceis de

8 Somos obrigados a deixar, aqui, como vago o sentido de determinados termos, emrelação ao uso comum. Mas na medida em que avançarmos, encontraremos maisdefinições e significados da filosofia de Hegel, pelas investigações e discussões que aseguir virão.

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serem conciliadas, dadas como eternos desmentidos, e com aciência lhe escapando assim como a realidade. Porque, com efeito,

não há dois mundos independentes e separados, mas o ideal e oreal que são tão-somente duas formas necessárias da existência,dois elementos que compõem a existência de todos os seres,encadeados por essa unidade profunda, na qual se apóia a própriaunidade do universo.9

Por esta mesma razão, Hegel não toma, em relação à históriaem geral e à filosofia em particular, a atitude que comumentetomam inovadores, e antes tomada por Bacon e Descartes. Navisão destes filósofos, a renovação e o aperfeiçoamento da ciênciasó ocorreriam pela condição de se romper bruscamente com opassado, de se isolar a tradição e se reerguer um novo edifícioapenas com a força da razão individual. Reside aí a críticasuperficial que Bacon dirige às doutrinas que mal conhecia, com apretensão de criar um método novo e maravilhoso, inclusiveporque este método fora utilizado, mais profundamente, pelosmesmos que sofriam com os seus ataques. É esse mesmo cuidado eexagero que leva Descartes a afastar de seus escritos toda tendênciade investigação e de recordação do passado, e de todo tipo deignorância que afetava os grandes sistemas da antiguidade.

Tal modo de conceber a filosofia e a ciência significa mutilá-

las. A pretensão de se separar da tradição e da história por umaconfiança exagerada na razão individual resulta em se separar daprópria razão, da qual a história é a manifestação viva e aexpressão mais alta e mais verdadeira.10

9 Cf.. mais adiante, cap. III, § 2.10 Cf.. mais adiante, Cap. VI.

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A filosofia deve explicar o passado e não suprimi-lo; devecompletá-lo, engrandecê-lo, transmiti-lo com uma vida nova, e não

destruí-lo. Condenando o passado, ela condena a si própria; pois ésempre a razão que está em causa e que golpeia a si mesma.Portanto, o passado e o presente estão ligados indissoluvelmente;pois o presente possui sua razão no passado, e um presente queignora o passado é um presente que se ignora a si próprio. Estaobservação se aplica, sobretudo, à filosofia, que abarcando, por seuobjeto, a universalidade das coisas, deve seguir as manifestaçõesda razão através de todos os movimentos da história, nas diversasformas que ela se reveste, nas diferentes tentativas de se resolver oproblema da ciência, com o fito de se dar à razão a consciência desi mesma e fazer penetrá-la mais intimamente no conhecimento desua natureza. A história e o livre pensamento, eis as duas fontes, osdois instrumentos do conhecimento e da educação filosófica.

Tal é a noção que Hegel possui da ciência em sua relação coma história. Por conseguinte, seu sistema, em lugar de desconsideraros sistemas anteriores, será um coroamento destes; ao invés decondenar a obra do passado, a justifica, completando, libertando,desse modo, através de um método e de um ponto de vistasuperiores, a parte da verdade que a razão havia depositado,reunindo, pois, numa vasta unidade os elementos esparsos e os

diversos aspectos da verdade absoluta.

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CAPÍTULO II

§ 1.O IDEALISMO ESTÁ NA BASE DE TODA DOUTRINAFILOSÓFICA

O sistema de Hegel tem uma dupla origem. Procede domovimento iniciado por Kant na filosofia alemã, continuado porFicthe e Schelling, e, ao mesmo tempo, baseia-se numa profundacrítica da filosofia da escola cartesiana, e, sobretudo, da filosofiagrega.

Através da diferença e do conflito de concepções e dossistemas, através das direções e tentativas diversas do pensamentofilosófico, há dois elementos que cresceram e não variaram, poisconstituem a essência da filosofia, a da filosofia eterna,

 philosophia perenis, como a chama Leibniz, a qual é a expressãoimutável e universal da própria razão. Estes dois elementos são, deum lado, o objeto da filosofia, o princípio sobre o qual ela se funda,e, de outro, a ideia. Elevar-se em direção ao absolutoconhecimento, conhecer a natureza íntima das coisas, e atingir osaber com a ajuda da ideia, e no interior desta, eis o que seencontra na base de toda doutrina filosófica.

Para isso que concerne o primeiro ponto, se vale assegurar quetodos os filósofos, tanto os da antiguidade como os modernos,possuem a mesma noção de ciência. Pois todos procuram nametafísica, isto é, no absoluto, nos princípios e na essência, asolução do problema filosófico. Sobre este ponto os idealistas estãode acordo com os sensualistas; os Eleatas com os jônios; Platãocom Aristóteles, e os materialistas modernos com Leibniz e Kant.

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O começo, ou melhor, onde parece iniciar a divergência deopiniões, significa o modo de se conceber o Absoluto. Vê-se, com

efeito, que uns o procuram na matéria; outros no  pensamento;outros no ar , no fogo, etc.; outros, ainda, no um, no número ou naideia. Entretanto, caso se examine mais de perto tais diferenças, sevê também que há um princípio comum que faz coincidir essasdiversas opiniões.

Consideremos primeiro as doutrinas que se fundam nopensamento. Na antiguidade, para os Eleatas, o absoluto é o um, oser ; para os Pitagóricos, o número. Platão põe a essência das coisasnas ideias; Aristóteles, no ato; os Estóicos, em algumas sementesespalhadas na natureza e emanadas da razão divina. Ora, na basede todas essas concepções encontra-se a ideia, e todas essasdoutrinas são somente formas, direções diversas do idealismo. Porconseguinte, o um, assim como o número, as sementes dosEstóicos, são tão-somente elementos inteligíveis, determinaçõesabsolutas do pensamento e do ser, de fora de toda observação eexperiência, concebidos apenas pela razão. Em relação a isto, o atode Aristóteles não se diferencia da ideia platônica, pois o ato é,assim como a ideia, a forma inteligível ou a essência das coisas, e,como ideia, não pode ser conhecido a não ser por uma intuiçãopura do pensamento.

Esse acordo, essa unidade de direção, encontramos, também,nos filósofos espiritualistas dos tempos modernos. A ideia doinfinito é para Descartes a chave da abóbada do conhecimento; poisnão somente ela nos fornece a demonstração da existência de Deus,como também a mais firme garantia da realidade de nosso

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próprias doutrinas; ou, para escapar dessa consequência, admite, junto da experiência, as leis e os princípios. Mas, nesse caso, irá se

contradizer em si mesmo, pois exige do idealismo a justificação desuas afirmações, os princípios, o absoluto, a essência, de algummodo que seja de suas representações, mas não pode conceber-se ese afirmar senão com a ajuda das ideias.

Com efeito, a filosofia materialista considera a natureza, o fogo, os átomos, o vazio, etc., como princípios absolutos e geraisdas coisas.

Ora, todos esses princípios ultrapassam os limites daexperiência, e somente em função disso possuem algum sentido erealidade. O que se entende, com efeito, por natureza? E pormatéria? Ou significa uma força absoluta ocultada por trás dascoisas, força que se constitui no princípio da forma e do ser, naqual as coisas seriam somente manifestações, emanações visíveis esucessivas? Nesse último caso, se está bem longe do materialismo.Pois a noção de força é uma noção transcendente, e representando-se a natureza como uma força infinita, impregna-se do idealismo eda noção de força e a de infinito.

Caso se entenda agora a natureza por matéria, isto será sempreum princípio, uma força absoluta que se tem diante de si. Pois amatéria não é tal matéria, tal propriedade ou tal corpo particular,

nem mesmo um agregado de corpos e de propriedades, mas amatéria em si, o substratum de todas as propriedades e de todos oscorpos, e em relação a alguma forma que a represente, comosimples ou como composto, deverá ser pensada enquantosubstância e ser conhecida em sua unidade. Isto se tornará maisevidente ainda caso se considerem as formas gerais da matéria, ou

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seja, as leis, os gêneros e as espécies, que não são e não podem sersenão elementos puramente inteligíveis.12

Tais argumentos facilmente estendem-se a todas as doutrinasmaterialistas. O atomismo que, à primeira vista, parece ser adoutrina mais afastada do idealismo, por tornar os seres umagregado fortuito de átomos, e não admitir nem formas nem leisdeterminadas, não deixa de basear-se num aspecto idealista. Pois oque é o átomo? Este somente pode ser uma simples força e algoincompreensível, ou, então, uma molécula material indivisível.Mas, caso seja uma simples força, será a mônada de Leibniz, quepossui como base somente uma concepção ideal, e reproduz, sobuma forma nova, e segundo nosso ponto de vista, menos profunda,a ideia platônica.

Quanto à segunda hipótese, pode-se, preliminarmente,conceber uma molécula absolutamente indivisível; mas sucessivasexperiências apresentam-nos somente corpos divisíveis. Noentanto, mesmo no caso de existir, ou que se possa conceber aexistência de moléculas indivisíveis, estas seriam apenas moléculassimples, o que nos reconduz ao átomo determinado como simplesforça. Aliás, de qualquer modo que se represente o átomo, como ode não ser mais dado pela experiência do que pela causa, asubstância, etc., não há outro fundamento nem outro princípio a

não ser a ideia.Portanto, o materialismo refere-se por vários ângulos e porseus princípios essenciais ao idealismo, e pode-se dizer que se tratado idealismo em seu estado obscuro, do idealismo que se ignora asi próprio.

12 Cf.. cap. IV, § 1, e cap. V, § 2.

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Portanto, em qualquer terreno que se ponha a filosofia, sobqualquer ponto de vista, ou é necessário negar a ciência, ou

transpor os limites da experiência. Ora, transpor tais limitessignifica necessariamente entrar no domínio das ideias.

Segue-se daí: 1º Que o idealismo e a filosofia se confundem, eque a razão deve buscar a solução do problema da ciência nocrescente conhecimento da ideia. 2º Que todos os sistemas contêmuma semente de verdade, e por isto antes contêm um aspectoidealista, os quais, antes de serem falsos, são incompletos; sendoque são falsos porque tão-somente não conseguem alcançar aunidade, sob um ponto de vista superior que ponha em evidência aparte da verdade neles contida.13

§ 2.

QUESTÕES PRELIMINARES SOBRE AS IDEIAS.

A ideia é como o limite, pela qual o pensamento e o ser, ainteligência e seu objeto possam se integrar. Portanto, apresenta-sesob um duplo aspecto, que requer duas ordens de pesquisa. Asideias procedem da experiência, ou originam-se da própria

inteligência? Qual sua função no conhecimento? A inteligênciapode se desenvolver sem as ideias? Ou ainda, as ideias são umacondição indispensável da atividade do pensamento? Trata-se deuma série de questões referidas à pesquisa  filosófica sobre asideias.

13 Cf.. sobre este ponto os §§ seguintes, e o cap. IV, § 4.

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Pergunta-se em seguida sobre o que são as ideias, qual o seuvalor intrínseco e sua essência, e qual sua relação com as coisas.

Reside, pois, no aspecto metafísico e ontológico, ao mesmo tempo,o ponto decisivo do problema. Pouco importaria, com efeito,estabelecer a ideia como uma condição, um elemento essencial eoriginário do pensamento, se não se pudesse superar os limites dopensamento subjetivo e conhecer pela ideia a realidade das coisas.Pois se estaria na presença de um mundo interior e abstrato, deuma série de representações e de pensamentos dos quais seriaimpossível determinar o sentido e a razão de ser. A busca emcaráter psicológico é, por conseguinte, tão-somente uma pré-condição do aspecto ontológico, e tal busca deve se justificar emfunção deste.

Posto nestes termos, o problema se reduz a duas questõesfundamentais: « A ideia é uma condição essencial da atividade dopensamento, de tal maneira que a inteligência somente pode seexercer com a ajuda e em virtude da ideia? (Problema psicológico).Se a ideia e o pensamento se confundem, e se o objeto dopensamento somente chega à inteligência pela ideia, qual a relaçãoque há entre a ideia e seu objeto e com as coisas em geral?(Problema ontológico) ».

O problema da origem das ideias, que foi durante muito tempo

considerado como o problema fundamental da ciência, atualmenteperdeu sua importância. É o que se verifica após Kant, no sentidode que, mesmo nos limites do psicológico, o ponto essencial não éo de saber se as ideias possuem uma origem ou são inatas, se elasse formam na inteligência pela experiência, ou se são anteriores atoda experiência, mas de determinar sua função no exercício dopensamento. Com efeito, as ideias existem na inteligência,

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possuindo uma função necessária e determinada. Eis um ponto queos sensualistas não contestam e nem poderiam contestar.

É este, pois, o papel e função que importa antes de tudodefinir. Pondo-se desse modo o problema, obtém-se uma duplavantagem: penetra-se, de um lado, mais profundamente na naturezado conhecimento e das ideias, e, com isso, preparando-se efacilitando-se a solução do problema ontológico, se possa resolver,de outro lado, implicitamente a questão da origem das ideias.Suponhamos, com efeito, que se demonstre que o pensamentodependa da ideia; é evidente que nesse caso a ideia é anterior atoda percepção sensível. Ou então suponhamos que não há umaconexão necessária entre a ideia e o pensamento, e, nesse caso, opensamento poderia ser exercido sem a ideia, e esta seria oresultado da atividade do pensamento aplicando-se aos objetos daexperiência, e os delimitando de uma forma geral e comum.

Portanto, a questão essencial que deve ser colocada é: opensamento e a ideia são ligados por uma relação tal que ainteligência não pode pensar sem a ideia?

Para se responder a esta questão, é necessário analisar asdiversas formas da atividade interna da inteligência, isto é, de seconstatar um fato. Ora, é prudente que se veja que o pensamento,quer se aplique ao geral ou ao particular, aos seres metafísicos ou

aos seres materiais e sensíveis, somente se exerce pelos atosdeterminados, e que a indeterminação não poderia ser pensada semum ato determinado, pois seria preciso distinguir o indeterminado eo indefinido do determinado e do definido. Ora, o que define edetermina o que é o pensamento, é uma forma geral, fixa einvariável, isto é, a ideia. Ou seja, é a ideia que define e tornainteligível o pensar. Eis o que não é contestado, quando se trata do

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geral, do absoluto e dos princípios. Com efeito, o verdadeiro, obem, a causa, o homem, etc., somente podem ser pensados pela

ideia, sendo que é a ideia que, dando uma forma exata aopensamento, eleva este à consciência de si mesmo, e, por talconsciência, à consciência de seu objeto.

Mas, quando se trata da percepção interna dos fenômenos edas coisas individuais, parece, à primeira vista, que a ideia nãopossui nenhuma função, e o pensamento, longe de ser determinadopor esta, determina-se antes pela forma exterior e sensível doobjeto. Pois o pensamento deve representar o objeto e se moldar,de qualquer modo, sobre este.

Entretanto, aqui também a ideia é uma condição indispensáveldo ato intelectual. Por conseguinte, o estado mais obscuro dopensamento, aquele que mais se afasta da ideia, é a sensação.

Uma sensação somente existe enquanto é pensada. Umasensação que não é pensada, e à qual a inteligência não acrescentanada como base, permanece puramente como um fato orgânico eexterior. Ora, a sensação, como a representação que a acompanha,somente pode ser pensada com o concurso de uma ideia. É preciso,com efeito, distinguir a sensação e o ato intelectual, correspondidocom qualquer outro estado interno, assim como com qualquer outroato intelectual; o que significa dizer que é preciso determinar este

ato e este estado.Daquilo que se diz que para pensar tal sensação particular nãohá nunca necessidade da ideia da sensação, deve-se observar,primeiramente, que o elemento interno que determina tal sensaçãoparticular não varia com esta, e que é este mesmo elemento quedetermina todas as outras. Caso se represente uma série desensações, pouco importa, aliás, que elas se diferenciem ou que

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sejam idênticas. O ato do pensamento que percebe a primeirasensação é o mesmo que percebe a segunda, assim como aquele

que percebe a terceira, etc. Ora, a identidade de ato e depensamento somente é possível pela condição de identidade dadapor certa forma comum que os ligue e que faça desaparecer suadiferença e os unifique. Mais ainda, se as sensações não fossemunidas por um elemento comum e invariável, elas escapariam detoda comparação e de toda relação, e, conforme a hipótese de seatribuir à sensação o princípio de toda atividade intelectual,procedendo dessa comparação e relação as ideias gerais, se vê quecom isso se recai na impossibilidade de se explicar essas ideias, asda sensação, assim como de toda outra ideia. Pois o que dissemosda sensação se aplica com mais razão aos outros objetos dopensamento.

Portanto, apesar de que na apercepção das coisas sensíveisoutro elemento que não a ideia pareça se introduzir no atointelectual, a ideia não deixa de ser condição desse ato. É o que sedeve demonstrar.

Segue-se daí que na equação entre ideia e pensamento, ondehaja pensamento, e também ideia, suprimir a ideia é suprimir opensamento e, com este, o conhecimento. Portanto, o que se vê éque a ideia é o limite do conhecimento, e conhecer é, na acepção

científica da palavra, ter uma ideia clara e adequada de um objeto,ou, nos servindo da expressão hegeliana, alcançar a natureza íntimados seres.

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§ 3.

DA INTUIÇÃO E DO SENTIMENTO.Pretende-se que haja acima do conhecimento pelas ideias um

modo de atividade superior. Conforme alguns, isto se daria pelaintuição pura; conforme outros, pelo sentimento.

Os primeiros somente veem a ideia como um grau inferior doconhecimento, grau que é preciso expandir para atingir a realidadee a verdade absolutas; põem acima da ideia um ato puro etranscendental do pensamento, a intuição.

Mas, mesmo quando se admite que a ideia não nos fornece amais alta realidade, é preciso ver se a intuição possa expandir aideia, e se nos dá o que promete.

A intuição é, como o juízo, como a razão, um ato ou um modode ser do pensamento. Somente, nessa hipótese, isto seria um atodo pensamento que se aplica à contemplação do absoluto. Ora, esteabsoluto é determinado ou indeterminado. Independente de queseja um absoluto indeterminado, ou que não seja o absoluto, ou umabsoluto que escapa à intuição assim como de todo ato dainteligência. E, mesmo quando se represente o absoluto à maneirados Alexandrinos, ou seja, como um ser determinado em si mesmo,mas indeterminado em relação ao mundo e às coisas finitas. Ou, o

que vem a ser o mesmo, como um ser que é superior ao mundo,que, quando se vê aplicado às propriedades e aos atributos dascoisas finitas, se desfigura e se destrói, o que faz com que em suasrelações com o mundo seja preciso concebê-lo como um sernegativo, como alguma coisa que se assemelha ao nada. Ou seja,mesmo quando, conforme dissemos, representa-se dessa forma oabsoluto, a dificuldade persiste. Pois é preciso determinar o ser e os

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atributos negativos desse absoluto indeterminado, e não se saberiadeterminá-los senão por uma ideia. Somente haveria, nesse caso,

uma inversão, por assim dizer, deslocando a dificuldade dopositivo para o negativo, da determinação para a indeterminação.

Mas caso se conteste que os atributos do absoluto sejamconhecidos por uma intuição intelectual, ao menos é precisoadmitir que a afirmação de sua existência ultrapassa a esfera dasideias, e que, por consequência, ela nos é dada por um ato dopensamento onde a ideia não intervém. Portanto, por exemplo,suponhamos que se ascenda ao absoluto por intermédio da ideia doinfinito: Há aqui, de um lado, a ideia, e, de outro, o ser  que seafirma pela abstração, sendo que é este ser que nos fornece aintuição.

Mas, inicialmente, um absoluto do qual nada se pode falar, seeste é somente o é , assemelha-se mais ao nada dos Alexandrinos; e,em definitivo, pouco nos importa de saber que seja, caso nãopossamos nada dizer, nem afirmar nada dele. Mais ainda: é noabsoluto que o ser e os atributos estão ligados por uma relaçãonecessária, de tal modo que suprimindo seus atributos, suprime-seseu próprio ser. Com efeito, quando se afirma que o absoluto ou oinfinito é , não se compreende por isso que seja ao modo dasexistências fenomenais e finitas, pois isto seria antes negar sua

existência. No entanto, aquele é  de uma maneira inteiramenteideal; é, em outros termos, uma existência ideal, o ser por excelência, o ens realissimum, o ser de onde procede todas as

 perfeições, etc. Poder-se-ia acrescentar que a afirmação do ser emgeral supõe a ideia de ser , pois, quando se afirma a existência, épreciso distinguir o que é do que não é , ou seja, uma existênciareal e atual de uma existência possível, e para isto é preciso uma

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regra, uma forma geral e invariável do pensamento, isto é, de umaideia.

Portanto, a intuição sem a ideia é um estado indeterminado,um ato obscuro e vazio do pensamento e a ausência de qualquerpensamento. Por não haver intuição indeterminada, intuição em si,e sim intuição de um objeto, de um objeto determinado, o queexiste é a intuição do pensamento. E é por considerações análogasque se pode mostrar a insuficiência da teoria do sentimento.

O sentimento sem a ideia é, como a intuição, um estado vazioda inteligência. O que existe de clareza e de realidade nosentimento é a ideia a este vinculada, e os graus de sua clareza sãoos graus do desenvolvimento da ideia que se tornam presentes nainteligência. Com efeito, em relação ao que se pode afirmar dosentimento da existência de Deus, de sua individualidade, de sualiberdade, ou nada se diz, ou é preciso que este sentimento sebaseie num ato, num princípio, numa forma mais ou menosdefinida pela inteligência. É, pois, do sentimento uma intuição.Acredita-se em poder se elevar com o seu concurso [o dosentimento] acima da região das ideias e poder conhecer umarealidade mais firme e mais verdadeira, e se encontrar na presençadestas deixando-as somente para trás; o que faz com que narealidade não haja mudança a não ser a da palavra. Ao invés de se

dizer que se conhece pela ideia o bem, o verdadeiro, o homem,prefere-se dizer que há nisto o sentimento. Somente há aquicarência de ciência. Pois se emprega sem discernimento e a modode aventura essas ideias que ficam desprezadas, e fica-se semconhecer seu sentido e valor14.

14 Cf.. sobre este ponto Filosofia do Espírito, 1ª parte, cap. IV.

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Portanto, a ideia envolve a inteligência inteira, ela é oelemento essencial de todas as suas operações, e a encontramos em

todos os graus do pensamento, desde o pensamento mais elementare mais simples até o mais complexo e elevado.

§ 4.

PROBLEMA ONTOLOGÓGICO DAS IDEIAS. KANT, FICHTEE SCHELLING.

Se, conforme acabamos de constatar, a ideia e o pensamentosão inseparáveis, e se conhecer as coisas é possuir um pensamentoclaro e bem definido, tal conhecimento somente pode ser alcançadopelo das ideias, e a medida do conhecimento das ideias é dada pelamedida do conhecimento das coisas. Eis o ponto de junção doproblema  psicológico e do problema ontológico das ideias, e dapassagem de um para outro.

Nesta relação, a ideia somente pode ser considerada de duasmaneiras. Com efeito, ou a ideia é somente uma determinação,uma categoria, uma forma do pensamento (pouco importa, aliás,aqui que ela tenha sua fonte na experiência ou no pensamento, poiso resultado seria o mesmo), pela qual classificamos, denominamosas coisas e as conduzimos a uma certa unidade lógica, mas nãohavendo uma relação de essência, uma relação substancial com

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elas; ou, então, a ideia, além de sua condição e forma essencial dopensamento, é ligada pelo conjunto da natureza aos objetos que a

inteligência não saberia pensar senão pelo seu concurso. Estasegunda concepção dá origem ao que se chamou de idealismoobjetivo, e a primeira, de idealismo subjetivo. Kant é o único, ou aomenos o maior representante do idealismo subjetivo.

No fundo, o que Kant propôs é encontrar uma passagem dosubjetivo para o objetivo, do pensamento para a ideia, da ideia pararealidade, e de encontrar no próprio pensamento  – em suas leis – 

suas operações e modos de atividade os mais íntimos e os maiselevados. Eis o aspecto essencial de sua filosofia, e também o fioregulador de seus objetivos.

Conforme esse ponto de vista, Kant começa por decompor afaculdade do conhecimento em elementos simples e primitivos,para distinguir o que há de invariável e de absoluto noconhecimento, com os dados variáveis e contingentes que seacrescentam com a experiência, e passam, por conseguinte, abuscar no conhecimento íntimo desses elementos primitivos eabsolutos os princípios e a justificação da ciência.

Ora, a inteligência pensa seja o mundo dos fenômenos, dascoisas relativas e finitas, seja o mundo inteligível, o infinito e oabsoluto. E deve, por conseguinte, utilizar-se das leis segundo as

quais se exerce esta dupla forma de atividade intelectual. Daí adivisão geral das leis do pensamento em categorias e em leis, comas primeiras se aplicando às existências fenomenais (as relaçõesdos fenômenos, seja no tempo, seja no espaço, nas relações decausalidade, de substância, etc.) e as segundas às existênciasabsolutas e inteligíveis (Deus, a finalidade, a alma, o mundo).

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O problema da ciência consistirá agora em determinar o valordas categorias e das ideias, e porque as coisas não podem ser

pensadas a não ser com o seu concurso, será preciso buscar (e emqual medida) o que nos autoriza a afirmar sua realidade objetiva; ese, por exemplo, por eu pensar as coisas segundo a relação absolutade substância ou de causalidade (categoria), estou autorizado aafirmar a realidade dessa relação, ou, por pensar o infinito, o serperfeito (ideia), posso concluir sobre a realidade de sua existência.Estes são os aspectos essenciais da filosofia de Kant.

Sabe-se aonde chegam tais buscas. Segundo Kant, ascategorias têm uma significação objetiva, e os fenômenos existeme se produzem conforme os pensamos. Porém, apesar de que ascategorias somente existem para os fenômenos e não possuemoutra aplicação além desta, nem outra razão de ser, não há entreelas e os fenômenos nenhuma relação de natureza nem desubstância; o que faz com que o princípio mesmo destesfenômenos nos escape e permaneça como um objeto, um mundotranscendental ao qual não podemos alcançar.

Quanto às ideias, Kant lhes recusa qualquer realidadeobjetiva, e se baseia principalmente por considerar que não existenenhum ser, nenhum objeto na experiência interna ou externa quelhe corresponda. Entretanto, é necessário explicar a razão de sua

presença na inteligência. A esse respeito, as ideias não teriam outrafunção que elevar a uma maior generalização a matéria fornecidapela experiência e já elaborada pelas categorias, e dotar, com essamatéria, as categorias de uma maior e última unidade. Portanto, nofundo, as ideias somente preencheriam, assim como as categorias,uma função puramente lógica e subjetiva. Assim como ascategorias, poderiam classificar, ordenar os seres, imprimir-lhes

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certa forma geral, mas não teriam nenhuma relação real e objetivacom eles; de tal modo que, quando pensamos uma  finalidade

absoluta, por exemplo, de cuja noção fazemos uso na explicaçãodos fenômenos, estabelecemos uma certa relação, uma certaunidade lógica entre estes, mas nunca possuímos base nem paraafirmar a realidade objetiva dessa relação nos fenômenos, nem arealidade objetiva da lei em si mesma.

Os estudos de Kant, por isso mesmo, colocam o problemafilosófico de uma maneira mais nítida e decisiva, e representam aobra de um conhecimento mais completo e mais profundo dofuncionamento da inteligência, dando ao pensamento a alternativade declarar sua impotência, e de proclamar de, uma maneiradefinitiva e absoluta, a impossibilidade da ciência; ou de superar abarreira que Kant havia posto, e procurar a ciência na via que lhepareça mais fechada, ou seja, no idealismo. Com efeito, a filosofiakantiana aprisiona o pensamento numa rede de formas, categorias,conceitos, ideias, de onde não pode sair; formas que regram edeterminam, em todos os graus do conhecimento, de uma maneirainvariável e absoluta, sua atividade. Kant distingue, é verdade, ascategorias e as ideias, e parece, por essa distinção, haver

 justificado e assegurado uma parte do conhecimento, o dosfenômenos, e indicado, ao mesmo tempo, a possibilidade de

encontrar a solução do problema da ciência numa direção diferentedo idealismo. Mas, em primeiro lugar, refutando toda aplicaçãoobjetiva nas ideias, Kant investe contra, ao mesmo tempo, oconhecimento absoluto originado das ideias e o conhecimentorelativo dado pelas categorias. Pois todo conhecimento relativorepousa sobre um conhecimento absoluto; e, negando a realidadedeste, nega-se, ao mesmo tempo, a realidade da primeira. Portanto,

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caso se suprima, por exemplo, a realidade de uma força e de umafinalidade absolutas, se suprimirá, por isso, a realidade de toda

força e de toda finalidade relativas.Além disso, essa distinção das leis do pensamento em

categorias e em ideias é inteiramente arbitrária e artificial.Segundo Kant, as categorias diferem das ideias porque, de umlado, elas se aplicam a uma ordem de existências diferente dasideias, isto é, às existências fenomenais e finitas, enquanto que asideias têm uma aplicação transcendente, e que, de outro lado, elasencontram na experiência um objeto que lhe corresponde, enquantoque a experiência, mais rica e completa que seja, nunca é adequadaà ideia.

Observaremos, primeiramente, nesse assunto, que a diferençade sua aplicação não faz diminuir entre as categorias e as ideiasuma diferença de natureza. Pois, caso sejam consideradas em simesmas, pode-se verificar que umas como as outras são formasabsolutas do pensamento, e que, a esse título, são completamenteidênticas. Elas podem ter, é verdade, uma significação diferente,mas tal diferença não experimenta uma diferença de natureza. Poisessa diferença existe na esfera e nos limites das ideias, e, nãoobstante, não se diz que duas ideias, as ideias do bem e doverdadeiro, por exemplo, difiram por natureza porque elas não

significam a mesma coisa. Por essa mesma razão, a categoria desubstância não se diferencia da ideia de ser infinito, apesar de queela exprime um objeto ou uma determinação diferente. Toda noçãopossui uma aplicação distinta, por ter uma significação distinta, emvirtude de exprimir uma das faces, um dos estados ou modos deexistência. Mas, enquanto noção, ela é perfeitamente idêntica atoda outra noção.

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Enfim, não é mais a correspondência da categoria com oobjeto que pode estabelecer uma distinção entre as categorias e as

ideias. Pois, primeiramente, ou as categorias são leis primitivas enecessárias do pensamento, e, nesse caso, possuem um valor e umsentido próprio e intrínseco, ou são o produto da experiência, e,nesse caso, não são leis do pensamento, e, em lugar de regrar e decomandar a experiência, são regradas e comandadas por esta. Masesta não é a opinião de Kant. Elas têm, pois, um sentido próprio,independente de toda experiência e anterior a toda aplicação nomundo dos fenômenos. Sendo assim, haveria entre as categorias eas ideias uma perfeita igualdade. É preciso admitir, pois, que umacategoria (a categoria de causa ou de substância, por exemplo)possui um valor determinado, não porque esteja do lado e em facede tal causa ou de tal substância fenomenal, mas por sua virtude esua energia próprias, de tal modo que, quando se suprimisse essacausa e substância, não se conservaria ao menos sua naturezaessencial e primitiva. Ora, a ideia se encontra exatamente nasmesmas condições. Pois se uma ideia é a que existe por si mesma,ela tira seu valor de sua própria essência, e não tem nenhumanecessidade de ser justificada pela experiência. Aliás, a categorianão poderia mais que a ideia encontrar sua justificação naexperiência. Pois não há mais equilíbrio possível entre a categoria

e o fenômeno a qual se aplique, do que entre a ideia e seu objeto.Quando eu penso a causa, a substância, a unidade relativamente atal fenômeno, ou em relação a um conjunto de fenômenos, há umnovo elemento que se acrescenta à experiência, mas que eu nuncaencontro nesta. Caso resolvesse modificar, compreender, combinar,misturar os dados da experiência, tudo que tirasse disso seriam osfenômenos que se sucedem e se combinam, conforme certa lei, mas

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nunca a lei em si mesma. Sobre o que se diz que ao menos acategoria encontra fora dela algo que lhe seja semelhante, na

experiência, enquanto que para a ideia do ser perfeito, ou da causaabsoluta, por exemplo, não há nada que lhe corresponde,respondemos que há sobre este ponto uma completa paridade. Poiso fenômeno se comporta em relação à categoria de causalidadecomo o finito em relação à ideia de infinito, e se pode dizer que, domesmo modo que o fenômeno somente exprime imperfeitamente acategoria, o mundo e as coisas finitas são apenas uma imagemimperfeita do ser infinito.

Portanto, as categorias e as ideias se confundem, e ambas sãoformas, noções sobre as quais o pensamento pensa as coisas, seusmodos e suas determinações diversas, e, por conseguinte, adistinção de Kant não deve ser admitida.

Vista dessa maneira, a filosofia de Kant resulta na negaçãoabsoluta de todo conhecimento objetivo, e se reduz a uma espéciede construção, metade racional, metade arbitrária e empírica dasformas do pensamento. A esse respeito, ela está longe de satisfazeràs necessidades reais e profundas da ciência, e parece, ao contrário,fragilizar o pensamento, e, em consequência, toda a atividadeintelectual. Qual interesse pode, com efeito, ter o conhecimento sea realidade lhe escapa, e se aquele está condenado a retornar

eternamente ao círculo dos fenômenos e das existências finitas, osquais perdem toda significação e todo valor, sendo por isso que seignora a razão e o princípio? E o que se torna a ciência caso tenhapor resultado somente formas vazias e estéreis, em face das quaisse ponha, ou melhor, se apresente um mundo que não pode seralcançado, e que existe de tal modo posto acima das leis da

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inteligência que não poderia ter com esta nenhuma relação internae substancial?

Entretanto, ao lado desse resultado puramente negativo, há nafilosofia de Kant sementes muito fecundas, uma visão ampla e rica,e uma intuição profunda da ciência, que ocasionou o surgimento deum grande e novo movimento.

Em primeiro lugar, foi Kant o primeiro que nos temposmodernos restabeleceu de uma maneira decisiva o idealismo noterreno da ontologia, e provocou, por isso, pela primeira vez, apósPlatão, uma nova busca da natureza e da essência das ideias. Poisos filósofos idealistas do século dezessete ainda não haviam postoesse problema de um modo tão preciso e completo.

Pode-se dizer, com efeito, que Descartes somente conheceu eestudou duas ideias, a de infinito e a do entendimento, e quanto aoproblema geral das ideias, ou não o compreendeu, ou não ousouabordá-lo. Malebranche e Leibniz limitaram-se a algumasproposições gerais, ou sentiram-se livres para empreender buscasparciais, que apenas reproduziram pontos de vista isolados dafilosofia platônica, e estão longe de terem estudado a ideia sobtodos os aspectos, no que diz respeito ao pensamento e ao ser, e àsrelações seja das ideias entre elas, seja entre as ideias e as coisas,entre o finito e o infinito, a natureza e o espírito. Quanto a

Espinosa, as ideias tiveram uma ampliação maior em seu sistema.Pois assim como Platão, em princípio, faz uma perfeitacorrespondência entre as ideias e as coisas -«ordo et connexioidearum est ordo et connexio rerum» - Porém, também Espinosasomente faz uma aplicação incompleta desse sistema, e somente

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mostra essa ordem e ligação da ideia com a realidade de umamaneira arbitrária e externa15.

Kant, porém, partindo do princípio de que todo conhecimentorepousa sobre uma forma primitiva do pensamento, conduz, porconseguinte, o pensar em todas as suas aplicações e em todas asesferas de sua atividade, até fixar em cada uma o elementoessencial que o regre e o determine. De onde procedem asnumerosas buscas que abrangem o círculo inteiro doconhecimento, como a metafísica, a moral, a natureza, a religião, odireito, a arte, onde todos os problemas se encontram levantados edebatidos, e onde Kant se esforça sempre em conhecer as leisinvariáveis e absolutas da inteligência.

Portanto, pela universidade dessas investigações e pelaunidade do princípio e do método que o dirige, Kant revela anecessidade da universalidade e da unidade da ciência e daorganização interna de suas partes. Em outros termos, o idealismopõe como fundamento e como condição do conhecimento aunidade da ciência e do método; eis o lado positivo everdadeiramente fecundo da filosofia de Kant, e é por esse ladoque ela se une ao movimento ulterior da filosofia alemã.

Pode-se dizer, com efeito, que, na Alemanha, os diferentessistemas que se sucedem apenas fazem transformar pouco a pouco

a ideia, retirar, caso se possa assim dizer, a sua existênciapuramente formal e subjetiva, transportá-la nas coisas e dotá-la,enfim, da mais alta força, abordando na ideia o ser e o pensamento,a experiência e a razão, a história e a ciência. Existe nisso, por suavez, a unidade e a diferença do desenvolvimento da filosofiaalemã. A unidade existe no princípio que a comanda, ou seja, na

15  Ver sobre este ponto mais adiante, no capítulo III, § 1; cap. IV, § 5.

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ideia considerada como condição absoluta do conhecimento; adiferença existe nos graus que a ideia percorre antes de se

proclamá-la como princípio absoluto das coisas. Kant e Hegelformam os limites extremos. Fichte e Schelling estão no meio.

Entretanto, as sementes dessa transformação se encontram emKant mesmo. Com efeito, embora sua filosofia se refira em grandeparte à experiência, e a considere como a condição do exercício dainteligência, e como o único meio de verificar o valor objetivo desuas leis, o pensamento conserva nisso sua superioridade sobre aexperiência, e, longe de receber desta suas leis, impõe-lhas àquela,de tal modo que é ele que dá forma e assimila os fenômenos, sendoque estes somente podem chegar até o pensamento através dasformas e leis deste.

Além disso, o ato transcendental e sintético da consciência, oeu penso, apresenta-se como a condição essencial e, por assimdizer, como o substratum de todo conhecimento, e fazendoocasionar a unidade do conhecimento e de todos os seus elementos,de suas apercepções internas ou externas, das categorias e dasideias, assim como dos materiais fornecidos pela experiência.

Ora, se tal é a ação que o pensamento exerce sobre as coisas,que as transformam por seu contato, as leis do pensamento não sãoelementos vazios e inertes, mas forças que dominam os fenômenos,

os formam, ou melhor, os produzem e os tornam à sua imagem. Se,de um lado, a inteligência e seus diversos modos de atividadepossuem seu ponto central nessa unidade profunda da consciênciae do eu, cuja forma mais elevada é o ato sintético do pensamento,isto terá sua fonte no eu, assim como a inteligência e suasfaculdades, e, por conseguinte, este mundo exterior e objetivo aoqual se aplicam e se apropriam.

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Tal é a passagem da teoria de Kant para a teoria de Fichte.Questionando as consequências das premissas postas por Kant,

Fichte naturalmente foi levado a substituir as relações puramentelógicas entre o pensamento e as coisas, as relações reais eontológicas, e buscar o fundamento e a razão última desses termos,assim como de sua relação. Por isso, Fichte recolocou a filosofiano terreno natural, terreno que é determinado por sua própria ideia,e em relação ao qual toda outra busca é tão-somente umapreparação ou um instrumento. Ora, uma vez que a filosofia élevada ao campo da ontologia e da metafísica, o problema que elapõe necessariamente de um modo mais ou menos explícito, maisou menos completo, é o da unidade da ciência. Pode-se mudar aforma do problema, ou alterá-lo, examinando-lhe somenteparcialmente, mas haveria sempre, no fundo, um único e mesmoproblema geral que envolve todos os outros, o qual é necessárioque seja antes abordado, caso se queira alcançar as bases sólidas doconhecimento. Pode-se, sem dúvida, isolar a alma, Deus, anatureza, e estudar separadamente suas propriedades, suascaracterísticas e sua essência, mas é evidente que nem a ciência daalma, nem a de Deus, nem a da natureza, não se completarão a nãoser quando estiverem ancoradas por um princípio superior queexplique as diferenças e as oposições. Por conseguinte, adquirem

razão as diferenças e as oposições que se manifestam em todos osgraus da existência, possibilitando-se conciliar essas oposiçõescom o auxilio de um princípio superior. Tal é o eterno problema darazão, problema que gravita no fundo de todos os outros, e que ainteligência põe sob essa forma direta e geral quando ela alcança olivre e inteiro domínio de si mesma.16

16 Cf.. Cap. III, § 1, e cap. IV, § 5.

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Tal é, pois, o problema que se apresenta para a filosofia alemãdesde Fichte até Hegel, a qual se esforça em resolvê-lo por

métodos ao mesmo tempo mais amplos e mais severos que osempregados pela filosofia até então.

Conforme Fichte, é no eu que reside a unidade das coisas. Oeu sendo posto, todas as outras coisas são postas ao mesmo tempo;sendo suprimidas todas as coisas, o eu e o não-eu, a alma e ocorpo, a natureza e o espírito, todas desaparecem com ele. Mas setudo é dado com o eu, tudo existe com o eu, e nada existe forasenão que possa ser encontrado nele e nas profundezas de suanatureza. Pois as coisas que não fossem primitivamente no eu, nãopoderiam ser conhecidas, ou melhor, não existiriam para este.Nesse caso, elas não seriam concernentes ao eu e não poderiam serobjeto da ciência.

Se isso é assim, se o eu é a condição de todas as coisas, aposição absoluta do eu será também o ponto de partida e ofundamento do conhecimento filosófico. O eu se põe, e se põe talcomo ele é, e ele é tal que se põe “A=A”; é o primeiro princípio dafilosofia de Fichte. Este princípio não poderia ser demonstrado. Éum postulado ou um axioma que não deve ser justificado, porqueele se justifica a si mesmo, e justifica e explica todas as coisas.Essa primeira posição do eu tem lugar em virtude de sua atividade

infinita, e contém todo eu, o pensamento e o ser, a forma e amatéria do conhecimento. Mas essa posição do eu não deve serrepresentada como um movimento indefinido de dentro para fora,como uma atividade que aspira a um limite e que nunca o atinge.Pois, nesse caso, o eu não poderia retornar a si mesmo, tudo serianele um estado de indeterminação, ou melhor, não haveria o eu, e oeu não seria posto. Portanto, o eu, pelo fato de se pôr, coloca um

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limite, um não-eu “A—A”. É uma condição absoluta de suaexistência e de sua atividade.

Mas o eu é a absoluta e completa realidade, e o não-eusomente é posto enquanto o eu é posto, e não pode ser posto foradele. O não-eu é, por conseguinte, uma maneira de ser do eu; é oeu que se desdobra neste pôr-se do não-eu, e que, permanecendoidêntico ao seu ser se mostra sob esses dois aspectos. Ora, se o eu eo não-eu derivam de um mesmo princípio, deve haver um pontoonde coincidam e onde toda diferença seja extinta, um ponto, emoutros termos, onde a unidade de sua forma essencial correspondaà unidade de seu conteúdo. Tal ponto é encontrado por Fichte nanoção de limite e de diversidade do limite. O eu e o não-eu,opondo-se, não se destroem, mas se limitam reciprocamente, e, porconseguinte, o limite é comum em ambos. Mas é por isso mesmoque se limitam, são divisíveis; de outro modo não se limitariam enão teriam nenhuma distinção entre si. Portanto, a noção de limitereúne a diferença e a unidade do eu.

Desse modo, a posição absoluta do eu, a oposição do eu nonão-eu, o retorno do eu à sua unidade no limite, tese, análise, ouantítese e síntese, são os princípios fundamentais da  Doutrina daCiência, princípios que determinam ao mesmo tempo o ser e aforma ou o método17.

O terceiro princípio, ao mesmo tempo, que reúne os doisprimeiros, supõe uma nova antítese que determina a divisão daciência. Com efeito, a possibilidade da divisão da ciência dependeda possibilidade da divisão e da limitação de seu conteúdo, ou seja,do eu e do não-eu. Ora, ou o eu põe o não-eu como sendo limitadopelo eu, ou põe a si mesmo como sendo limitado pelo não-eu; em

17 Cf.. cap. III, § 3, e cap. IV, § 5.

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outros termos, ou o eu se põe como uma atividade livre eindependente, que ultrapassa o limite, ou se põe como uma

atividade que se submete e não pode disso libertar-se; no primeirocaso, o eu é uma atividade prática; no segundo, uma atividadeteorética.

Fichte desenvolve uma abordagem conforme uma deduçãodos princípios precedentes, e sempre conforme o mesmo método, oda matéria do conhecimento, ou seja, o das leis do pensamento oudas categorias, o mundo exterior; enfim, das diferentes faculdadesdo eu. Entres tais faculdades, a mais elevada é a consciência de si;as outras faculdades, tais como a imaginação, o sentimento, oentendimento, respondem somente a uma relação limitada e parcialentre o eu e o não-eu. Na consciência de si, essas relações sãoelevadas a sua maior expressão e unidade. O eu que se eleva a essegrau de existência não é mais este eu primitivo onde tudo estáainda no estado de indeterminação e de desenvolvimento, mas umeu que é determinado por si mesmo e que, percorrendo o ciclodessas determinações, apossa-se de sua natureza, e se autopercebecomo princípio determinante e determinado, infinito e finito, aomesmo tempo.

Entretanto, embora na consciência de si o eu se autopercebacomo princípio gerador de si mesmo e de seu oposto, não pode se

libertar deste último, e qualquer esforço que faça, fica sempre napresença de um objeto que se distingue dele e que o limita. Eis aquio que possibilita a passagem da atividade especulativa para aatividade  prática do eu, atividade que deve realizar sua absolutaunidade.

O eu se põe, e pondo-se, põe um obstáculo, um impedimentoque é a condição da representação interna e da consciência. Mas há

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no fundo do eu um esforço, uma tendência que o impele aultrapassar o limite, numa atividade infinita. Pode-se mesmo dizer

que o eu não é outra coisa que essa atividade infinita que põe eretira incessantemente o limite; põe para se dar à consciência, eretira para atingir sua absoluta unidade.

Desse modo, o eu flutua aquém e além do limite. Aquém,quando é finito; além, quando infinito. O ponto do além do limitesurge como um ideal ao qual o eu aspira, como o mundo que deveser, e o que seria caso o não-eu não existisse. Ora, este ideal é oque deve, mas nunca pode ser realizado. Este dever  e estaimpotência são a marca de nossa infinitude; constituem o pontoculminante da existência do eu; são a condição dessa atividade,dessa tendência infinita onde se encontram conciliados o eu e onão-eu, o sujeito e o objeto, a vida especulativa e a vida prática.

Tais são os aspectos mais importantes da filosofia de Fichte18.Se fizermos uma comparação com a filosofia de Kant, vemos

que a de Fichte restabelece a unidade do entendimento que Kanthavia rompido por sua divisão da razão em especulativa e prática.Ademais, ela se esforça, com a ajuda de um método severo, emdeduzir umas das outras as diferentes partes do conhecimento, e,por conseguinte, fazer sempre mais aflorar a necessidade e apossibilidade de organizar a ciência através das relações internas

de suas partes. Enfim, proclamando o eu como princípio dopensamento e do ser, ocasionou mais profundamente uma busca danatureza e das leis do pensamento e de suas relações com as coisas,preparando o terreno para a filosofia do Espírito de Hegel.

18 Cf.., para a compreensão da teoria de Fichte, Filosofia do Espírito; e os cap. IV, § 2 e VI.

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Porém, malgrado essas vantagens, a filosofia de Fichte estarialonge de satisfazer a todas as condições e às necessidades da

ciência.Em primeiro lugar, suas deduções não penetram muito na

natureza das coisas, de sorte que não se tem nem um porquê, nemcomo se produzem as oposições e a passagem de um termo aoutro19. Vê-se bem, com efeito, que o não-eu é uma condição daconsciência, mas não se vê como ele se retira necessariamente daposição do eu. É verdade que o não-eu está contido na noção do eu,mas isto é um aspecto não demonstrado por Fichte, por não ter sidoelevado ao método que distingue da noção de uma coisa suadiferença e sua unidade. Portanto, seu método é antes um processoacidental e exterior que a forma mesma do objeto doconhecimento. Isto explica por que Fichte reduz todas as oposiçõesà oposição do eu e do não-eu, do sujeito e do objeto, enquanto quea contradição existente no não-eu e na natureza é tomadaseparadamente. O que se sucede após o eu? Uma noção ou umaforça? E qual é essa necessidade interior que ocasiona sua posiçãoabsoluta? Como, em virtude da lei de desenvolvimento do eu, estese eleva ao estado onde ultrapassa os limites da consciência epermanece na unidade de seu ser e de sua atividade? Isso é o queFichte não determina com precisão. Mais ainda, ou o eu, pelo qual

Fichte quis definir a natureza e a essência, é relativo, contingente efinito, e, nesse caso, o absoluto, o infinito e a unidade da ciência edo ser nos escapam, ou o eu é absoluto. Porém, esta tendência eesforço indefinido do eu para alcançar o absoluto é inexplicável.Entretanto, reside nisso o ponto essencial do sistema. Além disso, oque significa essa atividade superior à consciência? Ela pensa?

19 Cf.. cap. III, § 3, e cap. IV, § 5.

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Como pensa? E, de outro lado, que é este ideal ao qual o eu aspira?Existe dentro ou fora do eu? Se existe dentro, deve haver um ponto

onde essa aspiração cessa por si mesma. Se fora, caímos nadificuldade que havíamos assinalado, a saber, que não é no euabsoluto, mas num eu relativo e finito que reside a questão. Enfim,qual é a relação do eu com a natureza? E como as leis dopensamento se referem ao mundo dos corpos? Eis um ponto, pois,que esse sistema não esclarece.

Se considerarmos a filosofia de Fichte em seu resultado gerale decisivo, veremos que, embora ela represente um progresso sobrea de Kant, em relação à causa de sua unidade e de sua forma maissistemática, e por causa do esforço que faz o pensamento para daras suas leis um sentido objetivo e absoluto, tal filosofia, no entanto,ainda prende-se aos limites do idealismo subjetivo. Pois o quesignifica, com efeito, este mundo ideal, que requer a atividade doeu e que o eleva, de qualquer modo, acima de si mesmo? É a coisaem si, a noumena de Kant, é esse objeto transcendental que o eunão pode alcançar, que se apresenta indefinidamente diante dele,ou que, para se dizer com mais precisão, lhe escapacompletamente.

Tais são as lacunas que se apresentam na doutrina de Fichte eque Schelling se esforça em resolvê-las.

O eu de Fichte é substituído por Schelling pelo Absoluto, pelaforma demonstrativa da ciência, a intuição intelectual.Conforme Schelling, o mundo é a obra da razão. Tudo existe

na razão e nada existe fora desta. A razão não é um ideal ao qual omundo aspira e que eternamente não consegue alcançar, mas éimanente ao mundo, sendo este o cenário onde ela vive e semanifesta.

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Se a razão existe no mundo, sua unidade realiza a do mundo, eela deve compor a base de todas as coisas, em todas as esferas da

existência, na natureza e no espírito.Caso se parte da natureza ou do real para se alcançar o

espírito, este se torna a imagem da natureza, Filosofia da natureza.Se se parte do espírito ou do ideal para chegar à natureza, faz-sedesta a imagem do espírito,  Idealismo. Mas isto são apenas doisaspectos incompletos da existência, e sua relação e a passagem deum a outro provam que ambos possuem um princípio comum quefaz com que se coincidam e se confundam. Este princípio é o

 Absoluto, e o conhecimento deste princípio constitui a Filosofia doabsoluto.

O  Absoluto não é nem o sujeito nem o objeto, nem o idealnem o real, mas é, ao mesmo tempo, ambos, ou melhor, por serambos, é-lhes superior. É a unidade pela qual desaparece todadiferença e oposição, é a identidade e a indiferença absolutas. Setal é o Absoluto, este não pode ser conhecido pela consciência,nem pelo pensamento discursivo, mas por um ato transcendental dopensamento, por uma intuição intelectual. Como neste ato ainteligência se identifica com a essência eterna das coisas, ela nãosomente conhece, como também cria e produz livremente o seuobjeto; a intuição intelectual é, pois, ao mesmo tempo, uma

 produção

20

.O Absoluto se separa de si mesmo e de sua unidade paraengendrar o mundo e a infinita variedade das existências.Desenvolve-se com base em duas linhas paralelas e opostas, o ideale o real, o pensamento e a natureza; mas a natureza e o pensamentosão apenas dois predicados ou dois  fatores do absoluto. A esse

20  Ver cap. III, § 2.

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título não se diferenciam pela qualidade, mas tão-somente pelaquantidade. O Absoluto possibilita o equilíbrio de todos os dois, e

é a cessação desse equilíbrio que ocasiona sua diferença. A cadagrau de seu desenvolvimento, o Absoluto se divide em doiselementos opostos e se fixa para restabelecer esses elementos emsua unidade. Cada grau é uma  força (unidade) na qual esseselementos formam os dois fatores (diferença). Aí reside a vida e omovimento do Absoluto. Esse movimento reproduz todas asesferas da existência, na composição da matéria assim como naconstituição do espírito, no sistema solar, no organismo social. Emtoda parte, existe a diferença e a identidade, existe uma tendênciano ser em se dividir, e um princípio que o dota de unidade.

Entretanto, todos esses movimentos parciais são vinculados aum movimento geral que eleva o Absoluto de força em força atésua mais alta existência, onde se operam a conciliação absoluta e aabsoluta identificação das coisas.

É a arte que finaliza e culmina esse movimento. Caso seconsidere as condições da arte, se verá que nela residem todas ascondições, contradições do eu (atividade com consciência) e donão-eu (atividade sem consciência), do ideal e do real, do infinito edo finito, da liberdade e da necessidade, da natureza e do espírito.A obra de arte é o resultado de todos esses elementos, é como o

lugar onde estes se fundem e se harmonizam

21

.O ponto de partida de uma obra de arte é o sentimento dacontradição e a necessidade de conciliá-la, e a satisfação dessanecessidade é a realização da obra.

Portanto, por exemplo, uma obra de arte deve repelir todo fimestranho a ela, como o útil, a satisfação sensível, e deve mesmo,

21 Cf.., cap. III, § 2 e cap. VI.

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em relação a isso, elevar-se acima da ciência, que busca alcançarum objetivo fora dela; deve, em outros termos, prender-se pelo

objeto e pelo fim, o que constitui a mais elevada liberdade. Masela, ao mesmo tempo, se submete a algumas condições, sejamexteriores que pertencem à técnica da arte, sejam internas queformam a essência do princípio de que a arte é chamada a semanifestar. Por isso, a necessidade acrescenta-se à liberdade.

Ademais, é preciso que a obra de arte apresente uma marcavisível da inteligência, de uma atividade que produz com aconsciência, isto é, com o eu. Pois o arranjo, a simetria, aorganização das partes, não bastam para constituir uma obra dearte, porque nesse caso deveriam se considerados como uma obrade arte os produtos da natureza orgânica. Entretanto, para que aobra possa se realizar, é preciso que o eu e a consciência seharmonizem com um elemento obscuro e indefinido, com umprincípio que o artista ignora, o qual, à sua revelia, o influencia, eque o faz afastar-se de suas visões, caso queira imprimir-lhe aforma clara do pensar reflexivo; é preciso, numa palavra, que seharmonize com um não-eu. Considerações análogas mostrariam aconexão dos dois termos opostos com outras contradições na obrade arte.

