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Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012) 1 Heidegger, caminhos pela fenomenologia.... Adriano Ricardo Mergulhão * RESUMO: Pretendemos neste artigo, nos afastar de opiniões preconcebidas por estereótipos, para realizar um exame imparcial dos diferentes caminhos trilhados pelo pensador alemão Martin Heidegger (1889-1976), ao estabelecer seu método fenomenológico de filosofar. Analisaremos as ligações entre a fenomenologia em seus primórdios, e o método desenvolvido por Heidegger, ao longo das décadas de 20 e 30. Como nosso trabalho possui um caráter essencialmente teórico propomos aqui uma análise exegética da produção hedeggeriana deste período específico, que é aqui mencionado, onde o referencial (filosófico/teológico/ontológico) é contraposto a uma nova experiência do pensamento que poderíamos denominar “hermenêutica fundamental”. Antes de percorrermos este aspecto conceitual de sua obra, iremos nos deter na referência a “virada”/“vira volta” (Kehre) conceitual, diagnosticada por estudiosos da obra do autor, ao dividirem seu pensamento em duas fases específicas , embora argumentaremos aqui que não se tratam de fases distintas, mas duas faces de um desenvolvimento, por diferentes vias, de uma mesma problemática, a saber, a questão do Ser. Assim ficará claro o que compreendemos por I Heidegger e II Heidegger, visto que nossa análise se detém prioritariamente em sua primeira fase, cuja cronologia histórico se limita a década de 30. Iremos circunscrever nossa investigação ao que então se convencionou chamar de I Heidegger, discutindo qual o método correspondente ao primeiro estágio de suas pesquisas sobre o Ser e suas correlações com a analítica existencial e com o niilismo, o qual servirá como eixo condutor deste ensaio. Do II Heidegger, gostaríamos de alertar posteriormente sobre a importância de alguns conceitos, como o de verdade enquanto alethéia, para um aprofundamento acerca de suas discussões acerca do velamento do Ser ocasionado pelos abusos da técnica e do pensamento científico. Demonstrando assim que existem determinados fatores históricos (argumentaremos que estes fatores são a própria história da metafísica) que causaram o esquecimento de nosso acesso a verdade do Ser, em oposição aos entes. PALAVRAS-CHAVE: Fenomenologia. Heidegger. Hermenêutica. Niilismo. INTRODUÇÃO: O patrono fundador da fenomenologia Edmund Husserl (1859-1938) parece haver afirmado de certa feita que “A fenomenologia somos eu e Heidegger”. Mas qual a extensão de uma frase tão contundente como esta, se tomarmos por fenomenologia o método, ou a disciplina que espera atingir, como também afirma Husserl, uma “volta * Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Bolsita CAPES. E-mail: <[email protected]>.

Heidegger, caminhos pela fenomenologia · Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição

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ISSN (Digital): 2358-7334 ISSN (CD-ROM): 2177-0417 VIII Edição (2012)

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Heidegger, caminhos pela fenomenologia....

Adriano Ricardo Mergulhão*

RESUMO: Pretendemos neste artigo, nos afastar de opiniões preconcebidas por estereótipos, para realizar um exame imparcial dos diferentes caminhos trilhados pelo pensador alemão Martin Heidegger (1889-1976), ao estabelecer seu método fenomenológico de filosofar. Analisaremos as ligações entre a fenomenologia em seus primórdios, e o método desenvolvido por Heidegger, ao longo das décadas de 20 e 30. Como nosso trabalho possui um caráter essencialmente teórico propomos aqui uma análise exegética da produção hedeggeriana deste período específico, que é aqui mencionado, onde o referencial (filosófico/teológico/ontológico) é contraposto a uma nova experiência do pensamento que poderíamos denominar “hermenêutica fundamental”. Antes de percorrermos este aspecto conceitual de sua obra, iremos nos deter na referência a “virada”/“vira volta” (Kehre) conceitual, diagnosticada por estudiosos da obra do autor, ao dividirem seu pensamento em duas fases específicas , embora argumentaremos aqui que não se tratam de fases distintas, mas duas faces de um desenvolvimento, por diferentes vias, de uma mesma problemática, a saber, a questão do Ser. Assim ficará claro o que compreendemos por I Heidegger e II Heidegger, visto que nossa análise se detém prioritariamente em sua primeira fase, cuja cronologia histórico se limita a década de 30. Iremos circunscrever nossa investigação ao que então se convencionou chamar de I Heidegger, discutindo qual o método correspondente ao primeiro estágio de suas pesquisas sobre o Ser e suas correlações com a analítica existencial e com o niilismo, o qual servirá como eixo condutor deste ensaio. Do II Heidegger, gostaríamos de alertar posteriormente sobre a importância de alguns conceitos, como o de verdade enquanto alethéia, para um aprofundamento acerca de suas discussões acerca do velamento do Ser ocasionado pelos abusos da técnica e do pensamento científico. Demonstrando assim que existem determinados fatores históricos (argumentaremos que estes fatores são a própria história da metafísica) que causaram o esquecimento de nosso acesso a verdade do Ser, em oposição aos entes. PALAVRAS-CHAVE: Fenomenologia. Heidegger. Hermenêutica. Niilismo.

INTRODUÇÃO:

O patrono fundador da fenomenologia Edmund Husserl (1859-1938) parece haver

afirmado de certa feita que “A fenomenologia somos eu e Heidegger”. Mas qual a

extensão de uma frase tão contundente como esta, se tomarmos por fenomenologia o

método, ou a disciplina que espera atingir, como também afirma Husserl, uma “volta

* Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Bolsita CAPES.

E-mail: <[email protected]>.

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as coisas mesmas”? A própria filologia da palavra fenomenologia nos da algumas

indicações quanto a maneira adequada de compreensão/entendimento (Verstehen)

que temos de nossa experiência existencial

1, posto que fenômeno vem de Phainomenon (o que se manifesta, aparecer) + logia,

que vem de Logos2 (discurso, manifestar, fazer ver) (STEIN 2002 p.55), Heidegger, ao

definir o significado desta palavra, nos explicita o sentido que deve direcionar nossa

compreensão deste termo enquanto abertura (Erschlossenheit) da presença (Dasein) :

Ciência dos Fenômenos significa: apreender os objetos de tal maneira que se deve tratar de que esta em discussão, numa demonstração e procedimentos diretos ( HEIDEGGER 2006 -“Ser e tempo” p. 74 ).

Podemos constatar a existência de diversas obras, tratando da relação

estabelecida por mestre e discípulo, entre os anos de 1917 a 1923, grande parte destes

comentários se atem a determinados fatos secundários, que muitas vezes retratam

Heidegger sob os aspectos negativos desta sua ligação com Husserl. É este o caso de

“Um caminho para uma biografia” de Hugo Ott, e do chileno Victor Farias com seu

livro, altamente sensacionalista, diga-se de passagem, “Heidegger e o nazismo”, que

retrata o filósofo ora como a “ovelha negra” da fenomenologia (por seu abandono do

mestre, e a subserviência ao nacional socialismo durante o período de Reitorado em

1 A análise ontológica do Dasein – ou seja, nossa própria análise de nós mesmo em nossa existência

fática. 2

Por Logos concebemos neste trabalho a definição clássica transcrita a seguir, de autoria de

