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Heidegger - Cartas Sobre o Humanismo

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Cartas Sobre o Humanismo

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  • Martin Heidegger

    Carta sobre o

    humanismo

    Traduo de Rubens Eduardo Frias

    Centauro - 2005

  • Capa: Renato Xavier Projeto Grfico: Casa de Ideias Produo Grfica: Adalmir Caparrs Fag

    2 Edio Revista- 2005 - 1a Reimpresso - 2010

    Ttulo Original: Lettre sur lhumanisme Traduo: Rubens Eduardo Frias

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Heidegger, Martin, 1889- 1976 Carta sobre o humanismo / Martin Heidegger. - 2 ed. rev. Traduo de Rubens Eduardo Frias. So Paulo : Centauro - 2005 Ttulo original: Lettre sur lhumanisme.

    ISBN 978-85-88208-64-3

    Bibliografia 1. Filosofia alem 2. Humanismo I. Ttulo

    05-7532 CDD-193

    ndices para catlogo sistemtico: 1. Filosofia alem 193

    2010 CENTAURO EDITORA

    Travessa Roberto Santa Rosa, 30 - 02804-010 - So Paulo SP Tel. 11 - 3976-2399 - Tel./Fax 11- 3975-2203 E-mail: [email protected]

    www.centauroeditora.com.br

  • Sumrio

    SOBRE O HUMANISMO ............................................................................. 5

    CARTA A JEAN BEAUFRET (Paris) ................................................................ 62

  • SOBRE O HUMANISMO CARTA A JEAN BEAUFRET (PARIS)

    Estamos ainda longe de pensar, com suficiente radicalidade, a

    essncia do agir. Conhecemos o agir apenas como o produzir de um efeito.

    A sua realidade efetiva segundo a utilidade que oferece. Mas a essncia do

    agir o consumar. Consumar significa desdobrar alguma coisa at

    plenitude de sua essncia; lev-la plenitude, producere. Por isso, apenas

    pode ser consumado, em sentido prprio, aquilo que j . O que todavia

    , antes de tudo, o ser. O pensar consuma a relao do ser com a

    essncia do homem. O pensar no produz nem efetua esta relao. Ele

    apenas a oferece ao ser, como aquilo que a ele prprio foi confiado pelo

    ser. Esta oferta consiste no fato de, no pensar, o ser ter acesso linguagem.

    A linguagem a casa do ser. Nesta habitao do ser mora o homem. Os

    pensadores e os poetas so os guardas desta habitao. A guarda que

    exercem o ato de consumar a manifestao do ser, na medida em que a

    levam linguagem e nela a conservam. No por ele irradiar um efeito, ou

    por ser aplicado, que o pensar se transforma em ao. O pensar age

    enquanto exerce como pensar. Este agir provavelmente o mais singelo e,

    ao mesmo tempo, o mais elevado, porque interessa relao do ser com o

    homem. Toda a eficcia, porm, funda-se no ser e espraia-se sobre o ente.

    O pensar, pelo contrrio, deixa-se requisitar pelo ser para dizer a verdade

    do ser. O pensar consuma este deixar. Pensar lengagement par lEtre.

  • Ignoro se do ponto de vista lingustico possvel dizer ambas as coisas

    (par e pour), numa s expresso, a saber: penser, cest lengagement

    de lEtre. Aqui, a palavra para o genitivo de l... visa expressar que o

    genitivo , ao mesmo tempo, genitivus subjectivus e objectivus. Mas nisto

    no se deve esquecer que sujeito e objeto so expresses inadequadas da

    Metafsica que se apoderou, muito cedo, da interpretao da linguagem, na

    forma da Lgica e Gramtica ocidentais. Mesmo hoje, mal somos

    capazes de pressentir o que se esconde neste processo. A libertao da

    linguagem dos grilhes da Gramtica e a abertura de um espao essencial

    mais original est reservado como tarefa para o pensar e o poetizar. O

    pensar no apenas lengagement dans daction em favor e atravs do

    ente, no sentido do efetivamente real da situao presente. O pensar

    lengagement atravs e em favor da verdade do ser. A sua histria nunca

    completa, ela sempre est na iminncia de vir a ser. A histria do ser

    sustenta e determina cada condition et situation humaine.

    Para primeiro aprendermos a experimentar, na sua pureza, a cita

    essncia do pensar, o que significa, ao mesmo tempo, realiz-la, devemos

    libertar-nos da interpretao tcnica do pensar, cujos primrdios recuam

    at Plato e Aristteles. O prprio pensar tido, ali, como , o

    processo da reflexo no servio do fazer e do operar. A reflexo, j aqui,

    vista desde o ponto de vista da e . Por isso, o pensamento,

    tomado em si, no prtico. A caracterizao do pensar como e a

    determinao do conhecer como postura terica j ocorrem no seio da

    interpretao tcnica do pensar. E uma tentativa de reao, visando

    salvar tambm o pensar, dando-lhe ainda uma autonomia em face do agir e

    do operar. Desde ento, a Filosofia est constantemente na contingncia

  • de justificar a sua existncia em face das Cincias. Ela cr que isto se

    realizaria da maneira mais segura, elevando-se ela mesma condio de

    uma cincia. Este empenho, porm, o abandono da essncia do pensar. A

    Filosofia perseguida pelo temor de perder em prestgio e importncia se

    no for cincia. O no ser cincia considerado uma deficincia que

    identificada com a falta de cientificidade. Na interpretao tcnica do

    pensar, o ser abandonado como o elemento do pensar. A Lgica a

    sano desta interpretao que comea com a Sofstica e Plato. Julga-se o

    pensar de acordo com uma medida que lhe inadequada. Um tal

    julgamento assemelha-se a um procedimento que procura avaliar a

    natureza e as faculdades do peixe, sobre a sua capacidade de viver em terra

    seca. J h muito tempo, demasiado tempo, o pensar est fora do seu

    elemento. Ser possvel chamar de irracionalismo o ato de reconduzir o

    pensar ao seu elemento?

    As questes levantadas na sua carta poderiam ser mais facilmente

    elucidadas numa conversa direta. No papel, o pensar sacrifica facilmente a

    sua mobilidade, Mas, sobretudo, nestas condies, s com muita

    dificuldade o pensar poder conservar a pluridimensionalidade do mbito

    que lhe prprio. Em comparao com as cincias, o rigor do pensar no

    consiste s na exatido artificial, isto , tcnico-terica dos conceitos. O

    rigor do pensar repousa no fato de o dizer permanecer, de modo puro, no

    elemento do ser, deixando imperar o simples das mltiplas dimenses.

    Mas, por outro lado, a forma escrita oferece a salutar coero para

    formulaes lingusticas cuidadosas. Por hoje, gostaria de escolher apenas

    uma das suas questes. A anlise desta far tambm uma luz sobre, as

    outras.

  • Voc pergunta: Comment redonner um sens au mot Humanisme?

    Esta questo nasce da inteno de conservar a palavra Humanismo.

    Pergunto-me se isto necessrio. Ou ser que no se manifesta, ainda, de

    modo suficiente, a desgraa que expresses desta natureza provocam? No

    h dvida de que h muito se desconfia dos -ismos. Mas o mercado da

    opinio publica exige constantemente novos. E sempre se est disposto a

    cobrir esta necessidade. Tambm os nomes como Lgica, tica,

    Fsica apenas surgem quando o pensar originrio chega ao fim. Na sua

    gloriosa era os Gregos pensaram sem tais ttulos. Nem mesmo de

    Filosofia chamavam ao pensar. Este termina ao sair do seu elemento. O

    elemento aquilo a partir do qual o pensar capaz de ser um pensar. O

    elemento o que propriamente pode: o poder. Ele assume o pensar e o

    conduz, assim, para a sua essncia. Dito de maneira simples, o pensar o

    pensar do ser. O genitivo tem duplo significado. O pensar do ser na

    medida em que o pensar, apropriado e manifestado pelo ser, pertence ao

    ser. O pensar , ao mesmo tempo, pensar do ser, na medida em que o

    pensar, pertencendo ao ser, escuta o ser. Escutando o ser e a ele

    pertencendo, o ser aquilo que ele , conforme sua origem essencial. O

    pensar isto, quer dizer: o ser encarregou- se, dcil ao destino e por ele

    dispensado, da essncia do pensar. Encarregar-se de urna coisa ou de

    uma pessoa significa: am-las, quer-las. Este querer significa, quando

    pensado mais originariamente: dom da essncia. Tal querer a essncia

    prpria do poder, o qual no apenas capaz de produzir isto ou aquilo, mas

    capaz de deixar que algo desdobre o seu ser em sua provenincia, isto

    significa que capaz de fazer-ser. O poder do querer a graa pela qual

    alguma coisa propriamente capaz de ser. Este poder propriamente o

  • possvel; aquele possvel cuja essncia repousa no querer. a partir deste

    querer que o ser capaz de pensar. Aquele possibilita este. O ser como o

    que pode e quer o possvel. O ser como o elemento a fora

    tranquila de poder que quer dizer, isto , do possvel. Os nossos termos

    possvel e possibilidade so, sem dvida, pensados, sob o imprio da

    Lgica e da Metafsica, distinguindo-se da atualidade; isto significa,

    a partir de uma determinada interpretao do ser a metafsica actus e

    potentia, distino que identificada com a de existentia e essentia.

    Quando falo de fora tranquila do possvel, no me refiro ao possibile de

    uma possibilitas apenas representada, nem potentia enquanto essentia de

    um actus da existentia; refiro-me ao prprio ser que, pelo seu querer,

    impera com seu poder sobre o pensar e, desta maneira, sobre a essncia do

    homem, ou seja, sobre a sua relao com o ser. Poder algo significa, aqui:

    guard-lo na sua essncia, conserv-lo no seu elemento.