O espírito, onde reside essa contradição, esse conflito, como a

necessidade de abrandar seu resultado, é o gênio, e a intuição dogênio é o ato supremo do pensamento e sua obra é a mais acabada.Procede disso que a filosofia do absoluto, que tem por objeto

seguir e conhecer o absoluto em todos os graus de sua existência,deve resultar na filosofia da arte, e investigar na arte, em suascondições, os desenvolvimentos e a direção que segue o absoluto,

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em sua história e em sua essência; em uma palavra, deve buscar asolução do problema da ciência.

A filosofia do absoluto, como se pôde ver por esse rápidoesboço, possuía uma fórmula mais ampla que a de Fichte, e seesforçava em fazer retornar a realidade e a vida do mundo, anatureza, a história, a religião e a arte. Esses pontos de vista, novose mais profundos, aplicam-se profusamente a cada ramo doconhecimento, e, ao mesmo tempo, dão uma sistematização, senãomais severa ao menos mais ampla da ciência. Porém, talsistematização também estaria sujeita a profundas objeções.

Uma das críticas à doutrina de Schelling foi a de terdesenvolvido somente um método superficial e externo, ou melhor,de não ter tido um método. Pode-se mesmo dizer, a esse respeito,que ele faz recuar a filosofia além do ponto onde haviam alcançadoKant e Ficthe. E, conforme o ponto de vista da unidade doconhecimento e do ser, tais críticas não atingem somente a forma,mas a base e a conteúdo do conhecimento, pois a forma e a matériasão inseparáveis22.

Com efeito, o movimento do Absoluto se realiza através dasoposições, e pela passagem de um termo a outro, e de uma força auma outra superior. Ora, é evidente que tal movimento é somenteacompanhado de deduções; pois passar racionalmente de um termo

a outro é liberar um termo que está virtualmente contido numoutro, ou seja, deduzi-lo. Schelling, pois, utiliza a dedução e ademonstração; no entanto, põe ao lado da dedução a intuiçãointelectual que é apresentada como o único instrumento da ciência.

Qual dos dois métodos foi seguido? O dedutivo? Mas então, oque se torna a intuição intelectual? Ou procede-se por via

22 Cf. Cap. III, § 1; cap. IV, § 5.

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determinações são produzidas? Qual a razão, a necessidade internaque as possibilitam? Isso é o que não se demonstra.

Tais falhas, que se encontram em todo o sistema, surgem, deuma maneira mais visível ainda, em sua mais alta determinação.

Se a arte constitui, com efeito, a forma mais perfeita doAbsoluto, e fornece a solução definitiva do problema filosófico, elaserá superior à ciência. Nesse caso, a inteligência, a reflexão, e,portanto, a filosofia, ficam submetidas e soltas ao acaso dainspiração, sempre profunda, mas sempre obscura e acidental dopensamento poético. Mas, então, como justificar a ciência? Pois oobjeto e a essência da ciência é o conhecimento claro e reflexivo, eeste conhecimento vale aparentemente mais do que um pensamentosem consciência de si mesmo. Seria necessário, pois, negar asupremacia da ciência. O que se torna, nesse caso, a filosofia, e,portanto, o sistema de Schelling? Em consequência, junto da arte,encontraremos, nesse sistema, a filosofia da arte. Ora,aparentemente a filosofia da arte tem por objeto explicar a arte, istoé, ir a fundo pelo pensamento em sua essência, de revelar o sentidoúltimo escondido nas obras, sentido que estaria secreto à vista doartista; tem por objeto, numa palavra, fazer elevar a arte acima delaprópria, transportando-a para a esfera da consciência, dopensamento e da liberdade absolutos.

Portanto, a conclusão desse sistema define, de um modoexato, o sistema inteiro. Queremos dizer que esse sistema é antesuma obra de arte ao invés de uma obra verdadeiramente científica,que é antes o resultado da juventude e não a maturidade dopensamento, de uma viva e rica imaginação ao invés de intuiçãoprofunda e reflexiva, ou o resultado dos processos severos daciência.

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Agora, se procurarmos nessa direção, nessas diversastentativas da filosofia alemã, uma tendência e um elemento

comum, veremos que todas seguem um mesmo padrão, que todasse concentram sobre um único e mesmo ponto, o pensamento e aideia. As categorias de Kant, o eu de Ficthe, o absoluto deSchelling são no fundo sempre o pensamento, que se esforça emconhecer, por diferentes vias, em sua atividade, em suas leis e suaessência, ou seja, na ideia, as leis e as essências das coisas. Mas éainda um pensamento tímido e encolhido, um pensamento que nãopossui a livre e plena possessão de si mesmo, que se limita, porassim dizer, a se buscar, ao invés de se encontrar em seus própriosresultados. Conduzir esse pensar a um último degrau, apreendê-locom firmeza, conduzi-lo, por um método severo, através de todasas formas da existência, e fazer despontar a vida e a naturezaíntima das coisas, eis o que propõe a filosofia de Hegel.

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CAPÍTULO III

§ 1.

ANTINOMIAS DE KANT.

Um dos aspectos mais importantes da filosofia crítica é,segundo Kant, a teoria das antinomias. Em qualquer época, asoposições das coisas sempre chamaram a atenção dos filósofos. Adialética antiga e o ceticismo em geral não possuem outra origem24.Porém, até Kant as oposições eram consideradas somente de modoexterno, limitando-se a sobrepô-las acidentalmente, sem umapreocupação de se buscar qual seu fundamento, qual seu princípiocomum, e se estariam ligadas por uma relação interna e necessária.Kant foi o primeiro a estabelecer este princípio, o de que é ainteligência que se contradiz em si mesma, com a contradição nãosendo um ato, um ato acidental e aparente da razão, mas que possuisua raiz na própria essência desta. Por isso, o sentido e a direção dafilosofia moderna estavam fixos, e esta somente pôde ampliar,tornar fecunda e completar o pensamento de Kant.

Com efeito, Kant põe a contradição, demonstrando suanecessidade, mas não obtém uma solução, senão uma insuficiente,

que se liga ao ponto fundamental de sua doutrina, segundo a qualas ideias possuem somente um valor subjetivo, o que faz com que arazão caia naquilo que ele chama de ilusões dialéticas todas as leisque se deseja referir às coisas, fazendo disso uma aplicaçãotranscendental.

24  Ver cap. IV, § 5.

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Porém, afirmar que as antinomias estão na razão e não nascoisas, é no fundo somente pôr a dificuldade de lado, pois seria

necessário, também, justificar a razão; reside aí, pois, o pontoessencial do problema. Pois, independente do que diga Kant, é pelarazão e na razão que conhecemos os seres. As leis contidas nelasão eternas e absolutas, e os problemas que ela levanta envolvemtodos os outros, e se encontram, sob formas diversas, em todos osgraus do conhecimento. Aliás, ao se condenar a razão, e ao sepretender que a contradição somente comece onde a razão queiraimpor suas leis às coisas, Kant cria uma outra contradição domesmo modo insolúvel, a contradição da razão e da noumena  – objeto transcendente e inacessível à inteligência.

Acrescente-se que Kant realiza somente uma aplicaçãoincompleta desse princípio, e que somente viu antinomias nasideias que chama de cosmológicas, enquanto que a antinomia seproduz em todos os graus da existência, e se forma como oelemento interno e vivo de todos os seres. O ser, e o não-ser, aunidade e a multiplicidade, a atração e a repulsão, a liberdade e anecessidade, etc., são contradições que têm sua fonte na razão, domesmo modo que a divisibilidade e a indivisibilidade da matéria, afinitude e a infinitude do mundo (ideias cosmológicas).

Pode-se, pois, dizer que Kant apenas enuncia um princípio.

Mas este princípio foi necessário levá-lo adiante na apreensão dosentido profundo em prol de um total sistema do conhecimento.

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§ 2

OBJETO E DEFINIÇÃO DA CIÊNCIA.

Para se dá conta da importância disso é necessário, emprimeiro lugar, se ter uma noção clara e exata do objeto e dafunção da ciência em geral, e da filosofia em particular, assimcomo dos processos, do instrumento que emprega, isto é, dométodo.

Procede-se geralmente de acordo com o objeto da ciência, e seadmite facilmente que este possui o verdadeiro conhecimento, quepossui os princípios. Mas não se consegue mais que umaenunciação vaga e indeterminada do que é verdade, e não se buscade modo preciso nem o que possibilita o conhecimento de taisprincípios, nem o resultado desse conhecimento, seja em relação àinteligência, seja em relação às coisas. No entanto, trata-se de umponto essencial que é preciso esclarecer, caso se compreenda anatureza e a função da ciência, e, sobretudo, o sentido e o alcanceda filosofia hegeliana.

A noção da ciência é uma noção natural, objetiva e necessária,como qualquer outra noção, como a de justiça, do número, dopensador, etc. O que se chama de desejo de conhecer25 é somente

um movimento, uma aspiração da inteligência em busca daverdade, estimulada pela ideia da ciência; de tal modo que desde omomento em que se apague no espírito esta ideia, se suprime odesejo de conhecer. Trata-se, pois, tão-somente de determinar e dese pôr em evidência os caracteres e as condições essenciais dessaideia.

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A noção de ciência e a noção de ciência absoluta sãoinseparáveis, ou melhor, são, na realidade, uma única e mesma

noção. Com efeito, todo conhecimento relativo e finito esconde,sob formas diversas e de uma maneira mais ou menos visível, oconhecimento infinito. Deve-se mesmo dizer que ele é não maisque um degrau, uma forma particular, que se liga por laços íntimose necessários, e é desse modo que encontra sua justificação e suaunidade. Isto é tão verdadeiro que todas as razões obedeceminvoluntariamente a essa tendência natural do espírito. Já essedesejo vago, mais profundo e ardente, de conhecer e de englobartodas as coisas, que se desperta em nós no início de nossa vidaintelectual, é somente uma necessidade ainda obscura e indefinida,do conhecimento absoluto, do qual a vida científica é umarealização que se sucede e uma satisfação sempre mais e maiscompleta. Essa necessidade está na base de todos os modos decompreensão; e não há, a respeito destes, outras diferenças alémdaquelas que nascem da diversidade de seu desenvolvimento, desua aplicação aos diferentes objetos do conhecimento. O que nãodeve nos surpreender. Pois essa diversidade se encontra em todosos seres, sendo que ela é mesmo uma condição necessária de suaexistência. Portanto, todos os homens possuem virtualmente todasas faculdades e todas as perfeições, e possuem uma aptidão natural

em cumprir todas as funções sociais. Mas a unidade do ser, assimcomo a da natureza humana, se diversifica e se cinde nasexistências individuais e finitas, o que faz com que numapredomine a beleza, noutra, a moralidade, e que uma possua umaaptidão particular em relação a uma função mecânica, e outra, umafunção liberal. Do mesmo modo é a ciência. Há somente uma

25 Grifo nosso.

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ciência e uma só inteligência, e as ciências particulares sãosomente graus, esferas diversas da ciência absoluta. O físico que

estuda a matéria e suas leis sabe bem que estas, consideradas em simesmas, significam que os seus conhecimentos e suas pesquisaspossuem somente uma importância relativa e limitada, dependentesde um conhecimento superior, que os justifique, e contenha aexplicação última. Ou disto se sabe, ou se devem fechar os olhos.Caso se ignore, e, por consequência de uma cultura incompleta, sepasse a concentrar o pensamento na esfera limitada da natureza,procurando, desse modo, a solução do problema da ciência,engana-se sem dúvida, e desloca-se o centro da ciência, colocando-o onde não esteja; porém, não deixaria de reconhecer,implicitamente, a existência e a necessidade de uma ciênciaabsoluta, sendo que é esta ciência que se esforça em realizá-la.

Ora, se existe uma ciência absoluta, ela somente pode ser afilosofia. Portanto, a filosofia é a base única de todas as ciências,sendo que, enquanto compreensão comum de todas ascompreensões, ela é o princípio a que as ciências aspiram, e quefora do qual elas são somente membros esparsos, mutilados,conhecimentos que se ignoram entre si, e que, por isso, acabam porignorar o seu princípio, suas relações e seu fim. Longe, pois, de afilosofia ser, como crê fortemente voluntariosos, uma espécie de

luxo, de supérfluo, ela é, ao contrário, em relação à ciência e àeducação moral de um povo, quando se examina atentamente asnecessidades e a natureza da inteligência, a ciência maisnecessária, porque suas raízes são mais profundas e indestrutíveis.Deve-se, inclusive, considerar o princípio de que o grau decivilização de um povo se mede pelo desenvolvimento de seuespírito filosófico, e que um povo, em que a ciência, a arte, a

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religião não sejam coroados por um grande movimento filosófico,somente possui uma civilização incompleta e truncada.

Fica agora fácil ver que, por isso, um dos aspectos essenciaisdo conhecimento filosófico é a unidade. Ora, essa unidade nãoprecisa se apresentar como um elemento vazio e abstrato, comouma espécie de unidade matemática, como algo harmônico, onde avariedade e as dissonâncias desaparecem e se fundam numa únicaimpressão, e, por assim dizer, numa intenção comum; oconhecimento filosófico é, em uma palavra, um conhecimentoessencialmente sistemático26 .

Frequentemente insurge-se contra tal conhecimento. Diz-serepetidamente, verificamos, que um sistema é impossível; que osprocedimentos, os hábitos sistemáticos bloqueiam a liberdade dainteligência, pelo aprisionamento de fórmulas estreitas eexclusivas, e roubam os aspectos mais ricos e variados darealidade.

O que nos surpreende é que há filósofos que compartilhamdessa opinião; pois caem numa grande e estranha contradição.Admitem, com efeito, e são obrigados a admitir, que os princípiose o absoluto constituem o objeto da filosofia, que a universalidadee a unidade são os caracteres constitutivos, mas depois rejeitam oconhecimento sistemático, o que não sabemos em nome ou em

proveito de qual doutrina.Mas a ciência dos princípios e de suas relações énecessariamente um sistema, isto é, um todo, que possui umcomeço, um meio e um fim, que engloba em si o conjunto dosseres, que demarca para cada um destes um lugar e uma função, eque determina sua origem e relações; pois, a menos que apenas se

26 Conf. cap. II, § 4; cap. IV, § 4,5, e cap. VI, § 1.

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pretenda que a filosofia se limite em suas pesquisas e elimine anatureza, por exemplo, que se restrinja à arte ou à história, ou

ainda, que deva tomar e dispor seus materiais de modo aventureiro,sem se preocupar de onde procedem, nem quanto valem, nem quallugar ocupam no conjunto dos conhecimentos, a preocupação quehaveria é a de sistematizar. Ora, é evidente que nos dois casos semutila a ideia da ciência e da filosofia.

Sem dúvida, é muito difícil realizar um sistema conforme aacepção mais rigorosa do termo, sendo que há sistemas que,possuindo um ponto de vista exclusivo, não englobam os seres emtoda riqueza de suas formas e em sua verdade unificada, e que,portanto, violentam o pensamento e os seres; trata-se de tipos deargumento que se destroem em si mesmos. Pois sendo usadoscontra a ciência em geral, caso fossem fundados, seria precisorenunciar a toda investigação teórica, porque desse modo todas asciências nos ofereceriam teorias falsas, ou incompletas.

Indo além, o universo é um sistema. Trata-se de uma verdadeque sentimos de modo instintivo, e que é o ponto de partida e o fiocondutor de nossas pesquisas; e se a ciência deve conhecer ereproduzir a realidade, deve necessariamente revestir-se de umaforma sistemática.

Isto não é tudo. Os erros mais frequentes provêm da ausência

de um caminho sistemático, e a maior parte das teorias são falsasem virtude disso, de que não são sistemas. Ou seja, quando oespírito esquece a unidade da ciência e as relações necessárias enaturais das coisas, ou isola os seres, e perde de vista, pois, umadas faces da realidade, ou quando confunde as esferas daexistência, e transporta numa os caracteres e noutra aspropriedades, ou, enfim, quando intervém na ordem dos termos, e

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toma o efeito pela causa, a consequência pelo princípio, e as partespelo todo. É desse modo que o físico, perdendo de vista, no estudo

da natureza, o espírito, mutila e falseia a noção da natureza, ou lheatribui propriedades que esta não possui. E se no estudo danatureza, ele toma tal propriedade ou tal substância, como a luz, omagnetismo, as substâncias químicas e orgânicas, sem buscar suaorigem, seu elemento comum e sua diferença, irá confundi-los, oumudará a ordem natural de suas relações. Desejará, por exemplo,explicar os fenômenos orgânicos pela química, e aplicará as leis damecânica celeste na mecânica finita (queda dos corpos nasuperfície da terra)27, sem levar em conta as diferenças que osdistinguem. A causa é a mesma em relação aos erros do homempolítico, quando, pela preocupação exclusivamente de umanecessidade, de um elemento da vida social (como a democracia, alei escrita, as finanças, ou a armada), atribui-se a este umaimportância que não possui, e isto em prejuízo de outrasnecessidades, também tão essenciais como legítimas. Enfim, essasimperfeições são bem mais sensíveis e bem mais graves nainvestigação filosófica, em virtude de que o seu objeto é a essênciae a unidade. Em consequência, quando a filosofia isola suasbuscas, e estuda separadamente a alma ou a natureza, por exemplo,o que na alma e na natureza expresse tal esfera particular de sua

atividade e de sua existência, sem se ocupar com suas relações, esem dispô-las numa ordem adequada, somente pode obterresultados insuficientes e incompletos. Deve-se mesmo dizer queuma busca particular não é uma busca verdadeiramente filosófica,que em si supõe uma intenção sistemática e tão-somente uma visãode conjunto.

27  Ver Filosofia da Natureza, 1ª parte, e mais adiante, § 8, cap. IV, §§ 4,5.

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Portanto, o absoluto ou a essência, e a unidade ou as relaçõesnecessárias dos seres, são as duas primeiras condições da ciência.

Mas o absoluto e as relações absolutas somente podem serconhecidos pelo pensamento, e por este é que se ajustam ao objeto,desprendendo-se de todo elemento sensível, de todo dadocontingente e externo. De onde segue que o verdadeiroconhecimento filosófico é um conhecimento essencialmente a

 priori, um conhecimento especulativo e metafísico28.Isto significa dizer que a filosofia deve esquecer os fatos, e

desprezar o mundo da realidade fenomênica e sensível? Não, poisessa realidade é a manifestação de uma realidade imutável einvisível, e sob o fenômeno e a aparência se escondem a lei e aobra da razão. A esse título, a natureza e a história têm um preçoaos olhos da ciência. Mas o filósofo não deve abaixar-se aodomínio da experiência, e se preencher da vida e dos eventos domundo, a não ser para lhes dar uma forma racional e, por assimdizer, a consciência de si-mesmos: e a obra da investigaçãofilosófica consiste precisamente em encontrar a realidade sob aaparência, a lei sob o fenômeno, e a necessidade sob o acidente:consiste em conhecer e em pôr em evidência, através dos fatosvariados e múltiplos pelos quais o mundo é o cenário, através daformas obscuras e fugazes da existência, o pensamento eterno. O

pensamento que engendra e que vive nos fatos e desse modo semanifesta. A experiência e as ciências que estão em seu domíniosão somente instrumentos da filosofia. São elas que dão ascondições para que o filósofo aja como arquiteto; são elas quepreparam e moldam os materiais que o filósofo, depois, trabalha etransforma, dotando-lhes de razão e de inteligência; e este mundo

28 Cf. cap. IV, §§ 1 e seguinte, e cap. VI.

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relação com estas, e a filosofia, enquanto a ciência que eleva omundo até o absoluto, e que pode, pois, modificar os fatos e a

realidade. Sem dúvida, se pelo mundo e pelas coisas secompreende o que existe, tal acontecimento particular econtingente, ou mesmo o conjunto das existências eacontecimentos, tem razão em se dizer que o absoluto não existe nomundo, e é nesse sentido e nesse limite que esse ponto de vistadeve ser admitido. Mas não é necessário pôr tal questão. Pois oponto essencial e decisivo é de saber se a essência do mundo, esuas leis, o que há de permanente e de necessário, têm sua fonte noabsoluto. Ora, de qualquer modo que se examine essa questão, sechegará a um único resultado, a saber, sobre a conexão necessária esubstancial entre o absoluto e o mundo. Caso se resolva separar oabsoluto e o mundo, com cada qual passando a ter uma substânciaprópria e completamente independente, o absoluto se dissipará, e,por assim dizer, em lugar de um absoluto, haverá dois: a substânciaabsoluta, de uma parte, e a substância do mundo, de outra, queexistirá por si do mesmo modo que uma substância absoluta; énecessário, pois, que haja uma aproximação entre o mundo e oabsoluto, e uma comunicação entre estes. Não basta uni-los poruma relação acidental, exterior e puramente verbal, pois irápermanecer a mesma dificuldade, mas é preciso uni-los por uma

relação interna, relação que não esgota a relação de causalidade; épreciso, em uma palavra, uni-los por uma relação entre natureza eessência.

Não é certo mais dizer que a substância do mundo éengendrada, que é originada do nada. Pois essa explicação, emlugar de diminuir a dificuldade, complica mais ainda. Complicapor todas as objeções e todas as impossibilidades que se

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apresentam em relação ao problema da criação, tal como secompreende comumente, e, de outro lado, é necessário sempre

admitir que a substância do mundo, suas leis, suas formas e suasrelações essenciais existem por toda eternidade, de um certo modo,em sua ideia, no pensamento e na substância divina; de outro modoalterar-se-á e se mutilará a plenitude da existência absoluta, porquea essência do mundo seria um elemento, um ser novo que seacrescenta, em certo momento, à vida divina. Isto se torna maisevidente ainda se consideramos o que há de mais nobre e maisdivino no mundo, na alma, no espírito, no pensamento sobre oabsoluto, nas leis e nas relações universais entre os seres, em todasas coisas que unem o mundo ao absoluto e ao ser eterno, e que nãopodem ter sido feitas e originadas do nada30.

Mas se a filosofia significa uma explicação, e a mais altaexplicação das coisas, ela é também, e por isso mesmo, umacriação, sendo que é uma criação no único e verdadeiro sentido dapalavra. Com efeito, a filosofia enquanto criação não é o absoluto,e nem as espécies são, nem as essências, nem as relações essenciaisdos seres que foram criados. Temos de demonstrá-los. O que écriado são os fenômenos, as existências individuais e finitas; étambém nesse sentido que o mundo foi criado. Ora, a ciência queconhece o absoluto e a razão íntima das coisas, conhece o porquê

dos acontecimentos e dos seres que foram engendrados, e não-unicamente ela conhece, mas os engendra de certo modo em simesma, e por isso ela conhece o absoluto. Com efeito, ou é precisonegar a ciência, ou é preciso admitir que haja um ponto onde oconhecimento e o ser, o pensamento e seu objeto coincidem e seconfundem; e a ciência do absoluto caso se produzisse de fora do

30 Cf. cap. V, § 2, e cap. VI.

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absoluto e não alcançasse sua natureza real e íntima, não seria aciência do absoluto, ou, melhor, não seria ciência31.

Mas se a ciência, por sua elevação ao absoluto, é uma criaçãonesse sentido de que ela conhece a natureza íntima dos seres, ela étambém uma criação no sentido de que ela refaz e duplica de todomodo sua existência. Primeiro, caso se considere a natureza em simesma e independentemente do espírito, se verá que ela é somenteuma existência mortal, privada de consciência e de pensamento,como um agregado de elementos e de forças individuais e isoladas,e que não possui um lugar em si mesma, um princípio e um fimpróprios. Pois é no espírito que se considera os graus inferiores deexistência, os estados e faculdades pelos quais ele entra em contatocom a natureza, a via obscura e irreflexiva que se ignora, quemistura e confunde todas as coisas, que não sabe nem a diferençanem as relações, e que se dispersa na infinita variedade dosfenômenos e dos movimentos da sensibilidade; caso se considere,digamos, esse grau, essa face da via espiritual, se vê que o espíritoem si mesmo não oferece aqui a não ser uma existência imperfeitaque não responde, nem à ideia da ciência, nem à ideia do absoluto.Ora, é essa imperfeição que a ciência faz desaparecer; pois aciência completa e renova a existência da natureza e do espírito,elevando-os, pela reflexão e pelo pensamento, até seu princípio,

dando-lhes a consciência de si próprios e os ordenando conforme arazão. O sistema solar, a luz, o calor, a natureza orgânica e animal,e, no espírito, a sensibilidade, a vontade, etc., não existem em simesmos, do modo como existem no pensamento científico. Em simesmos são seres imperfeitos, que ignoram sua própria natureza esuas relações; no pensamento científico, ao contrário, entram em

31 Cf. cap. IV.

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posse de si mesmos, de sua existência universal, necessária eabsoluta32.

É a esse título e nesses limites que a filosofia age eficazmentesobre o mundo, que corrige e completa o fato e a realidadematerial, e transforma a consciência da humanidade. O que sechama de movimento, de progresso é somente uma manifestaçãosempre mais clara da absoluta verdade; é uma espécie de criaçãocontínua, pela qual o absoluto penetra mais profundamente na vidado mundo para obter uma marca mais visível de si mesmo, e torná-lo cada vez mais a sua própria imagem. Sem dúvida, o absoluto e omundo, a ideia e o fato, o pensamento e a realização material serãosempre distintos, e, numa certa medida, opostos. Mas isso é oresultado de uma necessidade interior, necessidade que subiste sobqualquer ponto de vista do qual se parta. Qualquer noção que setenha do absoluto, seja pondo-o no mundo, ou fora do mundo, quese estabeleça entre esses dois termos uma relação real edeterminada, ou uma relação puramente nominal e indeterminada,será preciso sempre considerar o mundo e a natureza visíveis comoum estado de degradação oposto ao absoluto. Nesse sentido, éverdade que se pretenda, e com razão, que o mundo seja um todono qual nada falta, uma obra perfeita e acabada. Mas não é aomundo em geral, ou, mais precisamente, ao mundo separado do

absoluto e considerado em sua existência material e visível, quepertence a perfeição, mas ao mundo considerado em sua essência eem sua ideia, e do modo como existe no seio da substância e dopensamento absolutos. Trata-se de um ponto já suficientemente

32  Ver cap. IV, § 4, e cap. VI.

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esclarecido pelo que foi até aqui exposto, mas que mais adianteteremos ocasião para retomá-lo33.

Portanto, a filosofia é uma criação, e é uma criação bem maisoriginal e mais profunda que a artística. A arte, com efeito, aspira àideia sem alcançá-la; traz a marca do pensamento e da consciência,mas de uma consciência obscura e indefinida; busca e percebe oabsoluto, mas somente o exprime de uma maneira incompleta elimitada. Seja porque se considere suas condições materiais etécnicas, seja porque se considere o pensamento e a intenção quepresidem suas obras, a arte é insuficiente para se elevar até aperfeita transparência do pensar filosófico, à unidade profunda, àordem sistemática dos conhecimentos, onde se encontramrepresentados, como seu modelo, a ordem e a harmonia das coisas.Mesmo levando em conta algum grau de perfeição que alcance, aobra de arte prende-se ao tempo e ao espaço, conforme ascondições e as limitações do meio onde se produz, conforme aindividualidade do artista e do povo ao qual pertence, e empregaprocedimentos inadequados para a expressão do pensar, tais comoa ficção, a alegoria e o símbolo, de coisas que perturbam a clarezada inteligência e lhe roubam a via da eterna verdade. A filosofia, aocontrário, é superior à arte, mesmo em suas obras mais imperfeitas.É superior porque possui a consciência de si mesma, é produto da

reflexão, e jamais desvia seu olhar desse modelo de eternidade queestá diante dela, e porque se esforça em conhecê-lo e fixá-lo nainteligência, sobre o qual constrói os  poemas sérios (para nosservirmos da expressão que Vico utiliza em relação à ideia e aopensamento dramático que compõem a base da história romana),poemas que contêm como trama a vida da humanidade. Desse

33  Ver cap. V, § 2, e cap. VI.

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modo, relacionamos as obras poéticas de tempos passados tão-somente para relaxarmos no gozo da imaginação, na busca de

ensinamentos históricos, ou na ampliação de nossa existência,quando vivemos a vida de um povo e de uma época que não maisexistem. Somos obrigados, para fazê-los reviver, em esquecermosda realidade atual e do meio em que nos inserimos, assim como dahistória do mundo, para nos transportarmos e nos inserirmos nocírculo limitado da vida de um povo. Ao contrário, a obrafilosófica é, para quem sabe lê-la, uma obra sempre viva, semprepresente no espírito da humanidade, que está presente em todos osseus momentos e em todo o seu curso, pois tal obra exprime,embora sob formas e graus diferentes, as leis imutáveis dos seres; oque faz com que não haja a necessidade, como ocorre na obrapoética, de se perceber a verdade e a beleza através de um esforçoda imaginação, que nos põe num ponto do tempo e do espaço; mas,ao contrário, é preciso superar toda limitação, tudo o que podelimitar a ação da inteligência, como os signos, as imagens, osacidentes, as formas passageiras da existência, e viver conforme oque há de mais íntimo em nós, de mais substancial na vidaindividual, assim como na vida da humanidade, isto é, conforme arazão e a absoluta verdade, razão que é o centro e o órgão. Assim,pode-se dizer que Homero é um cidadão da Grécia, civis unius

urbis, e que Platão e Aristóteles são cidadãos do mundo, totiusorbis34.

34 Não foi tanto como poeta, nem como orador, mas como filósofo que Cícero pôdedizer: «me non civem unius urbis sed totius orbis puto.»

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§ 3.

SENSO COMUM.

Outra consequência que provém da delimitação da ciência, eque é importante ser examinada, é que esta não é somente ocontrário da ignorância, mas também do que se chama de sensocomum.

Tem-se, nesses últimos tempos, defendido a teoria do sensocomum, e se pretendido que seja o critério e a pedra de toque daciência. Essa doutrina não é nova, e, na antiguidade, vimos Platãoexpô-la e refutá-la em vários de seus diálogos, notadamente emAlcebíades.

No fundo, a doutrina do senso comum, caso seja consequente,alcança até a negação da ciência. Ela está na ordem intelectual oque a anarquia e a demagogia estão na ordem política. Partemambas do mesmo princípio, e chegam ao mesmo resultado. Poistomam como ponto de apoio, têm como medida, o que está nasmassas, na multidão, no que chamamos de consciência vulgar emoposição à consciência científica, chegando, pois, uma, à negaçãoda hierarquia intelectual e do governo dos espíritos, e a outra, ànegação da hierarquia política e do governo das sociedades.  A

 filosofia comanda, não obedece, disse Aristóteles, com suaconcisão e profundidade costumeira. A teoria do senso comuminverte os termos, e põe a dominação onde haveria de estar aobediência, relegando à filosofia somente uma função secundária(ancilae).

O erro fundamental dessa teoria vem do fato de se representara natureza humana de uma maneira abstrata, ou, diria Hegel, de se

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prender à identidade e à unidade, e não conhecer a multiplicidade ea diferença. Ela é levada, pois, a representar a sociedade como um

agregado de elementos inteiramente idênticos, o que, na ordempolítica, conduz ao princípio de que todos os homens são iguais eque têm os mesmo direitos, e na ordem da ciência, a outroprincípio, o de que todos os homens possuem a verdade. Taisprincípios são verdadeiros sob certa relação e conforme certoslimites; mas quando sobre eles se exagera, dando-lhes um sentido euma extensão que não possuem, chega-se, de um lado, a esse tipode igualdade que é o reino da força cega e brutal, isto é, o danegação de todos os direitos, e, de outro, ao reino da ignorância, ouseja, o da negação da ciência. Esses princípios são verdadeiros sesão considerados como possíveis, caso se compreenda que, tantopela igualdade intelectual quanto pela política, todo homem podeexercer tal direito ou conhecer a verdade. Mas do lado dessaigualdade há a desigualdade que provém das diferentes funções,assim como das diferentes atitudes ligadas a estas. Todo homempode realizar alguma função e conhecer a verdade, do mesmomodo que a matéria pode apresentar-se numa madeira, pedra,planta, etc. Mas assim como a matéria pode assumir formasdiversas, sendo que a que faz a madeira não é a que faz a pedra, domesmo modo a unidade da natureza humana se dá conforme várias

funções, atitudes e vocações diversas correspondentes. A unidadesocial não é uma unidade abstrata e vazia, mas rica e de maiorextensão, que compreende a multiplicidade e a diferença; talunidade é, como a do mundo, uma unidade de relação, numaharmonia onde há o recuo e o avanço, o alto e o baixo, conformedeterminados nomes, denominados de classes, de funções ou deestados, onde há, em uma palavra, hierarquias, com homens que

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comandam e que obedecem, homens que ensinam e que aprendem.As condições para isto estão unicamente na ordem, na liberdade e

na ciência.Porém, não afirmam os partidários do senso comum que não

devemos admitir que os homens são feitos para a verdade?Portanto, como não admitem que possuam todos indistintamenteuma faculdade, um sentido, um tato natural, com o que se podereconhecer o que é verdadeiro, ou ao menos as grandes verdadesque são o patrimônio comum do gênero humano, e que importamque sejam conservadas, para o seu progresso e bem-estar. Guardem –  acrescentam  –  de que ao separar-se do senso comum, não seesteja separado da verdade em si mesma, que se elevando acima daciência, não se ponha em lugar inacessível, onde ninguém ousapenetrar, e onde a inteligência se encontraria fora da realidade, àmargem na solidão de vãs especulações. Não negamos a ciência,completam. Reconhecemos sua ascendência e sua importância nodesenvolvimento e na educação dos espíritos; mas não podemosperder de vista o fato de que são a experiência e a consciência dogênero humano que nos possibilitam exercer uma influência real eeficaz sobre as sociedades.

Tais argumentos possuem uma aparência de verdade, àprimeira vista, mas que não passa de ilusão, por não resistir a um

exame mais sério, quando se envereda na verdadeira noção deciência, e se verifica atentamente os fatos e a experiência.Primeiramente, deve-se concordar, por ser um fato, de que há

povos civilizados e povos não-civilizados. E também o queconstitui a civilização de um povo não é unicamente a suapropriedade e sua riqueza material, mas, sobretudo, certaquantidade de verdades políticas, morais, religiosas, que se possui

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e formam o arcabouço e a alma de sua organização social. Ora, tãovivo que seja num povo o sentimento de humanidade, não se deve

nunca achar que os povos não-civilizados sejam atualmentetambém avançados no conhecimento da verdade. Caso se admitaque todos os povos possam sucessivamente alcançar um mesmograu de civilização, o que também seria um engano, o pontoessencial, no entanto, seria saber de que modo todos os povosteriam alcançado um mesmo grau de civilização. Ora, nãoalcançaram, e se nunca alcançaram, somente poderão alcançarseguindo o exemplo e ação de povos que seguiram a via da ciênciae do progresso. Há, pois, povos iniciadores e povos iniciados,povos que possuem a verdade e povos que a aprendem.

Porém, essa desigualdade que existe entre os diferentes povosexiste também entre os indivíduos que pertencem a uma mesmanação. É um fato igualmente incontestável, universal e necessário,e quem o quisesse negá-lo, ou prender-se a tarefa de demonstrarque virá um tempo onde essa desigualdade dará lugar à igualdadeentre todos, cairia em contradição e passaria como insano aos olhosmesmo do homem vulgar e do senso comum que invoca; poisemitiria uma opinião que, verdadeira ou falsa, exige uma culturaintelectual e de muito saber, e reproduziria o exemplo de Rousseauque sustentava em grandes frases de erudição e de inteligência que

a ignorância vale mais que a ciência, ou dos demagogos quedeclamam contra o poder, mas, ao mesmo tempo, nele se agarram.Por conseguinte, essa faculdade de conhecer e de ensinar, que

se pretende atribuir indistintamente a todos os homens, se encontra,pela própria experiência, em alguns povos, e, nestes, num pequenonúmero de inteligências.

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Porém, supomos que todos os homens possuem a verdade, nãounicamente como semente e como possibilidade, mas como um

fato, uma realidade atual. Indagamos se todos a possuem de ummesmo modo, com a mesma clareza e a mesma profundidade.Nesse caso, a ciência e o ensinamento não teriam mais nenhumobjeto; e teríamos razão em acusar a doutrina do senso comum dealcançar a negação da ciência. Pode-se escapar dessa consequênciaapenas pela admissão de uma diferença na maneira que se conhecee se possui a verdade, redundando, em outros termos, numadesigualdade. Ora, dado que, na hipótese, os homens possuemtodos os mesmos conhecimentos, a desigualdade somente podeconsistir aqui nesse aspecto, ou seja, que o vulgar conhece o fato, aciência, os princípios. Desse modo, o vulgar sabe que a terra giraem torno do sol, que o lugar aparente dos astros não é o real, queduas linhas podem se aproximar indefinidamente sem se tocar, masas causas desses fatos, o como e por que ocorrem, sãoconhecimentos reservados à astronomia e à matemática. Portanto, aconsciência vulgar não pode ultrapassar os limites do fato e daexistência material e sensível, e se elevar até o inteligível e osprincípios. Se isto é verdade para os conhecimentos de ordemfísica, de maior razão ainda é para os conhecimentos de ordemmetafísica. Pode-se dizer, a esse respeito, que o Deus do filósofo e

o do teólogo, o Deus de Platão, de Aristóteles, de Santo Agostinho,de Santo Anselmo não é o Deus do vulgar. Pois caso tivessemsobre Deus e a natureza divina a mesma noção, se ambos tivessemuma visão suficientemente clara e completa, cairíamos na mesmadificuldade de antes, porque o ministério dos primeiros, que é o deinstruir e de ensinar, não teria mais razão de ser.

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Podemos ir mais longe ainda e demonstrar que os fatos em simesmos são os resultados da ciência, que o vulgar sempre os

conhece somente porque com eles se interagem, e por isso mesmoacabam por confundir a aparência com a realidade. Mas asconsiderações que expusemos bastam para pôr em evidência comoa doutrina do senso comum é vã e superficial. Ela se põe, aqui, naalternativa de se identificar com a consciência vulgar e derenunciar à ciência, ou de ter que abandonar este terreno, e deadmitir que haja um modo superior de conhecer, o que levaria a secontradizer e se anular em si mesma.

Com efeito, a ciência é outra coisa que o senso comum. Aciência procede somente de si própria e da verdade que interpreta.Ela é a obra da reflexão, que exige uma educação especial eprocedimentos sistemáticos, apropriados ao objeto doconhecimento. Seja porque se encontra em acordo com o sensocomum, seja porque deste se afasta, é a ciência que possui asupremacia, que deve julgar em última instância. Pois é da ciênciaque a consciência vulgar recebe a verdade, assim como também é aciência que a corrige e a transforma. Não se explica pelo sensocomum nem o movimento da história, nem as transformaçõessociais, nem a religião, nem a genialidade. Desse modo, ospartidários dessa teoria são verdadeiros niveladores, e, a seus

olhos, um bom esposo, um bom pai de família, um amigo fielpossui a marca de um herói35. Quando se faz descer a ciência donível elevado que ela ocupa para que se torne, do modo como sediz, popular, não unicamente se falseia sua noção, mas se vaicontra o objetivo que se quer atingir, e, em lugar de aumentar suainfluência, a anula. Pois, desde que o discípulo chegue ao nível do

35 Reid.

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mestre, a ascendência e a autoridade deste último cessam. Não é sepopularizando, mas conservando sua independência e sua

dignidade que a ciência exercerá uma influência durável e eficaznos espíritos. Com a ciência sendo popularizada se cai na esfera dacontingência e da opinião, submetendo-se as suas flutuações e aosseus caprichos.

Sem dúvida, é preciso estabelecer uma relação entre a ciênciae a realidade, e que as pesquisas especulativas possam se traduzirpelos resultados positivos e práticos. Mas isto deve ser somentepela condição de que a ciência possa manter sua superioridade esuas prerrogativas; pois esta é tão-somente a condição para que sepossa dominar a opinião, corrigir as opiniões e os pré-juízos daconsciência vulgar. Se Galileu e Newton partilhavam da opiniãocomum de sua época e das precedentes, em relação ao movimentoda Terra e do Sol, a lei da gravitação teve ainda que ser descoberta.Não foi, porém, conforme o senso comum, mas contra e malgradoo senso comum que ambos empreenderam essa descoberta.

Uma verdade, um princípio, uma ideia carregam em si suaprópria legitimidade e valor. Longe de que seja o fato que a

 justifique, é ela, ao contrário, que precede o fato, o produz e o justifica. O cristianismo existiu, primeiramente, no estado idealantes de atingir sua importância no mundo, e é esta confiança em

uma ideia, confiança que não possui outra fonte, nem outro apoio anão ser a certeza e a clareza da razão, é esta confiança que constituio heroísmo e o gênio.

Enfim, não é necessário representar essa relação entre aciência e a realidade como uma relação de identidade, como umarelação onde o fato reproduziria de modo exato, em sua inteireza, averdade especulativa. A ciência se comporta em relação à realidade

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como o absoluto em relação ao mundo. Ela descende ao mundo,sem se identificar com ele, se comunica com a realidade sem

perder a pureza e a integridade de sua natureza; ela é contingente erelativa por seu lado material e externo, como a linguagem, otempo, o lugar onde se produz; mas, ao mesmo tempo, ela é eternae infinita. Todas as religiões possuem seu templo e seuensinamento esotérico. A ciência também possui seu templo, que éo ambiente do ensino, e, sobretudo, o pensamento especulativo36.

§ 4.

DO MÉTODO EM GERAL

Se entre as condições da ciência uma das mais essenciais é aunidade, e a unidade sistemática, é necessário que tenha à suadisposição um instrumento, ou um conjunto de meios e deprocedimentos com a ajuda dos quais ela possa ordenar osconhecimentos. Pois a sistematização supõe, de um lado, adescoberta dos materiais do conhecimento, e, de outro, a faculdadede dispô-los de maneira a formar um todo, no qual as partesestejam ligadas por relações internas e racionais. Reside aí o

problema do método.Ora, do mesmo modo que examinamos até aqui de umamaneira abstrata e geral se há uma ciência absoluta e quais são oscaracteres de tal ciência, sem determinar em que ela consiste, domesmo modo começaremos a tratar a questão geral do método, e

36 Conf. Cap. IV, § 5, e cap. VI, § 4.

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nos limitaremos a pesquisar se há um método absoluto, semdeterminar qual seja.

Primeiramente, caso haja um conhecimento absoluto, épreciso que haja um método absoluto. Pois o meio deve seradequado ao resultado, e o instrumento à obra realizada. Portanto,do mesmo modo que a filosofia aspira à unidade da ciência, domesmo modo ela aspira à unidade do método. Estas são as duascondições, os dois elementos indivisíveis do conhecimento. Talciência emprega tal método, uma outra, um outro método. Mas há,na realidade, vários métodos? E não há nenhuma relação entreeles? Não há um método superior que os suponha e os englobe emsua unidade? São estas as questões que se põem naturalmente, nosentido de se pôr a questão da unidade da ciência. Pois é à mesmalei, à mesma necessidade da inteligência que se obedece.

Há, pois, um método absoluto, e, por isso, há uma ciênciaabsoluta. Mas o método absoluto não poderia ser um elementoacidental e exterior ao absoluto conhecimento, um elemento que,por assim dizer, se acrescentaria de fora. Pois, desse modo, haveriadois absolutos distintos e independentes, que se encontrariam anteum único e mesmo princípio, em uma única e mesma inteligência.

Há aí, entretanto, a noção que se tem geralmente de método, aque considera este como um processo, como um elemento

subjetivo e puramente lógico

37

, que se põe entre o pensamento e oseu objeto, e os põem em relação, mas sem atingir a natureza doobjeto.

Porém, porque o método possui a propriedade de ligar opensamento ao objeto, dever-se-ia, nos parece, naturalmente chegar

37  Temos deixado e continuamos a deixar nesta palavra um sentido mais comum,indeterminado como mostraremos no cap. V, § 1.

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a esta conclusão de que tal método participa da natureza de ambos,e que se, por exemplo, o silogismo possibilita a relação do

pensamento com a verdade, deve haver nisso uma comunidade denatureza, uma espécie de harmonia preestabelecida entre osilogismo e a verdade. E caso fosse confirmada essa opinião, nãose deveria esquecer que as leis, ou regras, do modo como sãochamadas, do método são invariáveis e universais, como as leis doser, e que correspondem ao movimento da realidade. Assim, porexemplo, fechando-nos aqui neste ponto de vista da lógicaordinária, a análise e a síntese não ocorrem somente nopensamento, mas também nas coisas. Pois a divisão e acomposição formam, de todo modo, a vida da natureza, assimcomo a da inteligência, e pode-se dizer que elas estão nopensamento somente enquanto coisas, e, num ponto de vistasuperior e mais profundo, elas estão nas coisas porque estão nopensamento38. Acrescente-se que se não há uma relação real eobjetiva entre essas formas do pensamento e do ser, oconhecimento do ser nos é impedido. Com efeito, em relação aoconhecimento de um objeto, de um princípio, de uma ideia, daideia do triângulo ou da ideia de Deus, temos que: em termos deanálise, quando se deduz dessas ideias suas característicasintrínsecas e seus atributos, ou essa análise é fundada sobre esses

objetos em si mesmos, e reproduz fielmente a natureza, ou há aí somente conhecimentos artificiais, ou menos ainda, somentepalavras.

É para escapar dessas objeções que se recorre a tal modoparticular de conhecimento, que examinamos, ou seja, aoconhecimento intuitivo, pelo qual se procura conhecer o ser, Deus,

38  Ver cap. IV e cap. VI.

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a alma, por um ato simples e direto do pensamento, e sem asegurança do método39.

Porém, admitindo que haja tal faculdade de conhecer, épreciso ver se esta não supõe outro modo de conhecer; é precisover, sobretudo, o que ela vale, o que pode nos fornecer e cumprir oque nos promete. Desse modo, supomos que se afirmeintuitivamente que  Deus existe. Pode-se, em primeiro lugar,indagar se tal conhecimento pode ser alcançado de forma direta,imediata, e sem um trabalho prévio da inteligência. Masadmitamos que possa. É necessário examinar se tal afirmaçãopossa satisfazer a todas as necessidades da ciência relativamente aDeus, se pode nos fornecer o conhecimento de sua natureza. Ora, énisso que uma simples inspeção da questão afasta tal possibilidade.Pois, do modo como havíamos observado anteriormente, somentese pode conhecer Deus pela afirmação de que ele existe, porquepara se obter tal conhecimento é preciso saber por que Deus existe,quais seus atributos e relações com as coisas. É, no fundo, esseconhecimento que faz a diferença das religiões e das doutrinasfilosóficas. Pois todas as religiões têm o conhecimento daexistência de Deus, e, nesse sentido, o Deus dos cristãos e o fetichedos primitivos são exatamente os mesmos. O que os diferencia, oque possibilita a superioridade de uma religião sobre a outra é a

noção, de forma primordial, que possuem de Deus e da naturezadivina.Suponhamos, portanto, a utilização, em virtude de uma

faculdade qualquer, de uma intuição, ou do que se denomina decrença instintiva e natural. A afirmação da existência de Deus, ede se alcançar mais profundamente o conhecimento de Deus,

39  Ver cap. II, §§ 2 e 3.

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redundaria, em contradições insolúveis e impossíveis. A primeiraafirmação se dissiparia por isso mesmo. Enfim, lembramos do que

antes havíamos observado: de que quando afirmamos que  Deusexiste, tais palavras somente possuem um valor, uma realidadeenquanto exprimem uma ideia. Supomos que pela palavra  Deuscompreendemos o ser infinito. É necessário que pesquisemos o quesignifica o ser perfeito, e que determinemos essa ideiadecompondo-a em seus elementos e em seus caracteres essenciais.Do mesmo modo isso se refere à palavra existe. Pois, afirmando-seque Deus existe, não entendemos que ele existe do modo comoexistem as coisas sensíveis e finitas, mas de uma maneira especiale adequada à natureza divina. É preciso, por conseguinte, buscaraqui também o que é que existe de uma maneira absoluta. Ora,todas essas buscas exigem evidentemente o emprego do método.

Seria importante demonstrar por considerações análogas quetodo outro conhecimento, o da alma, o da natureza e de suasrelações, só são possíveis pela mesma condição.

Acrescentamos aqui que a dificuldade que se experimentapara se conhecer a relação entre o método e o ser provém daausência dessa condição essencial do conhecimento que temosassinalado, e que ainda teremos ocasião de tratar40. Ausência,queremos dizer, de um processo sistemático, ou, para se falar com

mais precisão, do método em si mesmo. É nisso que se faz comque se tome ao acaso essas formas do pensamento, ao que a lógicaordinária chama de termo, proposição, definição, etc., as quais sãopostas uma ao lado da outra de uma maneira exterior e empírica,sem buscar o que delas procede, nem de onde provêm, nem quaissão suas relações. Comporta-se ainda, em relação ao conjunto de

40  Ver acima, § 3, e no cap. IV, §§ 1 e 5.

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seus elementos, como se existisse em relação a cada um destes emparticular, colocando-se essas formas ao lado do ser, a Lógica ao

lado da Ontologia e da Metafísica, e os considerando como doismundos independentes, ou caso se aproximem é somente por umaspecto exterior e puramente verbal. É assim que a visão natural eprofunda da ciência se esvai, e, junto da unidade, a ciência mesma,e, que em lugar de se alcançar a ciência, alcançam-se somentefragmentos, disjecta membra, de pedaços não-lógicos,contraditórios, que não têm um mesmo objetivo e uma mesmaunidade no espírito41.

41  Ver cap. IV, §§ 1, 2 e 5; e cap. V, § 1.

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CAPÍTULO IV.

TEORIA DE HEGEL.

§ 1.

HÁ UMA IDEIA PARA CADA COISA.

Se o método é a forma, o método absoluto será a formaabsoluta, e será a forma absoluta do conhecimento e do ser aomesmo tempo.

Porém, o que significa a ciência absoluta onde a forma e o ser,as leis da inteligência e as leis da realidade se misturam, e sãosomente modos, dois elementos indivisíveis de uma única e mesmaexistência?

Chegamos no curso mesmo da filosofia de Hegel. Trata-se,aqui, não mais da ciência em geral, mas da ciência tal como Hegela concebeu.

Segundo Hegel, a ciência absoluta é a ciência que conhecepelas ideias e nas ideias, ou o  Idealismo, sendo que tal ciênciasomente pode se fundar com a ajuda da Dialética.

A  Ideia e a  Dialética são os dois elementos constitutivos da

filosofia de Hegel.Não se poderá, por conseguinte, se ter em conta essa doutrinaa não ser enquanto se tenha uma noção clara e completa dessesdois elementos. Iremos, com efeito, chamar a atenção do leitorsobre alguns pontos essenciais que se devem sempre ter presentesno espírito, para melhor se compreender a vasta e profundaconcepção deste prodigioso pensador.

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Importa, em primeiro lugar, penetrar fortemente nesteprincípio, de que há um mundo ideal, que envolve o mundo da

realidade sensível, que forma a base e a substância, e que, porconseguinte, há uma ideia para todas as coisas, para todos os serese para todos os modos ou formas de sua existência42.

É preciso recordar, primeiramente, nesse assunto, o queestabelecemos precedentemente, a saber, que o pensamento e aideia são inseparáveis, e que onde há ideia, há tambémpensamento, e onde não há ideia, não há pensamento. Do que sesegue que: 1º- o pensamento se produz, se desenvolve e terminacom a ideia, e que o mesmo existe entre as coisas e a ideia; 2º- umavez que conhecer é pensar, e que quando se apreende opensamento, se apreende o conhecimento, por conseguinte, oconhecimento e a ideia são do mesmo modo inseparáveis; 3º-enfim, e como consequência, temos que, enquanto hádeterminações do pensamento e dos objetos aos quais opensamento se aplica, enquanto há ideia, e quanto mais se penetrana natureza da ideia, mais ocorre um conhecimento completo eadequado do objeto. Ora, o pensamento pensa todas as coisas.Somente entre todos os seres, ele possui a virtude maravilhosa dese revestir de todas as formas e de se apropriar de todas as coisas.Pois ele pensa o geral e o particular, o infinito e o finito, a lei e o

fenômeno, o entendimento e a liberdade, a alma e o corpo em seuconjunto. Entre a existência mais humilde e a mais elevada, o céu ea terra, as massas imensas que vagam na vastidão do espaço e oobscuro inseto que existe na superfície da terra, tudo está aberto à

42 Platão desenvolveu este princípio na República  e mais explicitamente ainda noParmênides ; somente existe realidade de uma maneira incompleta. Ver § seguinte, e o § 3.

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investigação e à ação do pensamento, tudo é passível de reflexãona forma mais simples, mais clara e mais perfeita.

Mas se é o pensamento que pensa todas as coisas, somente hápensamento com o apoio da ideia. Logo, segue-se que,necessariamente, há uma ideia para cada coisa.

Entretanto, sobre este ponto, há menos condescendência emrelação à ideia que em relação ao pensamento. Pois, de muito boavontade, se admite que o pensamento possui a faculdade de sereferir a todos os objetos, mas, quando se trata das ideias e de suarelação com as coisas, se faz uma espécie de triagem, e não sereconhece que todas as coisas possuem uma ideia que lhe écorrespondente. Assim, admitem-se as ideias da justiça, do bem, dobelo, mas há uma recusa em admitir a ideia de corpo, de planta, deorganismo, etc. Ora, é fácil ver que essa escolha é inteiramentearbitrária, e que não se baseia em nenhum fundamento. Com efeito,independente do modo que se considera a ideia, atribuindo-lhealgum valor, alguma essência ou uma simples forma dopensamento, ou é necessário admitir que há nisso uma essência ouuma forma absoluta para todo corpo, para a planta, para a luz, etc.,assim como há uma para a justiça, para o infinito e o bem, ou énecessário negar que haja tanto para estes como para aqueles.

A dificuldade e a repugnância que se experimenta em atribuir

ideias às coisas provêm, principalmente, do fato de que não sepenetra suficientemente neste princípio, de que o invisível e o idealconstituem o elemento essencial de todo existente, da natureza e doespírito, da alma e do corpo, assim como de sua relação43. Admite-se, é verdade, este princípio de uma maneira geral, mas, na falta deuma noção exata, o mesmo é abandonado quando se trata de ser

43 Cf. mais adiante, § 3.

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aplicado, dando-lhe os mais estranhos tratamentos. É assim que sediz que Deus é um ser imaterial e invisível, e, ao mesmo tempo,

que é o princípio da natureza, acrescentando-se que a natureza e omundo invisível não possuem razão de ser em si-mesmos; o quenão significa outra coisa senão que a razão, a causa e a essênciaúltima da natureza residem em Deus. Mas caso se diga que a ideiaé, ou o princípio, ou um elemento essencial da natureza, tal opiniãoserá baseada na razão de que um elemento puramente inteligívelnão poderia ser o princípio da matéria, do movimento, etc. Comose vê, rejeita-se o que, em virtude de um mesmo princípio, teve queser admitido44.

Temos, pois, razão em dizer que ou é preciso negar todas asideias, ou que é preciso admiti-las todas, sob um mesmo título. Porconseguinte, do mesmo modo que há ideias do bem, do verdadeiro,do infinito, etc., desse modo há a ideia de quantidade, de número,de luz, do animal, da vida e da morte45 e também do que parece seafastar em demasia da ideia. Ideias, queremos dizer, da matéria, dofenômeno, do indivíduo46 e do eu.