CHAUI,M. Lógos: Esta palavra sintetiza vários significados que, em português, estão separados, mas unidos em grego. Vem do verbo lego (no infinitivo: légein) que significa: 1) reunir, colher, contar, enumerar, calcular; 2) narrar, pronunciar, proferir, falar, dizer, declarar, anunciar, nomear claramente, discutir; 3) pensar, refletir; ordenar; 4) querer dizer, significar, falar como orador, contar, escolher; 5) ler em voz alta, recitar, fazer dizer. Lógos é: palavra, o que se diz, sentença, máxima, exemplo, conversa, assunto da discussão; pensar, inteligência, razão, faculdade de raciocinar; fundamento, causa, princípio, motivo, razão de alguma coisa; argumento, exercício da razão, juízo ou julgamento, bom senso, explicação, narrativa, estudos; valor atribuído a alguma coisa, razão íntima de uma coisa, justificação, analogia. Lógos reúne numa só palavra quatro sentidos: linguagem, pensamento ou razão, norma, ou regra, ser ou realidade íntima de alguma coisa. No plural, lógoi, significa: os argumentos, os discursos, os pensamentos, as significações: -logía, que é usado como segundo elemento de vários compostos, indica: conhecimento de, explicação racional de, estudo de. Diálogo, dialética, lógica são palavras da mesma família de lógos. O Lógos dá a razão, o sentido, o valor, a causa, o fundamento de alguma coisa, o ser da coisa. É também a razão conhecendo as coisas, pensando os seres, a linguagem que diz ou profere as coisas, dizendo o sentido ou o significado delas. O verbo lego conduz à idéia de linguagem porque significa reunir e contar: falar éreunir sons; ler e escrever é reunir e contar letras; conduz à idéia de pensamento e razão porque pensar é reunir idéias e raciocinar é contar ou calcular sobre as coisas. Esta unidade de sentidos é o que leva os historiadores da filosofia a considerar que, na

filosofia grega, dizer, pensar e ser são a mesma coisa.

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1933/34) ora como o filho pródigo, que torna a casa de uma filosofia transcendental

para ampliar os feitos de seu mestre, antes renegado a berlinda, mas sem nunca

admitir a enorme divida com a fortuna do esquecido “pai” (como no caso da supressão

da dedicatória3 ao mestre em “Ser e Tempo” anos depois da publicação da 4ª edição

de 1934, de sua opus magna.)

Mas, neste contexto específico, o que pudemos constatar com nossas leituras

não remete a uma inimizade entre ambos, pelo contrário, a grande discordância se dá

em âmbito teórico/intelectual, e não no plano pessoal. Assim, defendemos que esta

cisão existente no pensamento de Heidegger com sua tradição contemporânea, não

deve, de modo algum, ser interpretado levianamente como uma traição do aluno em

relação aos seus mestres (incluindo ai os clássicos da história da filosofia, contra quem

Heidegger realiza sua “violenta” interpretação hermenêutica). Senão, que deve ser

compreendida como uma tentativa de radicalização de alguns preceitos

fenomenológicos delineados por Husserl de forma inconsistente, que agora poderiam

ser aplicados a uma nova estrutura conceitual sob o prisma da existência humana

fática, a saber, o Dasein4. Para Heidegger o acesso a verdade se encontra oculto na

3A dedicatória: “A Edmund Husserl em testemunho de admiração e amizade” de 8/4/1926 , foi

suprimida no ano 1941, Heidegger comenta o fato em sua entrevista a Der Spiegel em 1966: “Em ordem a desmentir certas informações incorretas e amplamente difundidas, faço notar expressamente que a dedicatória de Ser e Tempo – recordada na pag. 92 do diálogo - também figurava na 4ª edição da obra, em 1935. Quando, em 1941, o editor viu dificultada a 5ª edição, tendo chegado a temer que o livro fosse proibido, chegou-se finalmente a um acordo, a conselho e por desejo de Niemeyer, de suprimir a dedicatória nesta edição, embora com a condição expressa pela minha parte que se mantivesse a nota da pag. 38, na qual se justifica aquela dedicatória e cujo conteúdo e o seguinte: “Se a presente investigação avança alguns passos no sentido da exploração das coisas mesmas, o autor agradece-o, em primeiro lugar, a Edmundo Husserl que, com a sua penetrante orientação pessoal e a maior das confianças, familiarizou o autor, durante os seus anos de formação em Friburgo, com investigações suas, inéditas, em diferentes campos da análise fenomenológica.”(HEIDEGGER 1996 p.60, nossa tradução) 4 DASEIN – reproduzimos parcialmente aqui a nota de “Ética e Finitude”(LOPARIC 2004 p.20), para

clarificar o que compreendemos pelo termo Dasein: “Esta leitura tão habitual do termo “Dasein” (que deixo sem itálicos considerando-o como expressão incorporada ao português) apóia-se na afirmação de Ser e Tempo de que o ser que esta em jogo para o ser humano é ser o seu aí “(sein ´Da´ zu sein)”. Esta escolha pode ser reforçada por muitas outras referências(...): “Segundo a tradição a palavra ´Dasein´ significa ser presente, existência. É neste sentido que se fala por exemplo da prova de existência de Deus. Mas, em Ser e Tempo, o ´Dasein´ é compreendido de maneira diferente. (...) O termo ´o aí´(das Das) não é usado em Ser e Tempo como uma indicação de lugar para um ente, visto que pretende nomear a abertura na qual os entes podem estar presentes para o homem, inclusive ele mesmo para si mesmo. Ser o aí (das Da zu sein) distingue o ser-homem.”

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dicotomia existente entre o Ser5 e os entes6. De acordo com E. Stein dentro da obra

heideggeriana;

É a história do ser (...) que será, exatamente o divisor de águas entre a compreensão do ser que é afirmada até 1930 e a história do ser que vem corrigir a idéia da compreensão do ser. Porque Heidegger percebeu que na idéia de Dasein enquanto compreende o ser, esta muito próximo ainda o risco da subjetividade da filosofia moderna que quer o fundamento absoluto, transparente do conhecimento(...) Portanto ele nunca torna inteiramente transparente a sua compreensão do ser.(...) Esta percepção de Heidegger, faz com que surja o que chamamos segundo Heidegger, onde se produz aquilo mesmo que ele chamou de Kehre, a viravolta (STEIN 1993 p.237, grifo nosso)

Heidegger sempre fez questão de reconhecer sua divida com Husserl, embora

sempre demarcasse seu ponto de vista a partir da “diferença ontológica”, a qual,

nunca poderia admitir um “eu transcendental” em sua conformação. Esta sua postura

se aproxima a nosso ver, de um saudável e profícuo diálogo com o mestre, ele próprio

explicita claramente em seu texto de 1963, “Meu Caminho para a fenomenologia” que

diz;

Das investigações Lógicas de Husserl esperava claramente um estimulo decisivo com relação às questões suscitadas pela dissertação de Brentano (...). Contudo, a obra de Husserl marcara-me de tal modo que anos subseqüentes sempre a li, sem compreender suficientemente o que me fascinava (HEIDEGGER 1973, p.495).

Em momento algum de sua carreira ele se mostrou propenso a denegrir a obra

de Husserl, mas ao propor em seu método o uso de categorias existenciais não mais

poderia aceitar as abstratas formulações universalistas que maculavam

metafisicamente toda a tradição do pensamento ocidental dominante até o período, e

isto incluía a noção mais cara a teoria Husserliana, o “eu transcendental” (colocando o

Mundo entre parênteses para a realização de suas análises) que era a base das

abstrações das investigações Lógicas, conforme nos demonstra Ernildo Stein;

O núcleo da diferença entre Husserl e Heidegger consiste naquilo que perpassa Ser e Tempo, como objeção latente contra Husserl, quando Heidegger, repetidas vezes, se refere, rejeitando, ao “observador imparcial”,

5Ser: verbo derivado do latim esse e do grego eimi (ou do particípio ente, correspondente ao ens latino e

ao tó òn grego) 6Ente: a palavra ente faz referência ao particípio presente do verbo ser, designando assim tudo aquilo

que é. São entes, todas as coisas que encontramos no mundo, (inclusive nós mesmos [seres humanos singulares] somos também entes). Já o Ser se diferencia do ente por sua unidade/totalidade, embora não possa ser expresso em sua inteireza pelo Logos.