    Quando o pensar chega ao fim, na medida em que sai do seu

    elemento, compensa esta perda valorizando-se como , como

    instrumento de formao e, por este motivo, como atividade acadmica e

    acabando como atividade cultural. A Filosofia vai transformar-se em uma

    tcnica de explicao pelas causas ltimas. No se pensa mais; ocupamo-

    nos de Filosofia. Na concorrncia destas ocupaes elas ento exibem-se

    publicamente como ismos, procurando uma sobrepujar a outra. O

    domnio destas expresses no casual. Ele reside, e isto particularmente

    nos tempos modernos, na singular ditadura da opinio pblica. A assim

    chamada existncia privada no , entretanto, ainda o ser-homem

    essencial e livre. Ela simplesmente crispa-se numa negao do que

    pblico. Ele mantm o chanto dele dependente e alimenta-se apenas do

  • recuo diante do que pblico. Ele atesta, assim, contra sua prpria

    vontade, a sua subjugao opinio pblica. Ela mesma, porm, a

    instaurao e dominao metafisicamente condicionadas porque se

    originando do domnio da subjetividade da abertura do ente, na

    incondicional objetivao de tudo. Por isso, a linguagem pe-se ao servio

    da meditao das vias de comunicao, nas quais se espraia a objetivao,

    como o acesso uniforme de tudo para todos, com o desprezo de qualquer

    limite. Deste modo, a linguagem cai sob a ditadura da opinio pblica. Esta

    decide previamente o que compreensvel e o que deve ser desprezado

    como incompreensvel.

    Aquilo que se diz, em Ser e Tempo (1927) 27 e 35, sobre o a

    gente no quer fornecer, de maneira alguma, apenas uma contribuio

    incidental para a Sociologia. Tampouco o a gente significa apenas a

    figura oposta, compreendida de modo tico-existencialista, ao ser-em-si-

    mesmo da pessoa. O que foi dito contm, ao contrrio, indicao, pensada

    a partir da questo da verdade do ser, para o pertencer originrio da palavra

    ao ser. Esta relao permanece oculta sob o domnio da subjetividade que

    se apresenta como a opinio pblica. Se, todavia, a verdade do ser se

    tornou digna de ser pensada pelo pensar, deve tambm a reflexo sobre a

    essncia da linguagem alcanar um outro nvel. Ela no pode continuar

    sendo apenas simples filosofia da linguagem. somente por isso que Ser

    e Tempo ( 34) contm uma indicao para a dimenso essencial da

    linguagem e toca a simples questo: em que modo do ser, afinal, a

    linguagem, enquanto linguagem, em cada situao? O esvaziamento da

    linguagem que grassa, em toda a parte e rapidamente, no corri apenas a

    responsabilidade esttica e moral em qualquer uso da palavra. Ela provm

  • de uma ameaa essncia do homem. Um simples uso cultivado da

    linguagem no demonstra, ainda, que conseguimos escapar a este perigo

    essencial. Um certo requinte no estilo poderia hoje, ao contrrio, at

    significar que ainda no vemos o perigo, nem somos capazes de o ver,

    porque ainda no ousamos nunca enfrentar o seu olhar. A decomposio da

    linguagem, atualmente to falada e isto bastante tarde, no , contudo, a

    razo, mas j uma consequncia do fato de que a linguagem, sob o domnio

    da metafsica moderna da subjetividade, se extravia quase irresistivelmente

    do seu elemento. A linguagem recusa-nos ainda a sua essncia: isto , que

    ela a casa da verdade do ser. A linguagem abandona-se, ao contrrio, ao

    nosso puro querer e nossa atividade, como um instrumento de dominao

    sobre o ente. Este prprio ente aparece como o efetivamente real, no

    sistema de atuao de causa e efeito. Abordamos o ente como o

    efetivamente real, tanto quando calculamos e agimos, como quando

    procedemos cientificamente e filosofamos com explicaes e

    fundamentaes. A elas tambm pertence o garantir que algo seja

    inexplicvel. Com tais afirmaes pensamos estar diante do mistrio.

    Como se j estivesse estabelecido que a verdade do ser se pudesse

    fundamentar, de qualquer modo, sobre causas e razes explicativas, ou, o

    que d no mesmo, sobre a impossibilidade da sua apreenso.

    Caso o homem encontre, alguma vez, o caminho para a proximidade

    do ser, ento deve antes aprender a existir no inefvel. Ter que

    reconhecer, de maneira igual, tanto a seduo pela opinio pblica, quanto

    a impotncia do que privado. Antes de falar, o homem deve novamente

    escutar, primeiro, o apelo do ser, sob o risco de, dcil a este apelo, pouco

    ou raramente algo que restar a dizer. Somente assim ser devolvida

  • palavra o valor da sua essncia e o homem ser agraciado com a devoluo

    da casa para habitar na verdade do ser.

    No reside, no entanto, neste apelo ao homem, no se esconde nesta

    tentativa de preparar o homem para este apelo, um empenho e uma

    solicitude pelo homem? Para onde se dirige o cuidado, seno no sentido

    de reconduzir o homem novamente para a sua essncia? Que outra coisa

    significa isto, a no ser que o homem (homo) se torne humano (humanus)?

    Deste modo ento, contudo, a humanitas permanece no corao de um tal

    pensar; pois humanismo isto: meditar e cuidar para que o homem seja

    humano e no desumano, inumano, isto , situado fora da sua essncia.

    Entretanto, em que consiste a humanidade do homem? Ela repousa na sua

    essncia.

    Mas de onde e como se determina a essncia do homem? Marx exige

    que o homem humano seja conhecido e reconhecido. Ele encontra-o na

    sociedade. O homem social para ele o homem natural. na

    sociedade que a natureza do homem, isto , a totalidade das suas

    necessidades naturais (alimentao, vesturio, reproduo, subsistncia

    econmica) eqitativamente assegurada. O cristo v a humanidade do

    homem, a humanitas do homo, desde o ponto de vista da sua distino da

    Deitas. Ele , sob o ponto de vista da histria da salvao, homem como

    filho de Deus, que, em Cristo, escuta e responde ao apelo do Pai. O

    homem no deste mundo, na medida em que o mundo, pensado terica

    e platonicamente, apenas uma passagem provisria para o Alm.

    Somente na poca da repblica romana, humanitas foi, pela primeira

    vez, expressamente pensada e visada sob este nome. O homo humanus

  • contrape-se ao homo barbarus. O homo humanus , aqui, o romano que

    eleva e enobrece a virtus romana atravs da incorporao da

    herdada dos Gregos. Estes Gregos so os Gregos do helenismo cuja cultura

    era ensinada nas escolas filosficas. Ela refere-se a eruditio et institutio in

    bonas artes. A assim entendida traduzida por humanitas. A

    romanidade propriamente dita do homo romanus consiste nesta tal

    humanitas. Em Roma, encontramos o primeiro humanismo. Ele

    permanece, por isso, na sua essncia, um fenmeno especificamente

    romano, que emana do encontro da romanidade com a cultura do

    helenismo. Assim, a chamada Renascena dos sculos XIV e XV, na Itlia,

    uma renascentia romanitatis. Como o que importa a romanitas, trata-se

    da humanitas e, por isso, da grega. Mas a grecidade sempre vista

    na sua forma tardia, sendo esta mesma vista de maneira romana. Tambm

    o homo romanus do Renascimento est em oposio ao homo barbarus.

    Todavia, o inumano , agora, o assim chamado barbarismo da Escolstica

    gtica da Idade Mdia. Do humanismo, entendo historicamente, faz sempre

    parte um studium humanitatis; este estudo recorre, de uma certa maneira,

    Antigidade, tornando-se assim, em cada caso, tambm um renascimento

    da grecidade. Isto evidente no humanismo do sculo XVIII, aqui entre

    ns sustentado por Winckelmann, Goethe e Schiller. Hlderlin, ao

    contrrio, no faz parte do humanismo e isto pelo fato de pensar o

    destino da essncia do homem mas radicalmente do que este humanismo

    capaz.

    Se, porm, por humanismo se entende, de modo geral, o empenho

    para que o homem se torne livre para a sua humanidade, para nela

    encontrar a sua dignidade, ento o humanismo distingue-se, em cada caso,

  • segundo a concepo da liberdade e da natureza do homem.

    Distinguem-se, ento, do mesmo modo, as vias para a sua realizao. O

    humanismo de Marx no carece de retorno Antigidade, como tambm

    no o humanismo que Sartre concebe, quando fala em Existencialismo.

    Neste sentido amplo, em questo, tambm o Cristianismo um

    humanismo, na medida em que, segundo a sua doutrina, tudo se ordena

    salvao da alma (salus aeterna) do homem, aparecendo a histria da

    humanidade na moldura da histria da salvao. Por mais que se distingam

    estas espcies de humanismos segundo as suas metas e fundamentos, a

    maneira e os meios de cada realizao, e a forma da sua doutrina, todas

    elas coincidem nisto: que a humanitas do homo humanus determinada a

    partir do ponto de vista de uma interpretao fixa da natureza, da histria,

    do mundo e do fundamento do mundo, isto , do ponto de vista do ente na

    sua totalidade.

    Todo o humanismo se funda ou numa Metafsica ou ele mesmo se

    postula como fundamento de uma tal metafsica. Toda a determinao da

    essncia do homem que j pressupe a interpretao do ente, sem a questo

    da verdade do ser, e o faz sabendo ou no sabendo, Metafsica. Por isso,

    mostra-se, e isto no tocante ao modo como determinada a essncia do

    homem, o elemento mais prprio de toda a Metafsica, no fato de ser

    humanstica. De acordo com isto, qualquer humanismo permanece

    metafsico. Na determinao da humanidade do homem, o humanismo no

    s deixa de questionar a relao do ser com o ser humano, mas o

    humanismo tolhe mesmo esta questo, pelo fato de, por causa de sua

    origem metafsica, no a conhecer nem a compreender. E vice-versa, a

    necessidade e a natureza particular da questo da verdade do ser, esquecida

  • na Metafsica e atravs dela, s pode vir luz levantando-se no prprio

    seio da Metafsica a questo: que Metafsica? De incio, questes acerca

    do ser e sobre a verdade do ser podem ser apresentadas como questes

    metafsicas.

    O primeiro humanismo, o romano, e todos os tipos do humanismo

    que, desde ento at o presente tm surgido, pressupem como bvia a

    essncia mais universal do homem. O homem tomado como animal

    rationale. Esta determinao no apenas a traduo latina da expresso

    grega , mas uma interpretao metafsica. Esta

    determinao essencial do homem no falsa. Mas ela condicionada pela

    Metafsica, cuja origem essencial e no apenas os seus limites se tornaram,

    contudo, em Ser e Tempo, dignos de serem questionados. O digno de ser

    questionado foi, primeiro, confiado ao pensar como aquilo que ele deve

    pensar, mas de maneira alguma atirado ao consumo de uma dissolvente

    compulso de dvida.