Com efeito, todos os eus, assim como todos os indivíduos,todos os fenômenos, têm um elemento invariável e uma essênciacomum. São somente enquanto tais porque são o produto dessa

44 Cf. cap. IV, § 5.45  Ver, sobre a morte, o cap. VI, e apêndice II.46 O princípio de individuação dos Escolásticos não tem outro significado. “Illic (in mente Dei), diz Bernard de Chartres, platônico do segundo século, in genere, in specie, IN INDIVIDUALI SINGULARITATE, conscripta, quid- quid yle, quidquid mundus, quidquid  parturiunt alemanta”  . e Duns Scott, quem entre os escolásticos provavelmente tenhaaprofundado mais este ponto, afirma ( Comment, senten., liv. XI, questão 6): “Sicut unitas in communi consquictur entitatem in communi  (ideia do gênero), ita quaecumpe unitas consquictur aliquam entitatem (uma ideia qualquer). Ergo unitas simpliciter qualis est unitas individui... si est in entibus, sicut omnis opinio suponit consequitur per se esse aliquam entitatem  (ideia deindividualidade).

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essência, que lhes corresponde. Os adversários do idealismo, ospsicólogos, que pretendem fundar o conhecimento filosófico sobre

o que chamam de os fatos da consciência, reconhecem,tacitamente, em relação a este conhecimento, tal princípio. Pois,quando estudam esses fatos, não é enquanto fatos pertencentes a talindivíduo ou a tal eu que os estudam, mas enquanto fatos quecompreendem todos os indivíduos, e que se encontram em todos oseus. Por isso, admitem que há um eu em si, um tipo, uma essênciade todos os eus. É somente por isso e conforme essa condição quesua busca possui um alcance científico; o que quer dizer, em outrostermos, que é essa própria ciência que combatem a que dá umadireção e um sentido para a sua doutrina47.

Quanto à matéria, se ela possui uma essência, esta somentepoder ser um princípio inteligível. Ora, ela possui e não pode tersenão uma essência. Pois mesmo se a representasse, à maneira dePlatão e de Aristóteles, como um princípio completamente passivo,como a potência ou a indeterminação absoluta, seria essa potênciae essa indeterminação, ausência de toda forma e capacidade derecepção, que constituiriam sua essência.

A dificuldade que se experimenta em conceber a simplicidadee a inteligibilidade da matéria procede do fato de que esta érepresentada como composta e impenetrável.

Mas, primeiramente, quanto a sua composição, entendendo-secomo sendo uma justaposição ou reunião acidental e externa deelementos e de propriedades que não seriam unidas por nenhumarelação simples e substancial, significa que a matéria não é maiscomposta que o espírito. Ou então é preciso afirmar que o espíritoé também composto, porque contém, como a matéria, as

47 Cf. cap. VI.

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propriedades, as faculdades, os modos de atividade diversos. Casose pretenda que é a  forma que, na matéria, reúna as propriedades,

isto se aplicará tanto ao espírito quanto à matéria, e, sobre esteponto ainda, não há entre estes nenhuma diferença. Enfim, caso serepresente, seja a matéria, seja o espírito como um simplesagregado, isso significa cair na opacidade e em todas asimpossibilidades implicadas.

Em relação à impenetrabilidade, isto não se aplica somente aopensamento reflexivo, mas à própria experiência que constata que amatéria não é absolutamente impenetrável. Como explicar, comefeito, em relação à impenetrabilidade, o fato mais essencial e queconstitui, de qualquer modo, a vida mesma da matéria, atransformação – queremos dizer – e a fusão de diversas substânciasmateriais? De resto, desde que se admita uma matéria em si, umamatéria que envolve as substâncias, é preciso admitir também queesta matéria penetra todas essas substâncias, ou, o que equivale aomesmo, que essas substâncias se interpenetram umas nas outras porintermédio desta matéria.

Portanto, o que é impenetrável não é a matéria em si, mas amatéria em sua existência individual e particular, isto é, o corpo.Deve-se, por conseguinte, lembrar que os corpos são, ao mesmotempo, penetráveis e impenetráveis; penetráveis em relação ao que

têm em comum, e impenetráveis, em função do que possuem comopróprio e distinto.Enfim (tal consideração se aplica a todas as propriedades, a

todos os modos da matéria), a superfície e a impenetrabilidade são,também, propriedades gerais e essenciais, e, por conseguinte,elementos puramente inteligíveis, assim como a matéria, isto é,

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possuem também um princípio, um tipo, uma ideia. É o que bastaaqui para demonstrar nossa tese.

§ 2.

A IDEIA E A ESSÊNCIA

Mas se todos os seres têm uma ideia que lhe corresponde,segue-se então que esta ideia seja sua essência? Não há, além dela,uma existência mais elevada e mais profunda cuja ideia seriasomente a forma, uma força cuja natureza íntima nos escapa, e queteria sua raiz na essência divina, ou que, melhor, não seria outracoisa a não ser essa essência em si mesma? Reside aí o ponto maisdelicado, o ponto decisivo do problema. Todos os que se dedicamem se aprofundar sobre a natureza das ideias, concordam emadmitir que a ideia é um elemento essencial das coisas, que ela éeterna, imutável, e que tem sua origem na existência absoluta, ouantes, que ela é somente um modo desta existência. Mas a ideia éidêntica ao absoluto? Esgota inteiramente seu próprio ser? Ou háuma existência, uma essência superior à ideia? É aqui que começa

o desacordo. Para uns, os idealistas moderados, a ideia é somenteuma forma, um modo de ser; para outros, os idealistas absolutos,ela é a forma e o ser como um todo.

Vejamos as razões que nos fazem pender para esta últimaopinião.

Em primeiro lugar, se é verdade, conforme estabelecemos,que há uma conexão indissolúvel entre o pensamento e a ideia, de

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tal sorte que todo pensamento supõe necessariamente uma ideia,isso significa que essa força obscura, essa substância indefinida,

representada como a origem e o substratum da ideia, somentepoderia ser pensada com a ajuda da ideia, e com uma ideia que lhecorresponda, o que se trata, aliás, da substância infinita, ousubstâncias finitas. Pois, caso se concorde que a ideia seja a formaessencial das coisas, a ideia de tal substância será sua forma  – demodo idêntico a esta  –  essencial, eterna e absoluta. Na ideia deuma substância há, pois, uma adequação entre estas, o que equivalea dizer que essa substância é pensada do modo como ela existe, eque ela não poderia ser de outro modo a não ser enquanto pensada.Portanto, se o que é pensado é uma forma essencial da matéria, estanão pode ser puxada em direção ao ponto central, e se o pensadorpensa, este não poderia pensar a si mesmo como podendo nãosucumbir. Se Deus é o ser perfeito, ou o espírito absoluto, etc., elese pensa como tal, e será necessariamente enquanto tal como sepense. Vê-se desde já o quanto a ideia penetra profundamente naexistência íntima e substancial dos seres. Essa conexão se tornarámais forte, ainda, caso se tome uma ideia por completo, em todosos caracteres, em todas as relações, se, por exemplo, quando sedetermina os caracteres e as relações essenciais do triângulo, doorganismo, da alma, etc. Pois não se poderia ver depois o que

existiria além ou abaixo da ideia.Mas o fato que faz com que dificilmente se conheça averdadeira e completa natureza da ideia é, primeiramente, essaescolha arbitrária que acabamos de ver48, escolha que limita aesfera das ideias, que faz concordar uma ideia com tal ordem defatos e de existências, e refutá-la em relação a uma outra. Tem

48 § precedente.

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havido uma tendência de se dar outro fundamento que não a ideia.Desse modo, admitir-se-á a ideia do bem, e se concordará que é

esta ideia que fornece para a obra de arte sua beleza. Porém, comonão se admite a ideia da matéria, esta terá uma essência diferenteda ideia, e a ideia da beleza será tão somente a que dará algumaforma a essa essência. Do mesmo modo, deve-se concordar que oespírito não pode pensar de uma maneira arbitrária, e que é precisoque pense segundo leis determinadas, ou seja, conforme as ideias.Mas, caso não se admita uma ideia do princípio pensante, do que sechama de o eu, este princípio, também, terá outra origem, outraessência e não a ideia, e esta não será mais que uma forma adeterminá-la.

É este costume que se transporta para a absoluta existência.Com efeito, quando se examina a natureza das ideias, força-se areconhecer que estas possuem o seu centro e seu princípio emDeus. Porém, comporta-se em relação a Deus do mesmo modocomo em relação ao eu; e, do mesmo modo que se tem do eu e dasideias dois princípios distintos, do mesmo modo se separa em Deusas ideias de seu ser e de sua substância. Mas se há uma ideia do eu;e se o eu somente pode conter o que existe em sua ideia, hátambém uma ideia de Deus, e Deus não poderia ser pensado nemexistir a não ser conforme essa ideia.

Quando, de nosso lado, nos esforçamos em conhecer aessência da vida divina, e acreditamos em nos pôr de fora e acimada esfera das ideias, atribuindo a Deus a consciência, apersonalidade, a bondade, a ubiquidade, etc., não fazemos a não serreunir os elementos puramente inteligíveis para construir a ideia deDeus. Mas é preciso que esses elementos representem a naturezada vida divina, pois de outro modo teríamos a sombra de Deus, não

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sua realidade. Não é preciso somente que sejam a imagem, masque também expressem a natureza íntima de Deus, e que sejam o

próprio Deus. Pois se o ser de Deus difere do pensamento de Deus,cairemos na primeira dificuldade. E esta não atinge somente opensamento humano, mas o próprio pensamento divino. Caso sesepare, com efeito, em Deus, o pensar e o ser, rompe-se a unidadeda vida divina. Se, de um lado, Deus não pensa o próprio ser,haveria um Deus que se ignora, e que ignora o que há de maisexcelente em si. Mas se ele pensa seu ser, seu pensamento assimilae incorpora a si próprio, e se é desse modo que se exprime, isso serefere somente ao seu ser intelectualizado, ou, para nos servir daexpressão profunda de Aristóteles, isso significa que Deus é o

 pensamento do pensamento49.Mas uma objeção nos seria apresentada. Pretendendo-se que

haja um grau de existência onde o pensamento e o ser seconfundem, pensar tal coisa seria também ser tal coisa; pensar afelicidade seria ser feliz, pensar o bem, seria ser bom. Ora, isto estáem desacordo não somente com a linguagem, mas com aexperiência mais vulgar, porque se pode pensar a felicidade semser feliz e o bem sem praticá-lo.

Essa objeção que, à primeira vista, parece sem réplica, baseia-se numa falsa noção de ciência e de ideia, e sobre uma observação

insuficiente da experiência.Pode-se afirmar, primeiramente, que mesmo se fechando nofato e no pensamento subjetivo, o pensamento de uma coisa é,senão a mesma coisa, ao menos seu ponto de partida e suacondição essencial. Portanto, não se é feliz e bom a não ser quandose aspira à felicidade e ao bem, isto é, enquanto se pensa sobre

49 Cf. Cap. VI.

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estes, e, caso se suprima este pensamento, será suprimido, aomesmo tempo, esta aspiração à felicidade, assim como sua posse e

o sentimento que a acompanha.Mas não é desse modo que se deve tratar tal questão. O ponto

essencial e preciso é saber se há um pensamento, uma ideiaabsoluta da felicidade e do bem, e se é esta ideia que é a fonte dafelicidade e do bem, relativos e individuais. Pouco importa se talindivíduo pensa a felicidade sem ser feliz, ou ainda que a felicidademanifeste várias formas, e varie conforme os indivíduos. Pois, deacordo com o primeiro ponto, é suficiente que a ideia de felicidadese realize em alguns indivíduos e numa esfera particular daexistência. Com efeito, se há uma ideia ou uma essência defelicidade, não se segue que todos devem ser felizes, ou que aomenos devam ser da mesma maneira e no mesmo nível. Pela razãomesma de que todos os seres devem possuir a beleza é que há umaideia da beleza, ou que se todos os corpos devem ser luminosos, éporque há uma ideia de luz. Se é antes o contrário que acontece, éporque as ideias se determinam umas nas outras, e somente podemter algum domínio e uma esfera limitados50. Aliás, não se sabe,aqui, a quem pode servir a distinção de ideia e de ser. Pois aobjeção que é dirigida contra a ideia, poderia igualmente ser, demodo inverso, aplicada na ideia. Portanto, caso se diga que a ideia

da felicidade não é a felicidade, ou, para falar com mais precisão,não é a essência da felicidade, é porque se pode pensar esta ideiasem ser felicidade, ou poder-se-ia dizer que não se é feliz sempensar a felicidade, e que é por isto que não se diz da planta, porexemplo, que seja feliz.

50  Ver adiante § 4.

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Mas o erro provém, aqui, pelo fato de se confundir opensamento individual e subjetivo com o pensamento universal e

objetivo, e o ato acidental e exterior do pensamento com opensamento necessário e absoluto. Pensar acidentalmente taltriângulo não é, sem dúvida, ser o triângulo, o pensamentoacidental do sistema solar não é o sistema solar. Mas o essencial ésaber se, independentemente da ideia, do pensamento eterno eobjetivo do triângulo e do sistema solar há a essência do ser dessesobjetos. Invocar sobre este ponto o que se chama de consciência eexperiência psicológica, é se pôr de fora da ciência, e ir contra oresultado que se deseja obter.

Com efeito, recusa-se em reconhecer que a ideia constitui aexistência absoluta, e se põe acima da ideia o ser e a essência, edepois se transporta para esta essência, para este ser absoluto osdados da experiência psicológica, e se faz do absoluto a imagem daconsciência individual. Mas representar desse modo o absoluto édestruí-lo. Pois se Deus pensa como eu penso, enquanto sersensível e finito, se minha consciência e minha personalidade são abase na qual construo a consciência e a personalidade divina, Deusparticipará de minhas imperfeições e de minha finitude. Por maisque se combinem os elementos da consciência, os corrijam, osfinalizem, os compreendam indefinidamente, não se poderá nunca

vencer os limites da existência finita. Aliás, este trabalho, estacombinação de elementos finitos esconde no fundo a presença daideia51. Por conseguinte, não é preciso dizer que Deus é talpensamento, tal vontade, ou tal pessoa, e sim que é o pensamento,a vontade e a personalidade absoluta, ou, caso se queira, a ideiamesma do pensamento e da personalidade; coisa difícil para

51 Cf. § precedente, e mais adiante, cap. VI.

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conservar sem dúvida, mas é o que precisamente constitui aciência.

Não serve para nada, para demonstrar a distinção entre ideia eser, insistir em dizer que se pode ter o sentimento do pensamentosem o sentimento de sê-lo, caso se pense, por exemplo, a luz, nosentido de que se poderia ter o sentimento desse pensamento semhaver, no entanto, ao mesmo tempo, o sentimento do que seja a luz,considerando-se, ao contrário, que o ser da luz se distingue dopensamento.

Pois, primeiramente, ou há uma relação real, uma relaçãonatural entre o pensamento da luz e seu ser, ou pensado-a nãopensamos a realidade da luz, mas sua aparência. Poder-se-iamesmo dizer que pensamos qualquer outra coisa que não a luz. É oque já observamos anteriormente.

De outro lado, não se trata, aqui, de determinada existência,de determinado fenômeno contingente e particular, mas da essênciae do inteligível. É nesse aspecto que se esquece sempre que nessaquestão faz-se apelo à observação, à consciência e ao sentimento.

Com efeito, a essência, que reside na ideia, ou em outroprincípio que não seja a ideia, se pensa e não se sente. Longe deque possa ser sentida, é preciso, ao contrário, se pôr acima daesfera do sentimento, e abdicar sua consciência individual para

apreendê-la em sua pureza e em sua verdade. Portanto, quandoestudamos a alma esta não é tal como a alma em particular, mas aalma em geral que desejamos conhecer, e não cremos possuir aciência da alma a não ser quando possuímos este conhecimento52.Nunca é necessário que sejamos tal alma particular, e quetenhamos esse sentimento para afirmar dela seu ser e suas

52 Cf. acima: § 1.

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qualidades. Ao contrário, o sentimento da existência individualdestruiria a ciência da alma em geral, e, por conseguinte, a ciência

de toda alma em particular. Desse modo, na mais alta acepção dapalavra, pensar a alma, a luz, o organismo, é pensar e ser todasessas coisas ao mesmo tempo.

É o que se tornará mais evidente se nos transportarmos para ocampo da vida divina. Afirmamos, com efeito, que Deus é oprincípio e a essência última de todos os seres, da natureza, assimcomo do espírito, da luz, da matéria, da justiça, da liberdade, etc.Ora, ou essas palavras não têm sentido, ou querem dizer que Deusé todos os seres em geral, sem ser nenhum deles em particular, eque as essências não são a não ser elementos inteligíveis,colocados acima da esfera do sentimento e da consciência.

O que é verdadeiro na ordem da reflexão e da ciência seencontra confirmado na ordem dos fatos e do pensamentoreflexivo. O que chamamos de heroísmo é somente a abnegaçãoespontânea de nós próprios e a renúncia às satisfações, a nossosinteresses e a nossa existência pelo triunfo de uma ideia. Por seuturno, o gênio filosófico consiste em eliminar da inteligência todoelemento temporal e finito, para elevá-la ao eterno e ao infinito.Pode-se dizer, a esse respeito, que o pensamento filosófico é oheroísmo da inteligência, e que o heroísmo é a imagem e a

realização material do pensamento filosófico. Um e outro, ofilósofo e o herói, elevam sua alma, além dos limites do mundovisível, para um mundo invisível e ideal. O filosofo conhece numato indivisível do pensamento o eterno e o absoluto; o heróiconcentra, numa única existência e num ponto do tempo e doespaço, a vida e a força de um povo e da humanidade.

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Quanto à outra objeção, tirada da dificuldade de conciliar aunidade da ideia com a diversidade de suas formas e de suas

manifestações em sua existência sensível, ela não possui, aqui,nenhum peso. Pois ela se dirige tanto ao ser como à ideia, uma vezque se poderia indagar aos que sustentam tal distinção comoconciliar a unidade do ser com a multiplicidade de suasmanifestações, a unidade do ser ou da essência da felicidade, da

 justiça, do belo, com as formas diversas implicadas em suaexistência individual. Portanto, a dificuldade permanece a mesmanas duas hipóteses: sobre a identidade do ser e da ideia, e sobre suadistinção.

É isso que desejamos estabelecer. Mas essa distinção estarácompletada por nossos estudos mais adiante.

§ 3.

A IDEIA É A RAZÃO DAS COISAS.

Se, conforme pretendemos, a ideia e a essência se confundem,a ideia conterá o porquê e a razão última das coisas. Por que possuios seres orgânicos tal função, tal propriedade no organismo? Porque os corpos se movem? Qual é a razão que faz com que somente

se movam no tempo e no espaço, com velocidade ou lentidão, econforme determinadas direções? Por que tal fenômeno, ou talsensação? Por que as sensações e os fenômenos estão submetidosàs mesmas condições e possuem as mesmas características? Qual arazão última da união de alma e corpo? A resposta a estas questõesestá na ideia de que é necessário buscar. É preciso, porconseguinte, afirmar que a ideia e o corpo estão unidos, pois há

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uma ideia dessa união, e ambos estão unidos conforme essa ideia.Existem os seres orgânicos, os fenômenos e os movimentos,

porque existem as ideias do organismo, do fenômeno e domovimento, assim como das outras coisas.

Reside aí uma explicação que vale a pena admitir, do mesmomodo que se deve admitir que há uma ideia para todos os seres. Eaqui também se faz uma seleção e se explica pelas ideias tal ordemde fatos e dos seres, e tal outra por outros princípios53. Caso sepergunte, por exemplo, por que tal ação é justa, tal pensamento éverdadeiro, tal objeto é belo, a resposta é que tais coisas existemem conformidade com as ideias de justiça, de verdade e de beleza.O que equivale a dizer que todas essas coisas se preenchem derealidade e de essência. São o que são em função destas ideias. Esão, porque as ideias também são. Mas caso se pergunte qual é arazão última da sensação, do organismo, da união de alma e corpo,e se responda que é nestas ideias que é preciso alcançá-los, serejeitará esta explicação como não tendo nenhum sentido, e comopondo as palavras no lugar das causas reais.

É sempre, como se vê, a mesma inconsequência. Pois caso seexplique a ação justa pela ideia de justiça, haverá fundamento emexplicar a união de alma e de corpo pela ideia desta união,independente, aliás, desta ideia, o que não se trata de determinar

aqui; e caso se rejeite esta última explicação, é preciso tambémrejeitar a primeira.Mas é preciso admitir a ideia da alma e do corpo, e depois a

ideia de sua comunicação, e da matéria cuja comunicação serealize. O mediador plástico, o influxo físico, a harmonia pré-estabelecida são somente expressões diversas deste pensamento, a

53 Cf. acima § 1.

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saber, de que há uma força, uma essência intermediária que une aalma e o corpo. A teoria da harmonia preestabelecida, e aquela das

causas ocasionais que parecem buscar uma outra solução queparece pôr o princípio dessa união na força e na vontade divinas,não têm, caso examinadas com mais rigor, outro fundamento. Comefeito, a vontade divina não é uma vontade arbitrária e contingente,mas tem por limite e por regra as leis de sua natureza, as quais nãosão outras coisas a não ser as próprias essências. É o que seentende quando após se ter atribuído a Deus uma vontade e umaliberdade contingentes, se alcança, por uma necessidade racional,no lugar acima desses atributos, a natureza mesma de Deus,considerando-se que Deus não age, nem pode agir a não serconforme as leis de sua natureza. Portanto, não haveria nenhumaexplicação, ou ao menos não se teria a verdade e última explicação,caso se afirmasse que a alma e o corpo estão unidos, ou que omundo foi criado porque Deus assim o quis, e de determinadomodo o quis54. Ou seja, é preciso ir além e dizer que Deus quisporque conforme as leis de sua sabedoria e de sua razão, e quesomente quis conforme essas leis. O que equivale a dizer, emoutros termos, que há na natureza divina certa ideia, certa essênciaonde as duas substâncias se encontram unidas, assim como certa leique fez com que Deus tenha criado o mundo, e conforme a qual o

criou. É esta a razão última da comunicação da alma e do corpo eda criação. Com efeito, a última razão de uma coisa é essanecessidade interior que faz com que ela seja o que é, e que nãopoderia ser de outro modo. Essa necessidade é a essência. Eisporque, quando se atinge o grau do conhecimento, não se pode iralém, e exigir uma nova explicação. Portanto, é ilógico perguntar

54 Cf. Cap. VI.

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por que os corpos caem. E caso se desejasse responder a estaquestão, ficar-se-ia limitado à própria questão. Portanto, não se

deve perguntar pela razão da existência de Deus. Pois Deus é aessência e a necessidade absoluta, e, a esse respeito, tudo o que sepode dizer dele é que ele é porque é55.

Todos os filósofos admitem tacitamente a ideia do organismo.Quando se estuda a natureza orgânica, e resolvem determinar suascondições e propriedades essenciais, unicamente o que fazem, narealidade, é construir tal ideia. Porém, como não possuem o hábitoda especulação, e dificilmente podem expandir o campo dopensamento sensível e das imagens, empreendem na observação ena experiência o que deveriam na pura inteligência, e unicamente oque conhecem é o fato e a consequência, acreditando possuir acausa e o princípio. São, pois, conduzidos a materializar a ideia e abuscar o princípio do organismo, uns numa espécie de tipo materialde onde emanariam todos os seres orgânicos. Outros, tal comoBuffon, no universo, que tomaria sucessivamente uma formaconcreta e determinada nos diferentes animais. No fundo, o queprocuram é a ideia, uma essência puramente inteligível que é arazão, e o princípio de todos os seres orgânicos, como a ideia da

 justiça é a razão e o princípio de todas as coisas justas. Estaessência eles a pressentem, mas não conseguem alcançá-la tal

como ela é em si, em sua verdade e real existência.

55 Cf. Ib.

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§ 4

ENCADEAMENTO DAS IDEIAS.

Porque todas as coisas possuem uma ideia que lhecorresponde, e que constitui sua essência, haveria, pois, umconjunto, uma série de ideias, cujo encadeamento e ordeminteriores possam conter e representar o encadeamento e a ordemmesma das coisas.

A esse respeito, é preciso observar, primeiramente, que asideias são, ao mesmo tempo, distintas e idênticas. São distintas noque cada uma possui um caractere próprio e específico que adetermina. Mas são idênticas a título de ideias e de elementosinteligíveis que constituem o objeto do pensamento. Ou, o que vema ser o mesmo, são distintas e idênticas, porque é a  Ideia que assupõem, e que, as supondo, as separa e as une num conjunto, paraalcançar sua absoluta unidade. Pode-se dizer também que sãoidênticas, porque são ambas imutáveis e eternas. Não há, comefeito, nem antes nem após, nem generalização, nem alteração naesfera das ideias, e, quando se fala de sua precessão e de seuencadeamento, é tão-somente de um encadeamento e de umaprecessão metafísicas que se deseja falar, ou seja, desta relação que

tem uma ideia sendo dada, e, em consequência, outra ideia énecessariamente dada. Entre as ideias do ser e do devir, daquantidade e da qualidade, do bem e do belo, etc., não há maisencadeamento cronológico que entre o círculo e o diâmetro. E asideias de tempo e de movimento em si mesmas que, por suanatureza, parecem dever ser submetidas ao nascimento e à morte,

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são, também, imperecíveis e eternas. Pois o que nasce e o queperece é o tempo e o movimento, e não sua essência56.

Portanto, se há uma série de termos ao mesmo temposemelhantes e desiguais, onde o termo que segue tem naquela oque o precede e o distingue, e que, por isso mesmo, nela estácontido, segue-se que tudo nisso se distingue. Mas esta relação deconter e ser contido, este envolvimento das ideias uma nas outrasnão deve ser concebido à moda da lógica ordinária, ou seja, comouma simples relação de quantidade, como um gênero que contém,em sua extensão, as espécies, e sim como uma relação de qualidadee de essência57. Existe, é verdade, entre as ideias uma relação dequantidade, no sentido de que sua diferença pode ser consideradacomo um elemento numérico que se acrescenta a uma ideia e adistingue de uma outra, ou melhor, no sentido de que uma ideiacontém mais elementos (espécies ou caracteres conforme sechamam) que uma outra. Mas isto é tão-somente uma relaçãoexterior, secundária, e que não possibilita conhecer a verdadeiranatureza da ideia. A relação de conteúdo, ao contrário, tal comoentendemos aqui, é uma relação interna e substancial, que faz comque uma ideia se encontre e continue, se assim se pode dizer, numaoutra, assaz se transformando. É assim, por exemplo, que a ideiado ser se encontra compreendida na ideia do devir , a ideia de

tempo na de movimento, a ideia de luz na de cor , etc. Unicamente,o ser, o tempo, a luz não existem no devir, no movimento, na cor,tal como existem em si mesmos e em sua esfera própria e distinta,

56 Cf. § seguinte; cap. V, § 1, e cap. VI, § 3.57  Ver, sobre este ponto, nossa tese latina “Platonis, Aristotelis et Hegelii de médio terminodoctrina” (Paris, 1845, Landrange).

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mas se encontram combinados com um novo elemento, e elevadosa uma nova existência58.

Se agora, após este modo de conceber as ideias, e tambémsuas relações, se representa por pensamento a totalidade das ideias,se verá que elas são, de qualquer modo, dotadas de um movimentointerno, que as fazem passar de um estado simples a um estadosempre mais complexo, ou, para empregar a linguagem de Hegel,de um estado abstrato a um estado sempre mais concreto, de talsorte que a ideia que precede, o tempo, o espaço, por exemplo, éuma ideia abstrata em relação à ideia que segue, o movimento.Reside aí, com efeito, o verdadeiro sentido da palavra abstração.Pois não existe abstração absoluta, e quando se diz que a força, oua matéria, ou a substância, ou tal modo, ou tal propriedade sãoabstrações, não se deseja dizer que não possuem nenhumarealidade, mas unicamente que não contêm a absoluta realidade.Portanto, quando se censura uma doutrina de somente se apoiarnum princípio abstrato, ou sobre uma abstração, esta censura éfundada, caso se compreende por isso que esta doutrina fornece aeste princípio um valor que não possui; mas não é fundada caso selhe negue toda realidade. Por conseguinte, uma doutrina filosóficanunca é falsa em todos os pontos, mas é somente incompleta. Elanão é falsa porque é fundada numa ideia, como a de substância, de

número, a de mônada, etc., e a esse título ela exprime um grau, ummodo do absoluto, e não o absoluto em sem todo59.Vê-se, por conseguinte, que cada grau, cada momento da

 Ideia constitui um momento e um grau da realidade. O estadoabstrato da Ideia constitui o estado próprio e distinto de uma esfera

58  Ver, abaixo, cap. II, § 1, e cap. VI, § 3.59 Cf. § seguinte.

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da existência; seu estado concreto constitui a relação desta esferacom uma esfera superior.

A ideia põe um de seus momentos, e, após ter posto, ela osexpande e o anula, e o anula precisamente porque somenteconstitui um estado abstrato de sua existência. É nisso que seexplica por que uma ideia somente pode ser realizada numa esferalimitada da existência. Pois uma ideia não exprime a totalidade dosseres, mas um grau e uma face da realidade60.

Mas este movimento, que eleva as ideias de um estadoabstrato a um estado sempre mais concreto, é, ao mesmo tempo,um movimento de expansão e de concentração, dedesenvolvimento e de envolvimento. É um desenvolvimento nosentido de que em cada grau se produz um estado, uma forma novae mais rica da realidade. É um envolvimento no sentido de quecada forma nova sintetiza e condensa todas as formas precedentes.É assim, por exemplo, que o sistema solar se combina com outroselementos num organismo, o organismo na vida, e a vida na alma.De onde se segue que as ideias, em tudo se limitando, tendem a seexpandir sempre mais em seus limites, assaz em variedade ediferença, e a formular a unidade e a simplicidade absoluta. Comefeito, é preciso um término neste movimento, é preciso um pontoonde suas evoluções possam cessar. Este termo último, este ponto

culminante da existência refere-se ao que Hegel chama de  Ideia.Todos os graus anteriores que se interpõem são as ideias e não a Ideia; formam momentos abstratos e relativos de sua existência, enão sua existência concreta e absoluta.

A  Ideia é, por conseguinte, o princípio e o fim de todas ascoisas. Tudo aspira à  Ideia, e é esta aspiração, aqui cega e

60 Cf. abaixo § 2.

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mecânica, voluntária e reflexiva, que realiza a vida e o movimentodo mundo. Quanto mais as ideias, e com as ideias as coisas, se

aproximam da  Ideia, mais elas se aproximam da perfeiçãoabsoluta. Por conseguinte, dizer que as coisas vão de um estadoabstrato a um estado concreto é dizer que se aproximam da  Ideia, eque passam de um estado de imperfeição para um estado sempremais perfeito. É assim que há mais perfeição na natureza orgânicaque na natureza inorgânica, na vida do que no organismo, e naalma mais que na vida. Esta passagem, esta elevação da naturezainorgânica ao organismo, do organismo à vida, não possui outrofundamento, nem outro motor a não ser a Ideia61.

Porém, se as coisas e as ideias aspiram à  Ideia, se elas têm na Ideia seu princípio e seu fim, elas não são, em si mesmas,consideradas separadamente e fora da Ideia, no seio da Ideia o quesão. Em si mesmas, são existências imperfeitas, limitadas, finitas;na Ideia, se transformam e alcançam a sua absoluta perfeição62.

Mas o que é a  Ideia? Como realiza esta absoluta unidade?Como as coisas e as ideias se revestem de uma forma nova no seioda Ideia? É o que veremos a seguir.

61  Ver cap. VI, §§ 3 e 4.62 Cf. cap. III, § 2, e o cap. VI, § 3.

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§ 5.

MÉTODO ESPECULTIVO OU A DIALÉTICA.

Se as ideias são o princípio do ser e do pensamento, e se omovimento e a encadeamento das ideias contêm a razão domovimento e do encadeamento das coisas, isto significa que será aciência da Ideia, considerada em sua existência absoluta, conhecidaem todos os graus de sua existência relativa e de suas relações, queformará o objeto do conhecimento filosófico.

Ora, este conhecimento somente poderia ser obtido por ummeio adequado ao seu objeto, por um método que não seja externoe sim associado à ideia, podendo-se falar desse modo, ou seja, queseja constituído por um elemento interno e substancial, por ummétodo, em uma palavra, que seja a forma mesma da  Ideia. Talmétodo é a Dialética.

Pode-se dizer que a história da dialética se confunde com ahistória da filosofia, que se desenvolveram e evoluíramsimultaneamente. Com efeito, na medida em que a razão avança noconhecimento de si mesma e das coisas, a dialética alcança,também, um novo desenvolvimento, de modo que a razão, seorganizando e se constituindo, expõe e concebe seus princípios e

suas aplicações. Ou seja, a razão e a dialética têm uma única emesma origem. O que uma pode, não pode a não ser com oconcurso da outra, obedecendo, ambas, à mesma impulsão, etendendo a um mesmo resultado.

Quando Kant demonstra por suas antinomias cosmológicasque a razão é a dialética, e que se contradiz em si mesma,unicamente o que faz é reproduzir, de uma forma mais severa, mas

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menos extensa e menos profunda, talvez, as doutrinas da antigadialética63.

Encontramos, com efeito, a filosofia ocupada, desde suaorigem, em pôr e em resolver o problema dos contrários. Uns,como os pitagóricos, acreditavam encontrar a solução na unidadenumérica. Outros, como os eleatas, numa unidade mais profunda, aunidade do ser . Outros, enfim, tal como os jônicos e os sofistas, noelemento variável e móvel da existência: o devir e a aparência.

Tudo é composto de números, diziam os pitagóricos, e comoos números se reúnem na unidade, é na unidade e em suascombinações diversas que reside o princípio da diferença e dasrelações entre as coisas.

Mas a unidade numérica não representa e não justifica a nãoser um elemento, uma propriedade das coisas, e, acima dessaunidade, há o ser e sua unidade que envolve, com as coisas, aunidade numérica. Ora, o ser não poderia mudar. Pois o que muda,supõe o ser de onde muda. Por conseguinte, tudo existe narealidade, e nada muda, e o devir é somente uma ilusão e uma puraaparência. É a via e o resultado da dialética dos eleatas.

Não se poderia, entretanto, sem cair em dificuldadesinsolúveis, negar a mudança e o devir no mundo. Pode-se dizer, aocontrário, que a existência do mundo é tão-somente um fluxo, um

deslocamento perpétuo, uma passagem alternada e nãointerrompida da vida para a morte, e da morte para a vida. Longe,por conseguinte, de que tudo é , nada é , tudo muda e o ser ésomente uma pura abstração. Seria necessário, pois, procurar aunidade das coisas não no ser, mas no seu devir, que as transforma,e que as fazem incessantemente se modificarem uma nas outras,

63  Ver, acima, cap. III, § 1.

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submetendo-as a uma lei comum, de modo que tanto as conserva,como as destroem. Ora, se o devir forma tudo o que há de verdade

e de realidade nas coisas, a aparência será também tudo o quepossui de mais real e de mais verdadeiro. Pois devir é aparentar, etoda a realidade de uma coisa se concentra no momento indivisívelonde surge, e onde é tal como surge. Porém, se a aparênciaocasiona toda realidade dos seres, tanto na ordem física como naordem intelectual e moral, aquela será verdadeiramente engendradae adquirirá o verdadeiro saber, que seria o de saber pôr em relevo olado aparente das coisas, e de fornecer, pois, ao falso o semelhantedo verdadeiro, e ao verdadeiro o semelhante do falso, conforme osinteresses e a necessidade do momento.

Tal é a dialética de Heráclito e dos sofistas.Mas qualquer que tenha sido séria e profunda a intenção que

presidiu seus estudos, sobretudo nos eleatas, isto significou tão-somente os primeiros rudimentos da dialética. Com efeito, ospitagóricos não se elevando acima do número e da quantidade,confundem a quantidade com a qualidade, e pretendemrestabelecer a essência num dos modos mais externos do ser.Erguem uma tábua incompleta dos contrários, o infinito e o finito,a luz e a escuridão, o uno e a díade, etc., onde os termos seencontram se aproximam ao acaso, sem que haja razão de seu

número, nem de sua relação.Os eleatas preocupados, sobretudo, com a unidade do ser, emlugar de explicar a diferença, e de conciliá-la com a unidade,suprimem-na; em lugar de explicar o devir, se limitam ademonstrar que se trata somente de uma ilusão. Portanto, adialética toma em suas mãos uma direção puramente negativa, e,quando em presença do movimento, em lugar de se esforçar em

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conhecer as condições e a essência, e de reunir o conjunto dosseres e a vida universal do mundo, apaga-se e nega a realidade.

Enfim, os jônicos e os sofistas se concentram exclusivamenteem direção oposta. São as diferenças, o movimento e atransformação dos seres que os comovem. Quanto ao elementoeterno e imóvel que engendram, sem o qual nada poderiamconceber, lhes escapa. E sua dialética se exerce, e, por assim dizer,se esgota pela substituição do ser pelo devir, e da realidade pelaaparência.

De resto, nem uns nem outros submeteram suas investigaçõesdialéticas a uma disciplina severa e verdadeiramente científica.Pois se fecham em pontos parciais e isolados da ciência, e tomam,sem crítica e ao modo de aventura, os elementos com os quaisconduzem a dialética, isto é, as ideias.

É Platão que deve ser considerado como o verdadeirofundador da dialética.

Dando seguimento ao trabalho de seus predecessores,sobretudo os estudos lógicos e metafísicos de seu mestre, Platão foio primeiro a conceber, por uma via clara e profunda, a relação dadialética com as ideias, e compreender que, do mesmo modo que aideia se estende em todas as coisas e envolve todos os níveis daexistência, também a dialética é o método do qual emana a ideia,

acompanhando-a através de todos seus desenvolvimentos;compreende, em outros termos, que a dialética é o elementoessencial e a forma da ideia. Portanto, aos seus olhos, a filosofia, oidealismo e a dialética se confundem, são unicamente faces,denominações diversas do conhecimento absoluto.

Pode-se dizer, a esse respeito, que, de Platão até nossos dias, adialética não recebeu modificações nem acréscimos essenciais, e

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que foi a dialética platônica que, sob formas diversas, foireproduzida em todas as épocas da ciência, e tornou-se presente em

todos os grandes sistemas. Nem mesmo Aristóteles se isenta.Apesar de Aristóteles combater a dialética platônica, combate,porém, até assimilar o dialético no orador e no sofista.Examinando-se atentamente as doutrinas dos dois filósofos, se vêque Aristóteles não se deixa levar pela ilusão das palavras,conforme a polêmica em torno desta muito disso prova, ou nosentido de que tal polêmica é em si mesma capciosa e sofística.Muito prova porque entre os argumentos que Aristóteles utilizacontra a doutrina de Platão, há uns que podem ser usados contrasua própria doutrina e contra a ciência em geral. Ela é sofisticanaquilo que tal polêmica tem de tão frágil e pouco conclusiva, demodo que sempre se levou a suspeitar de sua sinceridade e boa fé.

É que a ciência e a dialética são, como já fizemos observar,inseparáveis, que somente se pode elevar à essência e ao inteligívelcom a ajuda deste método. Assim, Aristóteles, após ter combatidoPlatão, se encontra posto, por uma racionalidade racional, nomesmo terreno que este, e constrói sua doutrina com os mesmoselementos e os mesmos métodos.

Com efeito, a  forma ou a enteléquia é, no fundo, a ideiaplatônica, um elemento puramente inteligível cuja natureza e

relação somente podem ser conhecidas pela dialética. A teoria da potência é, ainda, a noção platônica da matéria, deste princípioamorfo e, por isso mesmo, capaz de se revestir de todas as formas.Enfim, sua concepção de um motor imóvel se funda numa noção eem processos semelhantes aos que levaram Platão até suaconcepção de um bem absoluto. Queremos dizer, em outrostermos, que Aristóteles, assim como Platão, parte de uma noção

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que é posta em evidência por argumentos diretos ou indiretos -tirados do tempo, do movimento ou da natureza das coisas finitas -,

que é a da realidade de um motor absoluto.Aproximando, pois, a doutrina dos dois filósofos, não

pretendemos dizer que coincidam em todos os pontos. Nãoignoramos as diferenças que as separam, e que estas se deem empontos essenciais. Mas pretendemos mostrar que, caso sejamexaminadas com cuidado, se verá que essas diferenças contêmantes a intenção de ambos os filósofos, e o modo pelo qual sãoempreendidos e compreendidos os princípios que compõem seussistemas.

Se passamos agora da antiguidade para a idade média,encontraremos a dialética platônica dominando a filosofia destaépoca. Desde seu início, com efeito, a escolástica a proclama a

 Rainha das ciências (Abelardo), a única ciência que pode conhecer e ensinar as coisa (Alcuíno). Todos os grandes filósofosescolásticos, como Santo Anselmo, Abelardo, Scott, Santo Tomás,somente são, no fundo, platônicos, quando se aplicam a resolverdialeticamente, pela análise e combinação das ideias, o problemada ciência, transportando a dialética para o domínio da teologia, equando se esforçam em explicar por aquela a Trindade, atransubstanciação, o pecado, e, em geral, todos os dogmas do

cristianismo.Enfim, a filosofia moderna, desde sua origem, somente fezpor empregar, cientemente ou à sua revelia, os métodos platônicos.

Com efeito, o famoso método de Descartes, no que tem deessencial e verdadeiramente científico, segue tão-somente o velhométodo platônico64. Portanto, qualquer que seja a aplicação que se

64 Cf., acima, cap. II, § 1 e o que se segue.

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faça, ou seu critério de evidência e de claridade das ideias não temsignificação séria, ou se pode dizer que a ciência reside, num

pensamento ou numa representação subjetiva e acidental, noconhecimento distinto, completo e objetivo das ideias. Seuprincípio, em relação ao que é preciso partir das noções maissimples, e descer regularmente e por graus até as mais compostas,não é outra coisa que uma dedução e uma análise dialética dasideias. E suas teorias do pensamento, do infinito e da extensão, queconsidera como contendo a razão última do ser e do conhecimento,não possuem outro fundamento. Enfim, o pensamento platônico semostrará de uma maneira ainda mais sensível, se seguirmos osprincípios postos por Descartes em sua escola, em Malebranche,Espinosa, Bossuet, Fénelon e Leibniz.

Portanto, repetimos, é preciso chegar aos nossos dias, ou seja,a Hegel, para encontrar na dialética um desenvolvimentoverdadeiramente novo e original. Platão e Hegel são os limitesextremos da dialética, os dois elos da corrente que a prende. Umpõe seus fundamentos, o outro a completa.

Com esta opinião, não pretendemos dizer que a dialética tenhapermanecido completamente estacionada desde Platão. Isto nãoestá presente em nosso pensamento. Pois não ignoramos que elapassou por novas combinações, quer seja na Grécia, sobretudo com

os alexandrinos, seja na Idade Média, seja nas épocas posteriores.Ela, por suas aplicações nas questões teológicas, ampliou seudomínio, e, por suas análises lógicas das ideias, sempre muitoprofundas, fez aprofundar o conhecimento da natureza e das leis dainteligência. Este progresso, este trabalho interno e contínuo dadialética, estamos longe de contestar. A necessidade que temosmesmo é a de explicar a dialética hegeliana. Mas, do mesmo modo

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que a dialética platônica fixa e resume os elementos isolados e asdireções parciais de seus opositores, o método hegeliano concentra,

organiza e eleva à consciência de si mesmo o trabalho dos séculosprecedentes. É nisso que reside sua força e verdade.

Mas, para se ter em conta a dialética platônica, do ponto ondePlatão a deixa, e da transformação que sofreu em Hegel, é precisoexaminar a dialética em si mesma, em sua natureza e em suaessência.

A dialética começa com a divisão do ser. É, ao menos, o quevamos supor aqui. Portanto, desde que há dualidade no ser, desdeque há multiplicidade ou diferença nas coisas, há limite e oposição,e com a oposição se produz o pensamento dialético65.

A dialética é, pois, fundada na existência dos contrários, emalgum modo, aliás, que se possa representar a contradição,quaisquer que sejam os termos que a suponha, como Deus e omundo, o infinito e o finito, luz e trevas, o bem e o mal, vida emorte. O discurso é somente a imagem, e a expressão sensível dadialética. Pois todo discurso é um diálogo, ou seja, um movimentoalternado do pensamento, indo da unidade até a multiplicidade, daidentidade à diferença, da afirmação à negação; e reciprocamente.

Agora, a primeira questão que se apresenta a este assunto éesta: a dialética possui sua raiz no ser mesmo, e é este elemento

essencial e constitutivo das coisas, ou é tão-somente um acidente?Em outros termos, a dialética possui seu princípio no Absoluto eInfinito, ou é somente uma forma da existência relativa,contingente e finita?

65 Sem dizer que tomamos aqui e sempre as palavras contrários, contradição, oposição numsentido mais amplo que o da lógica comum, e que compreendemos a diferença, a verdade, as partes, toda dualidade, em uma palavra, e toda cisão que se produz nas coisas.

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As primeiras oposições que conhece a inteligência são as domundo e do absoluto, do contingente e da necessidade, da

diferença e da unidade. De um lado, há existências individuaisisoladas, que nascem e perecem, e que, por isso mesmo que nãoexistem, são concebidas como podendo não existir; de outro, umaexistência imutável, necessária e eterna. Estas são as oposições àsquais se prendiam os eleatas, e que levavam às oposições entre oser e o devir, entre um e o múltiplo. É, pois a oposição à qual setoma quando se põe em presença de Deus e do mundo, e se faz domundo uma existência absoluta e necessária. Assim considerada, aoposição seria somente um acidente, não iria além da esfera daaparência, das coisas contingentes e finitas, não alcançaria o ser e oabsoluto.

Mas isto é somente um primeiro nível da dialética, ou antes éuma dialética que permanece na superfície, e como de fora de seuobjeto.

Com efeito, quando se leva em conta a simples oposição doser e do devir, conduz-se necessariamente na busca da razão dodevir. Por que os seres e o mundo se transformam? Ou, por que sãotransformados? Pois é preciso que este devir, esta passagem dapossibilidade para a realidade tenha uma razão e um princípio.Qualquer noção que se tenha do absoluto, de separá-lo do mundo,

ou que o considere como sendo invisivelmente único, torna-senecessário remontar ao absoluto em si mesmo para explicá-lo. Enão basta colocá-lo na vontade absoluta e num ato acidental destavontade, pois, do modo como já fizemos observar66, a vontade édominada e governada pela lei, isto é, pela natureza mesma doabsoluto. Portanto, o devir e o mundo, com as contradições que

66  Ver § 3, e abaixo, cap. VI.

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lhes encerram, possuem, mesmo sob esse ponto de vista, sua fonte,seja no estado de pura possibilidade, seja no estado de realidade

atual, no seio da absoluta existência. O que irá se apresentar de ummodo mais claro, caso não se esqueça, de um lado, que o devir e ofenômeno possuem, como todas as coisas, uma essência, e, deoutro, que o mundo não é uma existência simples, mas complexa,oferecendo uma variedade infinita, não unicamente deacontecimentos e de seres, mas de classes, de gêneros e de espéciesao mesmo tempo distintas e idênticas, coincidindo por um lado e sediferenciando pelo outro, aos quais é preciso conferir um princípio.É isto que Platão compreende. Pois sua dialética não se prende àoposição entre mundo visível e o mundo inteligível, do fenômeno eda ideia, mas aprofunda-se nas oposições entre as ideias mesmas.Quando descreve, com efeito, nos vários de seus diálogos, enotadamente na  República e no Fédon, os métodos e o caminhoque segue a inteligência para se elevar até a ideia, unicamente oque faz é pôr os pressupostos de sua dialética, e mostrar antescomo, na presença das oposições (igual e desigual, grande epequeno, etc.) que se manifestam nas coisas sensíveis, a ideiaaparece pouco a pouco no pensamento, que não a define, ou seja, oque se manifesta é a fonte das oposições, a natureza mesma daideia. Sua verdadeira dialética está, inteiramente, em seus estudos

sobre as ideias consideradas em si mesmas, em sua existênciaabstrata e absoluta. Desse modo foi levado a demonstrardialeticamente, fundando-se na natureza mesma das ideias, acoexistência necessária e eterna de unidade e da multiplicidade, dotodo e das partes, do movimento e do repouso (Parmênides), e que,penetrando mais profundamente na essência íntima das coisas,termina (no Timeu e no Sofista) em atribuir uma ideia à matéria em

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si mesma, e em restabelecer, pois, toda oposição numa oposiçãoideal e metafísica. O resultado desses estudos dialéticos o conduz a

esses princípios, ao mesmo tempo simples e profundos, os quaisconstituem a base de sua doutrina e de toda doutrinaverdadeiramente racional, a saber, a de que todas as coisaspossuem uma essência e ideias que lhes correspondem67, que, porconseguinte, tudo é composto de ideias e de elementos inteligíveis,e que, por isso, uma ideia sendo dada, a inteligência pode, por suaprópria virtude, encontrar todas as outras, e conhecer, pois, anatureza do todo.

Entretanto, Platão antes enunciou de uma maneira geral osprincípios da ciência e da dialética que não realizou. Não lhes deusequência, de um modo firme e seguro, em suas consequências eem suas aplicações. Daí advém as indecisões, o obscurantismo e ascontradições que se encontra em sua doutrina. Admite, com efeito,a realidade dos contrários, e depois erige o princípio de contradiçãoem princípio fundamental do conhecimento. Do mesmo modo quese fixa em estabelecer que uma ideia supõe necessariamente umaideia oposta, suprime, sob outro ponto de vista, um dos contrários,ou o vincula bruscamente a um outro. Nisso ensina que é precisoseguir a ordem e o encadeamento racional das ideias, tomando asideias ao acaso, sem procurar ver de onde procedem nem o que

significam, e transporta de modo arbitrário uma ideia ao domíniode outra. É assim que na ciência da natureza isto redunda emconfusão nos pitagóricos, que misturam o corpo, o fogo, o ar, etc,com quantidades e com elementos puramente matemáticos; e que,

67 No Parmênides , Platão põe suas palavras na boca do velho Parmênides, que diz aSócrates que é ainda muito jovem para compreendê-las. Pois o que elas exigem não éunicamente a maturidade da inteligência, mas a da idade e do caráter.

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na esfera do espírito, identificam o útil com o bem ou o suprime,confundindo a moral, a religião e a arte, ou a moral e a política, ou

a política e a filosofia.Desse modo, a filosofia platônica, formulando os princípios

da ciência absoluta, aspirando à unidade do conhecimento, não foialém do que Hegel chama de racionalismo ou  filosofia doentendimento.

De fato, o entendimento eleva o pensamento ao inteligível e àideia, mas somente os conhece de um modo exterior e fortuito. Põede lado ora suas diferenças, ora suas relações. Fixa-seexclusivamente numa ideia e negligencia ou suprime as outras.Aplica nos seres as noções de unidade e da identidade abstratas, eproclama que tudo é idêntico a si e não possui nenhuma diferença.Por confundir e mutilar os seres, é levada a admitir sob uma formao que rejeitara sob outra, e cai nas contradições assaz insolúveisque gabara de ter evitado. É assim, por exemplo, que prendendo aigualdade, proclama que todos os homens são iguais, suprimindo adesigualdade, com a recíproca também sendo aceita, ou, selimitando ao útil, pretende que não haja outro princípio que o útil, esuprime o dever, e assim reciprocamente. Ora somente vê o ser eafirma que tudo existe, ora somente vê o devir e afirma que tudo setransforma. Ou, após haver posto como princípio a diferença

absoluta da matéria e do espírito, os reúne e acaba em pôr a razãoúltima e a matéria em Deus, que concebe como espírito. Ou, ainda,se desvencilha arbitrariamente dos contrários, pretendendo que ofrio e a sombra, por exemplo, sejam somente privações do calor eda luz, pecando pelas palavras e não vendo que a  privação deveter, também ela, um princípio e um princípio real. Além disso, oque se considera aqui como uma privação, será considerado como

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uma força real, admitindo-se como tal a liberdade, a repulsão, omagnetismo negativo. E, na esfera da existência absoluta,

começará por conceber Deus como uma unidade simples e emsepará-lo do mundo, e depois atribuindo a Deus a multiplicidade ea diferença, dirá, por exemplo, que Deus é justo e terrível, mas, aomesmo tempo, misericordioso, e a causa última do mundo e detodos os acontecimentos que se realizam, concordando com umaubiquidade e, junto desta, com todos os atributos dos seres finitos,acrescentando-se somente que o que é imperfeito e limitado nohomem, existe de uma maneira perfeita e eminente em Deus,crendo escapar desse modo de toda dificuldade.

Estas são as combinações fortuitas do entendimento, oconfronto, o amálgama irrefletido das ideias opostas, e estafragilidade em conciliá-las, produzidas pelo Ceticismo e pelaSofística.

É fácil ver, por conseguinte, que o ceticismo inicia-se com oscontrários, e que existe por toda parte onde se estende a existênciados contrários. Por conseguinte, o pensamento cético não se produzsomente em presença das velhas oposições de Deus e do mundo, danecessidade e da liberdade, do bem e do mal, da vida racional e davida sensível, mas em cada grau do ser, no absoluto e no relativo,no infinito e no finito, na natureza e no espírito. «Nada, afirma

Hegel, nada no céu nem na terra escapa da lei dos contrários. Tudoexiste preenchido do ser e do não-ser, da unidade e damultiplicidade, de identidade e da diferença68».

68 Lógica, 1ª parte. Do Ser. Pode-se ver aqui tudo o que há de insuficiente na soluçãoque Descartes pretende fornecer ao problema da certeza. E que, com efeito, a certezanão reside na afirmação parcial e isolada de tal ser, ou de tal princípio, mas na afirmaçãoe no conhecimento de todos os princípios, considerados em seu conjunto e em suasrelações. É sem dúvida muito cômodo, suprimindo ou dissimulando os seres e as

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dificuldades, fixar-se somente num único princípio e de apresentá-lo como a base do

conhecimento. Mas obter-se-á, desse modo, uma certeza aparente e artificial, que sedissipará na presença da experiência, assim como também da ciência. Na presença daexperiência, porque a vida real e o mundo são coisas complexas e compostas de força, deseres, de direções diversas e opostas, que se compartilham e se conciliam entre si. Napresença da ciência, porque o pensamento não se deixa se aprisionar nos limitesarbitrários e artificiais, porque deseja englobar em sua atividade todos os seres.

Quanto ao princípio de Descartes, pode-se dizer, examinando-o de perto, que não-somente não fornece a verdadeira solução, como não fornece nenhuma. Dá-se, comefeito, como um simples fato psicológico, como um fato que se observa e que seconstata com a ajuda do que se chama de o senso íntimo? Mas, nesse caso, um todo diverso – eu sou, eu tenho fome, tenho sede  – dará minha existência. Quando se diz que esses fatos não

podem se comparar com o pensamento, porque o pensamento é um fato, umapropriedade mais referida ao eu que os outros, se responderá, em primeiro lugar, que sedando tal importância ao pensamento, se sairá do ponto de vista psicológico e secomeçará a se pôr sob o ponto de vista ontológico, porque se considera o pensamentocomo uma propriedade tão essencial ao eu, que sem o qual não se pode conceber este.Ora, o ponto de vista ontológico e o pensamento, considerados como a essência doespírito e mesmo das coisas, são uma consequência natural do princípio de Descartes.Porém, este não é o sentido que se deseja fixar de modo geral pelo próprio Descartes,embora haja neste expressões e uma espécie de tendência que mostra que estaconsequência não lhe escapa completamente.