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ao puro ver teorético, a partir do qual, segundo Husserl, se revelariam as estruturas da subjetividade, que possibilitam a posse de mundo e a experiência, e se revelariam o próprio sentido do ser. Para Heidegger, não é o observador imparcial, mas a realização, o exercício da própria existência concreta que já sempre revela o mundo e as possibilidades da experiência e o próprio ser (STEIN 2002 p.53,54, grifo nosso).

Para que fosse possível abalar estas estruturas conceituais tão cristalizadas pela

tradição idealista eram necessários novos rumos (e um novo vocabulário) para

encaminhar o pensamento em direção aos fundamentos do Ser, o qual, desde a

antiguidade fora esquecido em meio aos entes. O ser do ente, para ser atingido em seu

cerne, deveria prescindir dos transcendentais abstratos em nome de uma

transcendentalidade passível de ser obtida em meio a abertura (Erschlossenheit) para

o Mundo proposta pela nova fenomenologia heideggeriana. Este salto mortal era

incontornável, mas para ser dado, antes se via necessário um cauteloso recuo para

que o impulso necessário a sua consumação, fosse realizado em meio a uma

reinterpretação fenomenológica da tradição filosófica. Esta reinterpretação dos

clássicos da metafísica ocidental seria ministrada com uma “violência hermenêutica”

sobre os textos, para retirar deles algo de original, algo de novo para a abertura de

novas trilhas do pensamento.

Dentro deste seu projeto de uma analítica existencial, também começou a se

fundamentar uma analítica da linguagem (isto em paralelo a viravolta-Kehre7, do II

Heidegger e seu retorno ao fundamento da metafísica) que se baseava numa nova

terminologia que servisse de apoio a sua ontologia hermenêutica. Podemos distinguir

neste projeto, uma nítida separação de método entre seu intento e as correntes de

pensamento do mesmo período que estavam se consolidando, para sermos mais

exatos, as diferentes antropologias filosóficas8 com seu apelo a uma volta ao homem,

o movimento neokantiano9 com sua ordem do dia de uma “Volta a Kant” (Zurück Zu

7 Viravolta (Kehre) – “Antes da viravolta,a interrogação de Heidegger interroga pela analítica

existencial, pelo horizonte transcendental em que se desvela o ser na multiplicidade de seus sentidos. Mas a determinação do tempo como pertencente ao ser já prepara a viravolta.(...)A viravolta somente podia ser exercida na interrogação pelo esquecimento do ser na história da metafísica ocidental” (STEIN 2002 p.85) 8Max Scheler, Plessner, Gehlen

9 Cassirer, Natorp, Cohem, Rickert

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Kant) e por fim, a fenomenologia tradicional10, com seu apelo à “volta as coisas

mesmas”. Para Heidegger era necessário ir mais a fundo que estas correntes, e separar

o joio metafísico de toda autêntica filosofia existencial que convergiria nesta nova

visão de mundo (weltanschaaung ) baseada no cuidado (Sorge) do ser aí (Dasein) com

sua autenticidade , dentro de uma temporalidade (Zeitlichkeit) específica e finita. Só

assim, o Ser (Sein) poderia ser descortinado de seu véu de Maia que é o tempo (Zeit),

por um método inteiramente novo de interpretação.

Agora, o apelo histórico do Ser era diluído na historicidade do ser aí mundano,

e toda a tradição ( Platão, Aristóteles, Agostinho,Tomás de Aquino, Kant, etc)

precedente seria reexaminada sob este prisma existencial. Heidegger, buscava neste

caminho de volta , muitas vezes pensar o Ser em sua nudez, ou seja, despojar o ser de

seus entes transitórios e finitos e adentrá-lo com o pensamento em sua totalidade

unilateral. Este acesso direto, não poderia mais implicar numa dualidade entre Ser e

Essência, Potência e Ato, res Cogitan e Res Extensa, Corpo e Alma, ou qualquer

binômio deste estilo, por isso o enfoque existencial seria o único caminho necessário a

esta empresa. O ser ai humano, antes de tudo, existe, e está ad hoc lançado em meio

aos entes, possuindo por via de sua singularização um acesso privilegiado ao Ser11. Ele

é, como poeticamente enfatiza Heidegger: “O pastor do Ser”.

SOBRE O CONCEITO DO NADA E SUA RELAÇÃO COM O NIILISMO: “Ex Nihilo Nihil Fit” (Do nada, nada vem).Tal é a sentença secular da filosofia antiga.

Ela surge como um questionamento de um princípio consolidado por outra tradição,

que não aquela em que Heidegger se insere. Talvez, o nada possa gerar como será aqui

discutido a nadificação, mas o que se pode compreender desta sentença? Veremos

que só ao atingirmos a essência do nada é que poderemos efetivamente conhecer algo

sobre o conceito de Ser, ou, nas palavras do autor aqui em questão:

Na medida em que o nada “nadifica”, confirma-se ainda mais com excepcional presença, vela-se como a própria presença. Nas palavras

10

E.Husserl, K. Jaspers 11

Este habitar se da junto com os outros entes e Dasein, pois o “Mundo do Dasein (da presença) é um Mundo compartilhado(Mitwelt)” (HEIDEGGER 2006b p.175)

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essenciais acima referidas impera um dizer diferente das enunciações científicas. É certo também que a representação metafísica conhece os conceitos. Estes, contudo, não se distinguem dos conceitos científicos apenas sob o ponto de vista do grau de generalidade. Kant foi o primeiro a ver isto com toda a clareza (HEIDEGGER, 1969, p.34, grifo nosso).

Este grau de generalidade que difere os conceitos metafísicos dos conceitos

científicos é a base da questão analisada pelo autor, pois a ciência em seu projeto de

progresso, busca o domínio da técnica e, deste modo, pretende conhecer o ente, em

seu valor exato, isto acaba por obstruir a dimensão poética, e mágica, que imperava

antes de seu advento (foi perdido um misticismo gnosiológico, que o povo grego

resguardava em meio a sua Paidéia). Este pretenso valor de exatidão e universalidade

que é parte do projeto científico do conhecimento , diz o autor, leva o homem ao

esquecimento do Ser, que por princípio, deveria ser o conhecimento sui generis do

saber Metafísico.

Esta imutabilidade do compreender e do compreensível em sua totalidade é

algo que nos escapa, perante a variabilidade de propósitos, a que se presta o processo

científico na busca por conhecimento seguro e universal. Assim, a questão primordial,

levantada por Heidegger, não pretende desqualificar a validade da ciência e da técnica,

mas ele nos alerta sobre alguns riscos que este tipo de pensamento pode levar, em sua

linha limite, e procura demonstrar em quais pontos este conhecimento se distingue de

um projeto metafísico fundamental. Pois a ciência moderna, ao propor um fim para os

dogmas por via da invariabilidade das leis naturais, acaba por não poder mais buscar

um valor seguro de verdade que possa ser estabelecido como seu fundamento, e disto

surge o próprio niilismo, pois “[...] o homem, enquanto é aquele ser do qual o ser necessita,

participa da constituição da zona do ser, e isto quer dizer, ao mesmo tempo, da zona do

niilismo”(Heidegger 1969 p. 58). É uma conseqüência da própria modernidade, a partir da

qual o homem deve viver sem dogmas, pois tanto sujeito, quanto objeto se

encontram em constante mutação. Mas este dualismo metafísico entre objetividade

e subjetividade que a modernidade, trouxe consigo como herança, não pode nem

mesmo ser ainda utilizado como um paradigma válido em nossa época, ou para que

possamos atingir um fundamento ou principio seguro onde possamos apoiar nossas

“verdades ultimas”, nossa ultima ratio.