    A Metafsica representa realmente o ente em seu ser e pensa assim o

    ser do ente. Mas ela no pensa a diferena de ambos (Vide Sobre a

    Essncia do Fundamento, 1929, pg. 8; Kant e o Problema da

    Metafsica, 1929, pg. 225, e ainda, Ser e Tempo, 1927, pg. 230). A

    Metafsica no levanta a questo da verdade do ser-ele-mesmo. Por isso ela

    tambm jamais questiona o modo como a essncia do homem pertence

    verdade do ser. Esta questo at agora no foi levantada pela Metafsica.

    Esta questo inacessvel para a Metafsica enquanto Metafsica. O ser

    ainda est espera de que ele mesmo se torne digno de ser pensado pelo

    homem. Seja qual for a maneira de determinar a ratio do animal e a razo

  • do ser vivo, tendo em mira a determinao essencial do homem, quer como

    faculdade dos princpios, quer como faculdade das categorias ou de

    outra maneira, em toda parte e sempre a essncia da razo funda-se no fato

    de que, para toda a percepo do ente no seu ser, o ser-em-si-mesmo j se

    iluminou e acontece historicamente na sua verdade.

    Do mesmo modo com animal, j se props uma interpretao

    da vida que repousa necessariamente sobre uma interpretao do ente

    como e em meio qual se manifesta o ser vivo. Alm disto, e

    antes de mais, resta, enfim, perguntar se a essncia do homem como tal,

    originalmente e com isto decidindo previamente tudo realmente se

    funda na dimenso da animalitas. Estamos ns no caminho certo para a

    essncia do homem quando distinguimos o homem, e enquanto o

    distinguimos como ser vivo, entre outros, da planta, do animal e de Deus?

    Pode proceder-se assim, pode situar-se, desta maneira, o homem, no

    interior do ente, como um ente entre outros. Com isto se poder afirmar,

    constantemente, enunciados certos sobre o homem. preciso, porm, ter

    bem claramente presente que o homem permanece assim relegado

    definitivamente para o mbito essencial da animalitas; o que acontecer,

    mesmo que no seja equiparado ao animal e se lhe atribuirmos uma

    diferena especifica. Pensa-se, em princpio, sempre o homo amimalis,

    mesmo que anima seja posta como amimus sive mens e mesmo que estes,

    mais tarde, sejam postos como sujeito, como pessoa, como esprito. Uma

    tal posio o modo prprio da Metafsica. Mas com isto a essncia do

    homem minimizada e no pensada na sua origem. Esta origem

    essencial permanecer sempre a origem essencial para a humanidade

    historiai. A Metafsica pensa o homem a partir da animalitas, ela no pensa

  • em direo da sua humanitas.

    A metafsica fecha-se simples noo essencial de que o homem

    somente desdobra o seu ser na sua essncia, enquanto recebe o apelo do

    ser. Somente na intimidade deste apelo j tem ele encontrado sempre

    aquilo em que mora a sua essncia. Somente deste morar possui ele

    linguagem como a habitao que preserva o ex-sttico para a sua

    essncia. O estar postado na clareira do ser o que eu chamo a ex-sistncia

    do homem. Este modo de ser s prprio do homem. A ex-sistncia assim

    entendida no apenas o fundamento da possibilidade da razo, ratio, mas

    aquilo em que a essncia do homem conserva a origem de sua

    determinao.

    A ex-sistncia somente se pode dizer da essncia do homem, isto ,

    somente a partir do modo humano de ser; pois, apenas o homem, ao

    menos tanto quanto sabemos, nos limites da nossa experincia, est

    iniciado no destino da ex-sistncia. E por isso que a ex-sistncia nunca

    poder ser pensada como uma maneira especifica de ser entre outras

    espcies de seres vivos; isto naturalmente supondo que o homem foi assim

    disposto, o que deve pensar a essncia do seu ser e no apenas elaborar

    relatrios sobre a natureza e a histria da sua constituio e das suas

    atividades. Desta maneira, funda-se na essncia da ex-sistncia tambm

    aquilo que atribumos ao homem, mediante a comparao com o animal.

    O corpo do homem algo de essencialmente diferente de um organismo

    animal. O erro do biologismo no est superado quando se junta ao

    elemento corporal do homem a alma e alma o esprito e ao esprito o

    aspecto existencial, pregando ainda alto como at agora o apreo pelo

  • esprito, para, afinal, deixar tombar tudo de volta na vivncia da vida,

    admoestando-se ainda, com ilusria segurana, que o pensar destri, pelos

    seus conceitos rgidos, o fluxo da vida e que o pensar do ser deforma a

    existncia. O fato de a Filosofia e a qumica fisiolgica poderem examinar

    o homem como organismo, sob o ponto de vista das Cincias da Natureza,

    no prova de que neste elemento orgnico, isto , de que no corpo

    explicado cientificamente resida a essncia do homem. Isto vale tampouco

    como a opinio de que, na energia atmica, esteja encerrada a essncia da

    natureza. Pois, poderia mesmo acontecer que a natureza escondesse

    precisamente a sua essncia, naquela face que oferece ao domnio tcnico

    do homem. Como a essncia do homem no consiste em ser um organismo

    animal, assim tambm no se pode eliminar e compensar esta insuficiente

    determinao da essncia do homem, instrumentando-o com uma alma

    imortal ou com as faculdades racionais, ou com o carter de pessoa. Em

    cada caso, passa-se por alto a essncia, e isto em razo do mesmo projeto

    metafsico.

    Aquilo que o homem , o que na linguagem tradicional da Metafsica

    se chama a essncia do homem, reside na sua ex-sistncia. Mas a ex-

    sistncia, assim pensada, no idntica ao conceito tradicional do

    existentia, que significa realidade efetiva, na diferena com a essentia

    enquanto possibilidade. Em Ser e Tempo (pg. 42), encontra-se a frase

    grifada: A essncia do ser-a reside na sua existncia. Aqui no se trata

    de uma contraposio de existentia e essentia, porque, de maneira alguma,

    ainda esto em questo estas duas determinaes metafsicas do ser, nem

    se fale ento da sua relao. A frase contm, ainda muito menos, uma

    afirmao geral sobre a existncia (dasein), na medida em que esta

  • designao surgiu, no sculo XVIII, para a palavra objeto deveria

    expressar o conceito metafsico de realidade efetiva do real. Ao contrrio, a

    frase diz: O homem desdobra-se assim no seu ser (west) que ele o a,

    isto , a clareira do ser. Este ser do a, e somente ele, possui o trao

    fundamental da ex-sistncia, isto , significa o trao fundamental da in-

    sistncia ex-sttica na verdade do ser. A essncia ex-sttica do homem

    reside na sua ex-sistncia, que permanece distinta da existentia pensada

    metafsicamente. Esta compreendida pela Filosofia Medieval como

    actualitas. Kant representa a existentia como a realidade efetiva no sentido

    da objetividade da experincia. Hegel determina a existentia como a idia

    que se sabe a si mesma, a idia da subjetividade absoluta. Nietzsche

    concebe a existentia como o eterno retorno do mesmo. verdade que ainda

    fica aberta a questo se atravs do termo existentia, em suas

    interpretaes, diferentes apenas primeira vista, como realidade efetiva,

    j pensado com suficiente exatido o ser da pedra ou mesmo a vida como

    ser da flora e da fauna. Em todo caso, os seres vivos so como so, sem

    que, a partir do seu ser como tal, estejam postados na verdade do ser,

    guardando numa tal postura o desdobramento essencial do seu ser.

    Provavelmente, causa-nos a mxima dificuldade, entre todos os entes que

    so, pensar o ser vivo, porque, por um lado possui conosco o parentesco

    mais prximo, estando, contudo, por outro lado, ao mesmo tempo,

    separado por um abismo da nossa essncia ex-sistente. Em comparao

    pode at nos parecer que a essncia do divino nos mais prxima, como o

    elemento estranho do ser vivo; prxima, quero dizer, numa distncia

    essencial, que, enquanto distncia, contudo, mais familiar para a nossa

    essncia ex-sistente que o abissal parentesco corporal com o animal, quase

  • inesgotvel para o nosso pensamento. Tais consideraes lanam uma

    estranha luz sobre a determinao corrente e, por isso, sempre provisria e

    apressada, do homem como animal rationale. Porque as plantas e os

    animais esto mergulhados, cada qual no seio de seu ambiente prprio,

    mas nunca esto inseridos livremente na clareira do ser e s esta clareira

    mundo , por isso, falta-lhes a linguagem. E no porque lhes falta a

    linguagem esto eles suspensos sem mundo no seu ambiente. Mas nesta

    palavra ambiente concentra-se toda a dimenso enigmtica do ser vivo.

    Na sua essncia, a linguagem no nem exteriorizao de um organismo

    nem expresso de um ser vivo. Por isso, ela tambm no pode ser pensada

    em harmonia com a sua essncia, nem a partir do seu valor de signo, e

    talvez nem mesmo a partir do seu valor de significao. Linguagem

    advento iluminador-velador do prprio ser.

    A ex-sistncia, pensada extaticamente, no coincide, nem quanto ao

    contedo, nem quanto forma, com a existentia. Ex-sistncia significa, sob

    o ponto de vista do seu contedo, estar exposto na verdade do ser.

    Existentia (existence) quer, ao contrrio, dizer actualitas, realidade efetiva,

    em oposio com a pura possibilidade da ideia. Ex-sistncia nomeia a

    determinao daquilo que o homem no destino da verdade. Existentia

    permanece o nome para a efetivao daquilo que uma coisa , enquanto se

    manifesta na sua ideia. A frase: O homem ex-siste, no responde

    pergunta se o homem real ou no, mas responde questo da essncia

    do homem. Costumamos levantar esta questo inadequadamente, quer

    perguntemos pelo que o homem, quer perguntemos quem o homem.

    Pois no quem? e no que? j temos em vista algo que possui carter de

    pessoa ou que possui carter de objeto. Mas o elemento pessoal falha e

  • obstrui, ao mesmo tempo, o desdobramento do ser da ex-sistncia

    ontolgico-historial, e no menos que o que possui carter objetivo. Com

    cautela se escreve, por isso, na frase citada em Ser e Tempo (pg. 42) a

    palavra Wesen entre aspas. Isto significa que agora a essncia no se

    determina, nem a partir do esse essentiae, nem a partir do esse existentiae,

    mas a partir do ele- mento ex-sttico do ser-a. Como ex-sistente, o homem

    sustenta o ser-a, enquanto toma sob o seu cuidado o a enquanto clareira

    do ser. Mas o ser-a mesmo enquanto jogado. Desdobra o seu ser no

    lance do ser que dispensa o destino e a ele torna dcil.