Deixemos, por conseguinte, esta palavra em seu significado subjetivo e puramentepsicológico, e examinemos seus limites.Em primeiro lugar, admitindo-se que o eu penso, logo eu sou seja um fato, ou um princípioportando consigo mesmo sua evidência, não se vê muito qual certeza pode nos dar. Pois,após haver afirmado minha existência, é preciso que eu avance e que saia dessaafirmação. Quando olho, com efeito, em torno de mim, vejo seres, forças que, em tudose distinguindo de mim, estão em relação comigo, sem as quais não poderia existir. Estesseres e estas relações, é preciso que eu os conheça e os explique para conhecer-me eexplicar-me a mim próprio. E quando olho dentro de mim, encontro também umnúmero infinito de pensamentos, de tendências, de faculdades, de necessidades e de leis,

nos quais se divide minha existência, que preciso igualmente conhecer para que eu tenhaa certeza de mim próprio e de meus pensamentos. É somente na medida em queconheço e concilio essas coisas que se forma e se fortifica a certeza de sua verdade e desua realidade. Pois se, após ter posto como princípio absoluto do conhecimento o eu,encontro em seguida que este princípio não basta em si mesmo, e se ponho um não-eu (éo que ocorre em Descartes, conforme faremos observar mais adiante, neste mesmoparágrafo), minha primeira certeza não será mais que uma ilusão. Ou se, após haverproclamado o dever como princípio fundamental e único da vida moral, reconheço, emseguida, tácita ou explicitamente, o útil, meu primeiro princípio se desmorona por issomesmo.

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Se tal é a origem do ceticismo, o único meio de se escapardisso é entrar em direção ao pensamento em si mesmo, admitindo-

se francamente os contrários, não para deter-se nisso, mas para seelevar mais acima, conciliando-os num termo mais profundo emais concreto. Mas o entendimento, pela incapacidade em alcançareste grau do conhecimento, ou nega os dois contrários, e fazoriginar o ceticismo, ou oculta um dos contrários, e cai nasofística69.

Portanto, o ceticismo e a sofística nascem ambas deste víciodo entendimento que, na fragilidade em transpor a contradição, sedetêm na negação, ou que, somente conhecendo um lado do ser70,se põem de fora da verdade, e fazem violentar o pensamento e ascoisas, seja eclipsando-as, seja fazendo-as entrar numa ordem deexistência outra que não a sua.

A sofística e o ceticismo são, pois, inseparáveis, e a primeirapode ser considerada uma espécie de ceticismo temperado, ou umencaminhamento até o ceticismo. É o que explica a afinidade dasdoutrinas céticas e da sofística na antiguidade assim como nos

Diz-nos-se-á, talvez, que se o cogito não funda toda a certeza, é ao menos o ponto departida e o primeiro passo que se dá em direção ao que deve nos conduzir. Porém,supondo que isto seja o verdadeiro ponto de partida da ciência, supondo que um fatopuramente subjetivo possa servir de base para qualquer conhecimento que seja, sempre éo que não dá a certeza, e que, para se obtê-la, é preciso, mesmo avançando nessa direção,

outros princípios, outro método, outro fio regulador que aquele de Descartes.69 Tomamos, aqui, esta palavra numa acepção mais geral que a tomada ordinariamente.Consideramos o argumento sofístico em si mesmo e independentemente da intenção quedele se tenha. Pois a intenção não pode ser sempre exatamente apreciada, e, aliás, asinceridade ou a má fé não modifica a natureza do argumento. Chamamos, porconseguinte, sofístico todo argumento que tende para si próprio e qualquer uso que dissose faça para ocultar ou deturpar a verdade.

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tempos modernos, e o emprego de argumentos capciosos por todosos filósofos racionalistas, sem excetuar Platão, Aristóteles, os

estóicos, Leibniz e Descartes71.

70 Com efeito, a sofística não nega como o ceticismo, mas somente faz concordar arealidade com um dos contrários, e se esforça em ocultar a realidade um do outro, ou deconfundi-la.71 Podem-se considerar como capciosos os argumentos com os quais Platão pretendeidentificar o útil, a felicidade e o bem, ponto de vista que foi retomado e utilizado emsuas consequências extremas pelos estóicos. Tem-se dito, para justificar Platão, que erapreciso, na apreciação dessa teoria, se pôr de fora das condições da vida atual. Mas,

primeiramente, trata-se de uma concessão difícil de fazer, e também muito difícil quePlatão reconheça uma essência em todas as coisas, e chegue a utilizá-la ele próprio. Mas,mesmo que se leve em conta esse ponto de vista, restaria saber se o que se chama depaixões, de alegria, de dor, de desejo, são acidentes na vida da alma, ou se são elementosessenciais e inseparáveis de sua existência. Diz-se que as paixões existem somente nocorpo e em relação da alma com a vida terrena. Mas isto é uma opinião inadmissível, e opróprio Platão consagra um de seus principais diálogos, o Fédon, para demonstrar que a vida da alma não existe toda inteira, nem o bem, nem o prazer (conf. mais acima).Quanto a Leibniz, pode-se dizer que sua Teodicéia é cheia de contradições e de sofismos. Tal é, por exemplo, sua distinção das duas vontades em Deus, de uma vontade antecedente 

e de uma vontade consequente , distinção que lembra a de Santo Tomás, que pretendiaexplicar a ligação da liberdade com a Providência, atribuindo a Deus duas visões, umapela qual via todos os acontecimentos, enquanto eternos e necessários; a outra, a que os via enquanto contingentes. O mesmo se dá em relação a sua teoria do mal. Portanto, oranega o mal, ora o admite. Aqui, vê o mal tão-somente como um acidente. Em outrosmomentos, lhe atribui uma essência, pondo esta em Deus. Quanto a Descartes, seuprincípio, eu penso, logo eu sou, possui também um caráter sofístico. Com efeito, Descarteso enuncia primeiramente como contendo o princípio do conhecimento, e comobastando como única refutação ao ceticismo. Depois, imediatamente após, quando saidessa afirmação, e se encontra em presença do Infinito e do Ser perfeito, reconhece, sendodeveras obrigado a reconhecer, que é neste que reside o princípio de toda verdade e detoda certeza, e que sua primeira afirmação encontra, ela também, neste ser suajustificação e seu fundamento. Também Descartes oculta no primeiro princípio, eu penso,o verdadeiro princípio sofista grego fazendo permanecer o ser no devir. Reencontra-se omesmo vício na teoria do erro. E seu método das suposições, pelo qual alcança a dúvida,e, por esta, o seu princípio fundamental, possui, ela também, um caráter forçado, artificiale sofístico (cf. mais acima e mais abaixo, cap. V, § 2). Enfim, a sofística política nãopossui outra origem. O homem político, com efeito, quando se fecha de um modoexclusivo num âmbito limitado, numa necessidade, tendência, num interesse particular da vida social, suprime outras necessidades e outros interesses também necessários e

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Mas, pelo fato de o pensamento cético e sofístico basear-se noentendimento, e de que forma um grau, um elemento essencial da

ciência, o ceticismo e a sofística formaram, também, um elementodo conhecimento absoluto. Unicamente é preciso, perscrutandomais profundamente a natureza do ser e da inteligência, supor oque possui de mais incompleto e inconclusivo, conferindo-lhe,desse modo, uma parte legítima na constituição da ciência.

Com efeito, tal oscilação, este balanceamento da inteligênciaentre dois contrários, que resulta na negação ou na indiferença,unicamente se afasta da ciência e da verdade enquanto nega ouafirma absolutamente os contrários, ou um destes. Portanto, se hámovimento e repouso, ser e devir, identidade e diferença,necessidade e liberdade nas coisas, as proposições, tais como tudose move e tudo existe em repouso, tudo é e tudo muda, etc.,somente serão falsas caso sejam afirmadas ou negadas ambas deuma maneira absoluta. Serão, por conseguinte, verdadeiras, casonão se lhes afirme, ou não se lhes negue de uma maneira relativa; oque forneceria as proposições, tais coisas se movem, tais coisasexistem em repouso, tal coisa é, tal coisa muda, ou melhor, hámovimento e repouso, ser e devir no mundo, o que quer dizer, emoutros termos, que há um princípio, uma essência do movimentocomo há uma essência do repouso, uma essência do ser como há

uma essência do devir, as quais são denominadas e limitadas umapela outra. O que faz com se possa negá-las e afirmá-las ao mesmotempo, afirmá-las a ponto de possuírem uma esfera de ação própriae distinta, negá-las a ponto de se encontrarem em face de umaessência contrária, que as limite e as modifique.

legítimos, ou os ocultam e acaba por dar ao pensamento e às palavras um carátersofístico.

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Portanto, se colocar livremente no seio da contradição, emlugar de negá-la, pôr uma contradição verdadeira, reflexiva e

fundada na natureza das coisas no lugar das contradiçõesincoerentes e irrefletidas, que misturam e confundem os seres, ouno lugar de direções estreitas e limitadas, onde a inteligência seencontra aprisionada e diminuída por estéreis esforços, eis oprimeiro degrau da dialética hegeliana.

Porém, se os membros da contradição são, consideravelmenteseparados, incompletos e errôneos, e se limitam um ao outro,estarão, por isso mesmo, em relação. Pois dois termos, que nãoestejam ligados por nenhuma relação, não podem mais se limitar, enão se pode nada afirmar relativamente acerca de um ou de outro,nem sobre o que é completo, nem o que seja incompleto, nem oque é verdadeiro, nem o que é falso. Há, pois, um terceiro termoque ocasiona sua relação, o qual não se prende a nenhum daquelesdois, seja separada ou conjuntamente, mas que, ao mesmo tempo,existe de modo a envolver os dois termos. É assim, por exemplo,que o movimento não é nem o tempo nem o espaço, mas é o tempoe o espaço, e depois o que o constitui como tal. Do mesmo modo, amedida não é nem a quantidade nem a qualidade, mas contém aambas, e, de outro lado, contém o elemento ideal que forma suanatureza como sendo própria e distinta72.

Mas, por outro lado, pelo fato mesmo que se encontramreunidos num termo comum, os contrários sujeitam-se a umatransformação, de modo que, combinados sob um novo elemento,não são mais o que propriamente eram. Sendo distintos e opostos,aqui toda oposição e toda diferença desaparece, realizando-se suaconciliação. Por conseguinte, o limite que os separa se desvanece,

72  Ver Filosofia da natureza, 1ª parte, e Lógica, 1ª parte.

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e passam a formar não mais que um único e mesmo termo, ondenão há nem afirmação nem negação, ou, o que dá no mesmo, que

se afirma e se nega ao mesmo tempo. É assim que o ser e o não-ser se encontram identificados no devir, o um e o diverso (repulsão) naatração, o todo e as  partes na  força, a causa e o efeito nasubstância, etc73.

Ou seja, uma vez que os dois termos somente se completam ese realizam conforme um terceiro termo, não haveria ideia em suainteireza, a ideia concreta, a não ser quando desenvolvida atravésdesses três momentos. Por conseguinte, caso se prenda somente aum desses momentos, sua unidade será quebrada, e o que se terá éuma face, uma abstração da ideia, e não a ideia mesma. Dessemodo, perfazer-se em sua unidade e em sua virtualidade, romper-see opor-se a si mesma, e restabelecer, em seguida, essa oposição,não em sua unidade abstrata e primitiva, mas numa unidade maisrica e mais profunda74, ou para nos servir de expressões hegelianas,ser em si, ser-outro, ou contra-si, e, enfim, ser em e para si, eis ostrês momentos que compõem e finalizam cada etapa da ideia75.

Entretanto, o meio termo, que ocasiona a unidade dosextremos, não é um termo perfeito e concreto senão de modorelativo a esses extremos. Pois, em si mesmo, exprime somente umnível e uma face da verdade e da realidade absolutas. É, pois,

também ele, em relação a essa realidade, um termo abstrato, umtermo que produz uma nova realidade, uma nova oposição, o qualsuporá, por seu turno, um novo meio termo, que se comportará

73  Ver Lógica, 1ª e 2ª partes; cf. mais abaixo, cap. VI.74 Cf. mais acima, § 4.75 Estes são os elementos que se encontram em todos os níveis da ideia e da existência;é, em outros termos, a forma segunda a qual toda ideia existe e pode ser concebida. VerLógica, e cap. seguinte, § 1.

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perante os extremos como o primeiro, e assim por diante, até quese alcance um termo sendo inteiramente o si próprio. Assim,

possuindo uma natureza própria e distinta, englobará ao mesmotempo o primeiro termo e todos os termos intermediários em suaunidade. O desenvolvimento da ciência e da realidade é, porconseguinte, uma série de deduções e de silogismos, ou deafirmações e de negações, ligadas por meios termos, porafirmações e negações, que, à medida que avançam, tornam-se aomesmo tempo mais simples e mais complexos, estendendo-se,pode-se dizer, e se concentrando numa unidade mais ampla e maisprofunda76.

Mas não é suficiente que a Dialética reúna os termos e secomponha numa série onde os termos se encontrariam justapostos;pois representaria somente um método externo, que nãopossibilitaria conhecer a natureza íntima de seu objeto. Pode-se,com efeito, pensar o ser  e o não-ser , a causa e o efeito, asubstância e os acidentes, e depois procurar um meio termo que osuna. Mas este método não fará conhecer nem a constituição íntimadas coisas, nem a necessidade de sua relação.

Poder-se-ia também estabelecer sua conexão e sua unidadepelos fatos e pela indução, ou melhor, ocasionando asimpossibilidades que provocam a supressão de um dos lados da

contradição. Portanto, poder-se-ia, em relação à igualdade, porexemplo, invocar a experiência, e fazer observar que adesigualdade existe em todo o mundo, nas coisas inertes assimcomo no homem e na sociedade, e se concluir daí que adesigualdade possui, também, sua razão de ser e um fim. Ou,poder-se-ia levar a igualdade até suas últimas consequências, e

76 Cf. § 4, e mais abaixo, cap. VI.

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mostrar que, se tudo é igual, não há mais diferença entre a ciência ea ignorância, o trabalho e a ociosidade, a beleza e a feiúra, e que

todos têm direito sobre todas as coisas, etc.Este último método é aquele que seguiu Platão no Sofista, e,

sobretudo, no Parmênides77 . Este método é mais racional eprofundo que o primeiro, tomando os contrários de um modoempírico e acidental, mas tal método se esforça em demonstrar acoexistência e a passagem necessária de um para outro; e pode-seempregá-lo como auxiliar da ciência, e para ajudar a inteligênciaque não esteja ainda elevada ao método absoluto. Mas este métodonão constitui a mais verdadeira demonstração da ciência.

Com efeito, no primeiro caso, ele se põe, de qualquer modo,de fora da ciência, e vai da experiência até os princípios, o que fazcom que explique estes pelos fatos. No segundo caso, tal métodosomente estabelece sua tese de um modo indireto e negativo, e nãofaz transparecer, nem o que é desigual, nem o modo como ele sedesenvolve, nem mesmo o que seja, mas unicamente o quesubsistiria independente dele. Enfim, num e noutro caso, sepressupõe os dois termos, e, em lugar de mostrar como um procededo outro, admite-se a existência por antecipação, demonstrando-se,depois, que aqueles não podem existir; o que impede de seconhecer sua razão de ser, assim como seu encadeamento e sua

procedência interna.Deve, pois, haver um método superior e adequado à ciência.Com efeito, o conhecimento absoluto supõe, como estabelecemosanteriormente, um método absoluto. E este é aquele que demonstradiretamente pelos princípios, ou seja, que faz ver qual é a

77 É, sobretudo, o segundo método, que não é outra coisa que o método pelo absurdo,que Platão emprega nesses dois diálogos.

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constituição interna das coisas, e como estas existem em suaessência e em suas relações necessárias e eternas. Pois é isto que

significa demonstrar, na acepção verdadeira e rigorosa do termo.É preciso, pois, para se elevar até a verdadeira demonstração

da ciência, se pôr de fora de toda experiência, de toda imagem e detoda representação sensível, conhecer diretamente a ideia em simesma, em sua pureza e em sua existência absoluta, determinarsucessivamente os aspectos intrínsecos e essenciais, ocasionar, emseguida, como por uma impulsão e uma necessidade internas, aideia oposta, e operar sobre esta como se operou sobre a primeira,aproximando-as, enfim, e fazer, por assim dizer, jorrar de suafricção a terceira ideia, que deve conciliá-las e reuni-las.

Isto não é tudo. O conhecimento absoluto não é oconhecimento de uma ideia, nem de um conjunto de ideias, mas detodas as ideias. Ora, tal conhecimento supõe o conhecimento decada ideia em particular, do lugar que esta ocupa no conjunto dasideias, em qual grau, em qual ponto de seu desenvolvimentoalcançado, e, enfim, em quais relações, sejam mediatas, ouimediatas que mantém com as outras ideias. Isto significa oconhecer de um modo sistemático78. Mas é esta a condição a maisdifícil, sendo que é a ausência desta condição que está na origemda maior parte dos erros, do modo como já fizemos observar.

Quando empregamos, com efeito, as ideias ao acaso, nos fixamosnum significado arbitrário, conforme o que se retém, ou conformeuma opinião irrefletida, variável e sempre contraditória; asconfundimos, atribuindo-lhes propriedades que não possuem, alémde retirarmos as que lhes pertencem. É desse modo, portanto, quese diz que Deus é o Ser como são todas as coisas, e o princípio e a

78 Cf. mais acima, cap. III, § 2.

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razão última de tudo o que existe. Essas definições:  Deus é a planta, Deus é o animal, seriam mais profundas e mais próximas

da verdadeira definição de Deus do que a definição:  Deus é o ser.Pois de tudo o que se pode dizer do ser , tomado em si mesmo efazendo-se abstração dos aspectos e das propriedades que podemnele ser acrescidas, é que ele é o que é , enquanto a planta, o animalnão existem unicamente, e sim existem juntamente com todos oselementos (a luz, a cor, o ar, a vida, etc.) supostos neles e referidosa uma elevada unidade.

O que dissemos do Ser  pode ser aplicado a uma grandequantidade de ideias. Em geral, fazemos das ideias um usoirrefletido, e quando falamos de causa, substância,  força, tempo,movimento, matéria, alma, inteligência, moralidade, Estado,religião, filosofia, nos contentamos com um ponto de vistasuperficial e indeterminado, e sempre com a mesma palavra, etanto nos identificamos, nos separamos de uma maneira absoluta,tanto raciocinamos sobre uma como raciocinamos sobre o outro,como lhe aplicamos uma medida e um critério absolutamentedistintos. E quando suprimimos as diferenças, negamos a religiãoou a filosofia, violentamos uma na outra, e pretendemos que areligião possa ser substituída pela filosofia, ou esta pela religião, equando suprimimos as relações, afirmamos que a religião e a

filosofia são dois domínios completamente distintos, de ondeconcluímos que uma pode se passar pela outra, ou, que não vale apena buscar conciliá-las.

Comportamo-nos da mesma maneira em relação aosprincípios, quando são somente, no fundo, ideias ou combinaçõesde ideias. É desse modo que enunciamos alguns princípios, taiscomo: todas as coisas diferem (princípio dos indiscerníveis), ou

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todas as coisas são idênticas a si-mesmas (princípio decontradição), e que o matemático e o físico admitem axiomas,

postulados, princípios sobre a grandeza, o espaço, a matéria, omovimento, como se esses elementos: todo, coisa, identidade,diferença, grandeza, etc., fossem conhecidos, sem se procurarsaber nem o que cada um vale em particular, nem como se achamcombinados. Isto faz com que tenhamos somente uma visãoobscura ou incompleta desses princípios, ignorando qual medidasão legítimos, e quais são os outros princípios que eles supõem, deonde decorrem, ou o que os limita79.

Enfim, é no mesmo erro que caímos quando confundimos osseres, e quando atribuímos à natureza o que somente é verdadeiropelo espírito, e reciprocamente, ou quando no domínio do espírito,ou naquele da natureza, atribuímos a uma das esferas de suaexistência o que somente é verdadeiro pelo outro.

A Astrologia, a teologia e a Magia não possuem outra origem.Com efeito, a Astrologia conhece certas relações80 entre a naturezae o espírito, e conclui que a vida moral e o destino humano devemse harmonizar com a ordem e as revoluções dos corpos celestes.Assim, não levando em conta as diferenças, em relação à liberdade,

79 É assim, por exemplo, que se enuncia sempre o princípio de causalidade como umprincípio absoluto, enquanto que a causa é limitada e dominada por outros princípios,

tais como o bem, o espírito, etc. Ademais, se diz relativamente a esse princípio que todo efeitoou todo novo fenômeno tem uma causa. Mas não se indaga o que é este fenômeno, quais ascondições e os elementos que ele pressupõe e que compõem sua constituição, ou, se háuma essência do fenômeno, e se esta essência existe numa relação necessária e eternacom a causa, ou, enfim, se esta lei se aplica a todas as coisas, à natureza e ao espírito, e,nesse caso, em qual ordem de existências e de conhecimentos pertencem esta lei e outrasleis semelhantes (a lei das substâncias, por exemplo), buscas que sem as quais não sepode ter um conhecimento exato dessas leis.80 Tais como as relações lógicas de quantidade, de causalidade, de substância, etc., cf. cap. Seg.§ 1.

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à consciência e ao pensamento, que constituem o domínio e a vidaprópria do espírito, ela aplica ao espírito as leis da natureza, e

acredita que pode explicá-lo por estas.A Teologia e a Magia exageram na força da arte, isto é, do

pensamento e da liberdade, e, sobretudo, da liberdade; e, poracharem que a arte exerce certa influência sobre a natureza e ascoisas em geral, e que modifica e se apropria dos fins e dasnecessidades destas, concluem tão-somente que sua força nãopossui limites, e que pode suspender o curso dos acontecimentos emudar as formas e as leis constitutivas dos seres. Assim, o que éverdadeiro e possível nos limites da liberdade subjetiva e daatividade finita, é transportado para o domínio da necessidade, ouseja, das leis objetivas, invariáveis e eternas das coisas.

É esta mesma confusão que originou o que se poderia chamarde Magia social, em relação à produção de teorias que somente sãoverdadeiras e realizáveis enquanto se supõe que o homem e omundo, suas necessidades, suas leis, suas relações essenciais, suanatureza, em uma palavra, podem ser mudadas à vontade, ourefeitas de um modo novo. A igualdade absoluta, a comunidade debens, a felicidade perfeita, o aniquilamento do mal, da dor e detodos os antagonismos do mundo, são doutrinas e promessas quepertencem a esta espécie de magia. É o que compreende Fourrier,

que se vê obrigado, para tornar possível a realização de suasteorias, de mudar as leis dos seres, de estabelecer novas relaçõesentre natureza e espírito, de transformar a matéria e de dar aohomem outras faculdades e outros órgãos.

Tais são as características e as condições da Dialética, tais sãoas ilusões e os erros onde se cai quando aquelas são descartadas.Vê-se por aí, e pela relação íntima que existe entre o método e seu

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objeto, que a Dialética não é outra coisa que a  forma mesma daideia, e que procede de sua constituição íntima e de sua essência.

Pôr, separar-se de si mesma e repor sua unidade, passar de umestado imediato para um estado mediato, e voltar a um estado aomesmo tempo imediato e mediato, tese, antítese, ou análise esíntese, significa o caminho, e para nos servir da expressão deHegel, significa seguir o ritmo eterno da Ideia, e, portanto, ocaminho e o ritmo eterno das coisas. É assim que o movimento dopensamento reproduz fielmente o movimento da realidade, e que asconstruções ideais da ciência respondem à natureza mesma dosseres. Aqui, a demonstração não procede como a silogísticacomum, que somente emprega termos postos adiante, e sim põe ostermos, demonstrando-os por isso. Colocando-se os termos, ela nãoos liga de uma maneira acidental e externa, mas mostra, faz, porassim dizer, como toque do dedo, ver como e por que as coisasexistem, como e por que possuem tal natureza, tal propriedade erelações, e, por conseguinte, ela não é um elemento, uma forma,um meio terno, que vem se acrescentar de fora e se pôr entre ainteligência e seu objeto, mas é a forma que existe e se apresentaentre o objeto e a inteligência.

Em outros termos, na silogística comum, o método somente éconsiderado como certo instrumento (órgão) se, por este, o sujeito

se põe em relação com o objeto, de modo que o sujeito e o objetoformem os dois extremos. Mas os extremos permanecemdiferentes, pois o sujeito, o método e o objeto não são postos comopertencentes a uma única e mesma noção, a uma única e mesmaessência; o que faz com que a conclusão tenha somente um valorexterno e puramente formal. As premissas, nas quais o sujeito põea forma como um método subjetivo, somente contém

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determinações abstratas, imediatas, estranhas ao objeto, fatossubjetivos, definições, divisões, as quais somente concordam com

uma significação verbal. No verdadeiro conhecimento, aocontrário, o método é uma forma da noção que se determina em si e

 para si, o qual é forma porque possui um valor real, e alcança, aomesmo tempo, o sujeito e o objeto, o pensamento e a realidade, eque, por isso, não permanece, na conclusão, fora dos extremos,mas se encontra identificada e unida a estes. Sob esse ponto devista, pode-se dizer com Hegel que a Dialética é a forma na qual epela qual se realiza a atividade infinita de noção, que é uma forçauniversal e absoluta, uma força interior e exterior, que não sofrenenhuma resistência, que não pode ser contida nem desviada pelasexistências finitas, e que é ela o instinto mais profundo e maisíntimo, que dirige a inteligência e a estimula a se conhecer e seencontrar em todas as coisas, que nada, enfim, não poderia nemexistir, nem ser compreendido a não ser enquanto submetido àDialética81.

Tal é o método absoluto da ciência, método que Espinosahavia entrevisto, mas que não realizou. Com efeito, Espinosasentira a insuficiência dos métodos utilizados antes dele, ecompreendera que à ciência absoluta deve corresponder ummétodo igualmente absoluto, que possa organizar e ligar

interiormente todas as partes. É este pensamento que enuncia,reproduzindo o princípio platônico, que a ordem e a conexão dascoisas são somente a representação sensível e a imagem da ordeme da conexão das ideias. Mas, por uma estranha contradição, emlugar de empregar este método numa ciência absoluta, Espinosa aemprega numa ciência relativa e limitada; em lugar de procurar na

81  Ver Grande Lógica, introd. Cf mais acima, cap. III, § 4, e mais adiante, cap. seg., § 1.

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filosofia o método que deve dominar e explicar todos os outros,dirige-se aos matemáticos e aplica seu método no conhecimento

filosófico.O que fez Espinosa cair nessa inconsequência, foi, de um

lado, não ter se elevado àquela unidade da ciência e doconhecimento sistemático onde o método surge como a formamesma do pensamento e do ser, e onde todos os elementos daciência se desenvolvem e se encadeiam conforme uma ordem euma necessidade internas, e, de outro, se deixou seduzir pelo rigoraparente da demonstração matemática. Foi o que o levou aassimilar a dedução das ideias como dedução geométrica e a pensarque, para dar à ciência sua forma racional e absoluta, teria somenteque deduzir e expor as ideias, como o matemático deduz e expõeos números e as grandezas.

Mas a dedução matemática, seja considerada em si mesma, ouno objeto ao qual se aplique, não pode produzir um verdadeiroconhecimento filosófico. Com efeito, o desenvolvimento da provamatemática não resulta da natureza e do desenvolvimento internoda coisa, mas é um fato externo, um processo subjetivo doconhecimento. O triângulo retângulo não se altera em si mesmo,conforme esteja representado numa construção, com o geômetratendo que a ele recorrer para comprovar suas propriedades. Essa

decomposição não é um fato que se baseia na natureza própria dotriângulo. A figura numérica 9 não é nem 3 X 3, nem 10  – 1, nemmesmo 1 + 1 + 1, etc, que somente são métodos artificiais eexternos ao seu objeto.

Ademais, a matemática pressupõe e admite sem exame nãosomente os princípios lógicos e metafísicos que dão validade aosmétodos que emprega, e, na aplicação de suas demonstrações e de

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suas fórmulas, o tempo, o movimento, etc., mas também oselementos e os materiais que utiliza. Desse modo, pressupõe a

unidade e o número, o espaço e suas propriedades, sem buscar nemsua razão de ser, nem seu encadeamento, nem suas relações, ou,então, não os explica a não ser de um modo externo e empírico,afirmando, por exemplo, que o numero é a unidade que seacrescenta ou que se divide82. E quando se encontra na presençados contrários, tanto os admitem, como os negam. É assim queadmite a unidade e a pluralidade, a linha reta e a linha curva, aaltura e a profundidade, mas por não admitir que a quantidade sejaao mesmo tempo divisível e indivisível, tem como princípio queela seja infinitamente divisível. Após cair nessa contradição,retorna ao primeiro princípio, e na aplicação que faz do cálculo doinfinito no tempo, na força, no movimento, se prende a umdeterminado limite, a uma determinada grandeza, da qual nãoafirma nem que seja divisível ou indivisível, nem que seja divisívele indivisível ao mesmo tempo, e sim que é indefinidamentedivisível83.

82 Essa diferença entre a Dialética e o método matemático foi assinalada por Platão,que reconheceu que existe uma ciência da  Medida  superior à Geometria, ou seja, umaciência que, pelo fato mesmo de conhecer as ideias, mede a importância de cada coisa edesigna em cada coisa, e, portanto, na Geometria, seu lugar e seu valor; e que omatemático, se bem que seu objeto seja um ideal, não sabe se elevar até a ideia e ir além

da esfera das hipóteses , ou seja, dos conhecimentos pressupostos, admitidos e nãodemonstrados, e que supõem outros conhecimentos; enquanto que a filosofia conhece aideia em si mesma, e o princípio que se basta a si mesmo e que explica todas as coisas( ανυπφθετσν  ).83 No fundo, o infinitamente pequeno dos matemáticos é o indefinido, nãounicamente em suas aplicações, mas em sua noção. É o que se vê em Leibniz, queadotando, inicialmente, a expressão infinitamente pequeno, quis substituí-la porindefinidamente pequeno. Com efeito, o caráter essencial de quantidade (que não se confundecom unidade, que é somente uma forma), é a indeterminação, a qual se encontra em seusdois limites extremos, o indefinidamente grande e o indefinidamente pequeno, e, por

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A imperfeição do método matemático provém da finitude e dacarência de seu objeto.

O objeto da matemática é a grandeza, e as duas formas dagrandeza, o número e o espaço. Ora, a grandeza, tal comoconsiderada por esta ciência, é o que há de mais exterior e menosde essencial nas coisas, e o experimento matemático não toca,como seu conteúdo, a não ser na superfície. Trata-se não daqueladedução profunda que alcança e reproduz o ser, e que vai de umaqualidade a uma qualidade, de uma essência a uma outra, de umanoção a uma outra, e sim de uma repetição uniforme e indefinidade um mesmo elemento: é o mesmo se acrescentando no mesmo, enada proporcionando ao objeto.

O indefinidamente grande o e indefinidamente pequeno, umaadição indefinida e uma subtração igualmente indefinida, são osdois limites da quantidade. Entre estes limites põe-se, caso se possaassim dizer, a unidade, presente num e noutro, tanto dividindo-se,como acrescentando-se a si mesma, acrescentando de um lado oque transporta para o outro, mas combinando sempre o mesmoelemento, ou seja, combinando a si mesmo. A identidade e oindefinido eis, por conseguinte, em se desenvolve a demonstraçãomatemática.

isso, em todos os seus graus intermediários. Concernente ao cálculo do infinito, uma

quantidade, representada como infinita ou indefinidamente divisível, supõe sempre umaquantidade indivisível, em relação a qual ela é divisível, e, reciprocamente, umaquantidade indivisível suposta de quantidades divisíveis, em relação às quais ela éindivisível. Pois, de outro modo, ela seria somente uma quantidade, e não se poderiadizer que ela não é nem divisível, nem que é indivisível. No fundo, estas somente são,como a unidade e a multiplicidade, duas formas da quantidade. O cálculo do infinitopaira entre essas duas formas; pois, reduzindo-se ao limite, divide, e, mantendo-a,compõe e faz subsistir um elemento indivisível. [Ver, acerca desse ponto de Hegel, suaGrande Lógica, Teoria da quantidade, e suas profundas discussões sobre a noção do cálculoinfinitesimal, e a Enciclopédia, Lógica, 1ª parte. ]

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Há, é verdade, diferenças na matemática, diferenças degrandeza, de figura e de posição. Mas isto não são diferenças

essenciais e qualitativas; nisso reside precisamente o que ocasionasua indeterminação. Pois é a qualidade e a essência quedeterminam e diferenciam os seres. Na quantidade, ao contrário, aunidade é, ao mesmo tempo, a forma e a matéria. É a unidade quese acrescenta a si mesma, e que pode, por isso, se acrescentarindefinidamente. Três unidades constituem, ao mesmo tempo, amatéria e a forma do número 3, e uma unidade acrescentada aonúmero 3 resulta na matéria e na forma do número 4, e assim pordiante.

Quanto às diferenças da grandeza no espaço, estas parecem,de súbito, mais determinadas que as diferenças puramentenuméricas. Mas não são, também, a não ser diferenças exteriores,combinações diversas de um único e mesmo elemento, o espaço. Éa linha que se acrescenta à linha, a superfície que se combina coma superfície, e sob essas diferenças se oculta o espaço abstrato evazio.

Dois campos não diferem essencialmente entre si pela suaextensão. Caso ambos fossem distintos somente pela extensão,formariam igualmente tanto um único e mesmo campo como doiscampos.

Eis porque as determinações de maior oposição, do espaço, daaltura, da profundidade, etc., conservam, também, um caráter deindeterminação e de indiferença. Pois, caso estes sejamconsiderados como existentes no espaço matemático, eindependentemente dos outros elementos que venham a seacrescentar, o um não é somente ele próprio, mas é igualmentetambém os outros, não havendo razão para que a altura seja tanto

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altura como a profundidade, e esta, tanto ela própria como alargura, e assim por diante, em relação às outras dimensões84.

De resto, essas diferenças puramente formais que se produzemna quantidade, os matemáticos ou as rejeitam, ou se sentemincapazes de explicá-las. Desse modo, não procuram saber como astrês dimensões do espaço e de suas relações são fundadas. Estudamas propriedades da reta e da superfície, mas não justificam apassagem de uma para outra, e sua incapacidade se revela quandodesejam comparar essas figuras diferentes, a curva e a reta, acircunferência e o diâmetro, por exemplo, que significam umarelação fundada na natureza da ideia, como um infinito que escapaao seu conhecimento. Pois, ou se limitam ao indefinido, oumutilam a quantidade em si, suprimindo suas diferenças,reduzindo-as à identidade abstrata, a curva a uma reta, a reta a umponto.

Eis tudo o que, para se dizer de passagem, há de estreito efalso no espírito matemático, e porque este, com o seu hábito derigor abstrato, se encontra como que fora da realidade e da vida.

Pois o ser real não existe na quantidade e no espaço, nem naunidade imóvel e vazia, tais como consideram os matemáticos, masna unidade concreta e profunda, no seio da qual se realiza omovimento e a fusão interna das qualidades e das essências dos

elementos diversos e opostos da existência. É esta unidade queconstitui o objeto da filosofia.Os matemáticos, por se prenderem somente à quantidade,

permanecem, por seu objeto e por seu método, fora dessa unidade,ou, por assim dizer, não conseguem ver o que a supõe. Supõem,por conseguinte, uma ciência e um método que se refiram e

84  Ver Filosofia da natureza, 1ª parte..

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apreendam a realidade em toda variedade e riqueza de seudesenvolvimento.85

Com efeito, a filosofia não estuda somente a quantidade, masa qualidade e a essência; ela não considera unicamente o serimóvel e abstrato, tal como existe no espaço matemático, mas o serconcreto e vivente, tal como existe na natureza e no espírito. Seuobjeto é a noção, é o Absoluto considerado em todas suas formas eem todos os níveis de sua existência. A quantidade e o espaço sãosomente dois momentos limitados e finitos, enquanto o Absoluto seperfaz por um método e um fim superiores, pelos quais justifica aquantidade e o espaço em si mesmos, assinalando para ambos umafunção e lugar no conjunto dos seres.

Eis porque, no conhecimento filosófico, o método é adequadoao seu objeto, pois a forma e o conteúdo, o pensamento e o ser dascoisas se transformam e se desenvolvem paralelamente. No

85  Aqui se pode ver o erro daqueles que, na classificação das ciências, colocam amatemática acima da física, erro compartilhado por Platão. Como se a natureza nãotivesse um nível de existência bem mais complexo e bem mais profundo que o damatemática! Como se o espaço imóvel e vazio possuísse mais verdade e mais realidadeque o sistema solar, a luz, o organismo, a vida e tudo o que compõe a natureza!. Esteerro provém de se considerar a natureza como uma espécie de acidente e de aparência, ede não se desejar reconhecer que há uma metafísica da natureza. Mas, nesse caso, seriapreciso riscá-la do número das ciências e fazê-la descer ao nível da retórica e dagramática; pois, ao menos, esses conhecimentos têm por objeto e por fundamento oespírito. Mas se a natureza possui, como provamos, uma essência, a ciência da natureza é

superior à ciência da quantidade abstrata. Pois a dignidade de uma ciência deve sermedida pela complexidade e riqueza de seu objeto. Eis porque a filosofia, que é a ciênciauniversal, é também, e por isso mesmo, a ciência por excelência. Dissemos que Platãohavia partilhado desse erro. De início, pode-se acreditar que haja, a esse respeito, umacontradição em sua doutrina. Pois se Platão reconhecia que havia uma metafísica danatureza, deveria, por isso, por considerações análogas àquelas que expusemos,reconhecer que a ciência da natureza é superior à matemática. Mas essa contradiçãodesaparece caso se observa que Platão acreditava poder explicar a natureza pelamatemática, conforme podemos observar mais adiante neste mesmo parágrafo. Cf. §seguinte.

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conhecimento matemático, ao contrário, esses dois termos estãoseparados. Aqui a forma e os métodos da ciência não

correspondem ao seu objeto, o movimento do pensamento nãocoincide com o movimento da realidade, mas ocorre uma misturade métodos racionais e de métodos artificiais, que não sãofundados, nem na natureza da inteligência, nem na de seu objeto,que se toma e se emprega arbitrariamente e sem exame, e que nãopodem, por isso, alcançar a não ser resultados insuficientes, oucontradições.

É o que explica por que Espinosa fracassou em constituir aciência de um modo severo e sistemático. De onde procedem ashipóteses, as lacunas e os erros de seu sistema. Expõe, com efeito,as ideias à moda dos geômetras, pelas definições, teoremas,demonstrações, corolários, ou seja, de uma maneira externa eempírica. Em lugar de ir diretamente até a ideia em si mesma, emlugar de procurar em sua natureza mesma sua forma, aplica-lheuma forma estranha, da qual não se examina suficientemente ovalor. Define, divide, se serve das formas e das leis do pensamentosem desejar saber o que estas significam, e qual relação possuemcom as ideias as quais se aplicam. Pressupõe as ideias, ou delas seserve ao acaso, resultando que suas deduções sejam arbitrárias esuperficiais, com os aspectos essenciais e a natureza íntima das

ideias lhe escapando.É assim que sua dedução, ou, melhor, sua divisão dasubstância em substância pensante e em substância extensa nunca édemonstrada, a qual é antes dada como um fato. Daí decorre aausência de uma sistematização completa do conhecimento eobscuridade que reina em alguns pontos essenciais de sua doutrina.Com efeito, Espinosa não alcança todas as partes da ciência, e,

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falando da extensão e das formas, não funda uma filosofia danatureza, nem mostra as relações da natureza e do espírito. Não

explica jamais nitidamente a ideia, a substância e a extensão. Asubstância é superior à ideia? Ou a há uma ideia da substância? E aextensão é também uma ideia? Há uma ideia do corpo e doorganismo? E se a extensão e o organismo são distintas da ideia, oque são? Eis os pontos que nunca são esclarecidos em sua doutrina.

Enfim, é em relação à mesma causa, ou seja, a umconhecimento insuficiente e irrefletido das ideias que se atribui oque há de vago e de indeterminado na noção que se tenha de algo,assim como sua teoria errônea da substância, com esta sendoconfundida com o Absoluto e sendo representada como o mais altonível da ciência e da existência. No entanto, acima da substância háo verdadeiro, o bem, o espírito, ou seja, a ideia, a existência mesmaque Espinosa desfigurou subordinando-a à substância, e tornando-aum dos seus atributos.86

86 Cf. cap. seguinte, e acerca do método especulativo em geral, cap. VI.

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CAPÍTULO V.

§ 1.

LÓGICA.

O sistema de Hegel se compõe de três partes:  Lógica;Filosofia da Natureza; Filosofia do Espírito.

A Lógica, a Natureza e o Espírito são somente três partes deum único e mesmo todo. São três modos da ideia, três níveispercorridos por ela, em cujo encadeamento interno e necessárioconstrói sua unidade e a plenitude de sua existência; ou, utilizandoa linguagem de Hegel, são três termos que compõem o Silogismoabsoluto do conhecimento e do ser.

Para melhor conhecer esses três termos, sejam seus própriosdesenvolvimentos, ou suas relações, é preciso, primeiramente,levar em conta cada um desses termos em particular, e determinarqual seja, segundo Hegel, o objeto da Lógica, qual o da Natureza,qual o do Espírito, e sobre qual princípio é fundada essa divisão. 87

O objeto da Lógica jamais foi totalmente determinado, o quefaz com que o termo em si mesmo não possua um significado fixoe bem definido, nem na linguagem comum, nem na científica. 88

Segundo uns, a Lógica é uma ciência universal enquantoestudo das leis da inteligência em geral; mas essas leis somente

87 Não é necessário dizer que somente podemos fornecer aqui uma ideia geral dessastrês partes. Ver. § seguinte.88 Isto é verdade tanto na lógica como nas ideias em geral. Pretende-se repetir sempreessas expressões. As ideias governam o mundo, nada resiste à ideia, há uma Lógica na história. Masse fosse indagado àqueles que empregam essas expressões o que entendem por ideia e por

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têm valor puramente formal e subjetivo. Estas são, como se podever, leis invariáveis e necessárias para o exercício do pensamento;

mas, fora deste, são somente abstrações vazias, que não ocasionamnem um conhecimento real e nem objetivo, por isso mesmo quenão são ligadas por nenhuma relação da natureza com o objeto oucom o conteúdo do conhecimento.

Após essa maneira de trabalhar a Lógica, essa ciência deve sefechar na teoria dos termos ou conceitos da proposição, daargumentação, da definição e da divisão. O conjunto das regras ouprincípios relativos a esses três ramos da Lógica constituem o

 Método. E assim a Lógica seria a ciência do  Método. Mas, comoesses princípios são somente simples formas do pensamento, o

 Método seria, também, somente uma forma, um processo pelo qualo pensamento se mostraria em relação com as coisas, sem estarligado com elas por um liame interno e objetivo.

De outro lado, compreendendo a Lógica no sentido largo dadefinição platônica, consideram-na como a ciência do λογος , dasideias em geral, e, sem explicar de um modo mais preciso anatureza das ideias, atribuem-na, entretanto, um valor objetivo,reconhecendo que estas possuem uma relação substancial com ascoisas.

Essas duas opiniões coincidem com o ponto de que a Lógica é

uma ciência universal, que envolve, na unidade de seu objeto,todas as ciências particulares, ou ao menos as relações necessáriascom estas. Mas elas se diferenciam no sentido de que uma limita oobjeto da Lógica a um pequeno número de princípios, e não vênesses princípios a não ser as formas subjetivas do pensamento,

Lógica , provavelmente ficariam muito embaraçados no que dizer. Aqui se faz um uso oude um modo obscuro e vago da coisa, ou mesmo do termo.

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enquanto que a outra as estende a todos os princípios em geral efornece a esses princípios uma significação objetiva.

Essas definições da Lógica são ambas inexatas e insuficientes,sendo que são insuficientes porque umas são por demais atribuídasa esta, enquanto outras de menos.

Em relação à primeira opinião, pode-se ver pelas discussõesprecedentes, que os limites nos quais se circunscreve a Lógica, sejarelativamente a seu objeto, ou ao valor de seus princípios, sãointeiramente arbitrários. 89

Com efeito, se a proposição e os elementos da proposição(termos ou conceitos) formam o objeto da Lógica, não se entendepor que tais termos, o gênero e a espécie, por exemplo, voltariampara o seu domínio, e por que outras, como a substância, a causa,etc., seriam excluídas. À afirmação de que os primeiros sãosomente formas do pensamento, ideias gerais, categorias (nãoimporta com qual nome sejam designadas), dos quais o espírito seutiliza para a comodidade do conhecimento, enquanto que ossegundos são ideias primitivas e que, de outro lado, correspondemao que é real, opõe-se que essa distinção nunca é fundada. Pois oque se diz do gênero e da espécie, pode e deve ser afirmadoigualmente em relação à causa e à substância, e se o gênero e aespécie, a quantidade e todos os conceitos em geral são somente

formas subjetivas do pensamento, não se entende por que se lheatribuiriam uma causa, uma substância, e ao infinito, outra origeme outro valor.90

Para escapar dessa dificuldade, não resta outro meio a não sereliminar os termos do domínio da Lógica, ou de fazer dos

89  Ver, mais acima, cap. III, § 4, e cap. IV.90  Ver, cap. II, § 4, crítica da teoria de Kant.

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elementos matemáticos uma espécie de notação algébrica, e,portanto, não mais que relações de quantidade abstrata e

indeterminada. 91

Porém, se vê logo que é impossível eliminar os termos. Pois épreciso, ao mesmo tempo, para ser consequente, eliminar aproposição, que é tão-somente o desenvolvimento ou a combinaçãodos termos; o que significa não circunscrever, mas suprimir aLógica.

Quanto ao outro expediente, parece, primeiramente, maisprático e mais racional. O pensamento alcançaria sua forma maisabstrata e indeterminada, seriam suprimidos não somente oconteúdo e a matéria do conhecimento, mas também toda diferençaformal, e ele se encerraria na quantidade representada pelos signosigualmente indeterminados, AB, ou ABC, e não haveria entre estesnem a relação de causa e efeito, nem de princípio e consequência,nem nenhuma outra relação desse gênero, mas unicamente relaçõesde quantidade ou de conteúdo, o que faria com que A existisse noB, como 2 existe no 4, ou que A exista no B e no C, conforme 2existe no 4 e no 8.

É esta lógica que se ensinou e que ainda se ensina nas escolas,ou ao menos segue como ponto de vista, como tendência geral quedomina os ensinamentos. 92

91 Cf. sobre este ponto nossa tese latina «Platonis, Aristotelis et Hegelii de médio terminodoctrina » (Paris, chez Ladrange).92 Com efeito, todos os esforços da maior parte dos lógicos tendem a fechar a Lógicanuma esfera do pensamento formal, considerado sob o ponto de vista da quantidade . Masnão são bem sucedidos, pois a inteligência e a realidade não se deixam aprisionar porlimitações artificiais. Portanto, Kant, após ter sido primeiramente representado por umaciência  puramente formal  (em sua Lógica  publicada por Jaesche), acabou por reconheceruma Lógica transcendental, cujas leis atingem o objeto em si mesmo ( Crítica da Razão pura  ),se bem que, segundo o próprio Kant, atinjam somente a existência fenomenal. Não

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Percebe-se, pois, de um lado, que para se seguir o caminhodas ideias em geral e dos diferentes modos da atividade do

pensamento, torna-se impossível, sob pena de negar a ciência e dese cair no ceticismo, encerrar a Lógica no círculo do pensamentoformal, e que, de outro lado, como não há ato do pensar que nãosuponha uma ideia, e que não tenha uma aplicação e umamanifestação, acaba surgindo a crença de que se pode escapar dadificuldade mutilando a Lógica e aprisionando-a em limitescompletamente artificiais. É o que explica o descrédito queocasionou sua decadência, e porque, malgrado sua necessidade esua universalidade, malgrado a importância que lhe atribuiinclusive a ciência, haja a opinião comum de que ela é insuficiente,e somente vista como um conjunto de fórmulas e de sutilezasescolásticas, ou ainda, como uma gramática de espírito limitada alhe fornecer flexibilidade e vigor, mas não como uma obra séria,que possa lhe fornecer o conhecimento verdadeiro das coisas.

Mas se tal é, com efeito, o objeto da Lógica, haverá outrarazão para se dizer que a matemática pode alcançá-lo totalmente, emelhor que a própria Lógica, com a vantagem de interessar a

trataremos da Lógica do Port-Royal, que possui, sem dúvida, um mérito literário deexposição e de estilo, mas que, sob o ponto de vista da ciência, é necessário dizer que épor demais medíocre. É um conjunto confuso e indigesto de toda espécie de conteúdos ede questões tratados de uma maneira superficial e sem nenhuma originalidade. De resto,

há somente que se observar o título e o prefácio da obra para se julgar o valor científicoque possa ter. Portanto, a Lógica significa, para esses autores do Port-Royal, a arte de  pensar , sendo que a obra foi composta como que ao acaso e num espaço de quinze dias.No princípio, deveria ter sido no espaço de cinco!

 Todas as lógicas publicadas nos últimos tempos na Inglaterra, como a Lógica do doutor Whately, por exemplo, embora possuam um caráter mais reflexivo e mais científico que ade Port-Royal, não escapam, no fundo, do ponto de vista formal da antiga Lógica, e,portanto, apenas fazem reproduzir as teorias principais, embora sob uma outra forma, enão acrescentam nenhum princípio, nenhum ponto de vista verdadeiramente novo a estaciência.

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inteligência, e de despertar sua atividade e sua curiosidade por suasaplicações.

É verdade que se tem sentido a impotência e o descrédito emque caiu essa ciência, e a tentativa que se faz para elevá-la e de lhedar uma vida nova. Mas, em lugar de se fazer com que permaneçacom sua vida própria e natural, o que ocorre, conforme se podedizer, é que ela se transformou em algo inoculado e artificial,acumulada de assuntos estranhos, emprestados da pedagogia, dapsicologia empírica, e até da psicologia em geral. Com efeito, asregras ou leis, ou tais assuntos, conforme são introduzidos nalógica, vão significar que não é preciso compreender sem exame oque se lê, ou o que nos é transmitido, pois, antes de se ouvir umamensagem, é preciso assegurar-se se esta não possa nos enganar ,conforme outros casos semelhantes, que levaram Hegel a observá-los como insignificantes e vulgares; são verdades pueris que seinsiste revivê-las, de forma artificial, de modo insistente, conformeum conteúdo morto e endurecido.

Os filósofos que fecham a Lógica nesse sentido, invocamgeralmente a autoridade de Aristóteles, e tomam, ou, melhor,creem tomar sua Lógica como base de sua teoria.

Mas, em primeiro lugar, supondo que tal seja realmente anoção que Aristóteles tinha da Lógica, isto seria somente um

argumento externo e histórico.Porém, este não é o verdadeiro pensamento de Aristóteles, euma simples análise, por assim dizer, material de sua doutrinabasta para demonstrar que é muito fácil ver que a Lógica é somenteuma ciência puramente formal, e inteiramente limitada à teoria dosilogismo. Vemos, com efeito, uma ligação que há entre suametafísica e sua Lógica, assentadas num terreno comum, e sendo-

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lhes atribuída uma mesma ordem de estudos. É desse modo queapós ter tratado das categorias em sua Lógica, e as considerarem

como determinações do pensamento, as reproduziu em suametafísica e as considerou como atributos do Ser. É a mesmarelação que se vê quando ele estuda seja em sua metafísica oprincípio de contradição, tido como a base do conhecimentoobjetivo, seja quando reproduz em sua Analíticas e em seu Tratadoda alma sua teoria do entendimento e do conhecimento, a qual,como se sabe, se correlaciona inteiramente com sua teoriaontológica do Ato. Ademais, fora desse âmbito, e nos limitesmesmos do Ôrganon, encontramos Aristóteles ocupado emcompreender e em fixar o objeto da Lógica e buscar o sentidoobjetivo e real de suas leis. Com efeito, após ter estudado aproposição em sua forma geral e indeterminada, a estuda em suasformas mais determinadas e mais objetivas (teoria dos acidentes),e, depois de ter examinado o meio termo enquanto espécie e emsua simples relação junto aos extremos (Primeiros Analíticos), aexamina, do ponto de vista do ser e da causa ou da essência(Segundos Analíticos), e, por isso, se esforça em aproximar suaLógica com sua teoria do Ato.

É, pois, sem razão que se atribui a Aristóteles ter separado, deum modo absoluto, a Lógica da Ontologia. Pois, ao contrário, o seu

intento foi o de aproximá-las e de uni-las. Não há, é verdade, umamarca precisa dos limites e das relações dessas ciências, mas éevidente que houve o intento de determiná-las. Como, com efeito,levando em conta que Aristóteles era fortemente ligado à ideia daciência e de sua unidade, poderia haver o isolamento da lógica, sejarefutando sua relação real e objetiva com as coisas, seja retirandoas investigações sobre as ideias, noções ou categorias, sob qualquer

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ponto de vista que se tenha93, uma vez que dela não deixam deprovir as condições essenciais e formais do pensamento, como a

proposição e o silogismo?São precisamente essas considerações que levam a outro

ponto de vista, segundo o qual a Lógica é concebida como aciência das ideias em geral e, portanto, como uma ciênciauniversal, englobando em seu domínio tanto a forma como oconteúdo e a matéria do conhecimento. Portanto, como fizemosobservar, essa concepção tem sua fonte na doutrina de Platão.Porém, se tal concepção parte de um princípio mais verdadeiro emais profundo – nesse sentido se aplica em conhecer, pelas ideias,a unidade da ciência  –  ela é insuficiente, relativamente à Lógicapropriamente dita, porque não se fixa exatamente através delimites. Quais são, com efeito, as ideias que irão se referir aodomínio da Lógica? E quais as que pertencem a uma outra esferada existência, à natureza, por exemplo? Eis o ponto que nem oslógicos nem Platão mesmo definem.

Dir-se-á, talvez, que essa distinção não é necessária, porque asideias se estendem a todas as esferas da existência, e que oelemento racional e inteligível constitui a base de todos os seres.Mas isso somente fará com que se desloque a dificuldade, e seresponda, de qualquer modo, à questão pela questão. Pois

permanecerá sempre a questão de se saber como e sob qual formapossam existir as ideias nos limites dessa ciência que se chamaLógica. Ao menos que não se venha misturar e confundir as ideias,e transportar para a Lógica as ideias da matéria, do movimento, de

93 Mesmo se limitando ao ponto de vista da quantidade  e do silogismo comum. Pois sepoderia indagar sempre sobre o que significam tais formas do pensamento, e sobre suarelação com as coisas.

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luz, da  Religião, do Estado, etc., o que não se daria nuncaconforme a natureza das ideias e, portanto, conforme a natureza da

ciência.Portanto, temos razão em dizer que se a primeira definição da

Lógica é muito estreita, a segunda é muito ampla, e que nem umanem outra dão a verdadeira noção dessa ciência.

Dentre essas duas concepções, portanto, é isto que fará comque se busque o ponto preciso onde se põe a Lógica, e, portanto, aLógica hegeliana.

Com efeito, a visão fechada e profunda que Hegel possuía detodas as partes do conhecimento, lhe fez ver, de um lado, que aLógica possui um sentido bem mais amplo que aquele que a lógicacomum lhe atribui, e que o silogismo, a proposição, a contradição,etc., são ideias assim como a causa, a substância, a quantidade. Aciência de tais ideias deve determinar a natureza e o encadeamento;e, de outro, que a Lógica não pode alcançar todas as ideias, masunicamente uma série, uma ordem de ideias, ou, caso se queira,uma face, uma esfera da Ideia absoluta.