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Ao se prestar atenção demasiada ao ente, na tentativa de objetivá-lo, nossa

razão instrumental (que caracteriza o homem enquanto zoon logon echón) se esquece

do Ser como “A questão fundamental da metafísica”. Questão, que não se deixa

conhecer a partir de um sujeito que se situa de fora, ou seja, do sujeito da ciência, que

busca conhecer seu oposto, o objeto (aos moldes do cogito Cartesiano). Esta divisão

lógica fracionaria a totalidade em duas diferentes instâncias (a do sujeito [eu singular],

e a do seu objeto [neste caso o Ser]). Isto pressupõe que eles pudessem ser pensados

de modo distinto, como se o sujeito não participasse da totalidade, o que seria

absurdo de um ponto de vista ontológico fundamental. Neste ponto, nos auxilia

afirmar que;

Heidegger procura mostrar que o compreender é essencialmente operativo. O ser humano se compreende como unidade, que nos da a totalidade que se antecipa ao dualismo de ser cérebro e pensar, e se explicita, desde sempre, e isso se da pela compreensão do ser. Se não ocorresse essa compreensão não teríamos acesso nem a nós mesmos nem aos entes. Não seriamos o lugar onde os entes se dão. Somos esse lugar porque sempre já somos Dasein, o ser aí, ou o ser-o-aí.(...) somos o “aí do ser” pela compreensão do ser e porque nos compreendemos enquanto somos. Nisto

se constitui a circularidade da compreensão (Stein, 2010 p.117, grifo nosso).

Portanto, a única maneira de se obter um pensamento pós-metafísico sobre o

Ser, é abrangê-lo a partir de um referencial que o englobe e ao mesmo tempo o

ultrapasse, este é o projeto do circulo hermenêutico, que ao romper os laços que a

tradição estabeleceu entre o conhecer baseado na inter-subjetividade, alçaria o

pensamento filosófico à uma analítica existencial dentro dos limites da finitude

humana apoiada apenas na transcendência12das possibilidades do Dasein (como

projeto de Mundo), e não mais no cógito transcendental de Descartes. Esta é a

condição sine qua non para a superação do cartesianismo metafísico. Heidegger, como

demonstramos, tem de fazer isso, para livrar a fenomenologia do “eu transcendental”

que Husserl assume como ponto de apoio para sua volta as coisas. Dentro desta

leitura, podemos vislumbrar mais exatamente qual o problema esta em questão na

concepção heideggeriana do cógito ergo sum. Vejamos uma prévia do argumento

12

“O homem já sempre se ultrapassa e transcende, e essa ultrapassagem e transcendência já é a própria compreensão, compreensão do ser e, assim, de si” (STEIN 2006 p.49)

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para elucidar um pouco mais qual o projeto deste filósofo, e em qual contexto suas

objeções se situam para uma correta compreensão de sua problemática:

Com Descartes deixamos que a filosofia moderna assuma um começo e principio fundamentalmente novos: Origina-se no objeto. O que significa isso? A essa guinada rumo ao sujeito corresponde igualmente a determinação ontológica desse ente da res cogitan ? De modo algum. Junto com essa transferência do perguntar questiona-se em geral a respeito do ser? De modo algum. O nexo de pertença entre verdade em geral e ser em geral, alcança esclarecimento ou pelo menos é questionado? De modo algum. Deve-se mostrar igualmente por que a res cogitan renasce indeterminada do ponto de vista ontológico, por que a questão do ser não é colocada (HEIDEGGER 2009 p. 151, grifo nosso).

Nisto reside o grande erro metafísico de Descartes, no fato de que ela se

debruça precisamente sobre o ente e assim se esquece do Ser em sua totalidade.

Heidegger, então sugere que na filosofa contemporânea é chegado o momento de se

buscar a superação da metafísica, pois toda a antiga tradição ao se concentrar apenas

sobre ente promove um ocultamento do Ser, que em sua opinião é um conceito mais

primordial a ser investigado sob uma nova perspectiva, ou seja, sem a separação

clássica entre sujeito e objeto.13

Portanto, a crítica de Heidegger feita em relação a Descartes é parte de um

projeto maior sobre a investigação destas raízes, ou seja, dos fundamentos últimos da

metafísica, desde suas origens até seus reflexos para a filosofia atual, iniciando seu

trajeto entre os gregos, com especial ênfase ao pensamento pré-socrático de

Parmênides e Heráclito, passando a colocação do problema por Platão, e a

investigação sistemática de Aristóteles com sua filosofia primeira (investigar o “O Ser

enquanto Ser”), percorrendo então todo pensamento Medieval com Agostinho de

Hipona, e a escolástica Tomista para se concentrar no desfecho da modernidade,

inaugurada por Descartes:

Descartes escreve a Picot, que traduzira os Principia Philosophiae para o francês: “Assim toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são formadas pela metafísica, o tronco pela física e os ramos que saem deste tronco, constituem todas as outras ciências que, ao cabo se reduzem a três principais: a medicina, a mecânica e a moral”(nossa tradução)Aproveitando esta imagem perguntamos: Em que solo essa árvore da filosofia tem seu apoio? De que chão recebem as raízes e, através delas, toda árvore as seivas e forças alimentadoras? Qual o elemento que percorre oculto no solo, as

13

“Em toda parte, se iluminou o ser, quando a metafísica representa o ente. O ser se manifestou num desvelamento (alétheia)” (HEIDEGGER 2009 p. 151)

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raízes que dão apoio e alimento à árvore? Em que repousa e se movimenta a metafísica? O que é a metafísica vista desde seu fundamento? O que em última análise é a metafísica? Ela pensa o ente enquanto ente (HEIDEGGER 2005 P.77, grifo nosso).

A esta imagem clássica da filosofia ele impõe seu conceito de Dasein14, que é o

“ser aí” propriamente humano em sua relação de imanência com o Ser enquanto

totalidade. Este Dasein é o “ser lançado no Mundo” que poderia, por sua condição

privilegiada (enquanto possibilidade/disponibilidade) promover o desvelamento

(alétheia15) do Ser em sua totalidade, por meio de uma tonalidade afetiva

fundamental, a saber a angústia, ou tédio profundo. Por hora não iremos explorar esta

teoria existencialista em seus detalhes, queremos neste primeiro estágio do nosso

comentário, apenas nos concentrar no levantamento dos argumentos deste autor ao

se opor à metodologia do Cogito cartesiano, onde;

(...) o princípio decisivo da filosofia moderna radicado no sujeito significa igualmente a perda da questão ontológica fundamental, a ele referida: sum “eu sou”, existência! Perda, isto é, permanece no antigo, adoção da ontologia escolástica antiga. Enquanto res cogitans, o sujeito é concebido ontologicamente no sentido de um simplesmente-dado, ou seja, o sentido do ser do Dasein continua fundamentalmente indeterminado (HEIDEGGER 2009 P.114).