    A suprema confuso seria, se se quisesse explicar a frase sobre a

    essncia ex-sistente do homem, como se fosse uma transposio

    secularizada de um pensamento expresso pela teologia crist sobre Deus

    (Deus est suum esse), para aplic-lo ao homem; a ex-sistncia no nem

    uma realizao efetiva de uma essncia, nem causa e por si mesma o que

    essencial (Essentielle). Se se compreende o projeto nomeado em Ser e

    Tempo como um pr que representa, ento ele ser como que a produo

    da subjetividade e no se d como a compreenso do ser, no mbito da

    analtica existencial do ser-no-mundo; unicamente pode ser pensada, a

    saber, como a relao ex-sttica com a clareira do ser. A tarefa de repetir e

    acompanhar, de maneira adequada e suficiente, este outro pensar que

    abandona a subjetividade foi, sem dvida, dificultada pelo fato de, na

    publicao de Ser e Tempo, eu haver retido a Terceira Seo da Primeira

    Parte, Tempo e Ser (Vide Ser e Tempo, pg. 39). E aqui que tudo se torna

    confuso. A seo problemtica foi retida, porque o dizer suficiente desta

    reviravolta fracassou e no teve sucesso com o auxlio da linguagem da

    Metafsica. A conferncia intitulada Sobre a essncia da verdade, pensada

  • e pronunciada em 1930, mas apenas impressa em 1943, oferece uma certa

    perspectiva sobre o pensamento da reviravolta de Ser e Tempo para Tempo

    e Ser. Esta reviravolta no uma modificao do ponto de vista de Ser e

    Tempo; mas nesta reviravolta o pensar ousado alcana a regio

    dimensional a partir da qual Ser e Tempo foram compreendidos e, na

    verdade, compreendidos a partir da experincia fundamental do

    esquecimento do ser.

    Sartre, pelo contrrio, exprime assim o princpio do existencialismo:

    a existncia precede a essncia. Ele toma, ao dizer isto, existentia e

    essentia na acepo da Metafisica que, desde Plato, diz: a essentia

    precede a existentia. Sartre inverte esta proposio. Mas a inverso de uma

    frase metafsica permanece uma frase metafisica. Com esta frase,

    permanece ele com a Metafsica, no esquecimento da verdade do ser. Pois,

    ainda que a Filosofia determine a relao de essentia e existentia, no

    sentido das controvrsias da Idade Mdia ou no sentido de Leibniz; de

    outro modo, antes de tudo isto, resta contudo, perguntar, a partir de que

    destino do ser esta distino no ser de esse essentiae e esse existentiae

    chega ser pensada. Permanece desafiando o pensamento o motivo por que

    o questionamento deste destino do ser nunca foi levantado e por que esta

    questo no podia ser pensada. Ou esta situao da distino da essentia

    e existentia um sinal do esquecimento do ser? Podemos conjeturar que este

    destino no reside numa simples omisso do pensar humano e muito

    menos numa menor capacidade do pensamento dos primrdios do

    Ocidente. A distino entre essentia (quididade) e existentia (atualidade)

    perpassa o destino da histria ocidental e da histria determinada pela

    Europa.

  • A frase principal de Sartre sobre a precedncia da existncia sobre a

    essentia justifica, entretanto, o termo Existencialismo como um ttulo

    adequado para esta filosofia. Mas a frase capital do Existencialismo no

    cem o mnimo de comum com aquela frase em Ser e Tempo; sem levar em

    considerao que em Ser e Tempo nem se podia ainda pronunciar um juzo

    sobre a relao de essentia e existentia pois trata-se, ali, de preparar algo

    precursor. Pelo que dissemos, isto ainda se apresenta cie um modo bastante

    desajeitado. Talvez o que ainda resta para dizer possa, eventualmente,

    transformar-se num estmulo para levar a essncia do homem a atentar,

    com o pensar, para a dimenso da verdade do ser que o perpassa com o seu

    domnio. Todavia, tambm isto s poderia acontecer a favor da dignidade

    do ser e em benefcio do ser-a, que o homem, ex-sistindo, sustenta, e no

    por causa do homem, para que atravs da sua obra se afirmem a civilizao

    e a cultura.

    Para que ns, contemporneos, possamos atingir, entretanto, a

    dimenso da verdade do ser a fim de poder medit-la, deveremos, primeiro,

    tornar desde j bem claro como o ser se dirige ao homem e como o

    requisita. Tal experincia essencial nos ser dada se compreendermos que

    o homem enquanto ex-siste. Digamo-lo, primeiro, na linguagem da

    tradio, onde isto quer dizer: a existncia do homem a sua substncia.

    Por isso, aparece repetidas vezes a frase em Ser e Tempo; A 'substncia

    do homem' a existncia (pgs. 117, 212 e 314). Mas a substncia ,

    pensada ontolgico-historialmente, a tradio encobridora de ,

    palavra que nomeia a presena do que se apresenta o que na maioria das

    vezes, atravs de uma enigmtica ambiguidade, visa prpria coisa que se

    apresenta. Se pensarmos o nome metafsico substncia, nesta acepo,

  • utilizada em Ser e Tempo, de acordo com a destruio fenomenolgica a

    realizada, j se tinha em mente (pg. 25) ento a proposio A 'substncia'

    do homem a ex-sistncia: o modo como o homem se apresenta em sua

    prpria essncia ao ser a ex-sttica in-sistncia na verdade do homem, as

    interpretaes humansticas do homem como animal rationale, como

    pessoa, como ser espiritual-animico-corporal, no so declaradas falsas

    nem so rejeitadas. Ao contrrio, o nico pensamento que se quer impor

    o de que as mais altas determinaes humansticas da essncia do homem

    ainda no experimentam a dignidade propriamente dita do homem. Neste

    sentido, o pensar, em Ser e Tempo, contra o humanismo. Mas esta

    oposio no significa que um tal pensar se oriente para o lado oposto do

    humano defendendo o inumano e a desumanidade ou degrade a

    dignidade do homem. Pensa-se contra o humanismo porque ele no

    instaura a humanitas do homem numa posio suficientemente alta. claro

    que a sublimidade da essncia do homem no repousa no fato de ele ser a

    substncia do ente como seu sujeito, para, na qualidade de potentado do

    ser, deixar diluir-se na to decantada objetividade, a entidade do ente.

    Pelo contrrio, o homem atirado pelo prprio ser na verdade do

    ser, para que, ex-sistindo, desta maneira, guarde a verdade do ser para que

    na luz do ser o ente se manifeste como o ente que efetivamente . Se e

    como o ente aparece, se e como o Deus e os deuses, a histria e a natureza

    penetram na clareira do ser, como se apresentam e ausentam, no decide o

    homem. O advento do ente repousa no destino do ser. Para o homem,

    porm, permanece a questo de saber se ele acha a convenincia adequada

    sua essncia, que corresponde a este destino, pois, de acordo com ele, o

    homem o pastor do ser. somente nesta direo que Ser e Tempo pensa

  • quando experimentada a existncia ex-sttica como o cuidado ( 44a,

    pgs. 226 e segs.).

    Mas o ser o que o ser? Ser o que mesmo. Experimentar isto e

    diz-lo a aprendizagem pela qual deve passar o pensar futuro no

    Deus nem um fundamento do mundo. O ser mais longnquo que qualquer

    ente e est mais prximo do homem que qualquer ente, seja este uma

    rocha, um animal, uma obra de arte, uma mquina, seja um anjo de Deus.

    O ser o mais prximo. E, contudo, a proximidade permanece, para o

    homem, a mais distante. O homem atm-se primeiro e para sempre apenas

    ao ente. Quando, porm, o pensar representa o ente enquanto ente, refere-

    se, certamente, ao ser; todavia, pensa, constantemente, apenas o ente como

    tal e precisamente no e jamais o ser como tal. A questo do ser

    permanece sempre a questo do ente. A questo do ser no ainda aquilo

    que designa esta falaciosa expresso: a pergunta acerca do ser. A Filosofia

    segue, como em Descartes e Kant, tambm ali onde ela se torna crtica,

    constantemente na esteira da representao metafsica. Ela pensa, partindo

    do ente e para ele se dirigindo, na passagem pela mediao de um olhar

    para o ser. Pois na luz do ser est situado cada ponto de partida do ente e

    cada retorno a ele.

    A Metafsica, porm, somente conhece a clareira do ser ou desde o

    olhar que nos lana aquilo que se apresenta no aspecto ou

    criticamente, como o objeto da perspectiva de representao categorial por

    parte da subjetividade. Isto significa: a verdade do ser como a clareira em

    si mesma permanece oculta para a Metafsica. Este ocultar, porm, no

    uma lacuna da Metafsica, mas o tesouro da riqueza a ela mesma recusado

  • e ao mesmo tempo apresentado. A clareira em si, porm, o ser. Somente

    ela garante, no seio do destino ontolgico da Metafsica, a perspectiva a

    partir da qual as coisas que se apresentam afetam o homem que lhes vem

    ao encontro: desta maneira, o prprio homem pode apenas perceber o seu

    na percepo , (Aristteles, Met. , 10); somente a perspectiva

    atrai a viso para si e a ela se entrega quando o perceber se transforma no

    propor-diante-de-si, na perceptio da res cogitans como subjectum da

    certitudo.

    Supondo que em si nos seja dado questionar to simploriamente:

    como se comporta, ento, o ser em relao ex-sistncia? O ser a

    relao, na medida em que retm, junto a si, a ex-sistncia na sua essncia

    existencial, isto , ex-sttica e a recolhe junto a si, como o lugar da verdade

    do ser, no seio do ente. Pelo fato de o homem como ex-sistente vir a

    postar-se nesta relao que a forma como o prprio ser se destina,

    enquanto o homem o sustenta ex-staticamente, isto , assume com cuidado,

    ele desconhece primeiro o mais prximo e atm-se ao que vem depois

    deste. Ele pensa at que isto o mais prximo. Contudo, mais prximo que

    o prximo e, ao mesmo tempo, mais remoto que o mais longnquo para o

    pensamento corrente, esta proximidade a verdade do ser.