É sobre este ponto que devemos agora definir, se queremos teruma noção, senão exata, ao menos suficiente da Lógica hegeliana.

Quando dissemos o que as coisas são, ou que elas têm umaquantidade, uma qualidade, que são iguais ou desiguais, idênticas

ou diferentes, unas ou múltiplas, ou, que possuem uma causa, umasubstância, que são particulares ou gerais, verdadeiras, boas, etc.,reconhecemos tacitamente que há uma ideia absoluta do ser, daigualdade, da desigualdade, da identidade, da desigualdade, daidentidade, da diferença, da causa, etc. Além do que somente énessa condição que essas expressões têm um sentido. Com efeito, ohomem, a planta, o animal, o movimento, o calor, são também

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ideias, mas ideias de outra natureza, e possuem características maisdeterminadas e mais especificas94.

Eis porque seria ilógico tornar os atributos gerais e absolutos,e afirmá-los, seja um em relação ao outro, seja em relação às coisasem geral, além de afirmar, por exemplo, que o homem, o animal, omovimento, são a planta, ou que a  planta, o homem, o movimento,são o animal ou são animados95, ou ainda, que a igualdade e aidentidade são o calor , o movimento, ou que se movem, sãoquentes, etc.

Porém, se essas ideias não podem se afirmar indiferentementedas outras, precisamente porque constituem um nível, um modo

94 Quando dissemos que essas ideias são mais determinadas que as primeiras, nãoqueremos dizer que estas não existem, ou que são absolutamente indeterminadas. Seassim fosse, não se poderia nem serem pensadas, nem denominadas. Elas são, porconseguinte, indeterminadas, em relação às outras, no sentido de que seu domínio é maisamplo, e que elas se aplicam a um número mais amplo de seres e de eventos, sejam

atuais, sejam potenciais.95 Pode-se afirmar, é verdade, o animal do homem e o movimento do animal . Mas o quequeremos ressaltar aqui é que essas ideias não podem ser afirmadas indiferentemente  dasoutras ideias, ou de diversas dentre elas. Faremos observar também, por essa ocasião, quesomos obrigados a empregar a linguagem da Lógica ordinária e as palavras afirmar ,atributos, etc, que não têm, por assim dizer, mais de um sentido na Lógica hegeliana.Portanto, por exemplo, é a animalidade que a Lógica comum considera como atributo dohomem, e por isso que, se pondo sob o ponto de vista exterior da quantidade, ela mede osníveis das existências após o que denomina de extensão, e que, por conseguinte, liga ohomem ao animal. É em consequência desse caminho que se chega a conceber Deus pelanoção de Ser , que é, como já fizemos observar, a noção a mais vazia e a maisindeterminada (cf mais acima, no cap. IV, § 5). É tudo contrário ao que liga tal noção àLógica e, em geral, à Filosofia de Hegel; e isto pela razão de que Hegel se atém naconsideração das ideias, não na quantidade, mas na qualidade e na essência (cf., cap. V, §§4 e 5). Aqui o homem forma uma existência mais elevada e mais profunda que o animal,e possui outra animalidade, características que constituem sua natureza própria. É emconsequência disso que se chega à concepção de Deus como Espírito e como Pensamentoabsoluto (cf., cap. IV e VI). Em geral, a relação das ideias deve ser concebida como umarelação de encadeamento, tal como definimos antes; o que faz com que se encontre aLógica na Natureza e no Espírito, até que se alcance em termos absolutos a unidadedesses três termos.

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mais determinado e mais concreto da existência, elas supõem epossibilitam a afirmação de outras, dominando-as e as contendo em

sua unidade, ou, melhor, são ideias que se encontram nestas outrasenquanto elementos integrantes de sua natureza. Essas ideias são asque acabamos de indicar, e outras da mesma espécie. É assim queatribuímos a igualdade, a identidade e a diferença tanto ao homemcomo à planta e ao animal, e que estabelecemos, seja entre elas,seja entre as coisas em geral, relações de causalidade, desubstância, de  finalidade, de  possibilidade, de contingência, ou,enfim, que denominamos de  finito ou infinito, divisível ouindivisível, discreto ou contido, o número, a matéria, a extensão, omovimento, etc . 96

Generalizando-se agora esses exemplos, e os estendendo atodas as ideias da mesma espécie, se terá o objeto da Lógica. Asoutras ciências, com efeito, tendo um objeto próprio e específico,supõem a Lógica, não unicamente como condição do pensamento,mas como condição da existência. A matéria e o movimento, porexemplo, tendo sua natureza específica, supõem as relações lógicasde quantidade, de qualidade, de causalidade, etc. Supõem e oscontêm como elementos constitutivos e necessários de suaexistência. Do mesmo modo ocorre com o sistema solar, com oorganismo, o Estado, onde a silogística encontra suas aplicações97.

Portanto, a Lógica aparece, em primeiro lugar, como a ciênciadas formas universais e absolutas do pensamento e da existência,formas impregnadas em todas as coisas.

96 Sem dizer que na Lógica de Hegel essas ideias são demonstradas e apresentadassegundo sua ordem natural.97  Ver. Philosophie de la Nature et Philosophie de ‘Esprit.

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Entretanto, olhando mais de perto, se vê que a ideia lógica nãoé uma pura forma, mas que possui também um conteúdo. Este

conteúdo é a ideia em si mesma, a ideia com todas as propriedadese todos os caracteres essenciais que a constituem como tal, e cujaforma exprime somente sua maneira de ser, seu encadeamento esuas relações. Portanto, a quantidade, a qualidade, a identidade, acausa, a finalidade, têm um conteúdo. Este conteúdo é o que faz talideia e a distingue das outras; é o que ocasiona a identidade comotal, a causa, o fim enquanto tais, etc. Porém, é preciso representar aforma e o conteúdo como um penetrando no outro intimamente, desorte que a ideia é dada em função disso, de sua forma e seuconteúdo, ou seja, por suas determinações próprias e por suasrelações. O movimento da demonstração consiste somente emseguir o movimento mesmo da ideia, que se põe, se desenvolve ese refere a uma outra ideia98.

Sendo assim, a ideia lógica não fornece às outras esferas daexistência unicamente a sua forma, mas também uma parte de seuconteúdo. A quantidade, a causa, o silogismo, não se encontram atítulo de simples formas no movimento, na matéria, no sistemasolar, mas fazem parte como elementos reais e substanciais de suaexistência. Não há, fora da substância lógica, outra substância quea domine e que a contenha, mas todas as coisas, enquanto

substâncias, compõem sua unidade. A Natureza e o Espírito em simesmos são somente substâncias por sua participação naquelas, ecaso fossem somente substâncias, se confundiriam com elas, ouseriam apenas determinações.

A Lógica é, por conseguinte, uma ciência universal, e, porisso mesmo, nada escapa às suas determinações. Ela é a ciência da

98 Cf. cap. precedente, §§ 4 e 5.

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Ideia em seu estado o mais abstrato, onde não tenha perdido suapureza, a da Ideia que ainda não descendeu à esfera da Natureza, e

que se oferece ao pensamento tal como seja em si, sem véu e semmistura, na perfeita simplicidade de sua existência. É o que fazcom que todas as ciências sejam pressupostas por tal ciência daIdeia, e esta não seja pressuposta por nenhuma ciência, e que estasnão forneçam o seu método àquela, a qual, ao contrário, é a quefornece a todas as ciências o único e verdadeiro método.

Por conseguinte, não existe nenhuma ciência cujo objetopossa ser exposto de uma maneira tão severa quanto à ideia lógica,não há nenhuma que tenha a mesma liberdade e a mesmaindependência. Nas outras ciências, o método não se confunde deum modo tão íntimo com o conteúdo, por isso que é a Lógica quefornece tal método, e o conteúdo daquelas em si mesmo não seforma por um início absoluto, mas toma seu ponto de partida deoutras noções, definições, hipóteses ou axiomas. A Lógica, aocontrário, não é pressuposta por nenhuma dessas formas, regras ouleis do pensamento, porque são estas que fazem parte de seuconteúdo, e encontram nela seu fundamento. A Natureza e oEspírito constituem, é verdade, os estados, as esferas maisconcretas e mais reais da Ideia, e, a esse respeito, a Lógica pode serconsiderada como uma ciência formal ou a ciência do método, mas

também como a ciência da forma e do método absolutos, como omodo, o modelo interno, sobre o qual a Natureza e o Espíritodevem se desenvolver e se organizar, como a forma, em umapalavra, sob a qual o ser e a verdade existem.99

99 Poder-se-ia chamar a Lógica, assim concebida, de a ciência das possibilidades absolutas,não no sentido de que as ideias lógicas sejam as possibilidades e não realidades , mas nosentido de que nada é possível, ou, o que vem a ser o mesmo, que nada pode existir nemser pensado a não ser por tais ideias. São os filósofos, Kant entre outros, que

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reconhecem que as ideias lógicas (o princípio de contradição, por exemplo) são a

condição necessária de toda existência e de toda verdade, mas são, acrescenta-se,somente enquanto condições negativas.Faremos observar, primeiramente, a esse respeito, que mesmo se elas somente

fossem condições negativas, seria preciso admitir que elas são realidades eternas eabsolutas. O que leva, aqui, a induzir em erro, é, primeiramente, a palavra condição. Eis, comefeito, como se pensa: “O princípio de um ser e sua condição são duas coisasinteiramente distintas. Portanto, pode-se admitir que o princípio de contradição, a quantidade,a causa, formam a condição da existência do homem, da  planta, do sistema solar, mas estámuito longe que sejam princípios e essências.” Entretanto, caso se reflita aqui que se tratade uma condição absoluta, e não de uma condição relativa e contingente, se veria já que aideia lógica forma um elemento integrante das coisas. Assim, por exemplo, se supomos

que existem vários gêneros de morte, e que em seguida se morre por estrangulamento,haverá razão em dizer que o estrangulamento não existe em relação à morte a não sercomo pura possibilidade, uma vez que se poderia morrer de outra maneira. Mas, caso sesuponha (trata-se da hipótese que se aplica à questão atual) que o estrangulamento podeproduzir a morte, nesse caso se o estrangulamento não é a morte inteiramente, ele é, aomenos, um elemento essencial. Não se vê nessas considerações o que pode servir para adistinção das condições em  positiva e em negativa . De outro lado, o que faz com que seconsiderem as ideias lógicas como ideias de puras possibilidades e de simples condição, étambém essa ausência de um conhecimento sistemático que temos assinalado e queteremos ocasião de assinalar ainda. Com efeito, toma-se a planta, o Sol, o homem, o Estado,

tais como são dados pela experiência e pelo pensar irrefletido: pondo-os na relação dasideias lógicas, não se nega, primeiramente, toda relação entre eles. Pois qual relação podehaver entre uma quantidade abstrata e indeterminada e uma quantidade concreta edeterminada, tal como o Sol, por exemplo? É nisso que se prende a consciência vulgar.Mas na medida em que se avança no conhecimento das coisas, se vê que se poderia, ou,antes, que deve haver certa relação. Entretanto, se convém que há certa relação, e que,por exemplo, se o Sol contém uma contradição, não poderia existir, ou que o Sol sesubmete às condições da quantidade, da causalidade , etc, teima-se em não se reconhecer queessas relações sejam relações positivas. É nisso que se prendem os filósofos os quaisexaminamos. Porém, caso se proceda de uma maneira sistemática, se poderia ver que a

ideia lógica é um elemento real e positivo (para nos acostumarmos com a sua linguagem)de sua existência. Com efeito, quando dissemos que a ideia lógica é um elementoessencial das coisas, não queremos dizer que aquela constitui a estas em sua inteireza. Háno homem, no animal, na planta, outros elementos, outros princípios além da ideialógica. Mas o ponto preciso da questão é de saber se a ideia lógica entra também aí comoelemento constitutivo. Ora, quando se toma os seres, o Sol, por exemplo, tal como édado pela experiência e pelos sentidos, este é isolado do resto, decomposto ao acaso ouao modo empírico, de modo que somente se vê a matéria, a luz, suas relações físicas, e seesquece, não se vê seus elementos e suas relações lógicas. É isto que faz com que aLógica , a  Natureza e o  Espírito surjam como três termos separados, e colocados, um emrelação ao outro, num estado de independência absoluta (cf. mais abaixo). Enfim, para

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Assim, pois, e em suma, nisso reside a obra da lógicahegeliana: elevar ao conhecimento essa substância lógica, caso se

possa desse modo exprimir, daquilo que anima o espírito, emrelação às formas do pensamento que agem instintivamente naconsciência comum e que somente obtém uma realidade obscura eincompleta, de modo que estas possam ser conhecidas pelopensamento, e pelo pensamento apenas, em sua existência a maissimples, a mais abstrata e a mais universal, perseguidas eenglobadas em suas relações e em sua unidade.

§ 2.

FILOSOFIA DA NATUREZA.

Há uma filosofia da Natureza? E, caso haja tal ciência, qual oseu objeto? Quais são os limites que a separa da Lógica e doEspírito?

Estas são as duas questões que devemos examinar. Mas énecessário vermos que somente podemos examinar aqui a primeira.Com efeito, para melhor definir a Natureza, é preciso saber o que a

distingue do Espírito, assim como ao que se relaciona, o que supõeo conhecimento do Espírito, e também o da Lógica. Pois, embora

concluir e voltarmos ao nosso ponto de partida, observamos que a possibilidade nãopode alcançar os princípios; pois estes existem ou não existem. O que é possível é talindivíduo, tal triângulo, mas não a essência do indivíduo e do triângulo. Por conseguinte,caso se considerem as ideias lógicas, ou outras, como essências ou como puras formas,estas serão sempre essências ou formas necessárias e eternas, e, a esse título, constituirãosempre um elemento essencial e necessário das coisas.

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possamos conhecer de uma maneira geral o objeto da Lógica, énecessário, para melhor determinar as relações e as diferenças entre

a Lógica e a Natureza, conhecer o liame, a necessidade interna queliga a Lógica à Natureza. Ora, este liame, essas relações e essasdiferenças não podem ser conhecidas fora da ciência e de umavisão clara e completa do todo e de suas partes. E o que dissemosda Natureza, se aplica pela mesma razão à Lógica e ao Espírito.Pois, pelo fato de que se trata de três termos ao mesmo tempodistintos e idênticos, de um único e mesmo todo, não se podeconcebê-los claramente, nem seu objeto, nem sua diferença, e nemsua unidade, a não ser pelo conhecimento de cada um deles emparticular e de todos ao mesmo tempo; é evidente que esteconhecimento não poderia existir, nem ser adquirido fora de seuobjeto, porém ele se inicia, se desenvolve e se completa com este.

Por conseguinte, a questão que devemos tratar é a de saber sehá uma filosofia da Natureza. Quanto às outras questões, que aquie em qualquer outro lugar apenas podem ser tratadas de um modosuperficial, é necessário buscá-las no desenvolvimento internomesmo da filosofia hegeliana100.

Admite-se desde já, implicitamente, uma filosofia daNatureza, quando se admite a unidade da ciência, e se façarepresentar a filosofia como a ciência dos princípios ou a ciência

universal. Para retirar, por conseguinte, a Natureza da investigaçãofilosófica, é preciso ou modificar e restringir a definição defilosofia, ou demonstrar que a Natureza não se baseia emprincípios.

Porém, restringindo-se a definição de filosofia, isto seriacomo mutilá-la, além de mutilar também a ciência. Portanto, tal

100 Cf. mais acima, cap. IV, §§ 1 e 5, e mais abaixo, cap. VI.

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limitação é impossível. Pois, de um lado, a definição de filosofianão é, conforme demonstramos101, uma definição arbitrária e

convencional, mas se baseia numa lei necessária da inteligência, e,de outro, seria difícil dizer por que teria que se banir essa ordem deestudos do domínio da filosofia, e por que, caso fossem banidos,não se baniria as outras, tal como a estética, a filosofia do direito, afilosofia da história, etc.

Seria preciso, pois, invocar o segundo argumento, e eliminar afilosofia do conhecimento da Natureza, pela razão de que aNatureza não seria fundada em princípios. Tal é, com efeito, amaneira pela qual em geral se encara a Natureza. Pois esta éconsiderada como um conjunto de existências contingentes, comouma espécie de aparência que não encerra nada de imutável nem desubstancial, e que possui fora dela e na mais alta existência seuprincípio e sua razão última.

Sem dúvida, caso se afirme que o Absoluto não existe naNatureza, compreendendo-se que a Natureza não é o Absoluto, eque não há ao lado e acima dela um princípio que a domina, essaopinião deveria ser admitida. Mas isto não é o que se quer dizer. Oque se deseja dizer é que o Absoluto não possui nenhuma tarefa naNatureza, ou, o que vem a ser o mesmo, que a Natureza não sebaseia em princípios necessários e absolutos.

Observaremos, primeiramente, nesse assunto, que caso se façada Natureza uma existência contingente e uma pura aparência, pelarazão de que tudo se submete à mudança, é preciso, pela mesmarazão, considerar o Espírito em si mesmo como uma existênciacontingente e aparente. Pois se o Espírito se modifica, assim comoa Natureza, não haverá nele dois estados que sejam idênticos, e

101  Ver mais acima, cap. III, § 2, e mais abaixo, cap. VI, §§ 3 e 4.

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nem faculdade que não se desenvolva e se transforme. É precisoadmitir, pois, que tudo é contingente no mundo, a Natureza como o

Espírito, ou que, do lado da contingência e de um elementovariável, há, num como noutro, um elemento imutável esubstancial.

Quando se diz que o Espírito pensa, ao contrário da Natureza,e que ele pensa o infinito e o absoluto, e, por conseguinte, nuncapode ser assimilado conforme a Natureza, tudo o que se podeconcluir é que o Espírito e a Natureza formam duas esferasdistintas da existência. Porém, uma vez que a Natureza não possuia inteligência e o pensamento, não significa que seja privada detodo princípio fixo e imutável. Pois, nesse caso, seria preciso dizerque os seres matemáticos não são mais imutáveis e absolutosporque não pensam.

Acrescenta-se, é verdade, que diferente do pensamento e daconsciência, o Espírito possui a identidade, que o que muda nelesão os estados acidentais e externos, e que enquanto as coisas daNatureza se modificam e se renovam sem cessar, o Espíritopermanece, quanto ao seu fundamento, na identidade esimplicidade de sua essência.

Mas essa diferença, que se pretende estabelecer entre aNatureza e o Espírito, é inteiramente sem fundamento. Pois o

princípio, o elemento substancial da Natureza não é maissubmetido à mudança que o elemento substancial do Espírito. Oque varia nele, assim como no Espírito, é somente o acidental, sãosomente as modificações externas e individuais. O que varia naplanta, o que se desenvolve nela, não é a planta em si mesma, ou,caso se queira, seu tipo e sua essência, pois a essência permaneceidêntica a si mesma no indivíduo e nas diferenças individuais. É

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precisamente essa identidade que realiza a identidade do indivíduoe a unidade de seu desenvolvimento, assim como a identidade e a

unidade dos indivíduos da mesma espécie.Dizer, por conseguinte, que os corpos se renovam sem cessar,

e que o Espírito é imutável, é absolutamente não dizer nada, ésomente se esforçar em procurar argumentos que não têm outroargumento que dissimular a verdade e a realidade das coisas.

Mas a Natureza, diríamos, não é limitada e finita? Não supõeum princípio superior que a domine e que contenha sua razãoúltima? Não se reconhece este princípio quando se diz que acimada Natureza existe Espírito, e que é neste que ela encontra sua maisalta expressão e sua existência mais perfeita? Aliás, nada naNatureza porta o caráter da necessidade metafísica, que é a marcado Absoluto. Poder-se-ia suprimir a Natureza inteira sem que o Serou o Absoluto deixassem de existir; assim como se poderiaimaginá-la distintamente constituída, com outras propriedades,outros seres e outras relações. Há razão em se dizer que a Naturezanão basta em si mesma, que, portanto, existe somente de modocontingente, e que seus princípios e suas leis existindo fora dela, oresultado é ela não poder ser objeto da ciência.

Essa objeção se baseia nas abstrações do entendimento, nasnoções e nas relações arbitrárias e mal definidas.

Com efeito, pelo fato de que a Natureza não é o Absoluto, deque não possui em si mesma sua razão e seu fim, não se seguenunca que não seja um elemento, uma parte integrante da absolutaexistência. Pois se o fim não é o meio, seria ilógico concluir que omeio não existe necessariamente em relação ao fim. Em funçãodisso, se poderia dizer que o Estado, enquanto a esfera mais alta davida social, poderia se passar como atividade individual, ou que a

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cabeça ou a alma é o que existe de mais elevado no homem, que ogeneral é o chefe, e por isso a alma de seu exército, o que se

poderia concluir que o exército é somente um instrumentoacidental frente a seu chefe, assim como os braços, o estômago,etc, são o que são porque frente à cabeça.

Segue-se, quando se diz que a Natureza é limitada eimperfeita, que tal imperfeição não deve ser entendida nessesentido, a saber que a Natureza não é o todo ou o Absoluto, masque ela existe somente como uma parte ou um modo. Pois, em simesma, e no âmbito de sua existência, ela é o que pode e deve ser,contendo toda a perfeição que comporta sua constituição interna esua essência. É desse modo que cada membro deve ser consideradocomo imperfeito em relação ao corpo inteiro, nos limites de suafunção específica, conforme o que deva ser102. Em relação a isso, épreciso observar as contradições que há na consciência vulgar ouno entendimento que, após se sentir chocada com as maldições daNatureza, se extasia diante dela, na presença da harmonia, dabeleza e da grandeza de suas obras, da vastidão dos mares, daimensidão do espaço, do número infinito dos corpos, e fica de talmodo admirado que acaba esquecendo-se do homem e do Espírito,ou confundindo-os com a Natureza. É sempre esse pensamentoirrefletido, que ao pretender separar os seres de um modo absoluto,

se encontra levado, à sua revelia, a reuni-los, que se afasta de umprincípio, mas que depois o admite de uma outra forma, e que, naimpotência de conhecer as verdadeiras relações, confunde ouultrapassa os limites reais de sua existência.

102  Ver mais adiante, cap. VI, § 3.

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Porém, quando se está na presença da Natureza e do Espírito,se crê que se possa suprimir a primeira e considerá-la como uma

simples possibilidade. Eis, com efeito, o modo como se raciocina.É impossível suprimir o Espírito, que se pensa a si mesmo e

que pensa todas as coisas. Pelo fato de que o pensamento é para oEspírito a condição da existência, de sua própria existência, assimcomo da existência das coisas em geral, por isso que suprimir oEspírito seria suprimir todas as coisas e o que permaneceria seriasomente o nada. De outro lado, o Espírito participa pela mesmarazão no Absoluto, concebe as verdades eternas, e, a esse título, sepode dizer que é necessário e incriado como estas. Isto não é omesmo em relação à Natureza. Nada, com efeito, é necessário nela,nem os seres, nem as leis que a compõem. E sendo ela estranha aoEspírito, estando neste somente acidentalmente unida, pode-seconcebê-la como não existente, sem que o Espírito em si mesmo eas verdades contidas nele deixem de existir.

É na base de todos os raciocínios pelos quais se pretendeprovar a contingência da natureza, e prosseguir nessademonstração pela via da abstração e da suposição, a qual consisteem separar a parte do todo, as propriedades de sua substância, emconsiderá-las isoladamente e em afirmar sua contingência ou não-existência, que um tal pensamento não implica contradição. Este

método, externo e artificial, é o empregado por Descartes, o qualnunca é fundado na natureza das coisas, tomando as ideias aoacaso, e, por isso, por separá-las, rompe suas relações e seuencadeamento, e somente avança com a ajuda de suposiçõesforçadas, pueris e inadmissíveis103. Este método é também seguidopor Hume, quando afirmava, embora conforme outro objetivo, que

103 Cf., cap. precedente, § 5.

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não há nenhuma necessidade objetiva nas leis da Natureza, e que sepode conceber, por exemplo, entre dois corpos que se interagem,

entre as estações e a vegetação, ou entre tal planta e suaspropriedades (a nutritiva, por exemplo), um todo diverso a umoutro que existe agora. Começa-se, pois, por suprimir aspropriedades, do fogo, por exemplo, a da brasa, e, como se podesupor que o fogo não exista, retira-se o próprio fogo, e após o fogo,a água, e depois, o ar, e assim por diante, até que a Natureza inteiraesteja suprimida.

O vício desse método consiste em substituir o pensamentonecessário e objetivo, ou seja, a ideia, por um pensamentosubjetivo, acidental e arbitrário. Consiste, pois, em dispersar osseres, tomando-os isoladamente, em lugar de considerá-los em seuestado concreto e em sua unidade, o que significa dizer que essemétodo somente mantém o nome.

Quando se desenvolve, com efeito, o verdadeiro ponto devista da ciência e do ser, e se conhece a Natureza em sua existênciaobjetiva e essencial, se reconhece facilmente que tudo nela énecessário, sua existência, assim como suas relações e suas leis.

Para tanto, somente deve-se exigir se a Natureza possui umaessência, um princípio invariável e absoluto, enquanto a base e afonte dos fenômenos e dos acontecimentos produzidos. Pois reside

aí o ponto decisivo da questão.Porém, a questão desse modo colocada é resolvida de modoprecipitado. Pode-se imaginar, portanto, a menos que se queirafazer suposições as mais arbitrárias e estranhas, uma matéria quepudesse ser constituída de outro modo, desprovida de peso, porexemplo, ou que não preenchesse o espaço? Ora, se a matériaexiste, quanto à sua base e substância, assim sendo constituída de

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modo que não possa ser de outro modo, seus acidentes e suaspropriedades serão marcados da mesma característica invariável e

de necessidade. Tem-se distinguido, é verdade, duas espécies depropriedades, as  primárias e as secundárias. Mas, supondo queseja fundada, tal distinção não tem nenhum sentido, caso seconclua que as qualidades secundárias não são essenciais einerentes à matéria. Pois isto seria igual àquele que raciocinassepretendendo que as pernas e os braços não sejam membrosessenciais do corpo, uma vez que se pode conceber um homemvivo privado desses membros. Pode-se concluir que hápropriedades distintas, propriedades que se diferenciam entre si,como a qualidade, a substância, o bem. Mas, como se vê, essadiferença não possui aqui nenhuma aplicação.

Aliás, como a luz, a cor, o odor, poderiam existir fora damatéria e de outras propriedades? Pode-se admitir que essaspropriedades, sem a matéria, venham a se acrescentaracidentalmente sem se poder conhecer como. Mas de onde seoriginam? Consideradas em si mesmas e independentemente damatéria, o que são? De onde possuem uma realidade, um princípio?Mas é preciso que possuam um. Se possuem um, são, na esfera desua existência, necessárias como a matéria e suas propriedadesessenciais.

Mas se a matéria e suas propriedades são fundadas emprincípios invariáveis e absolutos, as relações que nascem dascombinações de suas propriedades, assim como as diversas formasou modos da existência que essas combinações engendram naNatureza, oferecem os mesmos caracteres e se submetem àsmesmas condições. Pois as relações entre dois ou vários termos,leis, princípios, ou essências, são dadas na constituição mesma

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desses termos, e a necessidade dos termos requer a necessidade desua relação. A conexão que existe entre a luz, a cor, a planta, o

organismo, não é um fato externo e acidental, que teria sido, casose possa assim dizer, supra-acrescentado, mas deriva de suaessência. É esta conexão e este encadeamento necessário einvariável que ocasionam a ordem e a harmonia da Natureza.

Por conseguinte, essa ordem e harmonia não são mais o fatode uma vontade e uma força contingente e arbitrária senão aessência das coisas naturais. E quando se pretende que não há umarelação necessária e objetiva, uma relação metafísica como échamada, entre as coisas da Natureza, e que com base nesseprincípio se diz que não há razão absoluta para que a Terra ou oSol ocupem tal ponto do espaço antes que um tal outro, ou que aluz seja necessariamente feita para a planta ou para o olho, ou o arpara o organismo, e que, por seu turno, a planta, o olho, oorganismo, sejam constituídos de modo que somente podem existirse alimentando da luz, do ar, etc., ou seja, quando se representadesse modo a Natureza, fica-se numa posição de fora da Naturezaem si mesma, e, em lugar de considerá-la no conjunto de suasrelações e em sua unidade, toma-se um elemento, umadeterminação particular isolada do todo, e se segue livremente navia das suposições.

Mas a Natureza é um todo, um conjunto de determinaçõesligadas por relações necessárias e internas, um organismo, ondecada mola, cada membro, tendo uma função própria, tem econcorre para a vida do organismo inteiro.

Não se ousaria suprimir o sistema solar, porque asimpossibilidades que resultariam dessa suposição seriam muitoevidentes. Mas se acredita que isso seja possível. Pois qual

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impossibilidade há que seja um pouco mais acima, ou mais abaixo,um pouco à esquerda, ou um pouco mais à direita? De todo modo,

não se saberia, acrescenta-se, assimilar tal impossibilidade emrelação às impossibilidades metafísicas e geométricas. Há, nisso,por conseguinte, duas ordens de realidades e de princípiosdistintos.

Porém, em primeiro lugar, no que concerne às duas primeirassuposições, estas são no fundo as mesmas. Pois suprimir ummembro, uma função de um organismo, ou removê-lo, significanos dois casos perturbar a harmonia e a unidade de suas partes, eprovocar, pois, a sua destruição. O resultado é, por conseguinte, omesmo. De resto, esses tipos de suposições se baseiam numaabstração. Toma-se o espaço, separa-se este da Natureza, resultatão-somente o espaço vazio e geométrico, depois preenchido,construindo-se uma Natureza nova à vontade. Como se houvesseum espaço absolutamente vazio! E como se o espaço fosse superiorà Natureza! Mas se fosse assim, dir-se-ia que tudo o que existe naNatureza é menos que o espaço, e, portanto, que o organismo, queé a base da vida e do pensamento, lhe é inferior na ordem dasrealidades e das essências.

Porém, nos é dito, pode-se conceber um espaçocompletamente vazio, enquanto que corpos sem espaço não se

pode conceber. De onde se conclui que o espaço é absoluto, eterno,que subsistiria mesmo se a Natureza deixasse de existir, e que aNatureza, ao contrário, é contingente e perecível.

Mas, conforme não se pode conceber um corpo em repouso,ou completamente incolor, opaco, etc., segue-se que o movimento,a cor, a luz, são estados ou modos acidentais dos corpos? Nessecaso, os corpos não seriam compostos somente de elementos

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acidentais? Pois o que afirmamos do movimento e da cor pode seraplicado aos seus contrários, e, em geral, a todas as propriedades

dos corpos. Além disso, se é verdade que o espaço forma um nívelde existência superior à Natureza, podendo ser concebido sem esta,será preciso afirmar também que o mesmo é superior ao Espírito,ao espírito finito, assim como ao espírito infinito, por poder serconcebido sem este, o que é absurdo, sob qualquer ponto de vista.

Isto provém, repetimos, desse falso método de abstração que,em lugar de aplicar-se à unidade viva e concreta, aplica-se a umaunidade abstrata e vazia, e faz, pois, do ser , do espaço, etc, as maisaltas realidades104; que, em lugar de conhecer as coisas ao mesmotempo em suas relações e em suas distinções, as separam de ummodo absoluto, ou as confunde, inclinando-se, por isso, a separar oespaço e a Natureza, conforme se tentou separar, aliás, adivisibilidade e a indivisibilidade, a causa e o efeito, a atração e arepulsão; que, portanto, caminha ao acaso, concordaarbitrariamente uma essência com tal ser, e a recusa em tal outro;que, enfim, caminha do lado inverso da verdade e da realidade dascoisas105, e é levado a atribuir mais realidade ao espaço que àmatéria, mais à pura matéria que ao sistema solar, mais a este queao organismo, e, por consequência, mais ao organismo que aoEspírito.

Quanto à diferença que se assinala entre os princípiosmetafísicos e os físicos, ela é fundada no sentido de que taisprincípios pertencem a duas esferas particulares e distintas daexistência; pois é precisamente tal diferença que distingue a Lógica

104 Cf. cap. precedente, § 5, e cap. VI, §§ 1 e 3.

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da Natureza. Mas não se saberia legitimamente concluir disso queas verdades físicas sejam menos absolutas e menos necessárias do

que as verdades chamadas metafísicas.O que engana aqui e leva a estabelecer essa diferença, é que as

verdades lógicas são, por sua essência, mais abstratas, mais amplase gerais que as verdades físicas, e que elas englobam, porconseguinte, todos os seres e todas as relações possíveis106,enquanto que as verdades físicas são limitadas, e relativas a talordem de existências e de relações. Portanto, quando se diz quetodo efeito tem uma causa e que é impossível que não possuanenhuma, enuncia-se um princípio que se estende a todos os seres,a todas as causas e a todos os efeitos, o que faz com que se percebaum efeito que escapa a essa lei. Quando se diz, ao contrário, que oolho não poderia ver sem a luz, que o pulmão não poderiafuncionar sem ar, que a terra não poderia existir sem o sol, que asduas forças, de atração e repulsão são os dois elementos essenciaisdo movimento circular, enunciam-se verdades particulares quesomente se aplicam a uma esfera limitada da existência. Mas,nesses limites, elas são tão absolutas e necessárias como asprimeiras. Pode-se dizer, por conseguinte, que implica que o olhoexiste sem a luz, e o pulmão sem o ar, pois a visão é o fim e a razãode ser do olho, e que a respiração é o fim e a razão de ser do

pulmão, e, generalizando tais exemplos, implica que a Naturezapossa se constituir de outro modo em relação ao que é atualmente.Desse modo, pois, temos razão em dizer que tudo é absoluto e

necessário na Natureza, como sua existência, suas determinações e

105 Com efeito, os corpos possuem uma realidade mais alta e mais profunda que oespaço, tão-somente porque contêm o espaço, enquanto que o espaço não os contém.Cf. sobre este ponto mais acima, cap. IV, § 5.

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suas relações, e que essa necessidade expressa que há uma essênciana base das coisas da Natureza, assim como na base de todos os

seres em geral, e que essa essência é, como todas as essências,imutável, eterna e incriada.

Mas dizer que a Natureza possui uma essência é dizer que háuma ciência e uma ideia da Natureza, ou seja, em outros termos,que a Natureza é somente uma forma, um modo, um grau da ideia.

Segue disso que o conhecimento da Natureza é, como todaciência, um conhecimento a priori e fundado nas ideias. É dissoque se origina a Filosofia da Natureza, ou o que os outros autoreschamam de Metafísica da Física.

Mas caso se crie repugnância em se admitir uma física daNatureza, tal repugnância torna-se mais viva ainda quando seapresenta a Natureza como um composto de ideias, e a ciência daNatureza como uma construção puramente ideal107.

É, sobretudo, o físico que deve rechaçar tal doutrina.Acostumado, portanto, de apoiar-se na observação e naexperiência, somente reconhece como real o que se traduz por umfato material e sensível, e vive, de qualquer modo, junto às forçasda Natureza. O físico dificilmente compreenderá que essas forças,esses seres e fenômenos tenham por princípios pensamentos eelementos inteligíveis.

Entretanto, o físico admite tais elementos tacitamente, nosentido de que são esses elementos mesmos que ele busca etrabalha, crendo buscar e reunir as forças materiais.

106  Ver § precedente.107 Este ponto se encontra implicitamente demonstrado nos estudos precedentes.Somente acrescentaremos aqui o que é necessário com vista a mostrá-lo numa evidênciamais completa. Teremos, de resto, a ocasião de relembrá-lo mais adiante, no cap.seguinte, § 3.

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Quando, com efeito, se entrega às suas investigações, o físicoobedece, a seu modo, às leis do pensamento, às leis e às ideias que

compõem o objeto da Lógica, considerando-as, em relação àNatureza, não unicamente a título de determinações dopensamento, mas enquanto determinações da Natureza em simesma. É assim que pensa, combina e ordena os fenômenosconforme as categorias de causalidade, de substância, dequalidade, de quantidade intensiva ou extensiva, com a convicçãoinstintiva de que essas categorias e essas relações compõem,enquanto elementos integrantes, a constituição dos seres daNatureza.

Qual é o objeto, em seguida, de suas investigações? Não éevidentemente o fato sensível e o indivíduo, mas o gênero, oprincípio e a lei. Estamos, por conseguinte, fora da esfera daexperiência e estamos no mundo das ideias e dos inteligíveis. Estemundo ideal e invisível é pressentido e logo admitido pelo físico. Éeste que, dirigindo sua mão e seu pensamento, ocasiona que suainteligência, obedecendo à sua tendência natural, se esforce emconhecer o fenômeno e fazendo-o jorrar , por assim dizer, dafricção das coisas sensíveis.

Tais considerações se aplicam igualmente à força. Pois, emprimeiro lugar, se poderia perguntar ao físico onde toma a noção de

força. E se esta se origina unicamente da inteligência, logo se dácomo um elemento lógico108, transportado na Natureza. Mas, desde

108 Esta palavra é tomada aqui no sentido hegeliano. Há, com efeito, uma noção lógicade força , assim como há uma noção de substância , de causa , etc., e é por isso que pensamoscomo sendo forças , seja o Espírito, seja a Natureza, e que as diferentes determinações noEspírito e na Natureza, enquanto  forças , são idênticas, e não diferem a não ser peloselementos novos que venham se acrescentar. Assim, por exemplo, a luz e o magnetismosão idênticos enquanto forças , e somente diferem pelas propriedades que constituem suamaneira de ser particular. Cf. § precedente.

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que se considere a força como um princípio puramente físico, e asdiferentes forças da Natureza, o  pensador , o magnetismo, a luz,

como princípios completamente distintos, cada uma dessas forças,tomadas em si, somente podem ser um elemento inteligível. Comefeito, o magnetismo não é tal fenômeno magnético, nem a luz talfato luminoso, e sim constituem a fonte, o princípio único eindivisível de todos os fenômenos magnéticos e luminosos, e,portanto, uma força que ultrapassa toda sensação e todaexperiência, somente atingida pelo pensamento.

O físico não tem, pois, meios de escapar do idealismo a nãoser de se lançar no nominalismo, e de considerar as forças, sejaenquanto puras abstrações, seja, à maneira de Kant, como formassubjetivas do pensamento, ou em dividir a força de modo infinito,de dispersá-la nos fenômenos, caindo, pois, no atomismo, ou emsubstituir as forças e as realidades da Natureza109, o que significadizer, em outros termos, que o físico, com base no idealismo, seencontra diante de dificuldades insolúveis, de modo que quantomais se encontra, mais se põe em contradição consigo mesmo ealcança um resultado oposto ao que espera obter. Rejeita, comefeito, o idealismo, porque somente deseja concordar que a ideiaseja uma força, um princípio real, uma essência, e depois se vêobrigado a construir as forças e os seres da Natureza com palavras,

109 É desse modo que Newton considerava as forças da Natureza. Hás vires (a atração ea repulsão), diz, non Physice sed Mathematice tantum considero ( Phil. nat. princ. math., défin. VIII  ).Em geral, a mecânica é somente uma mistura de dados da experiência e de fórmulasmatemáticas. Toma-se um fato, uma representação sensível, real ou suposta, e aplica-lheo elemento matemático. É assim, por exemplo, que se explica o movimento circular.Uma das visões mais originais e mais profundas de Hegel consiste, a esse respeito, em tersubstituído na física a demonstração matemática pela demonstração lógica e fundada naideia. Cf. mais acima o cap. IV, § 5 e § precedente. Veja Filosofia da Natureza, e Lógica, 2ªparte.

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abstrações, com pensamentos puramente subjetivos, ou comfórmulas matemáticas, isto é, com elementos os mais vazios e os

mais afastados da realidade e da força.Portanto, há uma ciência da Natureza, e esta ciência somente

pode ter como objeto a ideia. Por conseguinte, o método que seseguirá nessa esfera do conhecimento será o método que somente éadequado à ideia, ou seja, a dialética.

Algumas objeções poderão nos ser feitas, como: que talciência é muito difícil, que essa dedução pura das ideias, sobretudoquando aplicada no estudo da Natureza, oferece gravesinconvenientes, que aqui, mais que em outras ciências, overdadeiro método é o experimental; que se a experiência não é oobjeto final da ciência, é ao menos o instrumento o mais seguro;que sendo posto, à primeira vista, no domínio da especulação dasideias, sem se levar em conta os fatos e a realidade sensível, corre-se o risco de se redundar em erro, e de se perder no meio àshipóteses, da imaginação e das teorias ao acaso ou quiméricas.

Respondemos a tais objeções de modo breve, e principalmentequando determinarmos a noção da ciência e do verdadeiro método.Acrescentaremos aqui que o ponto essencial e decisivo não é o desaber se tal ciência é de difícil aquisição, e se o emprego de talmétodo pode produzir concepções hipotéticas e errôneas, pois

todas as ciências e todos os métodos são inseparáveis; logo, outorna-se necessário renunciar à ciência, ou admitir que ela nãopode ser fundada a não ser com a ajuda do método especulativo.

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CAPÍTULO VI

FILOSOFIA DO ESPÍRITO

§ 1

DO ESPÍRITO EM GERAL

A filosofia do Espírito tem por objeto determinar a ideia doEspírito.

A ideia do Espírito não é, nem tal espírito, nem taldeterminação, modo, estado ou faculdade, conforme são chamados,mas é o Espírito em si e a totalidade de suas determinações. É aIdeia mesma que põe essas determinações, e é a unidade da Ideiaque ocasiona seu encadeamento e sua relação.

A filosofia do entendimento processa-se em relação aoEspírito, do mesmo modo como em relação à Lógica, à Natureza eà ciência em geral. Queremos dizer que toma e combina ao acasoas determinações do Espírito, que em lugar de englobá-las de umasó vez, as isola e as considera separadamente, se limita a versarsobre uma tábua e a descrever de um modo superficial e externo,quebrando, pois, a unidade do Espírito, e também a unidade da

ciência. Pondo-se a investigar o Espírito, consegue conhecê-locomo o Espírito em si, que tal Espírito que investiga trata-se doEspírito em si que pode ser objeto da ciência. Mesmo nessa relaçãoo que parece propor é quebrar a unidade do Espírito, e se esforçarem demonstrar que existem tanto espíritos substancialmentedistintos conforme existem o meu e o dos outros indivíduos.

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É seguindo esse processo que tal filosofia estudasucessivamente a psicologia, a moral, a política, a arte e as diversas

determinações, leis ou princípios que pertencem a cada uma dessasesferas do Espírito. Mas qual é o fundamento dessas divisões?Qual sua relação, qual sua diferença? Qual sua importância efunção na vida geral do Espírito? E por que essa série dedeterminações, essas esferas diversas, através das quais sedesenvolve sua atividade? Há um princípio interno e como umaintenção única que, passando sucessivamente por esses níveisintermediários, eleva o Espírito a sua mais alta destinação? Essasquestões e outras semelhantes, a filosofia comum não esclarece, oumelhor, não as levanta. Entretanto, sem a solução dessas questões,não há ciência do Espírito. Tudo se dá, com efeito, na vida doEspírito, assim como na vida da Natureza, tudo tem sua razão deser, sua função e sua ação determinados. Cada nível de seudesenvolvimento procede de um desenvolvimento precedente, e sereúne, por um liame necessário, a um desenvolvimento ulterior emais profundo. A sensibilidade, o entendimento, a memória, ohábito, a linguagem, a moral, a política, a arte, a religião, não sãomodos, formas acidentais e externos que podem ser combinados,acrescentados ou excluídos à vontade, mas são elementosconstitutivos e integrantes, determinações que se seguem e se

encadeiam numa ordem necessária e invariável, cujo conjuntoconstitui a essência e a ideia inteira do Espírito.Há, pois, um Espírito em si, um Espírito que é a fonte do

espírito individual e do espírito geral, do qual estes têm a força, averdade e o ser, e pela unidade do qual se relacionam e encontramsua unidade.

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Eis uma consequência que decorre do que precede, e que,entretanto, é muito difícil de ser admitida.

Em primeiro lugar, dispõe-se pouco em reconhecer que osespíritos individuais tenham uma natureza e uma base comuns, eque suas diferenças provenham, seja do nível de seudesenvolvimento, seja da ação das causas externas, seja, enfim, e,sobretudo, de sua aplicação necessária nas diversas esferas deatividade, e nas funções diversas que constituem as distintasmaneiras de ser do Espírito em si mesmo. Consideraremos, a esserespeito, o que havíamos observado mais acima, a saber, que, casose negue tal unidade, proíbe-se, por isso mesmo, todoconhecimento do Espírito, e se cai num tipo de atomismo.110 Poisa ciência do Espírito, assim como de toda ciência em geral,somente é possível pela condição da unidade de seu princípio.

E mais. Rejeitando-se a unidade do Espírito, o resultado éficar embaraçado em explicar a experiência e a consciência em simesmas, consciência que se vê opor-se ao conhecimentoespeculativo. Como explicar, com efeito, a comunhão dos espíritos,o acordo, e mesmo o conflito de opiniões, de crenças e deinteresses, se os espíritos não possuem um único e mesmoprincípio? São fatos, todavia, simples e incontestáveis. Pode-semesmo afirmar que o Espírito é, pois, constituído de modo que

vive antes fora de si do que em si próprio, que se irradia ao redorpara se unir a outros espíritos, para se comunicar a estes ou paraassimilá-los, e que é por esta união, por esta fusão de seupensamento e de sua atividade, que sua vida se desenvolve, secompleta, tornando-se esta mais dinâmica e mais profunda111.

110  Ver mais acima, cap. IV, § 1.111  Ver §§ seguintes.

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§ 2.

ESPÍRITO GERAL.

Mas tal repugnância que se experimenta em admitir a unidadesubstancial dos Espíritos é bem mais viva ainda quando se trata doEspírito dos povos.

O que é, com efeito, o Espírito de um povo? Qual sentido hánessa expressão? Um povo é somente a reunião de váriosindivíduos, que têm em comum necessidades, interesses,faculdades psíquicas e intelectuais. Não há outro princípio, outraforça real a não ser o indivíduo e o espírito individual, e o que secompreende por tal noção é somente a coleção e a resultante dessasforças. Quanto ao Espírito dos povos, trata-se tão-somente de umapalavra e de uma abstração. É como se pretendesse que o exércitofosse outra coisa que os soldados que o compõe, e o corpo outracoisa além da reunião de seus membros. Tal é a noção que se temcomumente da vida social.

Caso se examine de perto tal concepção, se vê que esta ésomente o resultado do processo normal do sensualismo. Osindivíduos são considerados, de qualquer modo, um a um, e, após,conforme o que resulta da experiência, são reunidos, formando-se,

pois, uma sociedade. E como a experiência somente resulta emindivíduos, conclui-se que o indivíduo é a única realidade, e que aSociedade, a Nação, o Estado são apenas produtos do pensamento,abstrações.

Todas as objeções que há contra as doutrinas sensualistas são,por conseguinte, nessa acepção, ou de recusar toda realidade e todovalor em geral e toda ideia, ou de admitir, no caso atual, que do

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lado do espírito individual há o espírito geral, que anima aquele efora do qual não poderia subsistir.

Observamos, por conseguinte, que, caso se recuse em admitirum espírito comum, resulta em se considerar uma nação como umsimples agregado. Mas um agregado de indivíduos não forma umanação, e nem um agregado de soldados forma um exército, nem umde membros, forma um corpo. A ordem, a proporção, a distribuiçãodas partes e das funções, conforme leis e relações determinadas, éo que faz um exército, um corpo, assim como uma nação. Porconseguinte, nisso já temos um princípio, um elemento que não énem o indivíduo nem a coleção de indivíduos, mas o que envolve avida individual, o sujeita a certas condições e o forme numa vidacomum a todos. Admitindo que exista somente uma simplesmaneira de ser, uma forma, isto será sempre uma forma essencial,que, nos indivíduos, significa que a forma do corpo existe em seusmembros. Ora, trata-se não de uma simples forma, uma que sereferiria, por assim dizer, somente à existência externa doindivíduo, mas de uma força real que se acrescenta ao indivíduo, eque atinge a base mesma de seu ser.

Engana-se, com efeito, quando não se vê na associação que aresultante dos elementos individuais significa somente que o totalcontém as unidades que a compõem. Caso fosse assim, não haveria

diferença entre uma aglomeração de soldados e um exército, e asforças iguais, porém desigualmente distribuídas, deveriam produziro mesmo resultado. Pois a associação, a ordenação, o arranjo daspartes é uma força, uma realidade independente das partes em simesma, superior a estas, modificando-as por sua associação e lhetransmitindo uma nova força. O resto é o que se admite,implicitamente, quando se diz que o homem é um ser

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essencialmente social, e que não saberia viver fora da sociedade.Pois caso se reconheça, por isso, que a vida individual tem seu

fundamento na vida comum, que é nesta fonte que se alimenta,caso dela se retire, torna-se como a planta que, afastada do sol sedesmerece e perece.

Nos últimos tempos vem ocorrendo o abandono das teorias deHobbes e de Rousseau, que haviam imaginado um homemprimitivo e solitário, admitindo-se a necessidade da vida social;mas até Hegel não havia sido elevada a uma concepção de umespírito nacional112. Trata-se, entretanto, de uma consequênciasimples e necessária dessa concepção. Pois, ou o indivíduo se bastaa si mesmo, e encontra em si mesmo as condições e o fim de suaexistência, e, nesse caso, as doutrinas de Hobbes e de Rousseau sãofundadas, ou é preciso admitir um espírito nacional.

Mas o que impede de conhecer essa verdade é que em lugarde se considerar o indivíduo em seu estado concreto edesenvolvido, este é considerado em seu estado abstrato e virtual.É separado, assim, da vida determinada e real de um povo, e não érepresentado numa forma análoga àquela onde se origina, quandosuas faculdades, suas necessidades, seus instintos ainda receberamuma direção e uma forma, necessitando, por isso, de recebê-las.Conclui-se disso que o indivíduo, considerado em si mesmo, é um

todo completo, e carrega consigo tudo o que exige sua natureza eseu destino, e, por conseguinte, sua asserção numa sociedadeparticular não acrescenta nenhum elemento, nenhuma faculdadeessencial à sua existência.

Porém, em primeiro lugar, este não é o verdadeiro e realindivíduo. O verdadeiro e o real indivíduo não é a criança, mas o

112 Cf. mais abaixo.

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homem, que não é o indivíduo abstrato e indeterminado, mas oindivíduo determinado, pertencente a tal época, a tal povo, vivendo

num meio social que se apodera dele desde seu nascimento, quesolicita e dirige sua atividade e faz penetrar, caso se possa dizerassim, em sua substância. Cada um é de seu tempo e de seu país,diz o senso comum. Esta frase é somente a expressão simples eespontânea do que estamos expondo. O indivíduo é tão-somente,com efeito, um fragmento de um único e mesmo edifício, umproduto da época a qual pertence, e reflete, sob formas e conformepontos de vista diversos, com seus erros e acertos, seus vícios esuas virtudes. Aquele que se põe fora de sua época, se põe fora dahistória, e se consome nas lutas e nos desejos insensatos e estéreis.As restaurações literárias e as restaurações políticas são contra-sensos históricos113. Elas são um sinal sinistro para um povo, umsinal de esgotamento e de morte. Pois elas mostram que a vida seretira dele, que o presente lhe escapa, e que, como a velhice, vivesomente de sonhos. A tradição e o passado são, sem dúvida, ascondições e os elementos dos quais é preciso levar em conta, etorna a entrar na constituição de uma sociedade. Mas significam oselementos secundários e subordinados, frágeis por si mesmos emproduzir e em alimentar a atividade de um povo. O que faz a forçade um povo é o presente, é a vida atual que a anima, é a força

moral e material da qual dispõe, força que mantém o presente e faz,ao mesmo tempo, reviver o passado. Significa, pois, que as antigas

113 Falamos aqui dos princípios e das ideias, e não dos homens que os representam.Pouco importa, com efeito, nesse ponto de vista, que seja tal personagem ou tal dinastiaque os represente e os realize. O essencial é que sejam realizados. A esse respeito, aquestão consiste em saber se o representante de uma antiga ordem de coisas pode securvar frente à ordem nova e à nova direção do Espírito. Essa transformação é tão maisdifícil que a possessão que se tornou mais prolongada.

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civilizações se perpetuam e são revividas nos monumentos, nosidiomas, nos costumes e nas instituições.

Mas, por isso mesmo, o que faz a força do indivíduo não é oisolamento, não é a concentração vazia e solitária de suapersonalidade sobre si próprio, nem as aspirações indefinidas efrágeis em relação a uma época que não existe mais, nem mesmosob alguns aspectos, em relação a um futuro afastado e puramenteespeculativo114, mas é a faculdade de seu lugar no seio da vidaatual do mundo, de se apropriar sobre este, de se libertar, pelopensamento ou pela ação, de tudo o que contém de força e deverdade, e dar, por isso, uma forma clara e concentrada ao queseria somente um estado obscuro e de dispersão, caso se pode dizerassim, na consciência da humanidade. Eis porque as grandesindividualidades nos parecem como fatalmente ligadas à sua época

114 O que dissemos aqui se aplica ao espírito geral, ao espírito que vive da vida limitada

de um povo, de não ao espírito que se eleva ao absoluto. E, com efeito, não é seconcentrando em sua existência egoísta e puramente individual, nem mesmo em suaexistência nacional que o homem goza da verdadeira liberdade, mas elevando sua alma àliberdade e à verdade absolutas. Nisso acompanham a arte, a religião e a ciência (cf. maisabaixo, §§ 3 e 4). A vida social onde o espírito geral é um espírito relativo. Uma nação,mais alta que seja sua civilização, exprime somente um nível, uma esfera limitada daexistência do Espírito. Por conseguinte, quando o homem político aplica no governo deum povo o que é somente verdadeiro na esfera da absoluta existência, põe este povo forade sua natureza e da história, porque o põe de fora do que é possível. Toda a ciência dohomem do Estado consiste, a esse respeito, em saber o ponto de junção do relativo e do

absoluto, e em ver em qual medida e sob qual forma a vida atual de um povo podereceber e realizar o absoluto. Coisa difícil, sem dúvida, e sempre mesmo impossível, massem a qual, entretanto, reside toda a arte de governa. É, aqui, também, que se podeexplicar a força e a fraqueza do homem político e dos grandes indivíduos querepresentam o espírito de um povo. Sua força provém do que concentram e exprimem,da maneira a mais perfeita, do pensamento de uma nação. Mas essa força se transformaem fraqueza por isso mesmo, uma vez que se identificando com o espírito limitado deum povo e de uma época, esquecem, ou não desejam reconhecer o Espírito, a liberdade ea verdade absolutas. Enfim, é aqui também que se pode ver o que há de irracional nacélebre palavra de Platão, que os povos somente são felizes quando os reis foremfilósofos. Cf. mais abaixo, § 4.

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e ao país. Retire Alexandre, César, Napoleão, e mesmo Platão,Aristóteles, Kant, Hegel, do meio que os viram nascer e se formar,

e não terás mais que personagens vulgares ou insignificantes115.Todos os grandes eventos são obras dos séculos, e quando estesalcançam a maturidade, o indivíduo sofre suas consequências, ouas realiza, mas não se sente responsável por tais eventos.