Heidegger se contrapõe ao fundamento metafísico do cogito, pois este deixaria

de investigar o aspecto central do “eu” em seus fundamentos últimos em relação ao

Ser que no cartesianismo é identificado ainda com Deus e embora ele não parta deste

como princípio, sua filosofia tem seu termino Deus, como garantia da existência16,

tomando como sinônimos certeza e verdade, concebidos a priori, no interior da auto

evidência do “cogito”. A filosofia cartesiana, vista pela lente heideggeriana peca em

pontos cruciais de sua argumentação, pois ainda não pôde escapar da influencia da

escolástica, embora subverta sua ordem, visto que:

Na filosofia moderna, a pergunta pelo ser não é retomada de maneira nova. Ao contrário, alocada no problema da verdade, e isso novamente no solo da ontologia da tradição(...)Com essa reflexão sobre a verdade junto com o conhecimento, e ao mesmo tempo deformando-a, a descoberta da física

14

A Essência do Dasein ( ser aí humano) é sua própria existência . 15

Alethéia- alpha privatido + lethéia (velamento) – desvelamente, estar ao menos tempo na verdade e na não verdade. Ambigüidade de sentido. 16

Neste quesito (HEIDEGGER 2009) retoma o argumento de Espinosa do Circulo Cartesiano, vide p. 137 e mais a frente, o fato de que não temos garantia de nossa perfeição, reiterando a crítica de Leibniz, vide p. 156.

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matemática e com isso também uma nova postura ontológica frente à natureza (HEIDEGGER 2009 p.98, grifo nosso).

Embora ele reconheça que toda a problemática da filosofia mude seu

referencial a partir de Descartes, centrando-se agora no subjetivismo e no problema

da certeza científica, argumentamos que Heidegger pretende esboçar um novo ponto

de apoio para as grandes indagações filosóficas, e por isso não pode admitir nada que

venha da tradição moderna:

Descartes teve a tendência fundamental de fazer da filosofia um conhecimento absoluto. Justamente em sua obra vemos algo notável. Aqui a filosofia começa com a dúvida e se dá como se tudo fosse colocado em questão. Mas apenas se dá como. (...) Ela, e como ela todo o filosofar da modernidade, não coloca nada em jogo. Ao contrário, a postura fundamental cartesiana já sabe ou acredita saber a priori que tudo pode ser provado e fundamentado de modo absolutamente rigoroso e puro. Para provar isso ela é crítica de uma maneira desprovida de todo caráter imperativo e de todo risco. Ela é tão crítica que está de antemão certa da suposição de que nada lhe acontecerá (HEIDEGGER 2006 p. 25, grifo nosso).

Porém, no desenvolvimento posterior desta problemática será o filósofo

Immanuel Kant quem ira assinalar as limitações desta dependência da metafísica,

realizando seu esforço homérico para categorizar os diferentes usos e limites do

pensamento racional, visando uma depuração entre o projeto de uma ciência baseada

em conhecimentos sintéticos a priori, e as possibilidades de um pensamento

metafísico da mesma ordem. Tal intento, fica implícito na primeira edição de sua obra

“Crítica da Razão Pura” embora, de acordo com Heidegger, ele também não tenha sido

capaz de superar este problema de forma definitiva, por não propor uma ontologia

fundamental do ser ai finito, o que o fez recuar em alguns pontos, na elaboração de

uma segunda versão de sua crítica, que suprime o papel de destaque dado a

imaginação transcendental17. Mas Kant recebe o mérito de ser o primeiro a

problematizar de maneira clara a questão.”18 .

17 “τα μετα τα Φυσις, não visa mais ao que vem em seguida às doutrinas sobre a física, mas ao que trata do que se lança para

fora da Φυσις, esse direcionar para um outro ente, para o ente em geral e para o que é verdadeiramente ente. Esta mudança

radical acontece no interior da filosofia propriamente dita.” ( HEIDEGGER 2009 P. 47) 18

Afirmando que“Por isso, a razão humana, desde que começou a pensar, ou melhor, a reflectir, não pode prescindir de uma metafísica, embora não a tivesse sabido expor suficientemente liberta de todo elemento estranho (KANT 1997, p. 664 , A853 B871/)

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Mas, façamos uma pequena pausa para refletirmos sobre o que foi dito até

agora, pois se o pensamento metafísico, para Heidegger, é o situar-se dentro da

pergunta, que nos leva para além do ser, somente um pensamento não metafísico (um

pensamento que o ultrapassa) poderia penetrar além do Ser em seu desvelar-se. A isto

Heidegger designa, O Nada ; “A essência do nada originariamente nadificante

consiste em: conduzir primeiramente o ser aí diante do ente enquanto tal”

(Heidegger 2005 p. 58) Leia-amos com atenção a seguinte afirmação:

Ser aí quer dizer: estar suspenso dentro do nada. Suspendendo-se dentro do nada o ser aí já sempre está além do ente em sua totalidade. Este estar além do ente designamos a transcendência. Se o ser-aí, nas raízes de sua essência, não exercesse o ato de transcender, e isto expressamos agora dizendo: se o ser aí não estivesse suspenso previamente dentro do nada, ele jamais poderia entrar em relação com o ente e portanto, também não consigo mesmo (HEIDEGGER 2005 p. 58, grifo nosso.)

Parece que agora tocamos o ponto nevrálgico desta exposição, que tenta

desbravar alguns caminhos que poderiam levar a este desvelamento do Ser aí (Dasein).

Mas, antes de prosseguirmos, é importante ressaltar que a crítica kantiana à metafísica

é geralmente interpretada como uma proposta epistemológica (tese dos

neokantianos). Porém defende Heidegger, que esta crítica em última instância prepara

o terreno para uma ontologia fundamental do Ser, uma proposta de análise cujo tema

é verificar como a consciência se coloca frente ao Mundo.

Visto que possuímos uma percepção artificial perante os fenômenos do Mundo

e não uma visão natural, sem pressupostos definidos, deveríamos, descrever o Mundo

tal qual ele nos surge espontaneamente ( limitado pela nossa condição finita), como

uma “volta as coisas mesmas”, esta seria a abertura (Erschossenheit) para o Mundo e

para o Dasein ( o estar no Mundo como presença)19.Posto isto, nos livramos de

algumas dificuldades que poderiam barrar a compreensão adequada sobre quais

conceitos Heidegger escrutina antes de colocar a questão sobre esta “Superação da

Metafísica”, somos então levados a investigar a essência do nada (se é que o nada

possui alguma essência ou fundamento), pois “Entre as coisas grandes que se podem

19

Alguns tradutores como Marcia Sá C. Schuback optam por traduzir DASEIN por presença ao invés de ser aí; ser o aí; estar aí.

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encontrar entre nós, o ser do nada é a maior” (Leonardo da Vinci, Apud HEIDEGGER,

1969, p. 55).

A partir do próximo item, iremos nos deter um pouco em algumas definições

importantes, para se explicar o que se deve compreender por metafísica a partir de

alguns conceitos basilares. Antes de aprofundarmos a leitura, vejamos uma passagem

onde o professor Zeljko Loparic nos oferece uma definição da relação entre a

metafísica e o niilismo, causado pelo esquecimento do Ser;

Nos anos de 1930 Heidegger descobrira que o modo de ser do mundo moderno aquele caracterizado pela vontade de poder explicitada por Nietzsche não pode ser interpretado como projeto gerado a partir do ter-que-ser do ser-o-aí. (...)Mas os destinamentos dos modos da presentidade que marcaram desde Platão até Nietzsche as épocas decisivas da história e da civilização ocidentais, ocultam-se como tais, razão pela qual a história da metafísica pode ser vista como um aprofundamento do abandono do homem pelo ser-presença (LOPARIC 2004 p. 71, grifo nosso).