    O esquecimento da verdade do ser, em favor da agresso do ente

    impensado na sua essncia, o sen- tido da decada nomeada em Ser e

    Tempo. A palavra no se refere a uma queda do homem, entendida sob o

    ponto de vista da filosofia moral e ao mesmo tempo secularizado, mas

    nomeia uma relao essencial do homem com o ser, no seio do ser

    referenciado essncia do homem. Portanto, as expresses preparatrias

  • autenticidade e inautenticidade, usadas como preldio, no significam

    uma distino moral-existencial, nem antropolgica, mas a relao ex-

    sttica do ser humano com a verdade do ser que a primeira a ter que ser

    pensada porque at agora oculta para a Filosofia. Mas esta relao como

    no em razo da ex-sistncia, mas a essncia da ex-sistncia

    existencial-ex-staticamente a partir da essncia da verdade do ser.

    A nica coisa que o pensar que, pela primeira vez, procura expressar-

    se em Ser e Tempo gostaria de alcanar algo simples. Como tal o ser

    permanece mistriosamente como a singela proximidade de um imperador

    que no se impe fora. Esta proximidade desdobra o seu ser como a

    prpria linguagem. Mas a linguagem no apenas linguagem, no sentido

    em que a concebemos, quando muito, como a unidade de fonema

    (grafema), melodia e ritmo e significao (sentido). Pensamos fonana e

    grafema como o corpo da palavra; melodia e ritmo como a alma e o que

    possui significao adequada, como o esprito da linguagem. Pensamos

    comumente a linguagem a partir da correspondncia essncia do homem,

    na medida em que esta representada como animal rationale, isto , como

    a unidade do corpo-alma- esprito. Todavia, assim como na humanitas do

    homo animalis, a ex-sistncia permanece oculta e, atravs dela, a relao

    da verdade do ser com o homem assim encobre a interpretao metafsico-

    animal da linguagem a sua essncia ontolgica historical. De acordo com

    ela, a linguagem a casa do ser manifestada e apropriada pelo ser e por ele

    disposta.

    Por isso, trata-se de pensar a essncia da linguagem a partir da

    correspondncia ao ser enquanto correspondncia, ou seja, como habitao

  • da essncia do homem.

    O homem, porm, no apenas um ser vivo, pois, ao lado de outras

    faculdades, tambm possui a linguagem. Ao contrrio, a linguagem a

    casa do ser; nela morando, o homem ex-siste enquanto pertence verdade

    do ser, protegendo-a.

    Assim, o que importa na determinao da humanidade do homem

    enquanto ex-sistncia que o homem no o essencial, mas o ser enquanto

    dimenso do elemento ex-sttico da ex-sistncia. A dimenso, todavia, no

    o conhecido elemento espacial. Ao contrrio, tudo o que espacial e todo

    o espao de tempo desdobra o seu ser no elemento dimensional que a

    prpria maneira de o ser ser.

    O pensar atento a estas simples relaes. Para elas procura ele a

    palavra adequada no seio da linguagem tradicional da Metafsica e da

    Gramtica, que vem de longe. problemtico se um tal pensar supondo

    que ainda importa uma expresso como tal deixa ainda denominar-se

    humanismo. Certamente que no, enquanto o humanismo j metafsico.

    Certamente que no, se for Existencialismo e defender a frase que Sartre

    exprime: Prcisment nous sommes sur um plan o il y a seulement des

    hommes (L'Existencialisme est um Hu- manisme, pg. 36). Em vez disso,

    pensando a partir de Ser e Tempo, deveria dizer-se: Prcisment nous

    sommes sur um plan o il y a principalment L'tre. Mas de onde vem o

    que le plan? Ltre et le plan so o mesmo. Em Ser e Tempo, vem dito

    intencionalmente e com cuidado (pg. 212): il y a l'tre: d-se. O il y a

    traduz o d- se de modo impreciso. Pois o se que aqui d o prprio

    ser. O d, contudo, nomeia aquilo que d, a essncia do ser que garante a

  • sua verdade. O dar-se claramente, com ele mesmo, o prprio ser.

    Emprega-se, ao mesmo tempo, o d-se para, provisoriamente,

    evitar a expresso: o ser ; pois comumente diz-se das coisas que

    so. Estas ns as designamos de ente. Mas o ser justamente no o ente.

    Se vem dito sem maior explicitao do ser ento o ser representado

    com demasiada facilidade como um ente, ao modo do ente conhecido,

    que opera como causa, e operado como efeito. Contudo, j Parmenides

    afirma nos primrdios do pensamento: o saber, o ser.

    Nesta palavra esconde-se o mistrio originrio para todo o pensar. Talvez o

    s possa ser dito, de maneira adequada, apenas do ser, de maneira tal

    que todo ente jamais propriamente . Mas como o pensamento ainda

    deve atingir a dimenso em que dir o ser na sua verdade, em vez de

    explic-lo como um ente a partir do ente, deve ficar aberta para a solicitude

    do pensar a questo se, e como o ser .

    O de Parmnides permanece ainda hoje impensado.

    Por a se pode medir como se d o progresso da Filosofia. Ela no progride

    de forma alguma se respeitar a sua essncia. Ela marca passo para pensar

    sempre o mesmo. O progredir, a saber, afastar-se deste lugar, um erro que

    segue o pensar como a sombra que ele mesmo projeta. Porque o ser est

    ainda impensado, diz-se tambm, em Ser e Tempo, do ser: d- se. Sobre

    este il y a no se pode especular sem mais e sem apoio. Este d-se

    impera como o destino do ser, cuja histria se manifesta na linguagem pela

    palavra dos pensadores essenciais. por isso que o pensar que pensa,

    penetrando na verdade do ser, , enquanto pensar, historial. No existe um

    pensar sistemtico e, ao lado, para ilustrao, uma histria das opinies

  • passadas. Mas tambm no existe, como pensa Hegel, uma sistemtica que

    fosse capaz de fazer da lei de seu pensar uma lei da histria e que pudesse

    sobressair ao mesmo tempo, a esta, no sistema. Existe, se pensarmos mais

    radicalmente, a histria do ser qual o pensar, como memorial desta

    histria, pertence, acontecendo atravs da posterior recordao da histria,

    no sentido do que teve lugar no passado. A histria no acontece primeiro

    como evento. E este no um simples passar. O evento da histria

    desdobra-se em ser como o destino da verdade do ser, a partir dele (Vide

    Conferncia sobre o Hino de Hlderlin Como um dia de festa..., 1941,

    pg. 31). Ao destino chega o ser, na medida em que ele, o ser, se d. Mas

    isto significa, quando pensado em conformidade ao destino: ele d-se e

    recusa-se simultaneamente. Entretanto, a determinao hegeliana de

    histria, como desenvolvimento do esprito, no destituda de verdade.

    Ela, porm, tambm no , em parte certa e em parte falsa. Ela to

    verdadeira como verdadeira a Metafsica que, pela primeira vez, em

    Hegel, traz linguagem a sua essncia pensada de modo absoluto no

    sistema. A Metafsica absoluta faz parte com suas inverses, atravs de

    Marx e Nietzsche da histria da verdade do ser. O que dela provm no

    se deixa atingir nem afastar por refutaes. Somente se deixa assumir na

    medida em que se recolhe sua verdade, mais radicalmente no ser mesmo,

    retirando-a da esfera de uma opinio apenas humana. Nscia toda a

    refutao no campo do pensar essencial. A disputa entre pensadores a

    disputa amorosa da mesma questo. Ela auxilia-os alternadamente a

    penetrar na simples participao no mesmo, a partir do qual eles encontram

    a docilidade no destino do ser.

    Supondo que o homem, no futuro, seja capaz de pensar a verdade do

  • ser, ento ele pensar a partir da ex-sistncia. Ex-sistindo est ele postado

    no destino do ser. A ex-sistncia do homem , enquanto ex-sistncia

    historiai, mas no um primeiro lugar e apenas pelo fato de, no decurso do

    tempo, muitas coisas acontecerem com o homem e as coisas humanas. Pelo

    fato de se tratar de pensar a ex-sistncia do ser-a, por isso o pensar, cm Ser

    e Tempo, est to fundamente interessado em que seja experimentada a

    historicidade do ser-ai.

    No se diz, porm, em Ser e Tempo (pg. 212), onde se fala do d-

    se: Somente enquanto ser-ai, d-se ser? Sem dvida. Isto significa:

    somente enquanto se manifesta a clareira do ser este se transmite ao

    homem. Mas o fato de a, a clareira enquanto a verdade do prprio ser,

    acontecer e manifestar-se, a destinao do prprio ser. Este o destino da

    clareira tradicional da existentia e no sentido moderno como a realidade

    efetiva do ego cogito, aquele ente atravs do qual o ser primeiramente

    criado. A frase no afirma que o ser um produto do homem. Na

    Introduo a Ser e Tempo (pg. 38) est escrita de maneira simples e clara

    e at em grifo: Ser transcendente como tal. Assim como a abertura da

    proximidade espacial ultrapassa qualquer coisa prxima ou distante,

    quando vista a partir desta, assim o ser fundamentalmente mais amplo

    que todo o ente, porque a prpria clareira. Neste caso, ainda se pensa de

    acordo com o ponto de partida inicialmente inevitvel, situado na

    Metafsica ainda dominante, o ser a partir do ente. Somente a partir de tal

    perspectiva o ser se mostra num ultrapassar e como este mesmo.

    A determinao introdutria Ser o transcendente como tal rene,

    numa simples frase, a maneira como at agora a essncia do ser se

  • manifesta ao homem. Esta determinao retrospectiva da essncia do ser

    permanece incontornvel para o ponto de partida antecipador da questo da

    verdade do ser. Longe dele est a presuno de querer comear tudo desde

    o incio e declarar falsa toda a filosofia anterior. Para um pensar que

    procura pensar a verdade do ser, a nica questo que permanece se a

    determinao do ser como o simplesmente transcendente j nomeia a

    simples essncia da verdade do ser. Por isso, tambm se diz na pgina 230

    que somente a partir do sentido, isto , a partir da verdade do ser, se pode

    compreender como o ser . O ser manifesta-se ao homem no projeto ex-

    sttico, mas este projeto no instaura o ser.