De resto, desde que se separe o indivíduo de um meio socialdeterminado, e que o considere em sua natureza geral e abstrata,torna-se fácil ver que tudo lhe indica a necessidade da vida comum,que suas faculdades, suas necessidades, seus instintos dos maisínfimos aos mais elevados, sua vida física e sua vida moral, aciência, a arte, a religião, a liberdade, a justiça, estão intima einvariavelmente ligadas à existência da sociedade, sendo que énesta que podem se desenvolver e encontrar sua satisfação, e quefora dela não têm nem o seu alimento, nem o objeto, nem razão deser.

Também, aqui, pode se levar em conta um problema postopela ciência política, o qual é a fonte de ilusões e de decepções. Emgeral, o homem político põe o criterium de sua conduta e de suasdecisões no número. Assegurar-se das adesões da maioria é oobjetivo de todos seus esforços; as necessidades e os interesses deum povo; a verdade e a força de uma opinião, assim como as

chances de sucesso, não têm, a seus olhos, medida nem sinal de115 Com efeito, a filosofia, pela natureza mesma de seu objeto, que é o universal e oabsoluto, não se submete às condições do tempo e do espaço. O que ela exprime não é opensamento de um povo e a verdade limitada própria deste, mas o pensamento e a verdade absolutos. Entretanto, uma doutrina filosófica, compreensiva que seja, é umresultado. É o resultado de uma educação filosófica determinada, de hábitos, deconhecimentos, de métodos próprios para conduzir o Espírito no nível dodesenvolvimento e da força, onde se abre às condições finitas da existência e se eleva atéa verdade absoluta.

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algo infalível. Entretanto, a experiência fornece, a todo tempo, osmais fortes desmentidos a essa doutrina. Pois as reformas, as

transformações sociais, a mudança das instituições políticasfrequentemente são obra das minorias.

O erro consiste em que o homem político somente vê noEstado uma aglomeração de forças individuais, o que faz com queao invés de considerar as opiniões e as tendências em si mesmas eem seu valor intrínseco, apenas estima nelas a quantidade de sinaisexternos e materiais, e que em lugar de se esforçar em reconhecer oprincípio e o elemento ideal dos acontecimentos, somente seesforça em contar e calcular os sufrágios. É desse modo que suavisão obscurece, que o sentido real e oculto dos acontecimentos lheescapa, residindo sua perda naquilo que acredita estar sua força evitalidade.

É verdade que a força não reside no número. Não reside nemno que é maior, nem no menor, mas é ora um, ora outro; o quesignifica que acima dos indivíduos há uma força geral que osanima, uma justiça, uma verdade, uma liberdade – absolutas – , umEspírito, em uma palavra, que os domine e que julgue em últimainstância. Quando este Espírito existe em maior número, é o maiornúmero que prevalece; quando é o número pequeno, é este últimoque prevalece116.

116 É do mesmo modo que é necessário explicar um fato observável, ocorrido tãofrequentemente na vida pública, de uma ideia que é admitida e rejeitada pelos mesmosindivíduos; admitida ou rejeitada, quando tomadas coletivamente, e quando em separado.Ser-nos-ia fácil multiplicar as aplicações e os exemplos. Mas nos limitaremos a esclareceruma questão da qual não foi dada até aqui uma solução satisfatória. Trata-se da questãoda propriedade. Segundo alguns, a propriedade teria sua origem e seu fundamento naocupação da posse; conforme outros, no eu, na personalidade e na livre atividade, emque a propriedade seria o sinal visível, como uma extensão material. Ora, nenhumadessas teorias pode levar em conta a propriedade. Com efeito, os adversários dapropriedade poderiam objetar aos partidários desta, o que não se vê, porque tal indivíduo

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possuiria anteriormente a um tal outro. A ocupação da posse é um fato e não um

princípio, e se resolve na força, a brutal e individual, ou ao acaso. Quando há posse,trata-se do indivíduo ou do Estado, sendo preciso que haja autoridade, que o elementoracional venha sancionar e legitimar o ato. Quanto à segunda ideia, ela é, também, maiscapciosa que verdadeira. Pois podemos, primeiramente, perguntar sobre o que seentende sobre o eu. Este é o princípio-átomo, espécie de unidade matemática da qualfalamos mais acima (ver cap. IV, § 1, e mais abaixo, § 3), absoluta e substancialmenteseparado das coisas? Ou, toma-se da palavra eu um de seus caracteres, a personalidadeou a liberdade? Trata-se de um ponto sobre o qual os partidários dessa concepção nãoexplicam. Pois, caso se ponham a explicá-lo, ou ficam embaraçados, ou são obrigados aaprofundar mais a questão, o que os levaria a abandonar tal concepção. Com efeito, dequalquer modo que se compreenda a palavra eu, que se compreenda num ou noutro

sentido, está longe de se levar em conta a propriedade. E mais: essa explicação vai contrao objetivo que é proposto. Pois, em lugar de justificar a propriedade, não se consegue veraqui também porque tal homem possuiria antes que um tal outro. Pois ambos possuemum eu, ambos são dotados de liberdade, e, a esse título, devem ambos possuir. A divisãoda propriedade é, pois, a consequência dessa doutrina. Acrescenta-se, é verdade, comoescape, que não se trata do eu em geral, do eu no estado bruto e virtual, mas do eudesenvolvido, do eu que possui a inteligência e a moralidade, ou seja, a economia, aprevidência, o amor do trabalho, etc. (É este ponto de vista que levou a teoria da formação,a que funda a propriedade numa ocupação prolongada e no capital (material ou moral), ater que supor evidentemente os outros dois eus). Mas deve-se observar, primeiramente,

em relaçao à inteligência e à moralidade, que o homem não pode adquiri-las sem oconcurso da sociedade, que preside a sua educação e lhe fornece os meios paradesenvolver suas faculdades. Nesse caso, a propriedade não seria fundada no eu, mas nadupla ação do eu e de um não-eu. Com efeito, a propriedade não é um fato subjetivo eindividual, mas um fato, ou, melhor, uma lei objetiva e social; e o não-eu nisso intervémde dois modos: 1º Como ser moral; é a sociedade propriamente dita que regra apropriedade e determina os direitos e os deveres que ela prescreve para cada indivíduo;2º como ser físico; é o solo ou qualquer outro sinal material representando a propriedade.Por conseguinte, o homem existe na propriedade sob a forma de um não-eu antes de umeu. Suprimir, com efeito, a sociedade, suprimir o sinal material da propriedade, é deparar-

se somente com uma abstração, um eu que somente possuiria sua abstrata personalidadeabstrata e vazia. De outro, se este fosse o fundamento da propriedade, se chegarianecessariamente a esse princípio, de que a propriedade somente pertence à inteligência eà moralidade. Mas pôr este princípio não se pôr somente em contradição com aexperiência, é ir contra a abolição da propriedade. Pois é preciso despossuir o os ociosose os dissipadores, suprimir o direito de testar, de doação, etc. Tal dificuldade em explicara propriedade provém do que nesses dois caos, na teoria da primeira ocupação, assim comona teoria do eu , se fica no ponto de vista individual. Ora, quando se atém ao princípioindividual, não se explica nada. Não se explica nem a família, nem a propriedade, nem oindivíduo em si mesmo. Pois, desde que me fecho em minha individualidade, nãosomente me proíbo de toda possibilidade de explicar os seres diversos do eu, mas crio

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§ 3.

ESPÍRITO ABSOLUTO.

Se o espírito individual não pode viver e se desenvolver forado espírito geral, se ele possui força e verdade na medida em quese identifica com este, em que se aproprie e exprima a verdade enatureza íntima deste, o espírito dos povos encontrará, por seuturno, o seu princípio no Espírito absoluto, e a grandeza e a forçade um povo, sua duração e sua ação sobre o mundo dependerão damedida segundo a qual o Espírito absoluto, o Espírito do mundocomo é chamado por Hegel, se manifesta e se comunica com ele.Uma vez que o Espírito absoluto ocasiona a unidade do espíritodos povos, ele é o princípio e o fim das coisas, a existência a qualaspiram a Lógica e a Natureza, onde encontram sua perfeição e suaunidade.

Porém, há um Espírito do mundo? Caso exista, como sedefine? Qual sua natureza? Como realiza a unidade do Universo?São questões que serão esclarecidas, a seguir.

1º) Em primeiro lugar, há um Espírito absoluto?

um mistério inexplicável para o próprio eu. Pois o verdadeiro ponto de vista, o qual énecessári ser posto aqui, como em toda outra questão, é o ponto de vista objetivo e a

ideia. A propriedade é uma condição, um elemento essencial da vida social, ou, paraempregar a linguagem de Hegel, a propriedade é um momento, uma determinaçãonecessária da ideia do dirieto e do Estado? Eis como o problema deve ser posto. Se agorase demonstra, do modo como faz Hegel (ver Filosofia do Direito ), que tal é, com efeito, acondição da vida social, pouco importará o que seja tal indivíduo, tal número deindivíduos que possuem, ou mesmo todos que possuem, supondo que isto pode terlugar, assim como pouco importa que a posse seja o fato de uma doação, de umaprimeira ocupação, ou de um outro tipo. O essencial é que haja proprietários. O resto ésomente secundário, acidental e relativo, e fica subordinado à fertilidade do solo, à suadivisão, à atividade de seus habitantes e às circunstancias externas que a favorecem.

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Para responder a essa questão, deve-se somente buscar se emrelação ao conjunto das diferenças que distinguem e separam os

povos, não há relações íntimas e essenciais que os unem, e se omovimento da história, através de seus acidentes, suas formasvariáveis, não obedecem a uma impulsão, a um pensamento único,a uma base, como que seguindo uma trajetória comum, no sentidode que os acontecimentos se desenvolvam e se encadeiem.

Oras, essas relações, essa unidade da história, constituem nãosomente um fato, mas uma crença instintiva e natural. É, ademais,uma doutrina ensinada pela religião, assim como pela ciência.Todas essas relações, com efeito, todas as comunicações de ideias,de sentimentos e de interesses que se estabelecem entre os povos, atransmissão da ciência, das doutrinas sociais e religiosas sebaseiam neste princípio. Expressam a crença e a convicção naturalseguidas por esses povos, conforme suas instituições, suasconquistas e atividades, ou aquilo que venha a se submeter à suadominação, e que possui as mesmas faculdades, a mesma naturezae o mesmo destino. Eis aí o verdadeiro e profundo impulso, emesmo a razão metafísica das conquistas, e a missão civilizadora ebeneficente dos conquistadores. Toda conquista é, por conseguinte,um progresso, não somente porque revigora e renova o povovencido pela energia e seiva do povo vencedor, mas também

porque supõe sempre o império da razão, pondo em evidênciacertas verdades universais, certas tendências comuns efundamentais, as quais fazem aprofundar mais a inteligência noconhecimento da natureza humana, dos instrumentos de que eladispõe, e do fim que almeja. As religiões em si mesmas partemtodas deste princípio, todas escondem, em seus dogmas e em seusensinamentos, essa unidade da verdade e do ser, que é a

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necessidade mais profunda da inteligência. Seu espírito dedominação e sua intolerância possuem somente uma consequência.

Pois todas se creem de posse da absoluta verdade, e incitam ospovos a proclamá-la com elas, pelo reconhecimento de quenasceram nesta verdade e carregam em seu espírito a sua semente.Por conseguinte, sua intolerância não é a de uma exclusão, mas ade um proselitismo. Não tem por objeto encerrar o ciclo de suadominação, mas de estendê-lo pelo triunfo de suas doutrinas117. Esua ação é antes mais irresistível por partir deste princípio, por seusensinamentos não se endereçar a tal povo, mas a todos os povos, ede não satisfazer somente às necessidades e às crenças de umaépoca, mas às necessidades e às crenças do gênero humano. Trata-se do pensamento dominante na  História de Roma, pensamentoque levou Vico a considerar como o tipo de história de todos ospovos. Pois Roma não se limita a impor aos povos conquistadosseus costumes e suas instituições políticas, mas deseja lhes imporsuas instituições religiosas, da mesma maneira que suas leisconstituem, aos seus olhos, a forma a mais perfeita da vida civil, eque sua religião, seu  Júpiter optimus maximus, deve reunir esubmeter todas as religiões e todos os deuses dos povosvencidos118.

Mas essa crença, esse princípio que foi germinado e

desenvolvido nas antigas religiões, o cristianismo o enuncia de117 O essencial, a esse respeito, é que ela esteja em harmonia com as necessidade reais eatuais do espírito. Todas às vezes que se firma nessa convicção, a intolerância é legítima. Trata-se da intolerância da razão, da ciência, do mestre que obriga o discípulo a aprender. Todas às vezes, ao contrário, que ela não tem por fundamento e por objeto a justiça, aliberdade e a ciência, mas a dominação material, e que em lugar de promover a expansãodo espírito, o detém e o subjuga, isto não é mais o império da razão, mas a violência e aescravidão.118 É o pensamento que comanda a elevação do Panthéon.

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uma maneira clara e explícita, e torna-o a base de seu ensinamento.A unidade do gênero humano e de sua origem, o homem, e o

espírito humano sendo emanado de uma única e mesma fonte, eDeus sendo o criador e pai de todos os homens, tais são os dogmasfundamentais do cristianismo. Ora, sob qualquer ponto de vista quese tenha, de qualquer modo que se represente o espírito divino e oespírito humano considerados em si mesmos e em sua relação, ouseus dogmas não têm sentido, ou enunciam e supõem a unidade dahistória, e a unidade da história na unidade do Espírito. O queconstitui, com efeito, que a vida do Espírito é o estado, a arte, areligião, a ciência, todas as coisas que somente possuemsignificação nele, que não poderiam existir fora dele. Ora, há umarelação, uma comunidade de origem e de natureza entre asreligiões e as instituições políticas dos povos? E a arte antiga, aarte moderna, embora cada qual em suas características esignificação próprias, não obedecem a uma tendência e a leiscomuns?

Mas já demonstramos a existência dessas relações.Acrescentaremos que, se essas relações não existissem, nãopoderiam ser comparadas, porque toda comparação supõe aunidade dos termos comparados num princípio comum, quefornece, ao mesmo tempo, a medida de sua semelhança e de sua

diferença. Com efeito, toda religião, independente se imperfeita egrosseira que seja – a adoração da Natureza, do Sol, de um Fetiche, –  significa por isso mesmo que é uma religião, vale mais que airreligião e a ausência de todo culto. Ela existe, por conseguinte,em relação a todas as religiões, e aquelas que estão, por seu turno,em relação com ela. É o que explica e torna possível atransformação das religiões, a ação que exercem umas sobre as

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outras, e o que faz com que uma religião possa se corrigir, semodificar, se completar, ou fazer parte de uma outra.

Ora, essa relação e o movimento das religiões não poderiamexistir a não ser pela condição de uma religião absoluta, de umaideia de religião que englobasse as diferentes religiões particulares,da qual estas somente sejam graus, manifestações transitórias elimitadas119.

O que dissemos da religião se aplica à arte, ao Estado e àciência.

A humanidade, diz com razão Pascal, é um homem queaprende sempre. Mas essa continuidade da ciência supõe suaunidade. Ela supõe que as pesquisas, os problemas e os resultadostransmitidos ao longo dos séculos, os conhecimentos que cadageração acumula, possuem um foco comum, obedecem a umamesma impulsão, e desejam um mesmo resultado. É a unidade daespécie na diversidade de seus produtos, é a unidade do organismona sucessão de seus desenvolvimentos e na variedade de suasfunções. Do mesmo modo que cada indivíduo reproduz, sob certoponto de vista e medida, a espécie, e o organismo se encontra eage, por assim dizer, todo inteiro com cada uma de suas funções,assim cada momento da ciência resume todos os momentosprecedentes, cada evolução do pensamento é como um olhar onde

se concentram e é refletido o passado e o futuro. A educaçãoartística e intelectual, a manutenção do estudo dos monumentos deum povo e de uma época, dos que não mais existem, não tem outroprincípio, nem obedece a um outro, senão que procura manter acontinuidade da ciência, de fazer reviver o passado e de preparar ofuturo.

119 Cf. mais adiante.

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Ora, esse desenvolvimento harmônico e contínuo da história,esse movimento constante do pensamento, que estabelece cada

ponto da circunferência no centro, cada direção parcial e isolada dainteligência numa direção comum, somente poderia ser realizadaem virtude de um princípio único, de uma ideia, de um espíritoabsoluto que está presente em cada ponto do tempo e do espaço,que anima cada ponto da história, e ordena, pois, a diversidade naunidade, e põe as partes em comunicação entre si e com o todo.

2º) Porém, se o Espírito absoluto existe, qual é sua natureza?E como realiza a unidade do mundo?

O Espírito absoluto e a Ideia absoluta, ou simplesmente a Ideia, são uma única e mesma coisa na linguagem hegeliana. Comefeito, a Ideia não é tal ideia, nem tal esfera da Ideia, a Lógica ou aNatureza, nem mesmo a coleção externa das ideias, mas é atotalidade das ideias, concentrada numa existência simples eindividual, numa ideia suprema que as envolve e as supera aomesmo tempo. Essa ideia é o Espírito120.

Mas, se tal é a natureza do Espírito, tudo existe em função doEspírito, tudo obedece a um movimento comum, em função desteprincípio último da verdade e do ser. Todos os graus inferiores daexistência somente são meios e instrumentos que preparam seuadvento e seu império; e a passagem de uma esfera a outra, dos

produtos os mais elementares da Natureza aos mais concretos, temunicamente por objeto alcançar este resultado. Desse modo, assimcomo o olho não é feito para a luz, mas esta para aquele, nem ocorpo para o olho, mas este para aquele, do mesmo modo a luz, oolho, o corpo, a Natureza inteira, numa palavra, é feita para oEspírito, e encontra neste seu princípio e seu fim.

120 Cf. cap. IV, § 4.

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Quando se diz, portanto, que tal coisa é feita por uma outra, écomo se afirmasse que esta é o fim da primeira. Mas o fim de uma

coisa, e, sobretudo, quando se trata do fim absoluto, é igualmente oprincípio. Por conseguinte, o Espírito não é unicamente o fim daLógica e da Natureza, mas é também o princípio, as quais, nessesentido, não poderiam existir sem o Espírito, nem fora deste.

Mas pelo fato, por sua vez, de conter a Lógica e a Natureza, oEspírito é o seu princípio e o seu fim. Contém-nas, não como doiselementos que lhe seriam estranhos, e que viriam a seracrescentados, por assim dizer, de fora, mas sim como doiselementos integrais de sua existência. Com efeito, o princípio ésomente o princípio de uma coisa, porque a contém, e somente é ofim desta, porque tal coisa encontra [neste princípio] sua perfeiçãoe sua essência; o que somente pode ser com a condição de tê-lo porprincípio. Por conseguinte, se a Lógica e a Natureza não podemexistir sem o Espírito, este não pode existir sem aquelas. O Espíritosai da Lógica e da Natureza, as envolve, como o sólido envolve asuperfície e a linha, e a natureza orgânica, a inorgânica. Do mesmomodo, pois, que essas coisas estão ligadas por uma relaçãorecíproca e necessária, também o Espírito, a Natureza e a Lógicaformam, num sentido mais profundo, uma existência una eindivisível. É assim que o último é o primeiro, e que o movimento

da ciência e da realidade formam um círculo, cujos extremos seconfundem em todos os pontos da circunferência, e cujo começo éo do fim, e este, o fim do começo121.

A sensação dispersa os seres e somente os leva em conta nasdiferenças e na sucessão do tempo e do espaço. O entendimento osdistingue e os separa segundo as categorias, o antes e o após, o

121  Ver mais adiante, sub finem , e mais acima, cap. IV, § 5.

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meio e o fim, a causa e o efeito, a substância e os acidentes, etc. Opensamento especulativo separa e une, põe, ao mesmo tempo, a

diferença e a unidade, e, sob a diversidade dos seres, encontra suaunidade. É assim que ele encontra o meio no fim e o fim no meio, acausa na consequência, e esta na causa, a unidade do organismo edo ser vivo através das fases diversas de sua existência; é assim,numa palavra, que ele encontra a unidade da Ideia em sua triplaevolução e na tripla esfera de sua existência, a Lógica, a Natureza eo Espírito.

Mas se tal é o Espírito, todas as determinações, todos os níveisque a Ideia percorreu antes de elevar até ele, são somentehipóteses, pressuposições, para nos servirmos da expressãohegeliana122. Tais pressuposições são colocadas pela própria Ideia,para se atingir sua absoluta existência. É esta propriedade quepossui de multiplicar-se sem nunca se separar de si mesma, e de seencontrar em cada uma de suas determinações, que ocasionaligação e a unidade dos seres. É assim que a criança pode serconsiderada como uma pressuposição da idade adulta. Mas se acriança se desenvolve até a idade adulta, encontrando-se nesta,embora combinada com outros elementos, é que há um princípio,uma força indivisível como causa da unidade do ser vivo, e queparte da criança até atingir a forma mais perfeita da vida.

A Lógica e a Natureza não são, por conseguinte, em relaçãoao Espírito senão pressuposições, e, portanto, estados inferiores eformas imperfeitas da Ideia.

De fato, embora em sua existência lógica ela possui suatransparência e sua perfeita pureza, e que nada venha romper oordenamento interno de suas determinações, a Ideia é somente uma

122 Platão emprega esta palavra de modo próximo deste sentido. Ver. cap. IV, § 5.

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virtualidade infinita123, e, também, ela se ignora a si mesma, é emsi e não  para si, conforme a expressão hegeliana; o que faz com

que suas determinações, o ser , a quantidade, a causa, etc., se deem,por assim dizer, mecanicamente, permanecendo cada qual comoestranhas umas às outras, e não se reunindo num centro comum eindivisível.

É a fim de sair desse estado de imperfeição que a Ideia passapara uma nova esfera da existência, se opõe também a si mesma eengendra a Natureza. Essa passagem da Lógica para a Naturezasomente pode se dar como uma passagem ideal, como uma lei,uma necessidade interna, que possui a Ideia para se desenvolver epoder alcançar a sua forma absoluta124.

Considera-se em geral a Natureza como uma decadência daIdeia. Com efeito, descendendo até a Natureza, a Ideia se separa,de qualquer modo, dela própria, rompe o ordenamento interno desuas determinações, e possibilita, pois, o acesso ao contingente eao acidente. O tempo, o espaço, o movimento formam o substrato,a base na qual a Ideia constrói a Natureza. O isolamento, adispersão dos seres, a individualidade material e externa são acondição e o caractere essencial de suas produções. Eis porque aNatureza somente surge como um símbolo da Ideia, como um véuno qual se esconde um ser invisível e imaterial.

Porém, se nessa relação a Natureza é uma decadência, pode-sedizer que, em outra relação, ela significa um progresso. Com

123 Cf. mais acima, cap. V, § 1.124 De qualquer modo, com efeito, que se represente a criação da Natureza e apassagem de sua não-existência para a sua existência, que essa passagem seja eterna ouque tenha alguma origem no tempo, é preciso sempre admitir que ocorre conforme umacerta lei, uma que contenha sua razão última, e que, por conseguinte, a explique

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efeito, na Natureza, a Ideia abandona sua forma e sua existênciaimóveis, e entra na região do movimento. Muito se dividindo e se

dispersando nos indivíduos, ela ocasiona uma realidade objetiva àssuas determinações e à sua atividade, e um mundo onde devem selibertar a consciência de si e sua absoluta unidade. Frente àimobilidade abstrata, o movimento é um progresso, e o bem que serealiza, embora de modo imperfeito, vale mais que um bempossível e indeterminado. O indivíduo existe virtualmente noprincípio e na espécie, mas o indivíduo desenvolvido, o quealcança o pleno domínio de sua natureza, é superior à espécieabstrata ou a completa. Quando se diz, por exemplo, que o bemque se realiza não acrescenta nada à ideia abstrata e lógica do bem,é como se dissesse que não há nenhuma relação entre esses doisbens, ou que o primeiro é somente um acidente, uma palavra vaziade toda realidade, duas hipóteses igualmente inadmissíveis. Pois,na primeira, haveria dois princípios do bem, e na segunda, seriapreciso explicar esse acidente e buscar saber se há uma relaçãocom o princípio do qual é um acidente, e qual é esta relação; o quenos conduziria sempre a estabelecer uma relação, e uma relação deessência, entre este bem acidental e seu princípio, e, portanto, umaextensão e um desenvolvimento do bem.

Não é preciso, pois, afirmar que a passagem da Lógica para a

Natureza produz uma decadência, mas unicamente uma oposição.Ora, toda oposição racional é um progresso, pois prepara e supõeum degrau mais alto de atividade e uma forma mais profunda daexistência. A sombra obscurece e limita a luz pura, e o frio o calor.Mas a sombra prepara e torna possíveis a cor e o ato da visão, e

necessariamente. Cf. mais acima, cap. IV, § 3; mais abaixo, § seguinte, e Logique sub finem et philosphie de la Nature.

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somente o frio, misturado ao calor, é que produz a temperatura eque pode ser objeto da sensação. O movimento circular é a unidade

de duas forças opostas, e a morte e a destruição são as condições daperpetuidade da vida.

É assim que a Natureza, enquanto negação da Lógica, forma apassagem para a mais alta e última afirmação da Ideia, para aesfera do Espírito. Todo o trabalho da Ideia na Natureza não possuioutro objeto. Todos os desenvolvimentos, todos os níveispercorridos por ela, o tempo, o espaço, o movimento, o sistemaplanetário, os elementos, a terra, sua constituição, a luta e acombinação de forças que formam o seu palco, somente aspiram aelevar a Ideia à unidade concreta do Espírito. Este é, portanto, oque existe de mais simples e de mais concreto ao mesmo tempo.Pois contém, de um lado, outras determinações próprias suas, aNatureza e a Lógica, e, de outro, as concilia na unidade de suaessência.

3º) Mas como, e sob qual forma, a Lógica e a Natureza seencontram no Espírito? E como este opera sua conciliação e suaunidade? É o que examinaremos agora.

Em primeiro lugar, porque o Espírito, contendo a Lógica e aNatureza, possui uma essência própria e distinta, a Lógica e aNatureza não existem no Espírito tais como existem em si mesmas,

mas existem combinadas com um elemento, um princípio novo queas transforma, elevando-as à sua mais alta determinação. Porconseguinte, a Lógica e a Natureza se repetem e se duplicam. Elasexistem de um modo no Espírito, e de um outro modo em simesmas e fora dele125.

125 Cf. mais acima, cap. IV, § 4.

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Pode-se ver nessa distinção somente um processo arbitrário,ou uma característica escolástica. É o que levou Aristóteles a opor-

se à teoria das ideias, considerando que esta faz multiplicararbitrariamente os seres.

No entanto, essa repetição é, ao mesmo tempo, umanecessidade racional e um fato universal e muito fácil de constatar.Desde que se admite, portanto, a diferença dos seres e de suarelação, que se trata da relação entre as coisas e seus princípios(Deus e o mundo, por exemplo), ou da relação entre os princípiosentre si, é preciso admitir que as coisas e os princípios semultiplicam com suas relações, e deve-se mesmo dizer que semultiplicam em quantas relações hajam. Por isso, se o mundopossui um princípio, isso significa que o mundo existe de um modoem si mesmo, e de um outro modo em seu princípio, não existindoem si mesmo do modo como existe em seu princípio. Quando sediz, por exemplo, que Deus é o princípio e o criador do homem, sediz que o homem existe de duas maneiras, em si mesmo e emDeus. A luz, combinada com os elementos, como a atmosfera, ocristal, a eletricidade, adapta-se a qualquer de suas formas. Osangue se multiplica nos tecidos e órgãos, e a matéria não existe noorganismo tal como existe no ar, nem neste do modo como existena água, etc.

Concebe-se, pois, facilmente a possibilidade, ou antes, anecessidade da transformação da Lógica e da Natureza noEspírito126.

É esta transformação que é o princípio e o fundamento da arte.Em geral, considera-se a arte como um acidente na vida do

mundo, como uma esfera da existência que existe, por assim dizer,

126 Cf. mais abaixo, § 4.

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exterior à constituição mesma das coisas. Diz-se, é verdade, que aarte modifica e completa a Natureza, mas se acostumou somente a

ver essa ação como um fato insignificante, puramente humano, eque poderia ser suprimido sem que a constituição dos seres fossemodificada.

É disso que provêm as dificuldades que se experimenta napresença de certas questões sociais, de economia política e deestética, e os erros em que se cai em relação a esse assunto.

Trata-se, portanto, de determinar o fim e as condições normaisda sociedade? Suprime-se, de um só lance, a arte e o Espírito, e porisso a história, e diz-se que é preciso restabelecer a sociedade noestado de natureza, ou seja, nos primórdios da vida humana, noestado onde o homem não tinha ainda amadurecido sua vidapsíquica por sua inteligência e liberdade. Ou, trata-se de determinara origem e a medida do valor? Limita-se a procurar esta origem eesta medida na Natureza, em seus produtos, como o ouro e a prata,e o modo como intervém a arte. Tão-somente, pois, de modoacidental e externo (valor nominal).

Enfim, é em relação a este mesmo ponto de vista que se partequando se pretende explicar as belas-artes pela imitação daNatureza. Pois, nessa concepção, a obra de arte é somente umareprodução mecânica da Natureza, onde não se vê manifestar a

presença e a ação real do Espírito.Mas, caso se preste atenção, de um lado, que a arte começacom o Espírito, e, de outro, que a vida espiritual tem sua essênciaprópria e imutável, que ela se desenvolve e atua conformecondições e leis determinadas, se reconhecerá seguramente a

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necessidade da arte, e como a Natureza se transforma no contato epela ação do Espírito127.

É, pois, o Espírito que, acrescentando-se à Natureza, a marcacom um novo caractere e a eleva até ele. A Natureza é somente uminstrumento, uma matéria que o Espírito se utiliza conforme osseus interesses e necessidades. Cada necessidade, cadadesenvolvimento novo do Espírito tem, por assim dizer, suarepercussão na Natureza, e ocasiona uma nova transformação.

Não é, pois, a Natureza que é o princípio do valor, e sim oEspírito. Os resultados da Natureza, o ouro, a prata, os metais,considerados em si mesmos, possuem todos um mesmo valor, oumelhor, não possuem nenhum. São substâncias no estado daindiferença, e que precisam, para saírem desse estado, da presençado Espírito e das apropriações que este faz, por suas necessidades.O que determina o valor do sol é também a presença do Espírito.Um país não habitado não possui valor. Este surge, aumenta oudiminui com o Espírito, por suas necessidades, seus interesses eatividade desenvolvida.

O mesmo se dá em relação à obra de arte, onde a Naturezasomente intervém como instrumento e como condição. Pois seuprincípio real é aqui, ainda, o Espírito. O mármore que sai da mãodo artista não é mais o mármore que existia na Natureza. É um

mármore transfigurado, onde o Espírito gravou uma imagem de simesmo, imagem que não existe na natureza, mas na profundidadede sua essência. Se a arte fosse apenas uma imitação, não seria

127 É aqui que se pode explicar porque Platão, conforme seu princípio de que há umaideia para todas as coisas, foi levado a admitir as ideias de cama , de mesa , etc. Com efeito,desde que se admita a ideia do Espírito (é preciso admiti-la), é também necessário admitira ideia das coisas que constituem a vida do Espírito; do mesmo modo que se deveadmitir a ideia do organismo, é preciso admitir a ideia das coisas que se relacionam a isto.

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mais do que objeto. Seria uma superfetação, seria, por assim dizer,um duplo emprego, porque o original sempre seria considerado

melhor que a cópia128.Enfim, a vida social, por ser a obra do Espírito, não é estado

de natureza. O estado de natureza, que também se apresenta comoo ideal da ciência, da virtude e da felicidade, é um estado deignorância, de endurecimento e de sofrimento. O homem danatureza é a criança, na qual adormecia ainda a vida do Espírito, éo feto vivo de uma vida obscura e preso ao seio da mãe.Aproximando-se mais da região do Espírito, e mais se afastando daNatureza, a vida social, que forma um dos níveis mais elevados doEspírito, supõe, de qualquer forma que ela se produza eindependente de época, o exercício reflexivo da inteligência e davontade.

A vida do Espírito existe na ação e no movimento. de simesmo. Sua vida e felicidade residem no manifestar de si-mesmo,no conhecer em suas manifestações o princípio e o fim das coisas;no explorar as riquezas escondidas em suas profundidades; nasnovas necessidades suscitadas; em abrir as esferas de novasatividades, e em domar, pois, a Natureza. A felicidade não existeno repouso, mas na luta e no repouso que lhe sucede, do mesmomodo que a virtude não existe na ignorância do mal e na ausência

das paixões, pois isto seria a virtude da criança, mas nas paixõesexperimentadas e regradas pela razão. O progresso das sociedades,o grau de sua civilização e de sua força, mede-se pela intensidadeda luta que se produz em seu seio, e tal intensidade existe naproporção da quantidade e da complexidade de suas necessidades,de suas paixões, de suas atividades e de seus interesses. A

128 Cf., mais acima, cap. III, § 2, e adiante, § 4.

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imperfeição existe na simplicidade, e a perfeição na combinação davariedade e da unidade. O mineral é mais imperfeito que a planta, e

a planta mais que o animal, e a perfeição de uma obra mecânicaexiste nessa concepção sábia e reflexiva que multiplica oselementos e as competências, mas que, multiplicando-as, conseguecoordená-las e reuni-las na unidade.

Pela razão mais forte, o Espírito somente pode encontrar a suaperfeição e sua satisfação, na riqueza e na variedade de seusdesenvolvimentos, na harmonia profunda onde se percebe emrelação com o todo, e onde as coisas venham a se refletir nelecomo em seu princípio simples e indivisível.

Entretanto, o Espírito não alcança, de modo imediato, essaplena e livre possessão de si mesmo e das coisas, e sim através deseus progressos, e por suas contínuas iniciativas, através das quaisse afasta sempre mais da Natureza, em tudo se apropriando, para,por fim, se reconhecer como Espírito e Ideia absolutos129.

A sensação e o pensamento claro e reflexivo, o pensamentoque conhece a ideia e a essência, são os dois limites entre os quaisse exerce e se desenvolve a vida do Espírito. Todos os níveisintermediários de sua existência e de sua atividade subjetiva ouobjetiva, o hábito, a memória, a linguagem, a consciência, oentendimento, o Estado, a arte, etc., não possuem outro fim que

levar a Ideia a esse estado onde, pensando-se como ideia, ela torna-se em si mesma seu próprio objeto, onde ela se encontra sob essaforma na base de todos os seres, enquanto seu princípio e suaessência, reconhecendo-se, pois, como ideia infinita, em suaexistência imutável e eterna.

129 Cf. mais acima, § 1, e mais adiante, § 4.

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Nesse ponto de vista, o Pensamento, a Ideia, o Espírito, o Euabsoluto são uma única e mesma coisa.

É, com efeito, em virtude do pensamento que a Ideia pensatodas as coisas, que as pensa em sua ideia130, e que sua clareza esua verdade estão na proporção da clareza e da verdade da ideia.Mas há uma essência do pensamento, a qual somente pode ser umelemento inteligível, uma ideia. Por conseguinte, a ideia absoluta éo pensamento absoluto, é a  Ideia pensante, ou a  Ideia da Ideia,para nos servir da expressão hegeliana131.

Mas o Espírito é também o pensamento, e sua existênciacomeça com o pensamento e termina nele. O que distingue, comefeito, o ser vivo da natureza morta e puramente orgânica, é opensamento. Sentir é já pensar, e a dor, o prazer, a fome, a sede,são estados que o animal recebe da natureza, supondo a presençado pensamento e somente existindo nela.

Há, pois, o pensamento sensível e o pensamento puro. Mas éum único e mesmo pensamento, um único e mesmo Espírito quepensa nos dois casos, e somente há dois estados de um único emesmo princípio, dois pensamentos de um único e mesmopensamento132. É, pois, com razão que Leibnitz pretendia que asensação fosse somente um pensamento obscuro e inadequado, e aideia um pensamento distinto e adequado, enquanto que Kant,

desejando estabelecer uma diferença substancial entre asensibilidade e o entendimento, rompeu a unidade do Espírito sem

130  Ver, mais acima, cap. IV, § 2.131 É onde se encontra a única solução possível da objeção cética: “como assegurar queo objeto corresponda ao pensamento?”. Pois essa dificuldade somente pode sersuprimida com o pensamento se pondo testemunha de sua verdade, ou seja, enquantoseja a unidade do sujeito e do objeto. Cf., mais acima, cap. IV, § 2.

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nenhum proveito para a ciência e para a verdade. A sensação é aideia que forma o limite e a ligação da Natureza e do Espírito.

Aqui, o pensamento é ainda encadeado na vida obscura eindeterminada da Natureza, e cai sob o império da necessidadeexterna, se esvai e se renova sem cessar, como o ser do qualparticipa. Nisso, a dor, a privação, a necessidade de fazê-losdesaparecer, e o prazer que acompanha a satisfação da necessidade.É o pensamento que pressente o eterno, a liberdade e a verdadeabsolutos, que os encara obscuramente, aspira por eles sem poderalcançá-los; o que o faz passar pelas alternativas da dor e doprazer. Todos os esforços, todos os desenvolvimentos ulteriores daideia consistem em fazem com que esta intuição se torne umarealidade, afastando-se sempre mais da necessidade e daslimitações da Natureza, para que aquela se produza como ideiapura, como Espírito impassível, livre dos laços da dor e damorte133.

Se o pensamento é a essência do Espírito, é também aessência do eu. O eu que existe somente pelo pensamento. É opensamento que faz ser o que sou, pois é ele que me separa daNatureza, que determina e regula os modos de minha atividade, eme eleva ao mais alto nível da existência. Onde começa opensamento, começa a existir o eu, onde cessa, o eu redunda no

nada.Caso se recuse a reconhecer no pensamento o princípiosubstancial do eu, é porque, em lugar de conhecer o eu em suainteireza e em sua unidade e seu encadeamento, toma-se cada um

132 Sem dizer que aqui é preciso entende essa palavra em seu sentido objetivo eabsoluto, conforme se encontra definido nas discussões precedentes.133 Cf., mais adiante.

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de seus elementos e seus modos separadamente, faz-se o que sedenomina de as faculdades ou estados sui generis, e, em seguida,

porque é preciso, entretanto, explicar sua relação, limita-se a reuni-los de uma maneira superficial e empírica, de tal modo que o eusurge como um agregado do eu fortuitamente unido, no sentido deque há uma quantidade de eus conforme haja formas de atividade.É assim que do lado de um eu que sente, há um eu que deseja; aolado de um que deseja, um que pensa; depois, ao lado desse eu, umque se concentra em si mesmo, e um que se põe em comunicaçãocom um não-eu, um eu individual e um outro social, um que pensao finito e um eu que pensa o infinito. Mas qual é o bem, anecessidade interna desses estados do eu? Qual é o princípio querealiza sua unidade? Eis o que não se sabe dizer, precisamenteporque se procura esta unidade fora da ideia e do pensamento.

Uma das causas que impedem reconhecer na ideia e nopensamento a essência do eu, provém, conforme já observamos134,por se representar sua unidade como uma unidade matemática,como uma espécie de átomo em que se baseia toda mistura e todocontato estranho, e não se admite nenhuma multiplicidade;enquanto se represente o pensamento e a ideia como existênciasgerais, universais opostas ao indivíduo.

Eu sou, e sou somente eu. E quando penso, sou eu (designado

por eu) quem pensa, e não o pensamento, que é somente um mododo eu, e que, separado deste, é somente um elementoindeterminado, uma abstração. Do que se conclui que o eu é umaforça, uma substância diferente do pensamento, o que não poderiaser explicado por este.

134  Ver mais acima, cap. IV, § 1.

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Reside nisso o resultado que fornece esse processo superficialdo que se chama de observação interior  ou análise  psicológica,

que, em função disso, por não saber se elevar à especulação e, poresta, aos verdadeiros princípios das coisas, se coloca em oposiçãocom os fatos em si mesmos, com a experiência mais vulgar, e tomaas palavras no lugar da realidade.

Com efeito, essa doutrina do eu é uma mistura dos dados dalinguagem com uma visão obscura e irreflexiva da vida interior.Observa-se certa unidade, certo princípio que persiste nadiversidade de seus modos e de seus fenômenos, para, em seguida,se encontrar na linguagem um sinal que lhe corresponde,chegando-se à conclusão de que, no pensamento, na vontade, naimaginação, etc., o eu é sua raiz comum, que, por isso, se distinguede cada um deles, sendo-lhes superior.

Porém, primeiramente, seria difícil ver como este processo eeste resultado nos fazem avançar no conhecimento do eu. E, casose creia em tirar partido, afirmando-se que o eu é simples eidêntico a si mesmo, essas duas propriedades se encontram, numgrau bem superior, no pensamento. Aliás, todas as essências sãosimples e idênticas a si mesmas, como é também o eu, sob ummesmo título e mesmo sentido, e, com base nisso, somente se vêque se ganha em distinguir o eu do pensamento; pois é preciso que

o pensamento seja também uma essência.Porém, quando se diz eu penso, leva-se em conta o atocontingente do pensamento, e não o pensamento em si mesmo, oqual é considerado, antes, em seu estado subjetivo e acidental e nãoem seu estado objetivo e em sua ideia. Inclina-se, pois, a separar oeu do pensamento, e a não ver neste senão um simples atributo doeu. É sob esse ponto de vista que se invoca, para corroborar tal

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distinção, o sonho, o delírio e outros estados semelhantes, onde aatividade do pensamente se encontra interrompida.

Mas o ponto decisivo é, aliás, de saber se o eu possui umaessência, um princípio simples e invariável. Pois, caso tenha umprincípio, este não pode ser senão um elemento inteligível, umaideia, um pensamento, ou, para ser mais preciso, uma ideia que éelevada ao pensamento, e que ultrapassa a esfera do ser, dasubstância, da força cega e privada da inteligência. É nisso que seesquecem os que, desejando valorizar o eu, rebaixam opensamento, vão contra seu próprio objetivo, porque o eu, sem opensamento, cai na esfera da Natureza e não é mais o eu.

Quanto ao argumento tirado da suspensão do pensamento nosonho, é muito utilizado; pois vale para o pensamento e tambémpara o eu outro argumento que não seja o pensar, ou, então, nãovale nem para um nem para outro. Quando se diz, pois, que o eunão cessa de ser, embora o pensamento seja suspenso, porque serefere logo ao seu primeiro estado, e que se conclui disso, que o serdo eu e o ser do pensamento são duas coisas distintas, produz-seum raciocínio que se aplica tanto ao pensamento quanto aopretenso eu. Pois o pensamento, desse modo, vai referir-se aoprimeiro estado, de onde se deve concluir que somente tenhasofrido uma simples alteração. Ora, esta alteração é necessária que

seja admitida no eu. Pois o eu, que reside no pensamento ou numprincípio diverso do pensamento, não é o mesmo na vigília e nosono, na santidade e na maldade. Há, por conseguinte, umaigualdade perfeita, a esse respeito, entre o eu e o pensamento, enunca é fundado concluir sua diferença.

De outro, quando se toma as expressões eu penso, eu quero,eu sou, e se apoiando seja na linguagem, seja no sentimento

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interno, conclui-se que há dois termos distintos, esquece-se de que junto dessas expressões há também a expressão eu sou. Ora, há

aqui dois elementos, dois termos distintos, ou um deles é umpleonasmo ou uma dessas necessidades da linguagem, que é algofrágil para exprimir o pensamento em sua simplicidade?

Se existem dois termos distintos, o verbo será somente ummodo do  pronome. Mas parece ilógico pensar sobre porque sou,isto é, o princípio de meu ser, sendo somente um modo do que ofaz ser. O pronome seria aqui somente um pleonasmo. Poder-se-iadizer, é verdade, que a palavra exprime a matéria, a base de minhaexistência, e o pronome a forma. Mas nesse caso, a função e aposição dos termos deverão ser mudados. Pois se o que faz o ser deuma coisa é o princípio da forma, ou ao menos o que lhe ésuperior, é o ser que será o assunto, e o ser será somente umatributo ou um modo do ser. Esta troca dos termos deverá tambémse aplicar à proposição eu penso.

Caso se insista, ou que se diga que o eu, sendo somente umaforma do ser, é, no entanto, uma  forma essencial, e que, a essetítulo, lhe é superior, porque o faz sair de seu estado deindeterminação, surgirá aqui outra dificuldade. Pois, mesmo que seadmita que a forma seja superior ao ser do eu, como se trata deuma forma essencial, o eu seria, por isso mesmo, uma forma geral

e comum a todo eu. Com efeito, quando digo eu penso, eu quero,eu sou, etc., quero afirmar que há um eu que pensa, que deseja, queexiste, e que concentra em minha individualidade toda a essênciado eu. Pois, se assim fosse, somente haveria um único eu, ouenquanto haja essências do eu em mim, duas hipóteses igualmenteinadmissíveis. Por conseguinte, o que desejo afirmar é que é daessência do eu pensar, querer, sentir, e que eu, enquanto sou

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partícipe dessa essência, penso, desejo, sinto. Desse modo, caímosna dificuldade que antes desejaríamos evitar.

Com efeito, a repugnância que se experimenta em fazer dopensamento a essência do eu, significa, pois, conforme vimosobservando, representar o eu como uma pura individualidade, e opensamento como um elemento geral e indeterminado.

Entretanto, pode-se ver, com a mais simples inspeção, que oeu é, de todas as existências, a mais ampla e a mais indeterminada.Pois, conforme se pretende, ele é o princípio do pensamento, seráevidentemente mais extensivo que o pensamento. Porém, outropensamento possui outras faculdades e outros modos de atividade,os quais encontram no eu seu princípio e seu centro comum, e épor essas faculdades que o eu se põe em comunicação com todosos seres, que os transforma e os assimila; de tal sorte que se podedizer que contém virtualmente todas as coisas, e que sua atividadenão tem outro objetivo a não ser de evidenciar e pôr à mostra estavida universal escondida nas profundezas de sua natureza.

Portanto, o eu individual, tal como representadoordinariamente, é o que há de mais oposto ao verdadeiro eu. É o eusensível e egoísta, o eu da criança e do velho, vivendo dessa vidaoculta e elementar que reencontramos no Espírito, que atingetambém a Natureza, que, como o fenômeno, se concentra num

ponto do tempo e do espaço, e que se separa de si mesmo, caso sepode assim dizer, na ignorância que há de sua natureza e dos seresao redor. O verdadeiro eu, ao contrário, é o que provém da luta eda fusão de si mesmo e do não-eu, o eu que irradia de fora e secomunica com as coisas, que, se comunicando com as coisas, seencontra nelas e delas se apropria, e que, deixando penetrar em suaindividualidade o eterno e o absoluto, se liberta de toda limitação e

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do elemento contingente e perecível, e se impõe como eu absoluto,como eu que não é nem individual, nem o geral, nem a unidade,

nem a multiplicidade, nem a identidade, nem a diferença, mastodas essas coisas ao mesmo tempo, e que, por isso, as supera e assintetiza em sua essência.

Mas o eu, que alcança esse degrau da existência, não é mais oeu humano e finito. É o eu eterno e infinito; centro e princípio detodo eu; é, em outros termos, o Espírito, a Ideia, o Pensamentoinfinito, o pensamento que pensa todas as coisas, que as pensa emsua ideia e na unidade de sua ideia. O eu humano e finito somenteexiste por ele, e quanto mais dele se aproxima, mais se aproximade sua fonte e de sua perfeição.

 Deus é o Pensamento, é a mais alta noção da divindade.Reside nisso o sentido das seguintes expressões:  Deus é um puroespírito, Deus é o ideal da vida humana e do Universo, e é emespírito e na verdade que é preciso adorá-lo135.

Todas as outras noções de divindade supõem e são dominadaspor tal Pensamento. Quando se diz, portanto, que Deus é a causa, obem, o amor, a liberdade absolutos, sabe-se e se exprime um modo,um nível da vida divina, e se pode dizer, a esse respeito, que,quando Vanini toma um pedaço de palha em testemunho daexistência de Deus, há uma certa definição, porque é um Deus que

reside na razão última das coisas. Mas trata-se tão-somente derepresentações limitadas, de noções imperfeitas da divindade, e quenão falam de Deus em sua plenitude e unidade de sua existência.

Com efeito, o bem sem o pensamento é um bem que se ignorae que, por isso, não é o bem. Ademais, há uma essência do bem,assim como há uma essência de todas as coisas, e, por isso, o bem

135 Cf., mais acima, cap. IV e § seguinte.

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é, também, somente um princípio inteligível, ou seja, um princípioque permanece no domínio do pensamento. Enfim, o pensamento é

superior ao bem, por isso que não pensa somente o bem, mas todasas coisas, e, pensando-as, ele é todas estas coisas. Eis porque sepode afirmar que o bem existe no pensamento e na verdade,enquanto não se poderia dizer que o pensamento e a verdadeexistem no bem. Uma vez que é o pensamento que contém o bem elhe é superior, assim como o olho contém a luz e lhe é superior emperfeição. Um bem fora do pensamento, isto é, um bem que nãoexiste em seu estado ideal e inteligível, é um bem imperfeito, umbem que se realiza preso às condições da existência finita. Pois aação é sempre inferior ao pensamento136.

O que dissemos do bem se aplica também à liberdade. Eacrescentamos, a esse respeito, que não há noção mais incompleta,com a qual se habitou a representar Deus, que a de liberdade. Pois,ao contrário, é preciso dizer a respeito de Deus, a saber, que tudonele é imutável e necessário, como sua existência e sua essência.

Entretanto, caso se concorde nesse ponto com a primeira, nãose concorda, ou ao menos, somente se concorda pela metade com asegunda. Admite-se, e é obrigado a se admitir, que a existência doser infinito é a condição necessária da existência do ser finito, masessa necessidade não se deseja que seja estendida à sua natureza.

Desse modo, essas doutrinas representam Deus conforme a noçãode que se pode mudar arbitrariamente as leis fundamentais dosseres, e se pôr, a critério da liberdade finita, a escolha entre o pior e

136 Cf. mais adiante.

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o melhor. Isso ocorre, também, em relação à hipótese leibnitzianade uma infinidade de mundos possíveis137.

É sempre pela consciência vulgar e pelo pensamentoirrefletido que, apoiando-se sobre uma falsa indução, transporta-separa uma esfera o que somente é verdadeiro numa outra, aplicandono ser infinito inteiro o que somente é aplicável a um dos seusatributos, ou em escolhas finitas, e formando, pois, uma espécie deamálgama de elementos racionais e empíricos, de determinaçõesinfinitas e finitas, com as quais constroem a noção de Deus. Eis,com efeito, como raciocinam. O homem é livre, e sua liberdadeconsiste em escolhas entre duas determinações opostas. Pois épreciso que Deus também possua a liberdade, e uma liberdade deescolha, pois, acrescenta-se, a liberdade é uma perfeição; depois, oque existe no efeito, deve necessariamente se encontrar na causa.Unicamente, a liberdade, que é finita no homem, é infinita emDeus. Mas o que é uma liberdade infinita, o que ela pode ser? É oque não se diz.

É por um raciocínio semelhante que se atribui a Deus um eu eum pensamento conforme uma imagem do eu e do pensamentofinitos, assinalados também como características do infinito, semexplicar o sentido e a possibilidade dessa transformação.

Porém, em primeiro lugar, não se atenta que se processo,

fazendo penetrar na vida divina a finitude e a contingência, issovicia sua natureza e sua essência, o que, por conseguinte, tornaimpossível a demonstração de sua existência. Pois, em Deus, aexistência e a essência são inseparáveis, e a necessidade de um está

137 Essa hipótese é somente uma aplicação do cálculo do indefinido na teodicéia. É oindefinido transportado para a inteligência e a natureza divina. Cf. mais acima, cap. IV, § 5.

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intimamente ligada à outra. Por conseguinte, Deus somente existeenquanto não possa ser de outro modo o que é.

Depois, raciocina-se semelhante àquele que, vendo a luz dosol aquecer na superfície da terra, se conclui que ela aquece sempree em todos os lugares, ou que, da unidade da natureza humana sededuziria a igualdade absoluta de condições, de direitos e dedeveres. O erro provém de se negligenciar os aspectos, aspropriedades novas que se produzem nos seres, o que osdiferenciam e fazem com que se possa legitimamente concluir deuma esfera de existência uma outra. A mais forte razão não permiteconcluir a natureza do infinito a partir das condições do ser finito.Por conseguinte, que eu seja livre não se segue nunca que Deustambém seja; nem que a liberdade pode ser considerada como umaperfeição no homem, sendo, do mesmo modo, em Deus. Pois o queé uma perfeição na infância é uma imperfeição na idade adulta, domesmo modo a perfeição do ser infinito não é uma imitação ouuma repetição das perfeições finitas.

Espera-se, é verdade, escapar a essas objeções, fazendo daliberdade divina uma força infinita. Mas é isso precisamente que épreciso explicar.

Ora, eis aqui o que pode ser uma liberdade infinita.Ou então se considera a liberdade divina uma força absoluta,

um princípio no qual não se conheça nenhuma regra, nenhumaautoridade, e, portanto, se põe a liberdade acima da razão e daverdade, o que não pode ser admitido sob qualquer ponto de vista.Não se deve admitir nenhuma opinião sobre isso, porque issoapressaria acrescentar que a liberdade em Deus é regrada pelas leisde sua razão e de sua sabedoria. Porém, uma liberdade, regrada

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pela razão, é, por isso mesmo, uma liberdade limitada, que tem narazão, a verdade e o pensamento como seu princípio e sua essência.

Que se diz que a infinitude da liberdade em Deus consiste noperfeito acordo de sua vontade e de sua inteligência, é precisodeterminar de qualquer modo o que se entende por esse acordo.

Se for, com efeito, um acordo contingente, e que deixe umacesso para a possibilidade de uma oposição de inteligência e davontade, a liberdade divina cai nas condições da liberdade finita.Se for um acordo indissolúvel, a liberdade divina não conservamais da liberdade humana que a morte, porque tal acordo implica aimpossibilidade de uma vontade não submissa e rebelde àinteligência.

Mas eis aí a verdadeira e perfeita liberdade.A liberdade, com efeito, em sua acepção mais geral, é

somente a atividade do Espírito, que se manifesta em si mesmo ouem outros espíritos. A liberdade moral, a liberdade política, a arte,a religião, são somente formas e momentos diversos dessaatividade. Ora, essa atividade é tão perfeita que ela exprime erealiza a verdade e a razão. A eterna e absoluta atividade é, porconseguinte, adequada à eterna e absoluta verdade. Trata-se danecessidade que aqui não é uma necessidade externa que vem seacrescentar de fora ao Absoluto e que lhe força, mas uma

necessidade interior, inerente a sua natureza, ou, melhor, umanecessidade que é somente sua própria natureza. É assim que anecessidade é, ao mesmo tempo, a mais alta liberdade. Pois esta ésoberanamente livre, o que não poderia ser de outro modo. Poispossui a plenitude do ser, e nenhum agente estranho pode virsolicitar seus caprichos ou desviar sua atividade138. Tal é a

138 Cf. mais adiante.

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necessidade que domina o mundo e que é a fonte não-somente daordem e da felicidade, mas da verdadeira liberdade.

De fato, a liberdade de indiferença ou de escolha, a liberdadeque faz o bem, não porque lhe seja invariavelmente algo ligado,mas porque a deseja, em dado momento e conforme determinadomodo, tal liberdade é somente a liberdade do espírito finito, quenão é ainda elevada pelo seu pensamento e sua atividade aopensamento e à atividade infinitos. Nesse sentido, tal liberdadeexiste na absoluta liberdade conforme a contingência existe na lei,e a aparência e o acidente na eterna realidade.