Se compreendemos Mundo e Ser como inseparáveis, notamos que o Ser é o

modo pelo qual temos acesso ao Mundo, esta seria uma atitude natural da essência

do homem(neste sentido só o homem possui Mundo, enquanto categoria

existencial).20 Vejamos o que diz Heidegger neste sentido, ao afirmar que isto

“permite que se reconheça os caminhos nos quais se esboçam as maneiras de uma

possível superação do niilismo.” :

Na presença e representação se manifesta o traço fundamental daquilo que se desvelou ao pensamento ocidental como ser. “Ser” significa desde os primórdios da Grecidade até os últimos tempos de nosso século: presentar. Qualquer espécie de presença (Praesenz) e presentação brota do acontecimento da presença (Anwesenheit). A “Vontade do poder” porém, é, enquanto a realidade do real, um modo de aparecer do “ser” do ente (HEIDEGGER 1969 p.32).

CARACTERIZAÇÃO DOS CONCEITOS RELATIVOS AO NIILISMO:

A questão do niilismo em termos Nietzschianos poderia ser caracterizada

como uma vontade de nada, como um fator que contamina de forma inevitável o ar do

mundo moderno, mas como superar esta linha?

Como seria isto viável, se precisamente a linguagem da metafísica e a própria metafísica, seja ela a do Deus vivo ou Morto, formaram, enquanto

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metafisíca, aquela barreira que impede a ultrapassagem da linha, isto é, a superação do niilismo? (HEIDEGGER 1969 p.37).

Para que este “ser aí” (Dasein) possa tentar se desprender das teias do niilismo

moderno ele deve, primeiramente, evitar que a razão seja o local único da construção

do Mundo, devemos explorar outras, e novas formas de habitar o mundo, a partir do

olhar, do escutar e do pensar. Vejamos, por exemplo, a frase de Leibniz que encerra a

sua preleção sobre o “Que é a metafísica?”; “Porque existe afinal ente e não antes

Nada?” (apud HEIDEGGER 1969 p.44.)

“Porquoi il y a plutôt quelque chose que rien?”; “Car le rien est plus simple et

plus facile que quelque chose” - (HEIDEGGER 2005 p. 87) (Porque o ser e não antes o nada?; Porque o nada é o mais simples e o mais fácil que alguma coisa. [nossa tradução])

Esta indagação é um dos agentes que fomentam a reflexão de Heidegger para a

caracterização do nada, como o caminho ou ponto de referência, para a reflexão sobre

o ser, é este o ponto de fruição sobre o qual o ser se encontra imerso. É chegada a

hora de se encarar a questão conforme ela nos solicita, ou melhor, aproveitando um

caminho, que já fora trilhado por Nietzsche. Mas se, para Nietzsche, a destruição da

Metafísica é necessária para a criação (transvaloração) de uma nova Metafísica,

baseada em uma fidelidade a terra21, Heidegger não visa simplesmente a destruição

21 Assim assinala Loparic (2004 p. 112 e 113); “(...) Heidegger descerra o horizonte em que se

movimentará sua meditação sobre Nietzsche: “E se a nossa existência mais profunda realmente esta diante de uma grande decisão, se é verdade o que diz F. Nietzsche, o último filósofo alemão que apaixonadamente procurou Deus: ‘Deus esta morto’, se nós temos que levar a sério este abandono do homem atual em meio aos entes... “. De que fala esta palavra: ‘Deus esta morto’ que não do ente em geral, do fundamento dos entes que se esvaiu, no mais ente que perdeu sua força de fundamentação? Mas isso põe em crise toda a metafísica. Ela é sacudida em seus fundamentos, por esse grito do último metafísico. A experiência radical do sentido do ‘Deus esta morto’ colocou Heidegger na decisão suprema diante de toda metafísica. A tese de Heidegger sobre a presença de Nietzsche como último pensador da metafísica se esboça do seguinte modo: “A metafísica funda uma época enquanto lhe dá o fundamento de sua forma essencial, através de uma determinada explicação do ente e através de uma determinada concepção da verdade. Esse fundamento perpassa todas as manifestações que caracterizam a época.” Nietzsche é o sinal que indica o fim dessa época e ao mesmo tempo o começo e as direções da nova época. Quais são os sinais concretos com que essa época vem caracterizada pela metafísica? Esta é a pergunta que surge que surge no fim da leitura da obra de Heidegger sobre Nietzsche, que é uma tese filosófica sobre toda a história da filosofia e não só isto, mas uma tese sobre a história ocidental. Esta tese ao mesmo tempo perpassa toda a interpretação de Nietzsche, e quer ver Nietzsche como o ponto de intersecção que encerra e inicia duas épocas.”

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(Destruktion der Geschichte der Ontologie)22, mas sim a superação, que

referencialmente é um conceito antagônico neste sentido. “Se Deus não existe, então

tudo é permitido”, está já era a idéia corrente do personagem literário Kirílov na obra

“Os demônios” de Fiodór Dostoiévski. Porém para Friedrich Nietzsche, o homem cujo

espírito é livre das amarras da vontade e da representação, não deve sucumbir ao

niilismo cego, pois o ser humano é ser antes de tudo um ser moral, e portanto, apto a

criar seus próprios valores, fazendo com que a vida seja enaltecida em sua infinita

multiplicidade de formas23. E se como diz Heidegger, o caminho para o nada, é o que

nos poderia elevar até o nível da superação da metafísica, devemos refletir seriamente

sobre isto, sobre o conceito singular de Ser para a morte, ou da definição do homem,

como o lugar tenente do nada. Na definição do dicionário de Filosofia de Ferrater

Mora, podemos ver o claramente o lado positivo do conceito de nada;

O Nada não é, para Heidegger, a negação de um ente, mas aquilo que possibilita o não e a negação. O nada seria nesse caso, o “elemento” dentro do qual flutua a Existência, esforçando-se por manter-se a tona. Esse nada é descoberto por um fenômeno primordial, de índole existencial: a angústia. Assim, o nada é o que torna possível o transcendente do ser, é o que “implica” em sentido ontológico, e não lógico- o Ser (MORA p. 493).

A CRÍTICA HEDEGGERIANA A ONTOLOGIA TRADICIONAL:

Foram as leituras de Nietzsche (que também era grande apreciador dos pré-

socráticos, em detrimento a dialética do próprio Sócrates), que influenciaram

Heidegger24 a interpretar este pensamento dos primeiros filósofos como uma

22

Para mais detalhes ver (LOPARIC 2003 p.25): “a destruição (destruktion) da metafísica não significa o seu desmantelamento, mas sua desconstrução (abbau) a partir de sua origem pré metafísica. Trata-se de uma tarefa que obedece a leis próprias, distintas das que regem estudos históricos-filosóficos e filológicos (as traduções “violentas” dos textos gregos oferecidas por Heidegger são a melhor prova disto.). Da mesma maneira a expressão “o fim da metafísica” não designa a eliminação da vida cultural do Ocidente, mas tão somente a libertação do ente do poder da representação. ” 23

“Acima da atualidade esta a possibilidade” (HEIDEGGER 1973 p.500 frase com que Heidegger conclui “Meu Caminho para a fenomenologia”) 24 “Heidegger se ocupou com o estudo do pensamento de Nietzsche por um período que vai do final dos

anos 30 a meados dos anos 50. A publicação de seus estudos constitui um divisor de águas e uma referência obrigatória para qualquer interpretação da obra de Nietzsche. Segundo Heidegger, Nietzsche é o filósofo em cujo pensamento a metafísica é conduzida aos limites extremos de sua possibilidade. Ao mesmo tempo que representa o extremo aprofundamento e radicalização da metafísica – levando à sua consumação e esgotamento -, Nietzsche seria também um preparador de terreno para sua superação.” (GIACÓIA 2000 p.74 e 75)

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alternativa ao caminho Platônico/Aristotélico Racional, para neste registro mais

fundamental, situar a emergência de um retorno a metafísica do ser, que busca-se

posteriormente superá-la;

Esta “superação da metafísica”, contudo, não rejeita a metafísica. Enquanto o homem permanecer animal rationale é ele animal methaphysicum. Enquanto o homem se compreender como animal racional, pertence a metafísica, na palavra de Kant, à natureza do homem. Se bem sucedido talvez fosse possível ao pensamento retornar ao fundamento da metafísica, provocando uma mudança da essência do homem de cuja metamorfose poderia resultar uma transformação da metafísica (HEIDEGGER 2005 p. 78, grifo nosso).