    E, alm disto, o projeto essencialmente um projeto jogado. Aquele

    que joga no projetar no o homem, mas o prprio ser que destina o

    homem para a ex-sistncia do ser-a como sua essncia. Este destino

    acontece como a clareira do ser, forma sob a qual o destino . Ela garante a

    proximidade ao ser. Nesta proximidade, na clareira do a, mora o homem

    como o ex-sistente, sem que j hoje seja capaz de experimentar

    propriamente este morar e assumi-lo. A proximidade de ser, modo como

    o a do ser-a pensado na conferncia sobre a elegia de Hlderlin

    Retorno (1943) a partir de Ser e Tempo a partir da poesia do Poeta

    que esta proximidade do ser percebida numa linguagem mais radical e

    nomeada a ptria a partir experincia do esquecimento do ser. Esta

    palavra pensada aqui numa acepo mais originria, no com acento

    patritico, nem nacionalista, mas de acordo com a histria do ser. Mas a

    essncia da ptria , ao mesmo tempo, nomeada com a inteno de pensar a

    apatridade do homem moderno a partir da histria do ser. O ltimo a

    experimentar esta apatridade foi Nietzsche. Ele no foi capaz de encontrar,

  • no seio da Metafsica, outra sada que no fosse a inverso da Metafsica.

    Mas isto a consumao da perplexidade. Todavia, Hlderlin preocupa-se,

    ao compor o Retorno, para que os seus contemporneos reencontrem o

    lugar do seu desdobramento essencial. Isto ele no o procura, de maneira

    alguma, no egosmo de seu povo. Ele o v, ao contrrio, a partir da

    condio de eles fazerem parte do Ocidente. Mas Ocidente no pensado

    regional e geograficamente, enquanto o ocidental se ope ao oriental,

    tambm no pensado como a Europa, mas na perspectiva da histria

    universal a partir da proximidade com a origem. Ns praticamente ainda

    no comeamos a pensar as misteriosas relaes com o Oriente, que

    assomaram palavra na poesia de Hlderlin (Vide O Ister e A

    Peregrinao, 3 estrofe e segs.). O alemo no proclamado ao

    mundo para que este se restabelea no modo de ser alemo, mas dito para

    os alemes, para que eles, em verdadeiro universalismo, se tornem

    participantes da histria do mundo (Sobre a poesia de Hlderlin,

    Lembrana. Tbinger Gedenkschrift, 1943, pg. 322). A ptria deste

    habitar historial a proximidade do ser.

    nesta proximidade que se realiza caso isto um dia acontea a

    deciso se e como o Deus e os deuses se recusam e a noite permanece, se e

    como amanhece o dia sagrado, se e como, no surgimento do sagrado, pode

    recomear uma manifestao de Deus e dos deuses. O sagrado, porm, que

    apenas o espao essencial para a deidade , o qual, por sua vez, apenas

    garante uma dimenso para os deuses e o Deus , manifesta-se somente,

    ento, em seu brilho, quando antes e aps a longa preparao, o prprio ser

    se iluminou e foi experimentando em sua verdade. S assim comea, a

    partir do ser, a superao da apatridade, na qual erram perdidos, no apenas

  • os homens, mas tambm a essncia do homem.

    A apatridade que assim deve ser pensada reside no abandono

    antolgico do ente. Ela o sinal do esquecimento do ser. Em consequncia

    dela, a verdade do ser permanece impensada. O esquecimento do ser

    manifesta-se indiretamente no fato de o homem sempre considerar e

    trabalhar s o ente. E como nisto no pode evitar de ter o ser na

    representao, tambm o ser explicado apenas como o mais geral e,

    portanto, o que engloba o ente ou como criao do ente infinito, ou ainda,

    como produo de um sujeito finito. Ao mesmo tempo, o ser, desde a

    Antiguidade, situa-se em lugar do ente, e vice-versa, este em lugar

    daquele; ambos acossados numa estranha e no refletida confuso.

    O ser enquanto destino que destina verdade permanece oculto. Mas o

    destino do mundo anuncia-se na poesia, sem que ainda se torne manifesto

    como a histria do ser. O pensamento de carter universal de Hlderlin,

    que se expressa no poema Lembrana, por isso mais essencialmente

    radical e, por isso, mais antecipador que o puro cosmopolitismo de Goethe.

    Pela mesma razo, a relao de Hlderlin com a grecidade

    essencialmente diferente que no o humanismo. Por isso, os jovens

    alemes que sabiam de Hlderlin, pensaram e viveram bem outra coisa em

    face da morte, do que aquilo que a opinio pblica apresentava como

    sendo a opinio alem.

    A apatricidade torna-se um destino do mundo. por isto que se torna

    necessrio pensar este destino sob o ponto de vista ontolgico-historial. O

    que Marx, a partir de Hegel, reconheceu, num sentido essencial e

    significativo, como alienao do homem, alcana, com suas razes, at a

  • apatricidade do homem moderno. Esta alienao provocada e isto, a

    partir do destino do ser, na forma de Metafsica, por ela consolidada e ao

    mesmo tempo por ela mesma encoberta, como apatricidade. Pelo fato de

    Marx, enquanto experimenta a alienao, atingir uma dimenso essencial

    da histria, a viso marxista da Histria superior a qualquer outro tipo de

    historiografia. Mas porque nem Husserl, nem, quanto eu saiba at agora,

    Sartre reconhecem que a dimenso essencial do elemento da Histria

    reside no ser, por isso, nem a Fenomenologia, nem o Existencialismo

    atingem aquela dimenso, no seio da qual , em primeiro lugar, possvel

    um dilogo produtivo com o marxismo.

    Mas, para isto, naturalmente necessrio que a gente se liberte das

    representaes ingnuas sobre o materialismo e das refutaes mesquinhas

    que pretendem atingi-lo. A essncia do materialismo no consiste na

    afirmao de que tudo apenas matria; ela consiste, ao contrrio, numa

    determinao metafsica, segundo a qual todo o ente aparece como a

    matria de um trabalho. A essncia moderna e a metafsica do trabalho

    foram antecipadas no pensamento da Fenomenologia do Esprito, de

    Hegel, como o processo que a si mesmo se instaura, da produo

    incondicionada, isto , da objetividade do efetivamente mal pelo homem

    experimentado como subjetividade. A essncia do materialismo esconde-se

    na essncia da tcnica; sobre esta, no h dvida, muito se escreve, mas

    pouco se pensa. A tcnica , em sua essncia, um destino antolgico-

    historial da verdade do ser, que reside no esquecimento. A tcnica no

    remonta, na verdade, apenas com seu nome, at dos Gregos, mas

    ela origina-se ontolgico-historicalmente da como um modo de

    , isto , do tornar o ente manifesto. Enquanto uma forma da

  • verdade, a tcnica funda-se na histria da Metafsica. Esta uma fase

    privilegiada da histria do ser e a nica da qual, at agora, podemos ter

    uma viso de conjunto.

    Por mais diversas que sejam as posies que se tornam em face das

    doutrinas do comunismo e da sua fundamentao, certo, sob o ponto de

    vista ontolgico-historial, que nele se exprime uma experincia elementar

    daquilo que atual na histria universal. Quem torna o comunismo

    apenas como partido ou como viso do mundo no pensa com

    suficiente amplitude da mesma maneira como aqueles que, na expresso

    americanismo, apenas visam, e ainda com acento pejorativo, um

    particular estilo de vida. O perigo para o qual impelido, cada vez mais

    nitidamente, o que at agora era a Europa, consiste provavelmente no fato

    de, antes de tudo, o seu pensar um dia a sua grandeza decair e ficar

    para trs, na marcha essencial do destino mundial que inicia; este, contudo,

    permanece determinado pelo carter europeu nos traos essenciais de uma

    origem fundamental. Metafsica alguma, seja ela idealista, seja

    materialista, seja crist, pode, segundo a sua essncia, e de maneira alguma

    apenas nos esforos despendidos em desenvolver-se, alcanar ainda o

    destino, isto , atingir e reunir, atravs do pensar, o que agora do ser num

    sentido pleno.

    Em face da essencial apatricidade do homem, mostra-se ao

    pensamento, fiel dimenso ontolgico-historial, o destino futuro do

    homem, no fato de ele achar o caminho para a verdade do ser, pondo-se a

    caminho deste encontro. Cada nacionalismo , do ponto de vista

    metafsico, um antropologismo e, como tal, um subjetivismo. O

  • nacionalismo no pode ser superado pelo simples internacionalismo, mas

    apenas ampliado e erigido em sistema. Tanto o nacionalismo no

    conduzido humanitas, e sobressumido, como no o o individualismo,

    atravs do coletivismo a-histrico. Este a subjetividade do homem na

    totalidade. Ele realiza a sua incondicional auto-afirmao. Esta no se

    deixa reconduzir s suas origens, nem se deixa experimentar, de modo

    suficiente, atravs de um pensamento que no radicaliza a mediao.

    Expulso da verdade do ser, o homem gira, por toda parte, em torno de si

    mesmo, como animal rationale.

    A essncia do homem, no entanto, consiste em ele ser mais do que

    simples homem, na medida em que este representado como o ser vivo

    racional. Mais no deve ser entendido aqui em sentido aditivo, como se a

    definio tradicional do homem tivesse que permanecer a determinao

    fundamental para ento experimentar apenas um alargamento, atravs de

    um acrscimo do elemento existencial. O mais significa: mais originrio

    e por isso mais radical em sua essncia. Aqui, porm, mostra-se o elemento

    enigmtico: o homem , na condio-de-ser-jogado. Isto quer dizer: o

    homem , como a rplica ex-sistente do ser, mais que o animal rationale,

    na proporo em que precisamente menos na relao com o homem que

    se compreende a partir da subjetividade. O homem no o senhor do ente.

    O homem o pastor do ser. Neste menos o homem nada perde, mas

    ganha, por quanto atinge a verdade do ser. Ele ganha a essencial pobreza

    do pastor, cuja dignidade reside no fato de ter sido chamado pelo prprio

    ser, para guardar a sua verdade. Este apelo vem como o lance no qual se

    origina a condio de ser- jogado do ser-a. O homem , em sua essncia

    ontol- gico-historial, o ente cujo ser como ex-sistncia consiste no fato de

  • morar na vizinhana do ser. O homem o vizinho do ser.

    Mas o senhor j h muito dever ter querido objetar-me no

    pensa justamente um tal pensar a humanitas do homo humanus? No pensa

    ele esta humanitas num sentido to decisivo, como Metafsica alguma a

    pensou e jamais a poder pensar? No isto um humanismo no sentido

    supremo? Certamente. o humanismo que pensa a humanidade do homem

    desde a proximidade do ser. Mas , ao mesmo tempo, o humanismo no

    qual est em jogo, no o homem, mas a essncia historial do homem, na

    sua origem desde a verdade do ser. No depende, porm, desta

    circunstncia, ento, no mesmo tempo, de maneira absoluta, a ex-sistncia

    do homem? De fato, assim .