Longe, pois, que tal liberdade seja o sinal da grandeza doEspírito, antes ela assinala a sua decadência, marca um conflito euma cisão, a do espírito finito e do espírito infinito. Se tal liberdadefosse abandonada a si mesma, se o bem e a verdade fossemsubmetidos a suas ilusões, contradições e aos seus caprichos, aordem e a vida moral pereceriam, e, juntamente, pereceria aliberdade. Pois esta, quer se trate da liberdade interior ou daexterna, existe na lei, enquanto que aquela, para provar aos outrosou para provar a si mesma que é livre, agiria semprecontrariamente à lei, cairia na pior da escravidão. Vivam conformea razão, eis a verdadeira liberdade. Elevar a alma a esse estadoonde a vida racional se torna para ela um hábito e uma espécie de

segunda natureza, reconhecer o domínio da eterna necessidade,consenti-la, proclamá-la e fazê-la penetrar no mundo, isto é otriunfo do Espírito e a marca de sua entrega. A grandeza doindivíduo e do Estado se dá somente a esse preço. Pois o que fazsua força não é a liberdade, mas a razão e a atividade suscitada eregrada por ela. Com a razão, a liberdade é um instrumento deforça e de salvação; sem a razão, ela é um instrumento de

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dissolução e de morte. Tudo, de resto, na vida e nodesenvolvimento do Espírito, tem por objeto constatar e conduzir o

domínio da razão e da necessidade. Com efeito, toda educação tempor objetivo se apoderar da liberdade, que existe, ainda, no estadobruto e de natureza, e transformá-la, disciplinando-a peloensinamento. O Estado se apodera da infância desde seunascimento, dobra sua vontade egoísta e irreflexiva à vontadedesinteressada e reflexiva da lei, ensinando-lhe, portanto, aencontrar seu próprio bem no bem comum, e a prepara para a vidasuperior da razão. Enfim, essa necessidade racional forma a base ea essência da religião, em relação ao que toda religião proclama umprincípio, um pensamento, uma vontade absoluta, que governa omundo e dirige o curso dos eventos e da atividade humana narealização de seus decretos. O dogma da fatalidade nas religiões daantiguidade, e, no cristianismo, o da predestinação, da graça, daprovidência, e os da resignação e da submissão à vontade divina,são somente expressões diversas dessa crença.

4º) Depois, portanto, que Deus é a  Ideia ou o Pensamento éabsoluto, todas as coisas existem somente em vista do pensamento,e encontram no pensamento seu fim e sua mais firme realidade.Isto não deve se compreendido somente em relação aos serescontingentes e perecíveis, mas das essências e das ideias em si

mesmas. Pois, quando se diz que Deus é a Ideia ou o Pensamento,é o mesmo que dizer que é a totalidade e a unidade das ideias, eque essa unidade é o pensamento.

Com efeito, o ser, a quantidade, a possibilidade, anecessidade, o tempo, o espaço, são ideias tão necessárias como a

 justiça, a beleza, a verdade, e, nesse sentido, centram-se em Deus econstituem um modo necessário da vida divina. Mas não são Deus,

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e nem esgotam a profundidade de sua natureza. O que é precisoacrescentar a essas ideias é o pensamento e o espírito, o espírito

que deve elevá-las acima delas próprias e em sua existênciaabsoluta. Por conseguinte, o  pensamento do ser, do tempo, da

 justiça, é, como fizemos observar139, superior à ideia, ao tempo, à justiça, e as reproduz sob uma forma mais perfeita. Portanto, Deusexiste, é a justiça, a necessidade, a possibilidade, etc., e pensa suaessência e todas essas coisas, sendo que é pensando-as tais comoexistem, pensando tal conforme existem na totalidade e na unidadede suas determinações e de sua atividade, que completa de modoacabado sua existência e sua essência.

Desse modo, portanto, outra coisa é Deus consideradoenquanto ser , ou enquanto necessidade,  justiça, bem absolutos;outra coisa é Deus no ser , na necessidade, na  justiça, e outra coisaé Deus considerado enquanto  pensamento, ou, o que vem a ser omesmo, que Deus existe de vários modos, graus ou esferas deexistência, cuja diferença e unidade formam a diferença e aunidade da vida divina.

É o que leva às três divisões da Ideia: a Lógica, a Natureza e oEspírito.

Na esfera da  Lógica, Deus é a possibilidade e a formaabsoluta; é o ser anterior a toda coisa criada e que contém, por isso,

virtualmente todas as coisas. Deus é o Pai.Na esfera da  Natureza, é o princípio da realidade externa evisível, o princípio do tempo, do espaço, do movimento, da luz,etc. É Deus o filho.

Na esfera do Espírito, ele se conhece como princípio absolutoda eterna possibilidade e da realidade visível, englobando-as, em

139 Cf. mais acima.

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seu amor e em seu pensamento, pelo qual opera, pois, a fusão e aunidade.

Deus é, pois, simples e múltiplo, um e triplo ao mesmo tempo.O que possibilita sua divisão é a divisão essencial da Ideia ou desua ideia; o que possibilita sua unidade é ainda o retorno da Ideia asua unidade.

Existem, pois, três ideias, três essências, ou três existênciasideais e inteligíveis, em que a segunda procede da primeira, e aterceira, da primeira e da segunda, três existências co-eternas econsubstanciais, distintas e idênticas ao mesmo tempo, se atraindoe se completando uma com a outra, e encontrando em sua uniãoindissolúvel a plenitude de seu ser e de sua eterna felicidade.

Tal é a absoluta realidade, e a absoluta dialética segunda aqual se realiza a vida divina. Deus não é uma unidade simples, umaidentidade abstrata e vazia como concebem o racionalismo e afilosofia do entendimento, mais uma unidade concreta que contéma multiplicidade e a diferença, que é identidade da identidade e danão-identidade.

O entendimento somente vê, portanto, identidades simples epossibilidades indefinidas, e é assim que mutila a realidade, lheescapando a diferença como a verdadeira identidade e a verdadeirarelação dos seres. O Deus do entendimento é um Deus frio e

solitário, um eu que é somente eu, se se pode assim exprimir, umeu que não se comunica, e que, por isso, não possui alma. É umacausa que é somente causa, uma causa eterna e absolutamenteseparada de seu efeito, ou que possui com o efeito somente umarelação externa, acidental e puramente nominal, fazendo com quenão atue eficaz e interiormente nele, que não ame e nem sejaamada. Eis porque o racionalismo está em desacordo, não-

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unicamente com a razão e a verdadeira filosofia, mas com ahistória e a religião, e porque, em lugar de explicar a religião e de

expor sua necessidade, reservando em relação à filosofia seu lugare direitos, a toma por uma atitude hostil, considerando-a não maisque uma moral natural, ou, então, a nega, ou somente vê nelaconvenções puramente humanas e transitórias, ou, enfim, aconfunde com a filosofia em si mesma, e o resultando é queatingem e anulam, num mesmo golpe, a filosofia e a religião,tornando-se ambas impossíveis e inexplicáveis.

Mas, indagam: a filosofia hegeliana, que pretende alcançarracionalmente o dogma da Trindade, está seriamente de acordocom a tradição da Igreja e do ensinamento cristão? E explicarracionalmente o dogma, não é antes destruí-lo ao invés de justificá-lo e confirmá-lo?

Como admitir conforme vários modos, várias esferas deexistência na vida divina, sem ter que admitir, ao mesmo tempo, opior e o melhor, e de que introduzir um elemento de imperfeição?Essa imperfeição é uma consequência inevitável de uma doutrinaque considera a Natureza como uma parte integrante de Deus. Poisse Deus é a Natureza, existe no tempo e no espaço, e estásubmetido às condições de tudo que participa da vida da Natureza,isto é, a sensação, a dor e a morte, de coisas que são contrárias à

noção de Deus. Enfim, essa união íntima e indissolúvel de Deus eda Natureza conduz à identificação de Deus e das coisas finitas, oque suprime ao mesmo tempo a realidade de Deus e a realidade dascoisas finitas.

Responderemos, em primeiro lugar, à primeira objeção,mostrando que a interpretação é um direito absoluto da ciência, ou,melhor, que ela é a ciência em si mesma, porque em qualquer nível

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a ciência somente faz explicar e interpretar. Contestar este direitoé, pois, contestar a ciência em si. Este direito não pode limitá-la,

pois, limitá-la é anulá-la.Diz-se: a razão não pode compreender tudo, há mistérios

insondáveis para a sabedoria humana.Porém, primeiramente, é preciso determinar o que são as

coisas que a razão pode compreender, e quais as que não podecompreender. Ora, é impossível demarcar exatamente esse limite.Pois como tal limite se põe antes que tal outro? E como afirmar deum modo absoluto o que escapa hoje à inteligência porque lheescapa sempre? Depois, quem põe tal limite? Quem pode afirmarque tal coisa é acessível à inteligência, e uma tal outra não?Evidentemente, somente isto é possível pela inteligência. Porém,mesmo quando se admite que a inteligência possa pôr em si mesmaesse limite, o que parece contradizer sua natureza e sua essência,que consiste em entender, e em entender de uma maneira absoluta,mesmo quando afirmamos que a inteligência poderia pôr esselimite, sempre é ela que deva dizer por que põe, e por que a põenum lugar antes do que em outro; o que supõe já um certoconhecimento, ou ao menos uma certa possibilidade de conhecer,que ultrapassa a esfera na qual se deseja circunscrevê-la. Isto seriaum conhecimento negativo, caso se queira, ou um sentimento vago,

uma visão obscura de seu objeto, mas seria sempre umconhecimento, ou um início de conhecimento, o qual implica apossibilidade de um novo desenvolvimento, de um conhecimentomais claro e mais completo, e manteriam intactos o direito e asupremacia da ciência.

É, com efeito, repetimos, impossível de marcar um limite paraa inteligência, porque com a inteligência é dada a

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compreensividade absoluta das coisas, e o desenvolvimento doconhecimento finito é somente a passagem dessa infinita

possibilidade para o ato; e, mesmo que se concordasse que ainteligência não poderia nunca alcançar o ato absoluto doconhecimento, sempre é a esfera de sua atividade que poderia seestender indefinidamente140.

De resto, quando se acusa de temeridade a inteligência que seesforça em explicar as coisas sobrenaturais e incompreensíveis, taiscomo os mistérios do cristianismo, não somente se desconhece esseinstinto profundo e irresistível que a leva a procurar em todas ascoisas um elemento racional e divino, como um reflexo de suaprópria essência, como se proíbe, por isso mesmo, qualquerinvestigação científica. O que é, portanto, um mistério? É, diz-se,um fato incompreensível. Mas há outros fatos que também sãonesse sentido incompreensíveis, e se pode dizer que há um certoponto de vista, e caso se ponha fora da ciência, ficaincompreensível. Por exemplo, a Providencia, a liberdade, arelação entre alma e corpo, entre finito e infinito, nascimento emorte, são coisas mais fáceis de conhecer que o dogma daTrindade? São, pois, mistérios, e, a esse título, não são dacompetência da ciência. Entretanto, não se deve jamais contestar aciência sobre pesquisas semelhantes, pois, lhes contestar, equivale

a suprimi-las.Eis porque, em todas as épocas, mesmo nos tempos onde a féparecia governar exclusivamente o mundo, todos os grandesespíritos experimentaram a necessidade de se levar em conta suascrenças, e dar à fé uma base racional. Não é unicamente a filosofia,mas a teologia em si mesma que se torna a intérprete dessa

140  Ver adiante sub finem.

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necessidade. É assim que vemos, ao lado de Abelardo e de Leibniz,os teólogos e os padres da Igreja, Santo Agostinho, Tertuliano,

Santo Anselmo, São Tomás, se esforçarem em desenvolver nosdogmas do cristianismo o elemento racional e demonstrativo.

A filosofia hegeliana pode, pois, se autorizar, não somentepelo direito da ciência, mas pela tradição da Igreja, para submeter adoutrina cristã ao controle da razão. Quanto aos resultados quechega e ao valor de suas explicações, trata-se de um ponto quepermanece na apreciação geral de suas teorias. O que queremosaqui estabelecer é o direito que tem a filosofia de abordar essesassuntos.

A segunda dificuldade vem da falsa noção que se tem deperfeição e de imperfeição em geral, noção que se aplica depois ànatureza divina.

Toma-se, com efeito, arbitrariamente tal modo ou tal forma daexistência, comparando-a com uma outra forma, e depois se dizque uma é perfeição e a outra, imperfeição; ou, quando se está napresença de uma oposição, suprime-se um dos contrários,baseando-se no pretendido princípio de contradição, e no princípiode que toda oposição é uma imperfeição, e que a perfeição existena identidade; ou ainda, separa-se as partes do todo ou o todo daspartes, e se considera como perfeições, tanto o todo como as partes.

É assim que, na ordem política, a desigualdade, comparada àigualdade, é considerada como uma injustiça e um mal, que, numaoutra ordem de ideias, os corpos surgem como uma imperfeiçãofrente à alma, a dor frente ao prazer, a sensibilidade frente à razão,e que todo movimento e mudança no ser marcam uma decadência,quando considerados em relação à imobilidade e ao repouso.

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É esta mesma noção que se transporta em Deus, quando sesuprime a Natureza de sua essência, e quando não se deseja admitir

que há várias maneiras de ser e vários graus na vida divina.Mas caso se pergunte aos que desse modo representam a

perfeição, de suprimir a desigualdade, o corpo141, a dor e asensibilidade, ficariam muito embaraçados, ou melhor, nãodesejariam isto. É aonde se chega, quando dizem que a hierarquia,no Estado e na ciência, é a condição da ordem e da disciplina, ouque a alma não poderia realizar nada sem o corpo, que a dor odepura e o fortifica, que a sensibilidade é uma das fontes einstrumento da arte, e outras coisas semelhantes. E comportam-se

141 Não é difícil encontrar argumentos históricos e imponentes que tenham o apoiodessa opinião. Temos que somente deixar margem para a escolha. Vejamos alguns:« Toda substância, diz São Justino, em de unitate Dei, que não pode se submeter a umaoutra, em função de sua sutileza, tem, entretanto, um corpo que constitui sua essência. Seobservamos Deus como incorpóreo, não é que o seja, mas é para que o designemos o

mais possivelmente. Tertuliano diz algo semelhante: “Quis negabit Deum esse corpus,etsi Deus spiritus?” E no tratado de anima: “ Pretendemos, diz, que a alma seja corporal,que tenha uma substância e uma solidez própria (  proprium genus substantia et soliditatis), pelaqual ela possa sentir e sofrer.” Portanto: “A alma de um homem no inferno: elaexperimenta dores cruéis... Tudo isto não é nada sem a materialidade.” Anorbe, Teófilode Antioquia, São João de Damas, São Irineu, Orígenes escreveram no mesmo sentido.No Concílio de Latrão, presidido por Júlio II e Leão X, se põe este princípio: “Caro et anima simul fiunt sine calculeo temporis atque simul in útero etiam figuntur in anima.”  Agora, seabrimos a Suma de Santo Tomás encontramos as proposições como estas: “A alma écomposta de forma e matéria (  potentia , materia prima  ), pois ela vai da ignorância à ciência edo vício à virtude (Quest. 75, art. 5).” E à questão de saber se a inteligência (  principium 

intellectivum  ) tem uma forma corporal, responde afirmativamente, e cita, a esse respeito, aopinião de Clemente V, que, no concílio de Viena, declara herético aquele que não crênesta doutrina (Quest. 76, art. 2). Indo mais longe, pretende que o princípio intelectual semultiplique com os corpos. Ibid. Enfim, citamos a doutrina de São Paulo, que afirma quea alma se reveste após a morte de um corpo glorioso, e o dogma da ressurreição,tratando-se de coisas que, sob qualquer ponto de vista e independente da suposição quese tenha, somente têm significação enquanto se admite a necessidade e a origem divinada Natureza. Não há, com efeito, a não ser um espiritualismo falso e exagerado que, pelaimpotência em saber os verdadeiros princípios das coisas, suprime a Natureza, e se põe,pois, de fora da realidade, e reduz a alma a uma abstração.

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do mesmo modo em relação a Deus. Pois afirmam que Deus é acausa, ou a substância, ou o bem, ou a justiça absoluta, o que não

significa coisa nenhuma, senão que existem diferenças e graus navida divina. Em relação à Natureza, após separá-la de uma maneiraabsoluta de Deus, e de considerá-la como uma espécie de aparênciae de acidente, voltam pouco a pouco para a opinião contrária, e seconvencem de que a alma se eleva e se firma nas magnificências enas forças da Natureza, de que há nela qualquer coisa de divino,que se percebe e se encontra como a imagem do eterno e doinfinito, e terminando depois por se admitir que seu princípioreside em Deus142.

Com efeito, a verdadeira perfeição do ser não reside em talelemento, tão modo ou tal parte, mas na unidade das partes, e nessanecessidade interna e racional que alcança seu encadeamento e suapassagem recíproca de uma para a outra. Ela não existe, porconseguinte, nem na luz, nem na sombra, nem no movimento, nemno repouso, nem no exército, nem nos governos, mas em suarelação, em sua fusão e em sua harmonia. Tudo o que existe e quetem razão de ser, tudo o que é fundado na necessidade e na ideia, éperfeito em si e nos limites que comporta sua natureza; e quando sediz que tal coisa é mais perfeita que tal outra, que o arquiteto, porexemplo, possui mais perfeição que o operário, e a cabeça mais

que outro membro, não se quer dizer que a posição do operário éuma imperfeição em relação ao arquiteto, ou que a cabeça é maisperfeita que o coração, porém unicamente que a posição ou afunção do arquiteto contém propriedades, características, aptidões,que a do operário não contém, e que há na cabeça propriedades quenão há no coração, embora essas coisas sejam cada qual o que pode

142 Cf. acima, cap. V, § 2.

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e o que deve ser, e que concorre, por sua parte, com a perfeição ecom a harmonia do conjunto. O que prova que um é tão necessário

quanto o outro, e que a casa suporta a ação combinada do arquitetoe da mão de obra, e a vida, a ação combinada da mente e docoração.

Tal é também a noção que se deve ter da perfeição divina.Desde que se represente, com efeito, Deus e a essência divina

como uma unidade que contém a diferença e a multiplicidade, épreciso admitir vários graus na perfeição, e considerar cada umdesses graus como um elemento integrante de seu ser e de suaperfeição absoluta. Portanto, quando se diz que Deus é Espírito, ese acrescenta que é também a causa, o bem, a substância,absolutos, não se quer dizer que toda sua perfeição existe noEspírito, de tal modo que ela subsistiria inteiramente, mesmoquando se fossem suprimidas as outras determinações ou atributos,e sim, unicamente que o Espírito, o pensamento absoluto é a formamais elevada de sua existência, a qual, entretanto, não poderia serseparada das outras determinações, assim como estas não poderiamser separadas do Espírito. É como se afirmasse que a perfeição docorpo está na planta, e a perfeição desta está na flor ou no fruto.

Essas considerações nos fazem também compreender como aNatureza, longe de ser uma imperfeição, constitui um elemento,

um modo, um momento essencial da vida divina.A esse respeito, todo o problema se reduz, no fundo, à questãode se saber se a Natureza possui um princípio e uma essência. Poisse ela tem um princípio, tem, como toda essência, sua razão e suaraiz em Deus. Ora, que ela tenha uma essência, isto é um ponto que

 já estabelecemos.

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Iremos, entretanto, completar essa demonstração por outrasconsiderações, examinando alguns pontos específicos, algumas

consequências que surgem.Toda religião, pelo fato de ser uma religião, supõe, conforme

fizemos observar143, um princípio e um grau de verdade. Não há,portanto, religião absolutamente falsa, assim como não há doutrinafilosófica que não contenha um mínimo de verdade, porque oceticismo em si mesmo é uma condição da ciência, e é melhor quea ausência de qualquer conhecimento científico144.

Sendo assim, as religiões da Natureza, as que adoram anatureza elementar e inorgânica, a luz, o fogo, ou a naturezaorgânica, as plantas, os animais, ou a Natureza considerada em seuconjunto e como ser absoluto, essas religiões, afirmamos, têmtodas um fundamento racional, e se distinguem da religião absolutasomente porque não contêm a verdade inteira.

Ora, o culto da Natureza se baseia sobre essa crença, instintivaou reflexiva, de que Deus está presente na Natureza, que ele secomunica com ela, e que a Natureza possui uma essência divina.

O erro das religiões naturalistas começa quando em lugar dese limitar a considerar a Natureza, como um modo, e um momentoda vida divina, elas identificam e confundem-na com Deus. É umerro análogo ao daquelas doutrinas sensualistas que pretendem

explicar o ser e o conhecimento das coisas pela matéria e pelasensação.A verdadeira e absoluta religião seria, pois, aquela que, sem

condenar a Natureza, e reconhecendo sua realidade e suanecessidade, reconhecesse, ao mesmo tempo, o Espírito, e veria na

143  Ver, mais acima, neste mesmo §.144  Ver cap. IV, § 5.

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Natureza tão-somente um momento da Ideia, um degrau para ela seelevar até o Espírito.

Tal é o pensamento que está na base do cristianismo e que fazsua força e sua verdade, pensamento que Pascal exprimia, quandoafirmava que a Natureza exprime por toda parte um Deus solto, nohomem e fora do homem.

Com efeito, caso se examine atentamente o pensamento e osentido interno do cristianismo, se verá que, longe de condenar aNatureza, a reabilita, longe de apresentá-la como um acidente euma espécie de nada frente ao Espírito, proclama de forma muitosutil sua estreita ligação com ele. Pois, descendo até a Natureza, erevestindo-se de uma aparência visível e material, Deusunicamente não eleva a Natureza até ao invisível e ao absoluto,mas mostra sua união consubstancial com ela, união que, conformea própria Igreja, se renova e se perpetua na Cena. Unindo-se ànatureza, submete-se a todas as condições que são inerentes a suaessência e a sua ideia eterna, e não escolhe o que é consideradocomo uma perfeição, a alegria e a vida, mas sujeita-se aosofrimento e à morte, que é santificada e se torna testemunha desua divina origem. Pois se existe a morte, é porque se pode morrer,o que, em outros termos, significa que longe de que a morte sejacontraditória e incompatível com sua essência, encontra, ao

contrário, seu fundamento e sua mais alta justificação.De fato, a dificuldade que se experimenta em conciliar amorte com a noção de Deus procede de várias causas. Em primeirolugar, da falsa noção que se tem de perfeição, o que leva a pensarque a vida apenas é uma perfeição, e que a morte é imperfeição.Em segundo, ao se considerar a morte em si mesma, em sua ideia eem suas relações com as coisas, a morte acaba sendo considerada

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no indivíduo e no ciclo de sua existência; o que leva a pensar que amorte é um mal, pois retira a vida do indivíduo, assim como todos

os bens e alegrias que a acompanham. Enfim, quando se separaNatureza e Espírito, pondo-os, um em relação ao outro, num estadode indiferença, o que levar, primeiramente, a pensar que o Espíritopode subsistir sem a Natureza, e depois, em conceber Deus comoum espírito que não possui nenhuma relação interna com aNatureza.

Para dissipar essas ilusões do entendimento e suas aparênciasàs quais se apega o pensamento irreflexivo, há somente, tambémaqui, que se perguntar, primeiramente, se a morte não possui umaessência e uma lei invariável e absoluta, segundo a qual ela seimpõe. Ora, as discussões precedentes demonstram que há umaessência da morte, assim como há uma essência da vida, do animal,do organismo e das coisas em geral145. E a consciência irreflexiva

145 Os psicólogos, porque não admitem em geral a ideia do organismo (afirmamos emgeral, porque há os que admitem, como Burdach, por exemplo), não querem reconhecernão mais que a ideia da vida e da morte. Entretanto, experimentam dar uma definição( Cuvier, Règne animal, introd.; Bichat, Recherches sur l avie et sur la mort  ). Porém, ou essadefinição somente tem um valor nominal, e a vida não seria, nesse caso, a não ser umcomposto de palavras, o que não ousariam admitir, ou, é preciso que admitam umaessência e uma ideia da vida e da morte. É, no fundo, o que reconhecem implicitamentequando se encarregam de determinar suas condições e os elementos fixos e invariáveisque são produzidos. É o que reconhece Cuvier, por exemplo, que, após ter definido a vida pela faculdade que têm os corpos de assimilar de um modo determinado as substâncias

próximas, e de eliminar uma porção de sua substância, finita, por afirmar que a forma docorpo vivo lhe é mais essencial que sua matéria. Ora, essa determinação, essa  forma não éoutra coisa que a ideia, a qual concebe Cuvier somente como uma simples forma, pelasrazões que assinalamos várias vezes (ver cap. III e cap. IV). Com efeito, a insuficiênciadas pesquisas dos psicólogos provém da insuficiência de sua educação filosófica e daausência de um conhecimento sistemático. O que faz com que ignorem, de um lado, anatureza e a importância da ideia, e que, de outro, tomam a vida, a morte, o organismoao acaso, sem se dar conta do lugar e da função que possuem no conjunto dos seres,nem das condições, dos elementos integrantes, dos momentos da ideia - para nos servirda linguagem de Hegel - que compõem sua constituição. Daí se justificam as definições

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em si mesma reconhece essa verdade quando afirma que Deus é oprincípio da morte, assim como é o princípio da vida, que é ele que

faz surgir e desaparecer os indivíduos e os povos, e outrasexpressões semelhantes, ou quando ela personifica a morte, comopersonifica a glória, a força, a justiça, a qual faz de um ser, umaforça real. Pois o pensamento que se encontra no fundo dessacrença e da forma simbólica da qual se reveste, é que Deus é amorte, assim como é a justiça, a força, etc., ou, o que dá no mesmo,que a morte é, como a justiça, o bem, a força, uma determinação eum atributo de Deus.

Ademais, tendo, pois, a morte uma essência, e tendo Deuscomo seu princípio, ela se encontra por isso justificada, não sendofundado considerá-la como uma imperfeição.

De resto, é o que se pode seguramente constatar no âmbitodos fatos e da experiência. Pois se pode ver a morte exercer umaação tão essencial quanto à vida, e o que é invocado é umanecessidade salutar e boa, do mesmo modo que a sombra éinvocada contra o calor do sol ou o clarão da luz.

Quando se diz, com efeito, que viver é melhor que morrer,prende-se, do modo como fizemos observar, à representação

 vagas e superficiais, como a de Cuvier, ou a de Béclard, que define a vida como oorganismo em ação, a morte como o organismo em repouso, ou como a de Bichat, que define a

 vida como o conjunto das funções que resistem à morte. Nisso reside a insuficiência dosresultados que obtêm, mesmo sob o ponto de vista experimental e psicológico,precisamente porque não possuem um criterium , um fio condutor, uma ideia, em umapalavra, que os guie em suas pesquisas, e que lhe dê um sentido e uma unidade. Que seabra, por exemplo, o livro de Bichat, para se ver se há alguma intenção séria e científicaem suas pesquisas sobre a vida e a morte, se verá que o resultado nunca corresponde aessa intenção. Não chega a uma resposta sob o ponto de vista psicológico, pois todas ouquase todas observações suas, e as mais importantes, são atualmente contestadas.Responde menos ainda sob o ponto de vista filosófico. Pois tudo que se encontra emrelação à sensibilidade, ao sentimento, ao entendimento, não oferece nada de observável.Cf. sobre este ponto mais acima, cap. IV, § 3, E cap. V, § 2.

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sensível, e ao ser em sua existência individual e isolada. Pois,como a morte carrega consigo a beleza, o vigor e o talento,

conclui-se que a morte é um mal e o oposto dessas perfeições.Porém, em primeiro lugar, se a morte é aqui considerada como ummal, quando destrói o vício, a feiúra, os monstros e os produtosimperfeitos da Natureza, ela é considerada como um bem.Portanto, mesmo nos limites da existência individual, ela é tantoum mal como um bem. Com efeito, a morte é uma perfeição, assimcomo a vida, e é uma perfeição porque é tão necessária quanto avida.

Se é nesses casos que a vida vale mais que a morte, em outrosa morte é que vale mais que a vida.

O organismo não se mantém e não se desenvolve a não serpela destruição do organismo, e o ser vivo somente pode dar a vidadegradando-se e se destruindo.

Porém, sobretudo, é no reino do amor e do Espírito que seexerce a ação beneficente da morte. Amar é morrer, e nascer navida do espírito é morrer na vida do corpo. O amor aspira à ideia,sendo que é essa aspiração que consome a vida e leva à morte.Quem ama deve estar prestes a morrer pelos objetos de seusdesejos, e sua morte é a consagração e o triunfo de seu amor. Maisse ama, mais sua morte será pronta e certa, mais profunda será o

desejo da morte e o desprezo pela vida. Deve-se mesmo dizer que avida daquele que ama é uma morte contínua, é o aniquilamento e afusão de si mesmo com o objeto de seu amor. Pois o amor é achama que ilumina e devora os corpos ao mesmo tempo. Eleacalenta e ilumina a alma, mas rompe e dissolve a capa que oaprisiona. O que lhe atrai é a felicidade, a liberdade, a humanidade,a ciência, e aquele que ama, luta, se consome e se devora por estas.

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É assim que a Natureza se eleva até o Espírito, ou, para nos servirde uma expressão mais popular, que a ideia penetra no mundo e o

torna sua imagem. De outro modo, pois, pode-se dizer que aNatureza se transforma pelo contato e sob a ação da Ideia e dopensamento, que se apropriam de seus fins e de suas necessidades.O movimento, o progresso, as transformações sociais supõem adestruição e a morte. E a morte é a obra do Espírito, que pensa aIdeia e que, por este pensamento, aniquila a Natureza e se libertade seus entraves146.

Tal é a beleza, tal é a poesia da morte. Por conseguinte,quando se diz que Deus é a morte, não somente se enuncia umaverdade demonstrativa e reflexiva, mas uma verdade que aexperiência e a consciência vulgar em si mesma reconhecem eproclamam.

Poder-se-ia, por considerações análogas, estabelecer alegitimidade e a origem divina da dor e da sensação. E assim essasproposições:  Deus é a sensação, Deus é a dor, são tão racionais enecessárias quanto Deus é a justiça, Deus é o bem, etc.

Porém, que Deus seja a morte, a sensação, a dor, não se segueque seja sujeito à dor e à morte. Pois é precisamente porque ele é oprincípio da morte que não pode morrer, e porque sendo ele queproduz a dor não poderia senti-la.

Atendo-se à simples expressão verbal, se vê que seria ilógicodizer que a dor sofre e que a morte morre, enquanto que asexpressões, a dor faz sofrer, e a morte faz morrer, sãoperfeitamente lógicas e inteligíveis.

146  Ver sobre esse ponto o apêndice II, após a introdução, e a ode de Léopardi: Amore e  Morte, um dos mais belos componentes da poesia moderna.

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Sendo Deus a Ideia e o pensamento absoluto, a esse título, eleproduz as coisas sem se confundir com elas, sem sofrer e sem

tomar parte nelas, e sem participar de sua finitude. É, de qualquermodo, num sentido mais profundo, conforme o médico, que,pensando, pode produzir o mal e a saúde, sem participação nisso,ou melhor ainda, a ciência, que esclarece a inteligência147, sem serem si esclarecida.

Com efeito, as coisas não existem no pensamento e na Ideiatais como existem em si mesmas e em sua existência individual efinita, e não existem, tampouco, na unidade da Ideia como existemna existência isolada e fragmentada. O movimento inteligível movesem se mover, não preenche, como o movimento sensível, seja umdeterminado tempo ou um determinado espaço, mas todos ostempos e todos os espaços; e é precisamente nisso que faz com queo movimento sensível se produz e pode se produzir. A dor e oprazer inteligíveis não pensam e não se sentem, e são, entretanto,esses pensamentos eternos que ocasionam o sofrimento e o prazerno mundo. Ademais, o ser sensível submete-se à sucessão e àdivisão; existe em seus órgãos limitados, compreende, se move,sofre, se alegra, e passa sucessivamente e inteiramente por cada umdesses estados, residindo nisso o que provoca sua finitude. Opensamento absoluto escapa a essas imperfeições. Pois nada lhe é

estranho, e de todas as coisas ele assimila e se apropria, e todas ascoisas existem nele, sob a forma mais perfeita e em sua unidade.Portanto, o que é dividido no ser sensível, se encontra unido nopensamento, e o que é sucessivo num, é simultâneo no outro. Eisporque o que é ocasião de alegria e de dor para a consciênciasensível não pode alcançar o pensamento que pensa o eterno e a

147 Finita.

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unidade. A ilusão, o erro, e, por conseguinte, os arrependimentos eos desejos impossíveis e insensatos perturbam e agitam o ser finito.

O absoluto pensamento, ao contrário, não se perturba, sendo, porisso, impassível, produzindo e deixando passar os acontecimentosdo mundo sem sofrer nenhuma alteração. Isto não significa, comopretende Aristóteles, que o mundo não o toque; pois o mundo não éuma obra que lhe é estranha. Ele o ama, ao contrário, o mundo equer o seu bem. Mas seu bem supremo é o pensamento, que, porisso, é o bem do mundo. Pensar, pois, seu pensamento, e nopensamento, a Ideia eterna das coisas, é, ao mesmo tempo, pensar eamar o mundo e fazer o bem.

Tal é o pensamento e tal é Deus, ou, ao menos, tal é a maisalta noção que podemos ter dele. Deste lado, temos somentedeterminações limitadas, do outro, há somente o vazio e o nada.

§ 4.

O ESTADO, A ARTE, A RELIGIÃO E A FILOSOFIA.

Porém, se o pensamento e a Ideia compõem o mais alto grauda verdade e do ser, tudo no mundo aspirará a esse fim supremo,

tudo será como experimentado por um movimento que deve elevaras coisas a esse ponto onde a Ideia surge como ideia pura, comoprincípio absoluto, em sua existência simples, indivisível e eterna.Este movimento ascensional das coisas não deve ser consideradocomo um fato acidental e externo em sua constituição, mas comouma condição necessária, como um elemento inerente à sua

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existência148. O Estado, a Arte, a Religião, não são acidentes navida do Espírito, mas o próprio Espírito, em forma de graus, de

modos essenciais de sua absoluta existência. Supor outrasfaculdades, outros modos de ser no Espírito, é supor que a plantapode viver e crescer em outras condições, com outros elementosque a possam nutrir, com outros órgãos que possua.

É no Estado que o Espírito, após ter atravessado as esferasinferiores de sua existência, começa a se produzir e a se conhecercomo espírito absoluto.

Na sensação e na vida sensível se encontra já, de formacondensada, a vida do Espírito. Pois se pode dizer que tudo existena sensação. Mas tudo existe em estado obscuro e fechado, e oEspírito se encontra ainda submergido na Natureza. Peloentendimento, o Espírito pensa o geral e a Ideia, mas a ideia e ogeral enquanto abstratos e subjetivos149. No Estado, ao contrário, oEspírito começa a se produzir como espírito subjetivo e objetivo,como ideia teórica e prática ao mesmo tempo.

Dois elementos, duas condições essenciais constituem, comefeito, o Estado e a vida social, a saber, a lei e a atividade externa,em termos de aplicação e realização. Por isso, o espírito subjetivose objetiva no mundo externo, transformando-o e assimilando-o.

Não é preciso, vimos, representar a vida social como um

agregado de partes, unidas por relações externas e acidentais, mascomo uma unidade indivisível, como um organismo onde a vida decada membro se liga à vida do todo e disso depende. O espírito deum povo não é mais agregado que o espírito individual. Um e outronecessariamente são ligados por relações internas e substanciais.

148  Ver, mais acima, § 1, e § precedente.149 Cf. mais acima, cap. IV, § 5, E § precedente.

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Por conseguinte, o fim do Estado não é o particular, mas o geral;não é o bem do indivíduo, mas o da comunidade; pois o bem do

indivíduo é compreendido como o bem da comunidade que seexpande. Não há e não pode haver lei que se aplique ao indivíduo.E em toda lei o legislador deve ter em vista a unidade, a ordem e aharmonia das partes; deve, em outros termos, se esforçar emrealizar a ideia do Estado em sua totalidade, com todas suastendências, suas necessidades e seus interesses150.

Porém, a unidade do Estado é somente uma unidadeimperfeita, onde a Ideia somente existe sob uma forma limitada efinita. O espírito de um povo é essencialmente limitado. Éexternamente limitado por condições físicas, pelo clima, pelo sol,por suas produções, forças da natureza, das quais possa dispor,sendo que é no meio de tais condições que ele vive e sedesenvolve. É internamente limitado por suas necessidades, suasfaculdades, seus hábitos morais e intelectuais. Trata-se de umaalma e de um corpo limitados. É em virtude dessa limitação que seproduz sua nacionalidade, a qual se encontra, por isso, junto às

150 O vício dos modelos políticos que se denominam de puros, a monarquia e ademocracia, consiste em que ambos não respondem à ideia inteira de Estado e de sua verdadeira unidade, e que, portanto, somente satisfaz às tendências e às necessidadesparciais do espírito. A monarquia, somente considerando a unidade, suprime a diferençae a liberdade. A democracia, somente considerando a diferença e a liberdade, suprime a

unidade. No fundo, ambas substituem a unidade concreta e especulativa por umaunidade artificial e abstrata, a do entendimento. A unidade da democracia é a igualdadeque é somente uma unidade exterior e material. A unidade da monarquia é aindividualidade e o eu do monarca, não o eu que contém o não-eu, a força e riquezaindividual que é a expressão condensada do pensamento de um povo, mas aindividualidade que é somente o que se vê em si mesmo, suas vontades, seus caprichos esuas ilusões. Consideram-se os governos mistos como governos da razão, os que podemrealizar melhor a ideia de Estado. É este falso hábito do espírito que, para simplificar,mutila os seres e substitui a verdadeira unidade por unidades fictícias, ou seja, trata-se deum falso hábito que é necessário atribuí-lo à opinião que se cultiva em relação ao que seprocura em formas políticas extremas um governo o mais perfeito.

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outras nacionalidades, também limitadas e submetidas às condiçõesdo tempo e do espaço.

Quando, pois, o espírito de um povo realiza e expande esteconteúdo virtualmente de força e vitalidade, ele se retira, e deve seretirar da cena da história para dominar o mundo em outro povo,que saberá, melhor, exprimir a ideia de Estado, e a ideia absoluta.Eis porque o apogeu de sua força e de sua civilização marcasempre o início de sua decadência, e porque o momento de maiorexpansão é seguido de uma época de fraqueza e de esgotamento.Quando este momento fatal chega, tudo conspira para sua ruína, eo que, entretanto, faz sua grandeza e seu vigor, seus costumes, suasinstituições, suas crenças, sua força material, é-lhe causa dedestruição e de morte; do mesmo modo que num corpo doente, osalimentos, que de outro modo lhe proporcionariam força e beleza,se corrompem e apressam sua decomposição.

Acima dos espíritos e das nacionalidades finitas se eleva oEspírito infinito, o Espírito do Mundo. É ele que eleva e rebaixa asnações, e que, após comunicar o ser e a vida, se retira de ambos eos abandona em seu destino, porque não é nisso que ele se encontrana plenitude de sua verdade e de sua existência. Deus é, comefeito, em relação às coisas finitas, uma afirmação e uma negação.É uma afirmação, pois tudo o que as coisas finitas possuem de

realidade, é dele que retiram; é uma negação, pois, em relação aDeus, as coisas finitas são somente fragilidade e nada.O Espírito do Mundo se manifesta sob três formas e em três

esferas da existência, a saber, na Arte, na Religião e na Filosofia.A Arte engloba de um lado o Estado, e, de outro, dele se

distingue.

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Com efeito, o objeto e a essência da Arte não são, unicamente,como se pretendeu, a moral e a religião, mas o ideal, ou a Ideia, ou,

caso se queira, toda ideia que se possa revestir de uma bela forma.O artista parte da crença na realidade de um mundo ideal, mundoonde ele vive, que influencia e ilumina sua inteligência, e que seesforça de traduzir e de fixá-lo, de algum modo, por um sinalvisível e material. A lei política, referindo-se a uma forma simplese geral, tem um sentido e um objetivo essencialmente relativos efinitos. A Arte, ao contrário, aspira ao absoluto. O que pensa e oque deseja o artista representar, é a dor e as alegrias infinitas, isto éa beleza, a força, a liberdade absolutas; e enquanto o campo sobreo qual exerce a atividade política é principalmente a Natureza, estapara a Arte não passa de uma necessidade, não sendo umarealidade, mas um símbolo, uma matéria que a Ideia anima e cria,de algum modo, e que somente existe por ela e para ela. É o queexplica as profundas alegrias da Arte, que, livrando o Espírito davida da Natureza, põe-no na região da liberdade e da vida eterna;assim como a ação que a Arte exerce sobre a civilização e osprogressos do espírito humano. Pois, penetrando no Espírito oculto e a crença num mundo invisível, a Arte opera uma primeirareconciliação entre o Espírito e a Natureza, e eleva a realidadevisível até a Ideia151.

Porém, se por este lado a Arte toca o Absoluto, por um outroela recai na esfera da Natureza, no mundo das existências relativase finitas.

De fato, a Natureza, que, sob uma forma ou outra, é umelemento essencial da Arte, submete o pensamento artístico ànecessidade externa, e dá à sua obra um caráter local e finito. O

151  Ver, mais acima, § precedente; cap. II, § 4, e cap. III, § 2.

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que decorre é o pensamento que se ignora na Arte, busca a si, porassim dizer, e se impregna num ser existente fora dele, e que é

impotente em se conhecer interiormente em si mesmo e na puraperfeição de sua essência. Ademais, e pela mesma razão, a Artenão conhece seu objeto em sua inteireza, mas o dispersa e ofragmenta, o que faz com que seja essencialmente politeísta, quenão poderia pensar e representar o Absoluto em sua unidade.

Portanto, a Arte se põe entre o espírito finito, o espírito dospovos, e o Espírito infinito, no sentido de que ela, ao mesmotempo, conhece e não conhece o Absoluto, que o entrevê e opressente sem poder alcançá-lo.

Mas o que está na base dessa contradição é a ideia de umEspírito absoluto onde a Natureza e os espíritos finitos encontramseu princípio e sua unidade. É onde se encontra a Religião.

Na Arte, essa unidade é posta no estado virtual e como umpressentimento. Na Religião, ao contrário, ela é dada como umobjeto real e atual, e como um objeto que somente se revela pelopensamento. Com efeito, toda religião, qualquer que seja a formaexterna de seus dogmas e de seu ensinamento, se baseia na crençana realidade de um Ser infinito que contém a razão última dascoisas, responsável pela harmonia e unidade. Ela supõe, de outrolado, a relação íntima e substancial do Ser infinito com os seres

finitos, relação que não é mais aqui o resultado de umacomunicação visível e externa, mas de uma comunicação interiordo pensamento ao pensamento, do espírito ao espírito, e, portanto,ela supõe que o Espírito infinito se manifesta ao espírito finito, eque este, por sua vez, pode se elevar até ele. Reside aí a essência detoda religião, sendo que a mais perfeita é aquela onde essa crença eo princípio se encontram expressos da maneira mais visível e mais

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completa. As religiões da natureza não diferem, a esse respeito, dasreligiões espiritualistas, a não ser pelo grau de clareza da verdade

que se manifesta à consciência. Pois o selvagem somente se prostradiante de seu ídolo porque vê nele o sinal de uma força invisívelque governa a Natureza, e sua adoração se baseia na crença de queesta força compreende suas preces e seu pensamento152.

Portanto, na Religião, todo elemento externo desaparece, enão há mais senão uma relação interna e espiritual.

Na Arte, o Espírito e a Natureza, unindo-se, permanecemainda distintos e separados. Na Religião, essa distinção é superada,e somente há relação do espírito com o espírito, do espírito finitoque se despoja de sua finitude, se liberta de seus desejos, de seusinteresses egoístas e individuais, e se eleva até a esfera da verdadee da liberdade absolutas.

Na Arte, a Natureza é um elemento essencial e constitutivo.Na Religião, ela não é mais que um instrumento que o espíritoemprega para alcançar o espírito, e as obras de arte não têm outrosignificado, nem outro uso em relação à Religião.

É o que explica a diferença das emoções e dos sentimentosrelativos à Religião e à Arte.

A Arte atrai e toca o espírito sem dele se apropriar. Educa econvida à reflexão, sem perturbar a calma e a serenidade do

pensamento. E, embora profundas que sejam suas concepções, hásempre nestas um elemento finito e fugaz, que faz com quedetenham o espírito sem absorvê-lo. As dores e as alegrias da Artesão dores e alegrias finitas. Têm, também elas, sua fonte na Ideia,no pensamento da absoluta perfeição, e na posse ou ausência dessa

152 Cf. § precedente.

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perfeição, porém são limitadas assim como o objeto que asproduzem.

A Religião, ao contrário, conhece a alma por inteiro, e penetraprofundamente em seu íntimo. Pelos problemas de sua origem, desua essência e de seu fim, obriga a alma a fixar o olhar sobre simesma, a sondar as profundezas de sua natureza, e o que há deimperecível e de eterno. Portanto, suas dores e alegrias sãoinfinitas, e seu domínio não alcança somente a moralidade e apiedade, mas pode produzir a intolerância e o fanatismo.

Entretanto, se o Absoluto, a unidade, a vida interior eespiritual, constituem a essência da Religião, e se, por isso, aReligião se eleva acima da Arte, há, nela também, um elementoque a prende ao mundo fenomênico e finito.

De fato, a condição da Religião, a forma sob a qual opensamento religioso se produz na consciência, é a crença e a fé.Ora, crer é afirmar de um modo imediato e irrefletido, é aceitar oobjeto de seu pensamento tal como se oferece natural einstintivamente ao espírito, ou tal como lhe é transmitido peloensino, sem submetê-lo ao pensar científico e especulativo. Segue-se que o Absoluto, revelando-se à consciência religiosa, epreenchendo-se de sua presença, permanece como um véu, deusabsconditus, como um objeto, do qual se intenta com dificuldade

afirmar a existência, e cuja natureza se oculta. Daí decorrem ascontradições e os erros em que incorre a consciência vulgar emrelação a Deus, conforme temos mostrado; havendo, por isso, anecessidade de se recorrer às imagens e aos símbolos, pelaincapacidade de se conhecer interior e diretamente seu objeto;numa palavra, trata-se do elemento humano e perecível dasreligiões.

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Porém, assentando o Absoluto no Espírito, a passagem da fépara a ciência torna-se a consequência simples e necessária. É a

esta necessidade que obedece Santo Anselmo, quando se esforçavaem elevar a fé até a pura inteligência, fides quoerens intellectum.

Com efeito, o Absoluto somente pode surgir numainteligência que está apta a recebê-lo, sendo que uma inteligênciaque não entende o Absoluto, é uma inteligência que não podecompreender a si mesma, nem as coisas enquanto objetos de seupensamento. Há, pois, um ponto em que a inteligência se ajusta aoAbsoluto, e onde o inteligível e a inteligência se confundem numato simples e indivisível do pensamento. É o que se refere àFilosofia153.

O objeto da Religião e da Filosofia é o mesmo, diferindo-seapenas na forma. Pois, para ambas, este objeto é a unidade, é oabsoluto, o indivisível e o eterno.

Esta relação entre a Filosofia e a Religião faz com que,primeiramente, não possa haver uma oposição absoluta entreambas. Pois, negando-se, excluem-se uma a outra, uma vez quenegando o mesmo objeto, acabam por se negar a si mesmas.Portanto, uma filosofia que visse na Religião somente umainstituição acidental e puramente humana, uma obra do interesse eda astúcia, se colocaria em oposição com a história e com o

princípio desta, ou seja, com o espírito humano, e,consequentemente, com o espírito divino. De outro lado, aReligião, rejeitando a Filosofia, não somente nega, ela também, ahistória, mas rejeita ao mesmo tempo a razão e a sua própria fonte.

Essa relação explica, pois, o encadeamento histórico entreReligião e Filosofia, e por que toda filosofia é tão-somente um

153 Cf. § precedente.

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desenvolvimento de uma doutrina religiosa. Mas não que sejanecessário concluir, como se faz sempre, que a Filosofia é inferior

à Religião, que ela, de qualquer modo, é apenas umasuperficialidade. Pois o contrário é que necessita ser afirmado.Com efeito, o que é anterior na ordem do tempo, é posterior naordem das essências. É desse modo que a criança precede à idadeadulta, a folha ao fruto, e a ignorância à ciência. Se a opiniãocontrária a isso tivesse fundamento, seria preciso dizer que opaganismo vale mais que o cristianismo, por preceder a este, ouque o presente e o futuro valem menos que o passado. A verdade, aesse respeito, é que a Religião e a Filosofia têm, ambas, sua razãode ser e sua necessidade, sendo, pois, um empreendimentotemerário e insensato desejar suprimi-las.

Entretanto, se a Religião e a Filosofia coincidem por seuobjeto, diferem pela forma, sendo esta diferença que ocasiona seudesacordo. Este desacordo não pode pesar sobre o espírito, massobre o estudo, sobre a essência escondida e imutável, sobre oelemento aparente e variável da Religião. Ambas afirmam, comefeito, o Absoluto, procuram o mesmo objeto, mas não o veem deum mesmo modo. É assim que um só e mesmo ser se apresenta sobvários aspectos, conforme as disposições e as atitudes dainteligência, que não enxerga da mesma maneira através da criança

e do adulto, do homem ignorante e do que está de posse da ciência.Deve-se mesmo afirmar que a cada nível, a cada desenvolvimentoda consciência corresponde um ponto de vista distinto e novo154.

Este antagonismo surge como um mal quando se fecha nocírculo limitado da vida nacional ou de uma época, quando se põesob o ponto de vista da Religião e da Filosofia absolutas. Pois a

154 Cf. § precedente, e cap. IV, § 4, e apêndice I, sub finem.

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Filosofia, aplicando seu pensamento na doutrina religiosa, liberta oespírito preso à letra, e força-o, por assim dizer, a se revelar, por

sua vez, entranhando no Espírito o sentimento do Absoluto,fazendo lançar sobre ele o olhar do pensar filosófico, e, por isso, oengrandece e o fortalece. É assim que desse antagonismo, isto é,dessa ação recíproca entre a Religião e a Filosofia, surge a absolutaverdade, e, depois, sua conciliação.

Entretanto, a forma do conhecimento filosófico na deve servista como uma forma acidental e subjetiva, mas comoconstituindo, com seu conteúdo, a ideia mesma da Filosofia e daCiência. Não há duas maneiras de conhecer, e não há duasmaneiras de conhecer o Absoluto, não há dois absolutos, e se ainteligência concorda com o Absoluto, ela deve conhecê-lo talcomo seja, e tal como se pensa. Ora, essa forma perfeita e acabadado conhecimento é o pensamento dialético ou especulativo. Opensamento especulativo é o ato supremo e a vida mais íntima dainteligência, em relação a qual os outros modos de conhecer e deser são somente graus que, por assim dizer, preparam o advento esomente existem para aquele. Com efeito, no pensamento quealcança a esfera da existência, todo elemento exterior, os símbolos,os sinais, a linguagem, assim como toda dualidade, desaparecem.No pensamento, o sujeito e o objeto, o começo e o fim, o antes e o

depois, a Natureza e o Espírito, não possuem mais significação, ou,por assim dizer, todas as coisas existem nele, o único que possui oolhar dentro de si próprio para encontrar todas essas coisas sob suaforma simples, imutável e absoluta.

Pensar a Ideia, e pensá-la em sua unidade, e, na Ideia, pensaras coisas, tais como sejam e deveriam ser, expressa toda suaatividade e essência. É desse modo que o pensamento percorre de

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novo as coisas, e as renova sob um modelo novo. Pois ele asintelectualiza por seu contato e as eleva a sua mais alta realidade; e

ao ser que se ignora, ele fornece a inteligência, e o que despontacomo se fosse um bem, ele rejeita como sendo um mal; o que éconsiderado como um acidente, o considera como uma necessidadesalutar; o que se encontra em estado de isolamento, sem liame esem relação, o aproxima e o liga à unidade; e, enfim, o que opensamento irreflexivo somente conhece na sucessão e no tempo, oconhece fora do tempo e em seu momento indivisível.

O pensamento é, pois, o centro em direção ao qual convergemtodos os seres, o ponto onde se efetiva sua conciliação, onde, deve-se afirmar, ele é todas as coisas, sem se confundir com cada coisaem particular, e existindo em toda parte e em nenhuma parte. Orase Deus é o Pensamento, o pensar especulativo, o pensar quesomente pode pensar o eterno, é também o que existe de maisdivino.

Tal é o pensamento, acima ou abaixo do qual somente háverdade incompleta, ilusão, aparência, mistura de verdade e deerro.

Porém, o pensamento que põe a alma em posse da absolutaverdade, coloca-a, pois, também, em posse da perfeita liberdade.Fora do pensamento, há somente divisão, dualidade, antagonismo

de forças opostas, em que a liberdade sucumbe e perece. É somentepensando o Absoluto, e no ato pelo qual o pensa, que o Espírito selibera de toda influência estranha, pondo-se num estado de absolutaliberdade155.

155 Cf. § precedente.

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Desse modo, a vida especulativa é a vida por excelência, avida onde a alma encontra seu repouso, sua felicidade e a plenitude

de sua existência.A vida ativa, afirmam seus partidários, se exerce no domínio

da realidade, possui uma base indestrutível, no teatro do mundovisível e dos acontecimentos, enquanto que o pensamento vivenum mundo ideal e abstrato, no qual nada se prova da realidade.Portanto, realizar vale mais que pensar, pois o ato realizadorcontém o pensamento e a obra do pensamento.

O que está na origem dessa afirmação é uma noçãoincompleta do verdadeiro pensamento especulativo, assim como daciência, de sua possibilidade, e do que ela deve ser.

Pode-se dizer, com efeito, que todo pensamento científico éespeculativo, e, nesse caso, que busca e pensa os princípios e oabsoluto. Mas assim como existe uma ciência falsa ou incompleta,do mesmo modo existe um pensamento especulativo falso ouincompleto.

Ora, o pensamento especulativo incompleto é oracionalismo156 . Com efeito, por isso que essa filosofia somenteconheceria um único aspecto da verdade absoluta, enquantorealidade que lhe escapa, o que faz com que não somente osacontecimentos e a vida real não correspondam nunca com suas

doutrinas, com o mundo caminhando de um lado e a ciência deoutro, caso se possa desse modo exprimir, como também os que aprofessam, expressam suas próprias opiniões, e buscam a verdadepela necessidade das coisas. É, assim, por exemplo, queproclamando o dever, o bem, a caridade (sobre cuja natureza nãose exprimem) como o absoluto e única regra de nossas ações,

156 Cf. cap. IV, § 5, e § precedente.

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buscam o útil, e após tendo suprimido num estalar de olhos aNatureza e os bens materiais, se mostram tão ligados à vida da

Natureza e aos bens materiais quanto à vida e aos bens do Espírito.É em presença dessas contradições e dessa fragilidade em

conhecer pelo pensamento a realidade, que se produz e se difunde aopinião de que a vida ativa vale mais que a especulativa. Essaopinião acaba por atingir a própria filosofia, a que lhe dá origem.Pois para escapar dessa situação, dessa fragilidade, tal filosofia, emlugar de se elevar à verdadeira especulação e à verdadeira ciência,limita-se à esfera do senso comum, o que faz com que, de um lado,a realidade e a história lhe escapem, pois estas não são tão simplese superficiais conforme acredita o senso comum. De outro lado, vaicontra a própria ciência, e em lugar da verdadeira filosofia, depara-se com sua sombra, com uma filosofia sem independência e semdignidade, livre dos caprichos e das variações da opinião. E casoela não se conforme com a teologia, acaba se conformando, o que épior ainda, com os poderes políticos.