Kant seria o definidor do problema em seus termos mais exatos, porém, ele

nada fez, no sentido de resolver estas antinomias, ou solucionar definitivamente a

questão (muito embora ele tenha “imaginado” que atingiu tal fim). Com Heidegger, a

questão é levada mais além, aos seus limites mais extremos, pois a pergunta pelo

fundamento do Dasein, em seu sentido ontológico, levaria a uma continuação da

busca por uma fonte última, mais originária que a síntese veritativa, apofântica ou

predicativa, seria agora, necessário, uma crítica ao próprio princípio de identidade, e

mesmo ao princípio da razão suficiente, pois:

Se do ponto de vista lógico, o sentido de uma proposição é independente do seu valor de verdade, do ponto de vista psicológico nem sempre é assim. Só entendo realmente quando tomo consciência que o entendido pretende ser verdadeiro e isso acontece por regra geral, quando percebo que se opõe a uma de minhas crenças (PORTA p.72).

Para Heidegger, as proposições lógicas, não são algo definidor do verdadeiro ou

do falso, em seu valor ultimo de realidade. Esta crítica tem como alvo os positivistas

lógicos, por exemplo Carnap, pois segundo este autor, dizer que “o nada, nadifica-se”

é logicamente falando, o mesmo que dizer, a “chuva chove”, não se trataria , em

ambos os casos de enunciado proposicionais, mas sim de pseudo-enunciados, vazios

de significado, portanto, algo só faz sentido se puder ser verificado e analisado em

termos de verdadeiro ou falso, conforme os preceitos definidos pelo Círculo de Viena.

Mas no tocante a ontologia do ser, esta tradição, comete um equívoco, pois:

Elas (as ciências) pensam que com a representação do ente se esgota toda circunscrição do investigável e problemático; de que fora do ente não existe nada mais. Esta opinião das ciências é assumida provisoriamente pela

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pergunta pela essência da metafísica, e aparentemente partilhada com elas. Entretanto, cada um que sabe refletir já deve saber que uma pergunta pela essência da metafísica só pode somente pode ter em mira o que caracteriza a meta-fisica: isto é a ultrapassagem, o ser do ente. Ao contrário, na perspectiva da representação cientifica, que somente conhece o ente, aquilo que de nenhum modo é ente ( a saber o ser) apenas se pode oferecer o nada. Por isto a preleção pergunta por este nada (HEIDEGGER ,1969, p.54).

Esta ultrapassagem (que é o revelar do Ser do ente) deveria, portanto se

diferenciar do caráter produtivo (“conduzir para diante de”) da ciência, e funcionar

como um referencial para o pensamento fundamental e mais radical sobre o Ser;

“Chamemos de pensamento fundamental aquele cujos pensamentos não apenas

calculam, mas são determinados pelo outro do ente. Em vez de calcular com o ente

sobre o ente, este pensamento se dissipa no ser pela verdade do ser” (HEIDEGGER

,1969, p.54). A verdade última não mais existe, portanto só no resta calcular o que

ganhamos ou perdemos, durante a jornada da vida. Agora, a única alternativa que nos

resta é buscar uma saída em nós mesmos, assim a liberdade de nosso destino há de

estar em nosso poder, dentro de nossa infinita imaginação. Pois como vimos, ela não

reside mais fora de nós, e não paira nem mesmo em algum Éter desconhecido. Se

tivermos força de caráter suficiente para iluminá-la e encará-la sem temor, toda chama

entregue a nós por Prometeu25, iluminará nosso tempo. O homem poderá então, se

tornar aquilo que se é. E banhado pela sabedoria das primeiras grandes civilizações,

no berço do pensamento ocidental, decifrara novamente o grande enigma imposto a

Édipo pela esfinge26.

E ao compreendermos o misterioso enigma de nossa própria finitude, do

nosso ser para a morte, e da origem de todos os grandes conceitos cunhados pelos

pensadores gregos com isto, talvez esta angústia de viver sem fundamentos presente

ao nosso ser aí, seja dissipada de suas idiossincrasias lógicas, para que finalmente

25

(NIETZSCHE 2005 p.203), no aforisma 300 lemos: “Foi preciso que Prometeu imaginasse antes haver roubado a luz e pagasse por isso – para finalmente descobrir que havia criado a luz ao ansiar por ela, e que não apenas o ser humano, mas também a divindade fora obra de suas mãos e argila de suas mão? Tudo apenas imagens do formado de imagens: - assim como a ilusão, o furto, o Cáucaso, o abutre e toda trágica Prometéia dos homens do conhecimento?” 26

«Qual é o ser que no começo da vida anda com quatro pés, a meio da vida anda com dois pés e pelo fim da vida anda com três pés?? O HOMEM.»

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possamos desdenhar da razão ultima27, em favor de uma vida mais autentica e mais

relacionada à “verdade” ( enquanto Alethéia28) do Ser. Ou seja:

“A essência da verdade se desvelou como liberdade. Esta é o deixar-ser ek-sistente que desvela o ente. Todo comportamento aberto se movimenta no deixar-ser do ente e se relaciona com este ou aquele ente particular. A liberdade já colocou previamente o comportamento em harmonia com o ente em sua totalidade...”(HEIDEGGER 1996. p. 130, grifo nosso)

Como foi exposto, em Nietzsche podemos ver esboçada esta tentativa, não de

estabelecer novos pontos cardeais, para a Metafísica, mas de absolutamente destruí-

los, para que posteriormente, algo de novo pudesse surgir.Aqui esse ponto é bem

ilustrado:

“Segundo Heidegger , Nietzsche é o filósofo em cujo pensamento a

metafísica é conduzida aos limites extremos de sua possibilidade. Ao mesmo tempo que representa o extremo aprofundamento – levando a sua consumação esgotamento – Nietzsche seria também um preparador do terreno para a sua superação.” (GIACÓIA2000 p.75, grifo nosso)

A superação/destruição/ultrapassagem (ou, conforme vimos na nota 12 a

desconstrução, possui o intento de atingir o ser do ente, fora do registro da

representação) deveria portanto funcionar como solo fundamental (grund) ou

referencial, para o pensamento mais radical sobre o Ser. Ultrapassar é estar

posicionado além da questão, (não meta, o que nos direcionaria ao depois). Isto

significa não estar nem diante (antes), nem adiante(depois), nem ao lado, a esquerda

ou a direita, nem acima ou abaixo, nem ao norte, nem ao sul, nem mesmo dentro,

posto que já a transpassamos... e ao superarmos a metafísica ela deixa de ser uma

questão válida para as futuras investigações. Mas aqui, gostaríamos de questionar:

27

Ver LOPARIC 2004 – “Ética e Finitude” (para mais detalhes sobre a crise teológica do fundamento ver cap I A crise do infinitismo e cap. II O principio do fundamento) na p.25 lemos que :“A ratio suficiens, o fundamento próprio e unicamente suficiente a summa ratio “a mais alta garantia para ubíqua calculabilidade, para o calculo do universo é Deus.”Heidegger lembra a nota de Leibniz de 1677 que diz: Cum Deus calculati fit mundus, “enquanto Deus calcula, o mundo é criado”. Deus é comparável a máquina de calcular, algo parecido a máquina universal de Turing, que só pensa computando e que resolve dessa maneira todos os problemas do mundo. Mesmo depois da morte de Deus, atestada por Nietzsche na época de hoje “...o mundo permanece calculado, pondo até mesmo os homens nos seus cálculos uma vez que tudo é contado segundo o principio da razão suficiente.” 28

“O que se realiza para a fenomenologia dos atos conscientes, como o auto mostrar-se dos fenômenos, é mais originariamente pensado por Aristóteles como alethéia, como desvelamento do que se presenta , seu desocultamento, seu mostrar-se. O que as investigações fenomenológicas re-descobriram como atitude básica do pensamento se apresenta como o traço nodal do pensamento grego e talvez mesmo da filosofia enquanto tal” (HEIDEGGER 1976 p.498)

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Superar para onde? Para um diferente plano? Para uma Vontade de potência? Uma

subjetividade primordial? Uma nova tábua de categorias? Ou uma intuição original? O

próprio Heidegger se coloca esta questão, na obra, “Nietzsche, Metafísica e Niilismo”,e

por superação ele define:

“Superar”- trazer para trás de si e sob si mesmo. Ou trazer apenas para trás

de si, a fim e que algo seja afastado; ou trazer sob si mesmo, a fim de que o superado – transformado através da superação – se amolde ao mesmo tempo ao outro que o supra. A superação precisa, antes de tudo compreender-se e dar um passo em direção ao que lhe é essencial” (HEIDEGGER 2000 p. 157, grifo nosso)

CONCLUSÃO:

Mesmo depois de realizada a revolução copernicana de Kant29 (que relativizou

a posição do sujeito do conhecimento tornando-o a condição de possibilidade da

experiência a priori ante o Mundo), esta é ainda insuficiente para cumprir este

propósito. E, neste sentido, Heidegger é herdeiro do prisma Nietzschiano, onde a

vontade de poder age em sua instância artística do existir, como o elemento de

transformação do Mundo em seu sentido poético fundamental, pois:

“Para Nietzsche a morte de Deus é expressão simbólica do desaparecimento deste horizonte metafísico, baseado na oposição entre aparência e realidade, verdade e falsidade, bem e mal. Isso significa que não podemos mais sustentar uma crença num conhecimento objetivo, que ultrapasse a particularidade de nossos afetos.” (GIACÓIA 2000 p. 24, grifo nosso)

Portanto, não seria absurdo colocar a ausência de algo, como o subsídio para o

pensar, assim, a presença do Ser, pode se ligar de modo não contraditório a sua

essência ausente, o Nada, que é pré condição de sua existência como Totalidade

(Mundo). O Tempo, é o “pano de fundo”, que revela o Ser em sua nudez. É somente no

Tempo, que o Ser se mostra. Mas o que é este mostrar-se? Que simultaneamente ao

seu revelar, também se retrai, se vela, e se oculta? Esta ambigüidade é sua morada, a

ambigüidade da palavra, que é morada deste Ser, que ao se apresentar, se esconde

como signo de algo que lhe é além.

29

Kant deriva toda sua Crítica da Razão Pura, do livro “Principia Matemática” de Newton, como uma validação do principio de indução, para que possamos compreender como são possíveis na ciência física/matemática os juízos sintéticos a priori. Definindo assim as categorias e também os limites a que estão circunscritos tais juízos provenientes da pura razão e averiguando se estes ainda seriam validos para a metafísica.

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O filósofo Heráclito de Éfeso , com suas metáforas, nos diz, que não podemos

nos banhar duas vezes em um mesmo rio, pois ao retornarmos para um segundo

mergulho nestas profundezas, suas águas que ali se encontravam no primeiro banho,

já teriam fluido para outros lugares, e este seria portanto outro, e nós, do mesmo

modo, já não seriamos os mesmos, mas algo diverso do que éramos da primeira vez

que ali imergimos. Nietzsche se utiliza de Heráclito, de modo bastante forte, para se

referir ao caráter de constante metamorfose presente em seu pensamento e na

heterogeneidade do mundo em constante devir. Em Heidegger, não se passa algo

muito distante disto, poderíamos abusar um pouco mais desta metáfora e dizer

(obviamente, com a imprecisão das generalizações) que o rio de Heráclito, 30 é algo

próximo, do conceito de Tempo em Heidegger, onde o Ser se encontra imerso,

flutuando em sua correnteza eterna, e de modo circular, retornando indefinidamente

ao seu ponto de partida, que nomearemos, o Vazio (Ou ou Ente em sua Totalidade).

Assim, só podemos concluir algo, trilhando o caminho da singularização/solidão31, para

que possamos atingir o centro da questão. Assim, por meio da angústia e do tédio, o

homem pode se posicionar num patamar filosófico privilegiado. Que tem por

qualidade positiva, “elevar” o homem a um estágio revelador do pensamento. Estágio,

que pode revelar o Ser (Dasein), como o lançado no Mundo em sua nudez. Pois

estamos lançados nesta Totalidade, somos seres finitos, e temos como fardo, a

obrigação de nos tornarmos algo (“Eu sou aquilo que faço de minhas possibilidades”),

isto leva a solidão, à angústia profunda, e é precisamente ao sermos tocados por esta

atmosfera essencial que se nos revela o Ser.

Esta tonalidade afetiva fundamental constitui nossa singularização no Mundo.

Descobrimos então, que o Ser compete ao Filosofar (“o que distingue a filosofia é o

pensar”), e que o ente é o objeto da ciência, sendo parte da decadência do pensar, o

vórtice para onde a tékhne pode nos arrastar, nos levando ao esquecimento do Ser.

Pois a decadência é sinal da evasão da metafísica que mediante sua ambigüidade,

30O filósofo Heráclito de Éfeso , nos diz, em seu fragmento 49a: “Nos mesmos rios entramos e não

entramos, somos e não somos.” (PRÉ SOCRÁTICOS 2005 col. Pensadores p.92) 31

A angústia ou tédio profundo, são as tonalidades afetivas fundamentais (ver HEIDEGGER 2006, primeira parte cap. 5)

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impele o ser do homem, a estar na verdade e na não verdade ao mesmo tempo, ou

seja, ao niilismo;

“[...]suposto que a essência do niilismo consiste no esquecimento do Ser” ; “Mas assim não atentamos àquilo que significa o esquecimento enquanto velamento do Ser. Se atentamos a isto, experimentamos a desconcertante necessidade: em vez de querer superar o niilismo devemos primeiro penetrar sua essência.” (HEIDEGGER ,1969, p. 58 -9, grifo nosso).

Mas talvez esta questão não possua seu cerne, sendo sua essência um puro

vazio, abismo, destino incontornável do homem rumo ao seu fim inevitável. Só nos

resta então, finalizar este artigo com a conclusão do escultor Florentino, Leonardo Da

Vinci que diz; “O nada não tem centro, e seus limites são o nada” (Apud HEIDEGGER,

1969, p. 55).

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