    Em Ser e Tempo (pg. 38) afirma-se que todo o questionamento da

    Filosofia repercute na existncia. Mas a existncia no aqui a realidade

    efetiva do ego cogito. Ela tambm no apenas a realidade efetiva dos

    sujeitos que agem juntos e uns para os outros e assim chegam a si mesmos.

    Ex-sistncia , numa diferena fundamental como qualquer existentia e

    existence, o morar ex-sttico na proximidade do ser. Ela vigilncia, isto

    , o cuidado pelo saber. Pelo fato de neste pensar dever ser pensado algo

    simples, parece ele to difcil ao tipo de representao que nos foi

    transmitido como Filosofia. Mas a dificuldade no consiste num perder-se

    em profundas consideraes de carter particular e em formar conceitos

    complicados, mas oculta-se no recuar que faz penetrar e pensar num

    questionar em busca de experincia, e que abandona as opinies correntes

    da Filosofia.

    Opina-se, por toda parte, que a tentativa de Ser e Tempo findou num

  • beco sem sada. Deixemos esta opinio entregue a si mesma. Para alm de

    Ser e Tempo, o pensar que procura dar alguns passos no tratado que tem

    este ttulo, ainda hoje no conseguiu avanar. Entretanto, talvez este pensar

    se tenha aproximado um pouco mais do miolo de sua questo. Todavia,

    enquanto a Filosofia apenas se ocupar em obstruir constantemente a

    possibilidade de penetrar na questo do pensar, a saber, a verdade do ser,

    ela est certamente livre do perigo de um dia romper-se na dureza da sua

    questo. Por esta razo o filosofar sobre o fracasso est separado, por um

    abismo, de um pensar que realmente fracassa. Se um dia o homem tivesse

    a sorte de realizar um tal pensar, no aconteceria uma desgraa. A ele, pelo

    contrrio, seria concedido o dom que poderia advir ao pensamento por

    parte do ser.

    Mas tambm isto importante: o objeto do pensamento no

    atingido por um conversar toa sobre a verdade do ser e sobre a

    histria do ser. Tudo depende do fato de a verdade do ser atingir a

    linguagem e de o pensar conseguir esta linguagem. Talvez a linguagem

    ento exija muito menos a expresso precipitada do que o devido silncio.

    Contudo, qual de ns, contemporneos, quereria pretender que as suas

    tentativas de pensar estivessem familiarizadas na senda do silncio?

    Quando muito, o nosso pensar poderia talvez apontar para a verdade do ser

    como o que deve ser pensado. Assim, mais que de outra maneira, ele

    estaria livre do simples pressentimento e do opinar e seria entregue tarefa

    da escritura, que se tornou rara. As coisas que tm alguma consistncia

    ainda chegam a tempo, por mais tarde que seja, mesmo que no se

    destinem para a eternidade.

  • Se o mbito da verdade do ser um beco sem sada ou o livre espao

    em que a liberdade reserva a sua essncia, isto poder decidir e julgar todo

    aquele que tentou, por seu prprio esforo, trilhar o caminho indicado, ou,

    o que ainda melhor, abrir um caminho melhor, o que significa uma vida

    mais adequada questo. Na penltima pgina de Ser e Tempo (pg. 437),

    esto as frases seguintes: A disputa na interpretao do ser (isto, portanto,

    no significa do ente, e tambm no do ser do homem) no pode ser

    decidida, porque ainda nem sequer foi desencadeada. E, afinal, ela no se

    deixa introduzir improvisadamente, mas o desencadear da disputa j

    necessita de uma preparao. s para isto que a presente investigao

    est a caminho. Estas frases continuam vlidas ainda hoje, aps muitos

    decnios. Continuemos ns, tambm nos tempos vindouros, como

    viajantes no caminho para a vizinhana do ser. A questo por vs

    levantada ajuda a clarear o caminho.

    O senhor pergunta: Comment redonner uns sens au mot

    Humanisme? De que maneira dar novamente palavra humanismo um

    sentido? A sua pergunta no pressupe apenas que o senhor quer

    conservar a palavra humanismo; ela contm tambm a confisso de que

    esta palavra perdeu o seu sentido.

    Ela perdeu o sentido pela convico de que a essncia do humanismo

    de carter metafsico e isto significa, agora, que a Metafsica no s

    coloca a ques- to da verdade do ser, mas a obstrui, na medida em que a

    Metafsica persiste no esquecimento do ser. Mas o pensar que conduz a

    esta compreenso do carter problemtico da essncia do humanismo

    levou-nos, ao mesmo tempo, a pensar a essncia do homem mais

  • radicalmente. No que diz respeito a esta humanitas do homo humanus, em

    sua dimenso mais essencial, resulta a possibilidade de devolver a palavra

    humanismo a um sentido historial que mais antigo, que o seu mais

    antigo sentido, sob o ponto de vista historiogrfico. Este devolver do

    sentido no deve ser entendido como se a palavra humanismo fosse

    como tal sem sentido e um simples flactus vocis. O humanum aponta, na

    palavra, para a humanitas, a essncia do homem. O ismo aponta para o

    fato de que a essncia do homem deveria ser apreendida de maneira

    radical. Este sentido o que possui a palavra humanismo como palavra.

    Dar-lhe novamente um sentido somente pode significar: determinar de

    novo o sentido da palavra. Isto exige, de um lado, que a essncia do

    homem seja experimentada mais originariamente; de outro lado, que se

    mostre em que medida esta essncia , a seu modo, bem-disposta. A

    essncia do homem reside na ex-sistncia. esta ex-sistncia que

    essencialmente importa, o que significa que ela recebe a sua importncia

    do prprio ser, na medida em que o ser apropria o homem enquanto ele o

    ex-sistente, para a vigilncia da verdade do ser, inserindo-o na prpria

    verdade do ser. Humanismo significa, agora, caso nos dedicamos a

    manter a palavra: a essncia do homem essencial em consequncia disto,

    no importa o homem simplesmente como tal. Desta maneira, pensamos

    um humanismo de natureza singular. A palavra d como resultado uma

    expresso que um lucus a non lucendo.

    Ser que se deve chamar a este humanismo que fala contra todo o

    humanismo conhecido, mas que ao mesmo tempo, de maneira alguma, se

    arvora em intrprete do inumano, ainda de humanismo? E isto apenas

    para talvez, participando no uso da expresso, acompanhar as correntes

  • dominantes que se afogam no subjetivismo metafsico e que esto

    afundadas no esquecimento do ser? Ou ser tarefa do pensamento tentar,

    atravs de uma aberta oposio contra o humanismo, um novo impulso

    que poderia suscitar uma ateno para a humanitas do homo humanus e sua

    fundamentao? Pois deste modo caso o momento da histria universal

    atual j no a provocasse por si mesmo poder-se-ia despertar uma

    reflexo que pensasse, no apenas sobre o homem, mas sobre a natureza

    do homem, no apenas sobre a natureza, mas ainda mais originariamente

    sobre a dimenso na qual a essncia do homem, determinada a partir do

    prprio ser, se torna familiar. No seria melhor suportarmos antes, por

    mais algum tempo ainda, os inevitveis mal-entendidos, deixando-os

    desgastarem-se lentamente; mal-entendidos aos quais o caminho do

    pensamento est exposto at agora no elemento de Ser e Tempo. Estas

    falsas interpretaes so naturalmente interpretaes do que se leu, ou de

    opinies de outros que leram e do que se pensa saber j antes da leitura.

    Todos eles revelam a mesma estrutura e o mesmo fundamento.

    Porque se fala contra o humanismo, teme-se uma defesa do

    inumano e uma glorificao da barbrie brutal. Pois o que h de mais

    lgico do que ficar, para aquele que nega o humanismo, apenas com a

    afirmao da desumanidade?

    Porque se fala contra a Lgica, pensa-se que se exige a renncia ao

    rigor do pensamento, para introduzir, em seu lugar, a arbitrariedade dos

    impulsos e sentimentos e assim proclamar como verdadeiro o ir-

    racionalismo. Pois, o que mais lgico do que isto: aquele que fala

    contra o lgico defende o algico?

  • Porque se fala contra os valores a gente escandaliza-se em face de

    uma filosofia que pretensamente ousa abandonar ao desprezo os supremos

    bens da humanidade. Pois o que mais lgico do que isto? Um

    pensamento que rejeita os valores dever proclamar tudo sem valor?

    Porque se diz que o ser do homem consiste em ser-no-mundo,

    imagina-se que o homem foi degradado a um ser meramente mundano,

    reduzindo-se assim a Filosofia ao positivismo. Pois, o que mais lgico do

    que isto: quem afirma a mundaneidade do ser-homem s d valor ao que

    de baixo, negando o que do alm renunciando a toda transcendncia?

    Porque se aponta uma palavra de Nietzsche sobre a morte de Deus

    declara-se que tal comportamento ateismo. Pois o que mais lgico do

    que isto: aquele que experimentar a morte de Deus um sem-Deus?

    Porque, em tudo isto, em toda a parte, se fala contra aquilo que para a

    humanidade vale como elevado e sagrado, tal filosofia ensina um

    nihilismo irresponsvel e destruidor. Pois o que mais lgico do que

    isto: quem nega, em toda a parte, o ente verdadeiro, coloca-se do lado do

    no-ente e, com isto, proclama que o simples nada o sentido da realidade

    efetiva?

    O que se passa aqui? Ouve-se falar de humanismo, lgica,

    valores, mundo e Deus. Ouve-se falar de uma oposio contra tudo

    isto. O que foi nomeado conhecer-se e toma-se como o positivo. Aquilo

    que, no ouvir dizer, fala, de um modo no pensado com rigor, contra o que

    acima nomeado, toma-se imediatamente como sendo a sua negao e, esta,

    como o negativo, no sentido do destrutivo. Em Ser e Tempo fala-se at,

    em alguma parte expressamente, da destruio fenomenolgica. Pensa-se

  • com o auxilio da Lgica e a razo, tantas vezes invocadas, que o que no

    positivo negativo, e que assim se pratica o desprezo da razo e merece,

    por isso, ser marcado como depravao. Est-se to saturado de Lgica

    que se contabiliza como elemento oposto condenvel tudo que se opuser

    semi-sonolncia do simples opinar. Rejeita-se tudo o que no permanece

    truncado junto ao conhecimento e idolatrado positivo, na fossa

    previamente preparada da pura negao, que a tudo nega e que, por isso,

    termina no nada e assim completa o nihilismo. Deixa-se, atravs deste

    caminho lgico, afundar tudo num nihilismo que se inventou com o auxlio

    da Lgica.