Mas essas relações não podem alcançar a filosofiaverdadeiramente especulativa. Com efeito, porque essa filosofia seaplica em conhecer a unidade e em englobar todos os seres, não hánenhum elemento, nenhum grau da realidade que lhe escapa, o quefaz com que ela exerça uma ação rigorosa sobre a ciência, e produz

como resultado prático, a moderação, a liberdade do espírito, e, porconseguinte, a moralidade. Pois a verdadeira moderação e averdadeira liberdade são inseparáveis, com a moderaçãoconsistindo no balanço do espírito que, vendo os diferentesaspectos da verdade, se efetiva em cada um destes, sem seidentificar com nenhum em particular; o que deixa ao espírito aliberdade de seu pensar e agir, enquanto que das disposições

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contrárias resultam visões estreitas e isoladas, a mutilação e oaprisionamento do espírito, e, portanto, a imoralidade.

Assim considerada, a vida especulativa é bem superior àprática, e se pode dizer que existe entre ambas a mesma diferençaque há entre o finito e o infinito, o ser perecível e o ser eterno. Avida prática é, frente à especulativa, uma espécie de decadência; éa vida da Natureza, o Espírito finito, o que vive da vida sensível,num ponto do tempo e do espaço, em relação ao que não está aindaelevado ao pensamento puro e ao Espírito infinito.

Aliás, não é exato dizer que a obra realizada tem mais valorque o pensamento. Essa afirmação seria verdadeira se a obra nãotivesse seu fundamento no pensamento. Mas como nada escapa aopensamento, este vale mais que a realização da obra, antes edepois. Antes, porque é ele que a produz; após, porque, não seconfundindo com aquela, pode corrigi-la, refazê-la ou completá-la.

Se tal é a vida especulativa, deve-se dizer dela o que se devedizer do ser absoluto, a saber, que ela tanto existe como não nomundo, que o observa sem possuí-lo. É o que explica, ao mesmotempo, sua grandeza e sua fragilidade, e porque, conformeafirmava Goethe sobre Hegel, tudo seja por ela atraído e repelido.Repele, conforme condições da existência material e finita; atrai,quando se eleva à esfera das ideias e da vida eterna. Ela é um

objeto de desprezo, e frequentemente de ódio, para oscontemporâneos, e um objeto de admiração e de culto para aposteridade, ou seja, para o Espírito que se liberta de seusinteresses egoístas, de suas ilusões, do que há de perecível e deterreno, e que somente reconhece a pura e imortal verdade.

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APÊNDICE I

Critica-se a filosofia de Hegel, por uma consequência fatal einevitável de seus princípios, de levar ao culto da humanidade e daidentificação de Deus com o homem.

Tivemos já ocasião de fazer observar157 que essasconsequências não existem, nem em palavras, nem na visívelintenção de Hegel, e confiamos que nossa introdução tenha umacontribuição a dar para que a doutrina hegeliana, considerada em simesma, ou em suas consequências, tenha uma noção mais exata emais verdadeira.

Cremos, entretanto, dever examinar mais de perto, nestesuplemento, essas objeções.

Diz-se: caso se ponha a essência de todas as coisas em Deus,seria preciso pôr também a essência do homem, e, por conseguinte,haveria a obrigação de deificá-lo. E caso se estabeleça entre Deus eo homem, entre a consciência divina e a humana, uma uniãoindissolúvel, seria preciso antes proclamar o culto da humanidade,ou, antes, suprimir a religião.

Demonstraremos, em primeiro lugar, aos que apresentamessas objeções, onde é preciso pôr a essência das coisas, e,portanto, a essência do homem, se este não existe em Deus. É

preciso voltar à opinião absurda e insustentável de certoscomentadores de Platão, que põem as ideias fora de Deus, não sesabe onde, e que consideram as essências distintas e separadas?Mas quando se leva a ciência a sério, não se pode em nada prender-se a tal afirmação. É preciso, pois, queria ou não, pôr tais ideias eessências em Deus e considerá-las como uma parte essencial de sua

157  Ver prefácio.

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natureza. Ora, reside precisamente aí a raiz de todas as relaçõesque há entre Deus e o homem, assim como entre Deus e todos os

seres em geral. Suprimir essa relação é separar de modo absolutoDeus e o mundo, abrir um abismo entre estes, além de cair numacontradição insolúvel de dois Absolutos158.

O homem, pois, possui sua razão última em Deus, sendo isto oque ocasiona a unidade da natureza humana e a indissociabilidadeda natureza divina e da natureza humana. Mas segue-se daí que ohomem deva tomar ele próprio por objeto de seu culto?

Primeiramente, o que se entende por humanidade? Porespécie? Mas é o que precisamente trata-se de determinar. Pois setrata de determinar o que se entende por espécie humana. Toma-se,com efeito, por espécie humana o que constitui o homempropriamente dito, ou, caso se queira, o homem no que tem deperecível e terreno, considerando-o não somente em sua existênciaindividual e em seus interesses egoístas e finitos, mas numa esferamais alta de sua atividade, a sociedade e o Estado? Nesse caso, éevidente que Hegel, que proclama que o objeto da religião é o

 Absoluto, a  Ideia, o Pensamento absoluto (termos que são bemdefinidos em seu sistema), não propõe de modo algum pôr ahumanidade no lugar do Absoluto. Compreende-se agora porhumanidade o que existe de mais elevado no homem, como a

inteligência e a razão, a que pensa sobre o eterno e o infinito?Nesse sentido, pode-se dizer que a filosofia de Hegel conduz aoculto da humanidade. Unicamente faremos observar que, aqui, nãotemos mais humanidade que a palavra, ou, melhor, não temos maishumanidade, mas o Ser absoluto, e não o Ser absoluto idêntico aohomem, mas tendo uma existência distinta e independente. Com

158 Cf. introdução, cap. III, § 2 e seguintes.

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efeito, quando o homem se eleva por seu pensamento ao Absoluto(é do pensamento científico, principalmente, que estamos falando),

não pertence mais a sua natureza e a sua espécie, sendo que é, porisso, que pensa o Absoluto, o Absoluto que é o eterno pensamentoe o pensamento de todas as coisas159.

Por conseguinte, mesmo que adorasse o seu pensamento,nunca adoraria a si mesmo, mas adoraria o pensamento absoluto,tornado em objeto de seu pensamento. Ora, é preciso admitir, sobqualquer ponto de vista, essa relação do espírito infinito e do finito,assim como sua coincidência e adequação, caso nos seja permitidoessa expressão, no ato pelo qual o pensamento finito pensa oinfinito; ou, então, ficará rompida toda relação entre esses doistermos, além de enfraquecida na base da ciência e da religião. Pois,do mesmo modo que meu pensamento não pensa verdadeiramenteo triângulo, a alma, a luz e todas as coisas em geral, senão o quefaz coincidir o pensar com as coisas, na medida em que podecoincidir com estas, assim meu pensamento não pensa o Absolutoverdadeiramente a não ser enquanto possa se adequar com aabsoluta existência.

Porém, dirão que queremos admitir certa relação e certacomunicação interna entre o espírito infinito e o espírito finito,entre a consciência divina e a humana, porém com a condição de

que esses dois termos permaneçam distintos e separados, e queDeus permaneça como um objeto pensado pelo pensamento, massem se confundir com ele. Pois se a consciência divina e aconsciência humana se confundem, será preciso afirmar nãounicamente que o homem se conhece em Deus, mas que Deus seconhece no homem.

159  Ver Introdução, cap. IV, § 1, e cap. VI, § 4.

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Faremos, primeiramente, observar que aqueles que fazemessas objeções caem em contradições irrefletidas que tivemos

ocasião de assinalar, e que admitem sob uma forma o que negamsob outra. Portanto, na questão da Providência, quando se indagase há uma Providência particular que desce até os detalhes dosfatos e dos destinos individuais, pelo hábito de materializar, dequalquer modo, a divindade e torná-la imagem do homem (o cultoda humanidade), a maioria dirá que a providência geral éinsuficiente, que é preciso que nada, nem mesmo o menor detalhe,escape aos olhos da Divindade. Ora, que significa tal afirmaçãosenão e tão-somente a de que Deus se conhece no homem? Comefeito, ou os acontecimentos ligados ao mundo, e que Deusobserva, acrescentam um elemento, um estado novo para a vida epara a inteligência divina, ou nada acrescentam. Se nadaacrescentam, Deus não tem necessidade de pensá-los, ou, melhor,não os leva em conta, nem os pensa. Caso se acrescente um novoelemento, e mesmo uma percepção nova, é preciso admitir queDeus se conhece, em certa medida, no homem. Essas observaçõestornam-se ainda mais decisivas se a liberdade é, como afirmam,uma força absoluta. Pois, nesse caso, é preciso reconhecer que osacontecimentos, que são o produto da liberdade, vêm, pois, seacrescentar à vida divina.

Caso, para evitar essas dificuldades, se abandonasse essaposição e se levasse em conta uma Providencia divina, atingir-se-iaum mesmo resultado, embora por uma outra via.

O que significa, com efeito, a Providência geral? É a que, emlugar de se reduzir às observações sobre as coisas finitas e sobre astarefas humanas, governa o mundo por leis gerais. Mas essas leisgerais, quando examinadas de perto, não são outra coisa que as

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essências e a natureza íntima dos seres. Portanto, afirmar que Deusgoverna o mundo por leis gerais é afirmar que o mundo e os seres

que o compõem nascem, se desenvolvem e vivem conforme suaessência. Mas as essências são eternas e não somente existem emDeus, como também se constituem numa parte integrante de suanatureza. Por conseguinte, quando Deus pensa as essências, pensaa si mesmo e se autocompreende pensando-as. Mas se entre asessências existe a essência do homem, Deus se compreende e seconhece pensando o homem e tudo o que a ele se relaciona. Por seuturno, a essência do homem é de tal modo constituída que podecompreender a Deus. E, compreendendo a Deus, compreende-se asi mesma. É precisamente essa relação metafísica e eterna que seconstitui no fundamento de todas as relações que se estabelecementre Deus e o homem no tempo.

Portanto, independente do modo como se encara tal questão, épreciso admitir que se o homem se compreende em Deus, este secompreende, de certo modo, no homem.

Com efeito, ou há uma relação entre Deus e o mundo, ou nãohá. Não se diz, e seria absurdo dizer, que não há. Mas se há umarelação, esta somente pode ser uma relação entre ação e reação. E,caso se pretende que o homem não exerce nenhuma ação sobreDeus, se alcançará, de uma maneira inevitável, os resultados os

quais se deseja e se evita escapar. Pois caso se recuse ao homemtoda ação, toda virtualidade própria em relação a Deus, o homem, omundo e a história não são mais que ilusões, e pior, são puraspalavras. Em que se tornaria, nesse caso, a prece, o amor, aliberdade, e o eu, esta consciência que se dá como o pontoculminante da vida humana e a pedra de toque da verdade, sem,

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entretanto, se levar em conta a possibilidade de ser definida160? E oque se tornaria a Providência em si mesma, uma vez que seria não

mais que ilusões e aparências em seu governar?Entretanto, desta relação, necessária e eterna, que existe entre

Deus e o homem, não se segue, de modo algum, como se pretende,que Deus e o homem sejam tão-somente uma unidade, de tal modoque se possa pôr um ao lado do outro, e substituir o culto dadivindade pelo culto do homem. Tal raciocínio equivale aoseguinte: «O círculo e o diâmetro são inseparáveis, pois se podepôr o diâmetro ao lado do círculo, e vice-versa; ou então este: aroda e a mão que a faz girar dependem uma da outra, pois a rodapoderia substituir a mão, e esta, a roda; além de outros argumentossemelhantes.»

É sempre essa falsa lógica, que não sabe nem separar nemunir, que toma os termos ao acaso, e que, após isolá-los, constróisuas deduções e chega a um resultado oposto daquele que desejaobter. Aqui, esta lógica se complica por uma via obscura eindefinida da consciência, que se põe acima da  Ideia e dopensamento, e que se transporta em Deus, ao qual atribui umaconsciência feita à imagem da humana, enquanto que, em Deus eno homem, a ideia e o pensamento são superiores à consciência,como demonstramos161.

Porém, nos será objetado se, como se pretende, que se ohomem pode se elevar a Deus, e conhecer, pelo pensamento, anatureza divina, não haveria em que ponto Deus e o homempudessem se confundir.

160  Ver introd., cap. IV e cap. VI.161  Ver Introd., cap. VI e cap. II, § 3.

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Admitimos isto, além de acharmos que é mesmo necessárioadmitir, implícita ou explicitamente, alguma noção, aliás, que se

tenha de Deus e do homem. Trata-se unicamente de explicar comoe em qual medida se dá essa união.

1º Primeiramente, toda comunicação entre Deus e o homem éobra do pensamento. O sentimento, o amor, a aprendizagem, aadoração direta ou indireta da divindade supõem o pensamento.Trata-se de um ponto que cremos que esteja fora de discussão. Ora,o pensamento de Deus supõe a elevação do homem acima dascondições finitas de sua existência, e seu retorno a sua divinaorigem. Por conseguinte, toda relação entre Deus e o homem se fazfora do tempo e do espaço.

2º Deus surge, primeiramente, na consciência como um objetoque é dado ao pensamento, e que se distingue do pensamentoobjetivo que o pensa. É assim que Deus se apresenta ao espíritofinito, ao espírito que não é verdadeiramente elevado até ele. Comefeito, o espírito finito pensa Deus como se pensa a si mesmo, domodo como pensa as coisas em geral, ou seja, no estado dedualidade e de divisão. É desse modo que toma uma parte de simesmo, como a vontade, a memória, ou o pensamento em simesmo, colocados diante de si, tornando-os seu objeto, eafirmando em seguida que o pensamento e a vontade, ou ainda o

sujeito e o objeto são duas coisas absolutamente distintas. E secomporta do mesmo modo em relação a todos os seres e emrelação a Deus.

Mas é preciso que o pensamento, quando pensa sobre Deus,sobre uma realidade, que coincida com seu objeto. Pois, como jáobservamos, caso não coincida, pensará uma ilusão ou a sombra daDivindade, e não a Divindade em si mesma; e, por conseguinte,

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quando o pensamento afirma que Deus existe , que possui um ououtro atributo, apenas fará referência a sombras e palavras. Mas

caso coincidam, no momento e na medida em que coincidam, opensamento e seu objeto formam tão-somente uma unidade. Nãomais um sujeito e um objeto, um eu que pensa um outro eu, mas hádois pensamentos que se confundem num único e mesmopensamento, um eu que se liberta do que há de perecível e deegoísta, e que se pensa como o eu em seu princípio e em suaessência.

3º Eis a obra da religião e da ciência, mas, sobretudo, daciência. Liberar a alma da vida sensível e das sombras que aenvolve, e elevá-la a esse estado onde possa conhecer a eternarealidade é o que constitui seu objeto e seu fim. A consciênciavulgar vê a sombra do triângulo, a ciência o vê em sua realidade.No ato pelo qual o pensamento conhece o triângulo em suaessência, o triângulo e o pensamento se confundem, enquanto queo pensamento, que somente pensa a sombra do triângulo, não seconfunde com ele. Do mesmo modo se dá com o Absoluto. Opensamento que somente pensa a sombra do Absoluto, que o vêatravés dos símbolos e das imagens, que o representa como umaconsciência, como um eu finito, tal pensamento permaneceseparado dele; enquanto que o pensamento que o conhece

diretamente em sua essência e em sua unidade, se encontraintimamente unido a ele. Portanto, deve-se dizer que Deus existe enão no mundo, e que o homem, por sua vez, tanto existe como nãoem Deus: coisa difícil, sem dúvida, de conceber. Mas é nisso queprecisamente consiste a ciência. Pois, assim como não se concebe ocálculo do infinito fora da ciência matemática, do mesmo modonão se concebe os problemas filosóficos fora da filosofia.

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APÊNDICE II DO CAPÍTULO VI, § 3.TEORIA DA MORTE. CRÍTICA DAS PROVAS DA

IMORTALIDADE DA ALMA.

Para melhor compreender esse ponto da doutrina hegeliana, épreciso definir a morte conforme sua ideia e sua significação gerale objetiva, e independentemente das diferentes formas que ela tomae da maneira pela qual tem lugar no indivíduo; é preciso, em outrostermos, e para nos servir de uma expressão hegeliana, considerar amorte como um momento necessário da ideia.

Desse modo, a morte aparecerá como o limite extremo daNatureza, com ela se pondo entre o ser vivo e o Espírito, e supondoo primeiro como um momento em que a Ideia já se apresenta, e osegundo como um momento que deve sair da morte.

Concebe-se que a morte possa ser deduzida da vida, mas nãose concebe como o pensamento e o Espírito podem ser deduzidosda morte.

O que impede de conceber a possibilidade dessa dedução, é,primeiramente, que em lugar de se considerar a morte em sua ideia,ela é considerada na existência material e externa do indivíduo.Pois, como se vê que tudo cessa com a morte, não se concebe amorte alcançando o espírito. Donde se conclui que não é necessário

que a morte tenha lugar para que o pensamento se produza.Para isto, faremos observar que, diante da experiênciasensível, tudo que se pode dizer é que a morte leva aoaniquilamento do indivíduo, mas não de sua espécie. Vê-se, pois,que há alguma coisa que sobrevive à morte, e que deve mesmo sersuperior à morte, porque esta não pode destruí-la.

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Examinaremos, agora, a questão sob outro ponto de vista, eprocuraremos qual é a causa da morte. Dir-se-á, em primeiro lugar,

que é a limitação e a finitude do ser vivo. Mas é aí que reside umaresposta muita vaga e muito geral. Pois ela se aplica a todas ascoisas finitas, e, entre estas, há seres que, em tudo sendo finitos,não deixam de existir, como o Sol, por exemplo. Aliás, a mortesomente pode alcançar o ser vivo, sendo somente deste modo quese pode aplicar este termo, inapropriadamente, à natureza mecânicae inorgânica.

Pode-se afirmar, talvez, que o organismo sucumbe na luta quesustenta com as forças da Natureza. Mas isto pode significar nomáximo a verdadeira razão da morte. Com efeito, se por organismose compreende o organismo em geral, este não sucumbe mais nessaluta que as forças que o supõem. Caso se compreende determinadoorganismo em particular, é preciso, nesse caso, pôr em presençadesse organismo forças igualmente individuais. Nesse conflito, nãohá razão para que seja o organismo que sucumba antes dessasforças. Além do mais, de qualquer modo que se considere oorganismo, este é compreendido num ou noutro sentido, e significaque, ao invés das forças da Natureza, é ele que triunfa sobre estas.Pois estas forças são feitas para ele, e, por sua virtude, as assimila,as transforma e as concentra em sua unidade.

Por conseguinte, a razão da dissolução do organismopossibilita buscá-la em sua ideia162. O organismo ou ser vivoperecem, pois a morte é dada em seu ser, ou, o que vem a ser omesmo, porque sua ideia supõe a da morte. O organismo, comefeito, forma o ponto culminante e mesmo a unidade da Natureza,mas isto é somente uma unidade externa, e que não alcança a

162 Para os detalhes dessa dedução, veja Hegel, Philosophie de la Nature.

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unidade simples e interna do pensamento e do Espírito. O ser vivoconstitui, por conseguinte, uma determinação da Ideia, e a mais

alta determinação da Ideia na Natureza, mas não é a Ideia. Resideaí precisamente o que faz com que a Ideia, após ter posto e fixadoo organismo, o abandona e o relega à morte para se elevar a suaabsoluta unidade no Espírito. A morte é, assim considerada,somente este ato, essa ideia ordinária, pela qual a Ideia se destacada Natureza e se eleva ao Espírito. Caso se espante em ver a Ideiautilizar-se da morte para se elevar ao Espírito, este espanto cessarácaso se recorde que isto significa o caminho natural da Ideia, poisdo mesmo modo que para produzir a temperatura, a cor, omovimento circular, ela vai do calor, da luz e da atração à suanegação, do mesmo modo aqui, para introduzir o Espírito, ela vaiaté a negação da via, que é a morte. Ademais, a morte que porcostume nos surge como uma imperfeição e uma negação, marca jáum grau superior da existência. Os seres que não morrem são osque não têm vida, e são os mais afastados do Espírito; trata-se danatureza morta e inorgânica. Nesses seres as oposições são maissuperficiais e mais externas, e são mais externas precisamenteporque são existências menos concretas e menos singulares, casose possa expressar desse modo. À medida que se avança emdireção aos graus superiores da existência, as oposições tornam-se

mais complexas e mais profundas. São mais profundas noorganismo que na natureza inorgânica, e no Espírito que noorganismo. O essencial, a esse respeito, é que essas oposiçõessejam racionais e conciliadas.

Consequentemente, o que conduz à morte é a presença e anecessidade do Espírito. Pois o Espírito somente é imortal, e ésomente imortal liberando-se da Natureza.

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Aqui podemos responder à segunda objeção. Conforme se diz,o Espírito e o organismo coexistem no ser animado, no homem

vivo, e não se compreende a necessidade da morte para que oEspírito possa se produzir.

Essa objeção provém, primeiramente, do fato de se limitar aofato e ao indivíduo, em lugar de se fixar na lei e na ideia;limitando-se, depois, à opinião que se forma da vida e da morte, eàs questões a isso relacionadas.

Diz-se: Eis tal indivíduo que vive e que pensa. Não é, pois,necessário que morra para que o pensamento e o Espírito seproduzam. Parece, ao contrário, que antes de viver, ele falhe, enecessite de órgãos para que possa pensar.

Porém, caso se reflita que o organismo, a morte e o Espíritonão são a divisão de um indivíduo, mas de todos os indivíduos daespécie, será necessário pesquisar e admitir uma lei, uma essênciado organismo, da morte e do Espírito, assim como de suas relações.É o que denominamos de o ponto de vista objetivo da questão. Poisquando se assegura da existência objetiva dessas leis, se podeexplicar porque tal indivíduo possui um organismo, e porque morree possui um espírito, assim como o que significa viver da vida daNatureza e da vida do Espírito.

Com efeito, se examinamos a vida e a essência do Espírito,

veremos que são únicos na unidade, no amor e na ideia

163

. Desde onível mais ínfimo de sua existência, na sensibilidade, nosentimento, imaginação, o Espírito se vê em relação com todos osseres que percebe de fora de si mesmo, aos quais se une, e que, poressa união, se eleva a sua mais alta existência. Pode-se dizer quetodos os desenvolvimentos, todos os graus que percorre o Espírito

163 Ver Introd., cap. VI.

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não tem outro fim a não ser fazer passar dessa forma obscura eirreflexiva da unidade e do amor à forma clara e perfeita do

pensamento e da ciência, que é, pois, o mais alto nível do amor.Ora, é disso de que se necessita e o que ocasiona a morte. A morteé esse estado, esse meio pelo qual o ser vivo se libera dos liames daNatureza. O pensamento sendo produzido, a morte, portanto, étambém produzida. O Espírito vive, com efeito, na unidade e noeterno. O organismo, ao contrário, vive na Natureza. É um serisolado, circunscrito, apenas possui um fragmento do ser, e não oser inteiro. Deve, pois, se dissolver para dar lugar à vida doEspírito. Essa dissolução não deve ser considerada na existênciaatual e individual, e no ato definitivo da morte, mas em sua formageral e permanente. Pois a ação da morte se exerce a cada instante,no sentido que se morre vivendo. Aquele que pensa o eterno vive,pelo seu pensamento, de fora da Natureza; depois, o ato definitivoda morte é apenas o resultado de atos sucessivos e contínuos quepõem, a cada instante, o ser orgânico entre a vida e a morte; de talmodo que se pode dizer que se começa a morrer no nascimento.Eis o sentido da afirmação dos psicólogos, de que todo homemcarrega, com ele, o germe fatal que deve destruí-lo.

Assim considerada, pois, a morte não vale menos que a vida, eque, sob determinado aspecto, vale mais que a vida, pois sendo

negada a vida, ela conduz ao reino do amor e do Espírito.Com efeito, a morte é um bem, tanto para o indivíduo, comopara a humanidade. Ela é um bem para o indivíduo, seja de umaparte de seu ser que subsiste após sua morte, seja pelo que perececomo inteiro, porque se a morte o alcança na velhice, o alcançaquando a vida tem pouco valor, para ele e para os outros; mas caso

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o atinja no vigor da idade, é sempre para elevá-lo, de um instanteindivisível, ao mais alto grau da liberdade e do amor.

Mas é, sobretudo, para a humanidade que a morte é um bem, eque sempre será um bem. Com efeito, a juventude, a beleza, aforça, a expansão do Espírito supõem a morte. Supõem a morte doindivíduo, assim como a morte dos povos. Pois o Espírito não seconserva, se fortalece e nem se engrandece, a não ser pela morte. Oindivíduo, independente de suas capacidades, é um ser limitado,pois é o mesmo que vive em seus órgãos limitados; o que, de umlado, contribui para o desenvolvimento e para a vida do Espírito,de outro, torna-se não somente um obstáculo para novosdesenvolvimentos, como também se abandona a si mesmo, caso sepossa exprimir desse modo; o que há de mais profundo e eterno emseu pensamento lhe escapa, lhe faz cair como atingido pela agoniae impotência. E o que é verdadeiro para o indivíduo, é tambémpara os povos. É assim que Grécia e Roma, após terem alcançadono mundo antigo a mais elevada civilização, tornaram-se umobstáculo para a civilização nova.

É preciso, pois, que a morte, libertando o Espírito dos liamesda Natureza, lhe permita viver de uma vida sempre jovem e nova, ede fazer penetrar pelo espírito antigo o espírito novo. É o queexplica porque o indivíduo cresce em sua consciência da

humanidade após sua morte, e porque a morte é considerada comoa consagração do amor e sinal da reconciliação do Espírito. Comefeito, do mesmo modo que a paz surge após a guerra, e ocasionaseu término, a paz, enquanto o resultado do exercício de todas asforças da vida, vale mais, independente da situação, que a pazartificial, a que irrita e enfraquece o corpo e o espírito; assimtambém a morte, que desvencilhando o espírito de seus obstáculos,

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faz brilhar a verdade eterna, da qual ela seria o órgão maisfulgurante, tornando-a mais visível para os outros espíritos,

propagando-a e a fortificando por sua adesão, fazendo-a triunfar,pois, sobre a Natureza.

Porém, se a morte é um bem para a humanidade em geral, elaexiste, mesmo considerada sob esse ponto de vista, para oindivíduo. Pois o que é útil para o todo, é também para as partes, eo conjunto da verdade, da força e da felicidade, que a humanidadee os povos possuem, está presente em cada indivíduo. Eis osignificado e o fundamento da doutrina cristã da solidariedade e doamor.

Porém, poderiam nos dizer: essa teoria da morte não está emoposição com a experiência, e com a inclinação forte e profundaque nos leva a desejar a vida e fugir da morte?

Já respondemos a essa objeção antes e em váriasoportunidades, mas lembraremos que quando se procura umaexplicação da natureza humana em suas inclinações e tendênciasirrefletidas, põe-se de fora da ciência e da realidade, ficando-se,por isso, na impossibilidade de explicar a natureza humana e,portanto, suas próprias tendências.

De fato, o temor e a esperança ocorrem sobre objetos os maisdiversos e mais opostos, e caso sejam observados na consciência

individual e irrefletida, podem ser vistos não somente sucedendo-se e substituindo-se sem cessar, mas destruindo-se a si próprios.Pois aquilo que um teme, é o que um outro deseja, e o que se temehoje, é o que se deseja no dia seguinte. É desse modo que a criançarejeita o que desejará mais tarde, que a doença resista à dose quefará retornar a saúde, e que a ignorância e o medo fazem com quese procure a ciência e a coragem. Se o desejo e o temor fossem a

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medida da verdade, o governo dos espíritos seria impossível. Pois oque a consciência irrefletida deseja é o que lhe é útil e bom, e o que

ela teme e rejeita é a lei. Na ordem moral, o que ela procura é oprazer, e é do dever que foge.

A ciência é inacessível ao temor e ao desejo. O que ela teme edeseja é tão-somente o que se conforma com a verdade e com arazão, em função de se produzir um bem maior. E se a vida é umbem, ela a deseja, e se a morte é um bem, também a deseja, sendoque somente as deseja no limite onde sejam úteis e necessárias, ealém desses limites ela as rejeita e as teme.

O que a ciência e o pensamento temem e desejam, é o quetambém a realidade teme e deseja. Pois se a sociedade dá a vida,isso também envolve a morte, sempre em vista de um bem maior; ese o indivíduo aspira à vida, é porque também aspira à morte, eonde encontra a morte, não somente como consolo para os seusmales, ou como um bem de seu país, mas como expressão mais altade sua liberdade e de sua individualidade.

Mas nos diriam ainda, admitindo-se que a morte sejanecessária e útil, que há casos onde se deseja a morte, e que semela não haveria heroísmo, desprezando-a e não lhe dando muitaimportância, uma vez que a existência cessa com a morte. Poiscaso se deseja a morte, não é por esta em si, mas por estarmos

diante de condições melhores e mais conformes a nossa natureza. Ese o Estado envia os cidadãos para a morte, seja por punição, sejaporque seu bem e sua saúde exigem o sacrifício da própria vida, éporque crê que a expiação e o devotamento lhe beneficiarão após amorte. Com isso, se acredita que o idealismo, e, sobretudo, oidealismo hegeliano não seja compatível com a imortalidade daalma. Como esta pode subsistir com sua personalidade, se somente

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há um único Espírito, o Espírito do mundo, ou o Espírito absoluto,do qual o espírito individual e o espírito dos povos formam

somente um grau e uma manifestação? Depois, a morte contribui, éverdade, com o desenvolvimento do Espírito, mas parece que elasomente contribui destruindo inteiramente o indivíduo, seu corpo esua alma.

Responderemos, primeiramente, a essa objeção, que nunca éexato dizer que o Estado tenha em vista, seja direta, ouindiretamente, a imortalidade da alma, quando ele exige doindivíduo o sacrifício de sua vida. Com efeito, embora essadoutrina não seja da alçada do Estado, pode-se dizer que umEstado que professasse uma doutrina contrária, não exigiria essesacrifício em escala menor. Pois o direito de viver e de morrer quepossui o indivíduo é um direito inerente a sua constituição,decorrente da necessidade de sua conservação e de sua segurança,e independente de qualquer outro tipo de conservação.

Além disso, fechando-nos nos limites da consciênciaindividual, o pensamento sobre a imortalidade da alma nãosignifica sempre que se deva desprezar a vida. Ao contrário,significa casos em que o pensamento provoca perturbação na alma,fazendo-a desfalecer. O soldado, que vai se defrontar com a morte,sentiria sua coragem abandoná-lo, caso esse pensamento se

oferecesse ao seu espírito, com todas as incertezas e sombras que oacompanham. É o desprezo pelo perigo, é sua intrepidez e hábitoque possui de sentir-se devotado à morte, que faz com que, quandose encontra entre a própria felicidade e a morte, entre a salvação deseu país e o sacrifício de sua vida, prefira a morte, a procure, e vejanela a realização de seu destino. E mais: a coragem e o heroísmo

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perderiam seu valor, caso tivessem outra motivação que não fossea verdade, o bem, a salvação da pátria e da humanidade.

Assim, pois, não há conexão necessária entre esses fatos,essas necessidades da natureza humana e a imortalidade da alma,pois as primeiras subsistiriam mesmo que a crença na imortalidadeda alma não fosse admitida.

Quanto à censura que se faz à doutrina de Hegel de serincompatível com essa crença, não cremos que seja fundada. Aocontrário, pretendemos afirmar que se a imortalidade da alma podeser demonstrada, nos limites onde possa, isso se apoia tão-somentesobre o idealismo, sendo que penetrando-se mais profundamenteno pensamento hegeliano é que se poderá obter essa demonstração.

Porém, antes de abordar essa questão diretamente, é preciso,por assim dizer, desbravar o terreno e apreciar a objeção que se faza Hegel de absorver o espírito individual no Espírito universal, noEspírito dos povos e no Espírito do mundo, ou em Deus. Vista deperto, essa objeção é uma das que podem se endereçar a todas asdoutrinas, e que, por isso mesmo, não tem qualquer fundamento.Com efeito, uma doutrina filosófica pode suprimir essas questões,e pode não ver se, do lado do espírito individual, não haja umespírito nacional e um espírito absoluto. Tal supressão é maiscômoda, pois permite isolar os problemas, tomá-los ao acaso, tratá-

los de modo arbitrário, e de simplificá-los, conforme se diz; o quesignifica, com frequência, mutilá-los e dissimular uma parte daverdade. Porém, se uma filosofia descarta essa questões porfragilidade, ou por lentidão de espírito, a ciência e a inteligênciahumana não as suprimiriam, e, cedo ou tarde, elas se empenhariamem lhes dar uma solução. Ora, havendo boa fé, e não se desejandorecusar a evidência, deve-se convencer de que não há, no fundo,

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outra solução além da que é dada por Hegel. Os termos podemvariar, pode-se contentar com expressões vagas e indeterminadas,

como afirmar, por exemplo, que o homem não pode viver fora dasociedade, que a razão é impessoal, que o gênero humano é um,que há uma lógica oculta na história, que é em Deus que residem o

 princípio e a unidade do mundo; porém, tais afirmações, casotenham um sentido, supõem e admitem implicitamente opensamento hegeliano, com a lacuna de não haver uma consciênciamais esclarecida sobre o que é dito, e de serem produtos daimaginação e não de um pensamento verdadeiramente científico164.

Vê-se, portanto, que a doutrina de Hegel não se encontra, emrelação à imortalidade da alma, em condições menos favoráveisque as outras doutrinas; o que estas podem alcançar, aquela tantopode como pode melhor.

Nesse sentido, as doutrinas que se chamam de espiritualistasdemonstram a imortalidade da alma? Não, não a demonstram, casose tome essa palavra em sua acepção rigorosa e científica; pois énesse ponto de vista, e não no da crença tradicional ou racional165

que devemos nos centrar. Tudo o que podem fazer é estabelecer apossibilidade. E, ainda, essa possibilidade em lugar de serprocurada onde esteja, ou seja, na ideia e no pensamento, buscamonde não está.

Examinemos as provas, com ajuda das quais se estabelece aimortalidade da alma.Essas provas podem se resumir a duas, a ontológica e a moral.

164 Cf. Introd., cap. IV, V e VI.165 Esse termo é preciso ser compreendido aqui conforme o sentido dado pela filosofiade Kant.

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Essas duas provas, caso se pretenda considerá-las emseparado, não dão uma demonstração, mas, caso sejam reunidas, se

complementam, e possibilitam a certeza e a evidência. Portanto,conforme esse ponto de vista, a prova ontológica, que é fundada naunidade, na identidade e na simplicidade da alma, somente daria apossibilidade de sua sobrevida no corpo, porque suas propriedades,em lugar de serem aplicadas à alma individual, poderiam seraplicadas somente à espécie. Porém, se a essa prova se acrescenta amoral, fundada nas ideias da virtude, do dever, da justiça absoluta,a possibilidade se transformará em realidade, e a verdade provávelem uma verdade demonstrativa.

Porém, primeiramente, faremos observar que é impossível quedois argumentos – que separados dão somente uma possibilidade – produzam, quando reunidos, uma demonstração. Concebe-se que,no domínio da opinião e da verossimilhança, a reunião de váriasprovas aumenta a probabilidade, embora não possa alcançar acerteza; mas, no domínio da ciência, as provas juntas adquirempeso. Caso se examine essa questão mais atentamente, se verá que,ou há para cada objeto somente uma prova e uma demonstração, ouque não há nenhuma, e, por conseguinte, todas as outras decorremdaquela, as quais subsistem se aquela subsiste, e são derrubadas,caso aquela também seja. É o que compreende Kant, que em sua

crítica do eu e de sua existência substancial, assim como daquelasprovas da existência de Deus, se prendeu a uma única prova, vendoque todas as outras são somente, por assim dizer, corolários.

Mas, mesmo se admitisse que essas duas provas reunidasformem uma demonstração, é preciso examinar o que cada umadelas vale separadamente, e pode fornecer, como se pretende, umasemi-demonstração, uma verossimilhança, uma possibilidade. Pois

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se, tomadas em separado, não contêm uma possibilidade, nãopoderão, de nenhum modo, quando reunidas, alcançar a certeza.

A primeira prova se baseia sobre a alma sendo una e simples,com o corpo sendo múltiplo e composto. De onde se conclui que adissolução do corpo não supõe necessariamente o aniquilamento daalma.

Esse argumento, porém, peca pela base. Pois parte doprincípio de que a alma somente é idêntica e simples, e que o corpoé composto. Ora, demonstramos acima166 que essa distinção nuncaé fundada. Pois, seja que se considere a alma e o corpo em suaexistência individual, seja em sua ideia, não são, ambas, nem maisnem menos compostas, nem mais nem menos simples. O quedistingue a alma do corpo são outros caracteres, outraspropriedades. Pois todas as essências são simples e idênticas a simesmas. Não se deve, pois, dizer que esse argumento é insuficientepor somente fornecer uma possibilidade, e sim que não possuiabsolutamente nenhum sentido.

Examinemos agora a prova moral, do modo como em geral éformulada.

Pode-se admitir que haja uma oposição natural e metafísicaentre o dever e a felicidade, entre a virtude e suas consequências.É, entretanto, o que ocorre na vida atual, onde vemos todos os dias

o homem de bem sofrer e o maldoso ser feliz. É preciso, pois,admitir que essa oposição seja somente temporária e acidental, eque desapareça num estado de coisas mais perfeito, onde o Ser, quepossui a força e a justiça absolutas, saberá retribuir a cada qualsegundo suas obras e méritos.

166 Ver Introd., cap. V, § 2; conf. Também cap. IV, § 1, e cap. VI, § 3.

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Porém, poder-se-ia, primeiramente, indagar se, com efeito,essa desproporção entre a virtude e a felicidade é tão grande para

que se possa concluir sobre a imortalidade da alma. Pois, de umlado, veremos que, de modo frequente, o maldoso é punido, pelalei, pela opinião pública, ou pela natureza, ou seja, pela parte que ésã e boa, e pelos remorsos que acompanham uma ação má. Deoutro, o homem virtuoso é com frequência recompensado, sejapelo que venha da sociedade, seja pelo que possua em si mesmo,na paz e no contentamento de seu espírito, ou nas vantagensmateriais que são sempre a consequência de uma boa conduta.Ademais, a apreciação dessa proporção depende da apreciação dograu de moralidade do indivíduo. Mas essa apreciação é muitodifícil, para não dizer impossível. Pois não podemos julgar amoralidade do indivíduo pelos seus atos e por sua conduta exterior;o que basta, sem dúvida, para a apreciação jurídica da ação. Mas,de outro lado, a intenção e o motivo interior nos escapam; o quefaz com que nunca somos autorizados a dizer que o homem quecremos virtuoso é injustamente atingido.

De outro, vemos, conforme o ponto de vista de seusopositores, a surpresa de se ver as coisas desse modo ordenadas nomundo, que, para chegarem à ordem, passam pela desordem, e aum estado de justiça por um de injustiça. Diante da consideração

de um mistério impenetrável para a sabedoria humana, considera-se que se pode chegar à demonstração e à evidência a partir de ummistério. Isso significa demonstrar obscurum pelo obscurius. Ecaso certo modo de argumentar seja permitido, pode-se dizer,conforme um ponto de vista oposto, que a luta da felicidade e davirtude é necessária, porque existe e sempre existiu. Esseargumento seria mais claro que o primeiro, porque supõe ao menos

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o fato e a experiência. E, caso se objete que não se concebe umacontradição que não seja nunca resolvida, pode-se limitar a

responder, sem recorrer a argumentos de outro ponto de vista, queexiste aí, na verdade, um mistério. Porém, mistério por mistério,um vale pelo outro.

Porém, o que atinge e anula essa prova é o uso irrefletido econtraditório que se faz dos termos tomados como base.

Começa-se, com efeito, por separar a virtude e o útil. Passa-sea ser obrigado a separá-los, pois, do contrário, a virtude não seria avirtude, e o argumento seria impossível. Faz-se sua separação,pois, e se põe como princípio que a virtude é o bem supremo daalma, que ela deve ser desinteressada e procurada por si mesma, eque não somente ela deve ser desinteressada, mas que o sofrimentoé a condição essencial para o exercício e aquisição da virtude.Ora, essas proposições destroem a prova da imortalidade da alma.Pois se a virtude é o bem supremo da alma, desde que alma apossua, ela não tem mais nada para desejar, e encontra nela o preçode seus sofrimentos. E se a virtude deve ser desinteressada, issosignifica viciá-la e anulá-la, ao invés de lhe propor um preço agoraou depois. E se ela não pode ser adquirida e exercida a não ser pelaluta e pela dor, a oposição entre a virtude e a felicidade se explicapor isso mesmo, não havendo necessidade, para conciliá-las, de

fazer intervir a imortalidade da alma.Poderíamos ir mais longe nessa crítica. Mas as consideraçõesque acabamos de expor bastam para estabelecer nossa tese, a saber,que os argumentos dados por essas doutrinas espiritualistas nãocontêm a possibilidade da imortalidade da alma.

Veremos agora o que pode, nessa questão, abordar oidealismo em geral, e em seguida, o idealismo de Hegel.

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Primeiramente, faremos observar que o espiritualismoempresta ao idealismo os dados principais de suas demonstrações.

E quando Kant, após ter negado o valor objetivo das ideias, seesforçava em estabelecer a imortalidade da alma pelo que chamavade prova moral, a título de simples crença racional, unicamente oque fazia era empregar essas ideias, das quais acreditava estardesvencilhado. Pois empregava as ideias de imortalidade, de dever e de justiça absoluta. Essas ideias, e outras semelhantes, foram-lhenecessárias para a demonstração da imortalidade da alma, e comobase da argumentação no sentido hegeliano ou do idealismoobjetivo. Tomemos, como exemplo, a ideia de imortalidade. É, emprimeiro lugar, evidente que toda demonstração se baseie em certaideia. Pois, caso esta seja suprimida, impedir-se-ia o pensamentomesmo sobre a imortalidade. Mas é preciso, de outro, que essaideia corresponda a uma realidade, e que, se penso que Deus, ou aalma, ou todo outro ser é imortal, existe nessas coisas umapropriedade, uma essência, que corresponde ao meu pensamento.O ponto essencial consiste, por conseguinte, em determinar em queconstitui a imortalidade, e a qual ser pode se aplicar. Ora, o que fazcom que um ser seja imortal é o pensamento. Que se suprima emDeus ou na alma o pensamento, o resultado seriam substânciasmortas, que poderiam em todo o resto serem eternas, mas que não

serão imortais. Pois a morte começa onde se extingue e desapareceo pensamento. É o que não veem os que pretendem fundar aimortalidade da alma com base na simplicidade. Pois o pensamentonão é unicamente simples e uno  – isto num sentido bem maisverdadeiro e mais profundo que em todo outro ser – mas é ele que,imortal em si mesmo, pode fazer com que o ser ao qual secomunique seja imortal assim como ele. É o que dá sentido ao que

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disse Aristóteles: se algo sobrevive ao corpo, este algo é tão-somente a inteligência. Com efeito, o pensamento, somente este,

possui a indivisibilidade e a divisibilidade, é ele próprio e outracoisa que ele próprio, e é outra coisa sem cessar de ser ele próprio.Pois quando meu pensamento pensa, seja sobre si próprio ou emoutra coisa, eu sou, por ele e nele, o si-mesmo e outra coisa alémdo si-mesmo. É ele que faz com que eu seja o que eu sou, que mefaz viver no passado, no presente e no futuro, que me eleva aoeterno e ao infinito, e que, multiplicando indefinidamente minhaexistência, mantém sua indivisibilidade e sua unidade167. Porconseguinte, o ser que possui o pensamento, cuja essência existe nopensar, e toda atividade tem por ponto de partida e por fim opensar, esse ser pode, por isso mesmo, escapar das condições daexistência finita, sobreviver desta e pensar eternamente. Trata-se daprova direta da imortalidade da alma, a única que, consideramos,fornece não a certeza, mas uma alta probabilidade. É o quequeremos demonstrar para a compreensão e justificação dadoutrina hegeliana.

FIM.

167

 Ver sobre esse ponto a Introd., cap. IV, § 1, e o cap. VI.

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TÁBUA DAS MATÉRIASPREFÁCIO: Concepções sobre a filosofia hegeliana. ―

Noção inexata e superficial que se tem. ― Falsa maneira de julgar uma doutrina filosófica. ― Verdadeiro ponto de vista ao qual sedeve prender. ― Diferença entre a filosofia de Hegel e a jovemescola hegeliana. ― Posição dessa filosofia. ― As censuras quelhe são feitas ultrapassam seu fim, ou não possuem sentido. ―Aspectos e linhas gerais dessa obra.

INTRODUÇÃO.CAPÍTULO PRIMEIRO:Fisionomia geral da filosofia hegeliana. ― Atitude que

assume essa filosofia frente à tradição e à história. ― Ela resume ecompleta os sistemas anteriores.

CAPÍTULO SEGUNDO, § 1.Relação e unidade entre todos os sistemas. ― Dois elementos

fazem essa unidade: o objeto próprio da filosofia, e a ideia. ―Visão das doutrinas idealistas e materialistas. ― O elemento idealestá na base de toda doutrina materialista. ― Unidade da filosofia edo idealismo.

§ 2.

Questões preliminares sobre as ideias. ― A ideiaé o limite do

 pensamento e do ser. ― Problema das ideias. ― Problemapsicológico. ― A ideia é a condição de todo pensamento. ― Ideiada sensação.

§ 3.

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Da intuição e do sentimento. ― Relação entre intuição eabsoluto. ― Não há intuição sem ideia. ― O mesmo se dá em

relação ao sentimento.§ 4.Problemas ontológicos das ideias. ― Idealismo objetivo e

subjetivo. ― Kant, representante deste último. ― Exposição ecrítica de sua teoria. ― Passagem do idealismo subjetivo para oidealismo objetivo. ― Fichte e Schelling. ― Exposição de suadoutrina.

CAPÍTULO TERCEIRO, § 1.Antinomias de Kant. ― Sua importância. ― Insuficiência da

explicação kantiana. ― As antinomias são um elementoconstitutivo dos seres.

§ 2.Objeto e definição da ciência. ― Noção natural da ciência. ―

A noção da ciência e a noção da ciência absoluta são inseparáveis.― Há somente uma ciência, e essa ciência é a Filosof ia. ― Suascaracterísticas. ― Unidade. ― Sistematização. ― Erros nos quaisse cai em consequência da ausência dessa condição. ― É umconhecimento a priori. ― É uma explicação e uma criação.

§ 3.

Senso comum. ― A ciência não é o senso comum.

― O sensocomum é a anarquia na ordem da ciência. ― Vício fundamentaldessa teoria. ― Refutação.

§ 4.Do método em geral. ― Se existe uma ciência absoluta, há

um método absoluto. ― Falsa noção que se tem comumente do

método. ― Relação entre o método e a matéria do conhecimento.

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― Ainda a intuição. ― De onde provém a dificuldade de conhecera relação entre método e ser.

CAPÍTULO QUARTO, § 1.Teoria de Hegel. ― Considerações preliminares. ― Dois

elementos fundamentais: a ideia e a dialética. ― Há uma ideiapara todas as coisas. ― Relação entre pensamento e ideia. ―Virtude do pensamento. ― De onde procede a dificuldade que seexperimenta em admitir esse princípio. ― Contradição em que secai a esse respeito. ― Necessidade de se admitir uma ideia paracada ser. ― Ideia da matéria.

§ 2.A ideia é a essência. ― Duas espécies de idealismos: o

moderado e o absoluto. ― Não se vê o que poderia estar acima da

ideia. ― De onde vem que dificilmente se compreende averdadeira natureza da ideia. ― Unidade do ser e do pensamentoem Deus. ― A objeção contra essa teoria; o  pensamento e o ser não são a mesma coisa. ― Exame dessa objeção.

§ 3.A ideia é a razão das coisas. ― De onde procede a dificuldade

em admitir que a ideia é a razão última das coisas. ― Exemplos.― União entre a alma e o corpo. ― Teoria do mediador plástico,

da harmonia preestabelecida, etc. ― Ideia do organismo.§ 4.Encadeamento das ideias. ― As ideias são ao mesmo tempo

distintas e idênticas. ― Relação das ideias. ― Em qual sentido épreciso compreender que estão contidas uma nas outras. ― Estadosimples e abstrato. ― Estado concreto das ideias. ― Cada ideia

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somente pode compor uma esfera limitada. ― Revestimento edesenvolvimento das ideias. ― Unidade entre as ideias na Ideia.

§ 5.Método especulativo ou a Dialética. ― História da Dialética.

― Pitagóricos, Eleatas, Sofistas, Platão. ― O verdadeiro fundador da Dialética. ― Todos os filósofos que o seguiram desenvolveramsuas pesquisas a partir desse ponto. ― De Platão a Hegel, aDialética não teve um desenvolvimento essencial. ― Definição daDialética. ― Ela tem sua raiz na absoluta existência. ― Vício doracionalismo a esse respeito. ― O que conduz à Sofistica e aoCeticismo. ― Definição e crítica dessas duas doutrinas. ―Insuficiência do princípio de Descartes, “ cogito ergo sum.” ―Dialética hegeliana. ― Os dois contr ários devem ser admitidos. ―Sua oposição supõe um terceiro termo, que os concilia. ― A ideia,em cada nível, é somente completa na oposição e na unidade. ―Diferença entre a Dialética e os métodos por indução e peloabsurdo. ― A Dialética conheceria diretamente a ideia. ― Elaconhece e dispõe todas as ideias segundo sua ordem natural. ―Erros em que se cai pela ausência dessa condição. ― Astrologia,Teorgia, Magia. ― A Dialética é a  forma própria do pensamento edo ser. ― Espinosa, sua tentativa, defeitos de seu método. ―Crítica do método matemático. ― Erro dos que, na classificação

das ciências, põem a Matemática acima da Física.

CAPÍTULO CINCO, § 1.Lógica. ― Da Lógica em geral. ― Exposição e crítica das

diferentes noções que se teve da Lógica antes de Hegel.― Duas noções principais. ― 1ª Ela é apenas uma ciência

 formal. ― 2ª Ela é a ciência do λογος . ― Verdadeira noção da

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Lógica de Aristóteles. ― Lógica hegeliana. ― Seus limites. ― Elaé a ciência da  forma, ou do método absoluto do pensamento e do

ser. ― Ela possui também um conteúdo que fornece às outrasesferas da existência. ― Em que sentido ela pode ser considerada aciência das possibilidades absolutas.

§ 2.Filosofia da Natureza. ― Existe uma Filosofia da Natureza.

― Exame das objeções contra uma Metafísica da Natureza. ―Existe o absoluto na Natureza. ― A Natureza é tão perfeita quecomporta sua essência. ― Algumas diferenças que se vêestabelecer entre o Espírito e a Natureza não são fundadas. ―Falso método pela abstração e pela suposição. ― Descartes,Hume. ― Tudo na Natureza é necessário. ― A distinção daspropriedades da matéria em primárias e em secundárias não éfundada. ― Em que sentido se pode admitir que há diferença entreos princípios metafísicos e os princípios  físicos. ― Oconhecimento absoluto da Natureza é fundado nas ideias. ― Deonde se origina a repugnância que experimenta o físico em admitiressa verdade. ― Contradições em que se cai a esse respeito. ― ADialética é o método adequado ao conhecimento absoluto daNatureza.

CAPÍTULO VI. ― Filosofia do Espírito.

§ 1.Do Espírito em geral. ― Objeto da filosofia do Espírito. ―

Unidade do Espírito. ― Tudo se possui no Espírito, assim como na Natureza. ― Insuficiência da  filosofia do entendimento a esserespeito.

§ 2.

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Espírito nacional. ― Falsa noção que se tem de um povo,quando o representam como um agregado de indivíduos. ― Como

se é conduzido a essa opinião ― Grandes homens. ― O quepossibilita sua grandeza e sua fraqueza. ― Vícios das restaurações

literárias e políticas. ― Em qual medida o filósofo pertence a umadeterminada época e país. ― De onde procede a opinião do homempolítico, que põe o critério da verdade no nome. ― Verdadeirocritério a esse respeito. ― Teoria da propriedade.

§ 3.Espírito absoluto ou Espírito do Mundo. ― Existe um Espírito

absoluto. ― Relações dos povos. ― Teoria das conquistas. ―Relação das religiões. ― O Espírito absoluto, ou a  Ideia,possibilita a unidade da Natureza e da Lógica. ― Diferença entre asensação, o entendimento e o pensamento especulativo. ― Em quesentido a Natureza e a Lógica são  pressuposições. ―Relaçõesentre esses três termos. ― Como é preciso considerar a Natureza.―Ela não é uma decadência, mas uma oposição. ― Como aNatureza e a Lógica se encontram no Espírito. ― Os seres serepetem e se multiplicam com as relações. ― Noção imperfeitaque se tem da Arte, e o que conduz às teorias errôneas sobre certasquestões sociais, da estética, etc. ― Vida do Espírito, graus de seus

desenvolvimentos. ― Identidade do pensar , da Ideia, do Espírito edo Eu. ― Exame das objeções dirigidas contra essa identidade, edas teorias que põem a essência do eu fora do pensamento e daideia. ― A mais alta definição de Deus. ― O pensamento superior do bem. ― Falsa noção de Deus, representado como liberdadeabsoluta ― Tudo é necessário em Deus. ― Diferença e unidade

em Deus. ― Falsa noção, em relação a isso, que a  filosofia do

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entendimento tem de Deus. ― Teoria hegeliana da Trindade. ―Mistérios. ― Direito que possui a Filosofia de abordar essa

questão. ― Na inteligência é dada a compreensividade absolutadas coisas. ― Vários graus na vida divina. ― Como a Natureza é

um elemento absoluto da existência. ― Teoria da perfeição. ―Teoria da Morte. ― Ainda sobre a ideia de Deus.

§ 4O Estado, a Arte, a Religião e a Filosofia. ― O Estado

constitui o primeiro degrau, onde a Ideia se concebe e se realizacomo tal. ― Limitação da vida de um povo. ― Passagem doEstado para a Arte. ― Condições fundamentais da Arte. ―Passagem da Arte para a Religião. ― Condições absolutas de todaReligião. ― Passagem da Religião para a Filosofia. ― Sua relaçãoe sua distinção. ― Importância da forma do conhecimento

filosófico. ― Vida especulativa e vida ativa. ― Da origem de ondese concorda sempre sobre a superioridade da segunda sobre aprimeira.

APÊNDICE I.Culto da humanidade. ― Exame dessa doutrina em suas

relações com a doutrina hegeliana.

APÊNDICE II.Teoria da Morte. ― Cr ítica das provas da imortalidade daalma.

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TRADUÇÃO DO ORIGINALLUIS ALBERTO CABRAL

RIO DE JANEIRO, JANEIRO DE 2009

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