    Mas ser que efetivamente o contra, que um pensar apresenta

    diante do que comumente se imagina, aponta necessariamente para a pura

    negao e para o negativo? Isto acontece s ento e neste caso, sem dvida,

    de modo inevitvel e definitivo isto , sem uma livre viso de qualquer

    outra coisa quando j de antemo se coloca o elemento opinativo como

    o positivo, decidindo, a partir deste, absoluta e ao mesmo tempo

    negativamente, sobre o mbito de toda e qualquer possvel oposio a ele.

    Num tal procedimento esconde-se a recusa de submeter a uma reflexo o

    que, por preconceito, se julga positivo, juntamente com posio e

    oposio, dade esta em que se pensa estar a salvo. Com o constante apelo

    ao elemento lgico suscita-se a aparncia de um empenho no pensar,

    quando, ento, justamente, se renunciou ao pensar.

    Destas observaes deve ter resultado um pouco mais claro que a

    oposio ao humanismo no implica, de maneira alguma, a defesa do

    inumano, mas abre outras perspectivas.

  • A Lgica entende o pensar como a representao do ente em seu

    ser, pensar que apresenta o representar na generalidade do conceito. Mas o

    que acontece com a meditao sobre o prprio ser, isto , com o pensar que

    pensa a verdade do ser? Somente este pensar atinge a essncia originria

    do que, em Plato e Aristteles, os fundadores da Lgica, j foi

    entulhada e perdida. Pensar contra a Lgica no significa quebrar lanas

    em defesa do ilgico, mas significa apenas: meditar sobre o e a sua

    essncia nos primrdios do pensamento; significa empenhar-se, primeiro,

    na preparao de um tal refletir. Que sentido possuem para ns todos os

    sistemas da Lgica, por mais amplos que sejam, quando se subtraem, e

    mesmo sem o saber, j de antemo, da tarefa de primeiro questionar,

    mesmo que seja apenas isto, a essncia do . Quisssemos devolver na

    mesma moeda, com objees, o que certamente improdutivo, ento, com

    maior razo, se poderia dizer: o irracionalismo como renncia a ratio,

    impera o desconhecido e o indiscutido, quando se de- fende aquela

    Lgica que pensa poder esquivar-se de uma modificao sobre o e

    sobre a essncia da ratio que nele se fundamenta.

    O pensar contra os valores no afirma que tudo aquilo que se

    declara como valores a cultura, a arte, a cincia, a dignidade

    do homem, mundo e Deus seja sem valor. Ao contrrio, importa,

    finalmente, reconhecer que, justamente pela caracterizao de algo como

    valor, se rouba a dignidade daquilo que assim valorizado. Isto quer

    dizer: ao avaliar algo como valor, aquilo que foi valorizado apenas

    admitido como objeto de avaliao pelo homem. Mas aquilo que algo

    que em seu ser no se esgota sua objetividade e, quando a objetividade tem

    o carter de valor. Todo o valorizar, mesmo onde um valorizar

  • positivamente, uma subjetivao. O valorizar no deixa o ente ser, mas

    todo o valorizar deixa apenas valer o ente como objeto de seu operar. O

    esdrxulo empenho em demonstrar a objetividade dos valores no sabe o

    que faz. Quando se proclama Deus como o valor supremo, isto

    significa uma degradao da essncia de Deus. O pensar atravs de valores

    , aqui e em qualquer outra simao, a maior blasfmia que se pode pensar

    em face do ser. Pensar contra os valores no significa, portanto, propagar

    que o ente destitudo de valor e que sem importncia; mas isto

    significa: levar para diante do pensar a clareira da verdade do ser contra a

    subjetivao do ente em simples objeto.

    Chamar a ateno para o ser-no-mundo como o trao fundamental

    da humanitas do homo humanus no significa afirmar que o homem

    apenas um ser mundano, no sentido cristo; portanto, um ser afastado de

    Deus e, at, desligado da transcendncia, Com esta palavra pensa-se o

    que mais claramente foi denominado por transcendente. O transcendente

    o ente supra-sensvel. Este vale como o ente supremo no sentido da causa

    primeira de todos os entes. Deus pensado como esta causa primeira.

    Mundo, todavia, na expresso ser-no-mundo, no significa, de maneira

    alguma, o ente terreno, em oposio ao celeste, nem mesmo o mundano

    em oposio ao espiritual. Mundo, naquela expresso, no significa, de

    modo algum, um ente e nenhum mbito do ente, mas a abertura do ser. O

    homem e homem, enquanto o ex-sistente. Ele est postado, num

    processo de ul trapassagem, na abertura do ser, que o modo como o

    prprio ser ; este projetou a essncia do homem como um lance, no

    cuidado de si. Projetado desta maneira, o homem est postado na

    abertura do ser Mundo a clareira do ser na qual o homem penetrou a

  • partir da condio de ser projetado de sua essncia. O ser-no-mundo

    nomeia a essncia da ex-sistncia, com vista dimenso iluminada, desde

    a qual desdobra o seu ser o ex da ex-sistncia. Pensada a partir da ex-

    sistncia, mundo , justamente, de certa maneira, o outro lado no seio da

    e para a ex-sistncia. O homem jamais primeiramente do lado de c do

    mundo como um sujeito, pense-se este como eu ou como ns.

    Nunca tambm primeiramente e apenas sujeito, que, na verdade, sempre

    se refere, ao mesmo tempo, a objetos, de tal maneira que a sua essncia

    consistiria na relao sujeito-objeto. Ao contrrio, o homem primeiro , em

    sua essncia, ex-sistente na abertura do ser, cuja abertura ilumina o entre

    em cujo seio pode ser uma relao de sujeito e objeto.

    A frase: a essncia do homem reside no ser-no-mundo tambm no

    contm uma deciso sobre a hiptese se o homem , no sentido teolgico-

    metafisico, um ser deste mundo ou do outro.

    Com a determinao existencial da essncia do homem, ainda nada

    est decidido sobre a existncia de Deus ou seu no-ser, como,

    tampouco, sobre a possibilidade ou impossibilidade de deuses. Por isso no

    apenas apressado, mas j falso no modo de proceder, afirmar que a

    interpretao da essncia do homem, a partir da relao desta essncia com

    a verdade do ser, atesmo. A esta classificao arbitrria falta, ademais,

    um cuidado na leitura. No h preocupao com o fato de, desde 1929,

    estar escrito, no texto, Sobre a essncia do fundamento (pg. 28, nota 1), o

    seguinte: Atravs da interpretao ontolgica do ser-a como ser-no-

    mundo, no se decidiu nada, nem positiva nem negativamente, sobre um

    possvel ser-para-Deus. Mas s pela clarificado da transcendncia se

  • alcana um adequado conceito do ser-a, que, levado em considerao,

    permite, ento, perguntar qual , sob o ponto de vista ontolgico, o estado

    da relao do ser-a com Deus. Se tambm se interpretar, como de

    costume, tambm esta observao, de maneira mesquinha, ir explicar-se:

    esta filosofia no se decide nem a favor nem contra a existncia de Deus.

    Ela permanece presa indiferena. E um tal indiferentismo, contudo,

    torna-se vtima do nihilismo.

    Ora, ensina a observao que aduzimos, o indiferentismo? Porque

    grifamos ento determinadas palavras isoladas e no qualquer uma? Pois,

    foi apenas para insinuar que o pensar que pensa desde a questo da verdade

    do ser, pensa mais radical e originariamente do que a Metafsica capaz de

    questionar.

    Somente a partir da verdade do ser se deixa pensar a essncia do

    sagrado. E somente a partir da essncia do sagrado deve ser pensada a

    essncia da divindade. E, finalmente, somente na luz da essncia da

    divindade pode ser pensado e dito o que deve nomear a palavra de Deus:

    ou ser que no devemos ser capazes de, primeiro, entender e escutar com

    cuidado estas palavras, se ns, homens, isto , como seres ex-sistentes,

    quisermos ter acesso a uma experincia de uma relao de Deus para com

    o homem? Pois, como poderia o homem da atual histria mundial mesmo

    apenas questionar, com seriedade e rigor, se o Deus se aproxima ou se

    subtrai, se o homem omite pensar primeiro para dentro da dimenso, na

    qual aquela questo unicamente pode ser desencadeada? Esta dimenso,

    porm, a dimenso do sagrado, que mesmo como dimenso j permanece

    fechada, caso no se clarear a abertura do ser para, em sua clareira, estar

  • prximo do homem. Talvez o elemento mais marcante desta idade do

    mundo consista no rgido fechamento para a dimenso da graa. Talvez

    seja esta a nica desgraa.

    Todavia, com esta indicao no se quer decidir, de maneira alguma,

    pelo tesmo, o pensar que, antecipando, aponta para a verdade do ser como

    o que deve ser pensado. Ele no pode ser testa, nem atesta. Isto, porm,

    no levado por uma atitude de indiferena, mas por respeito aos limites,

    postos ao pensar enquanto pensar, e isto atravs daquilo que se lhe d a

    pensar pela verdade do ser. Na medida em que o pensar se contenta com a

    sua tarefa, d ele, no momento do presente destino mundial, ao homem,

    uma orientao para a dimenso originria de sua morada historiai. Como

    dizer desta forma a verdade do ser, o pensar entregou-se quilo que mais

    essencial do que todos os valores e do que qualquer ente. O pensar no

    supera a Metafsica, mas ainda mais a exacerba, ultrapassa e a sobressume

    em qualquer lugar, mas enquanto recua para a proximidade do mais

    prximo. A descida bem mais difcil e perigosa, particularmente ali, onde

    o homem se perdeu na subjetividade. A descida conduz pobreza da ex-

    sistncia do homo humanus. Na ex-sistncia abandonado o mbito do

    homo animalis da Metafsica. O imprio deste mbito a razo indireta e

    de conseqncias que recuam longe, para a obliterao e a arbitrariedade

    daquilo que se pode caracterizar como biologismo e tambm para aquilo

    que se conhece pela expresso pragmatismo. Pensar a verdade do ser

    significa, ao mesmo tempo: pensar a humanitas do homo humanus.

    Importa a humanitas ao servio da verdade do ser, mas sem o humanismo

    no sentido metafsico.

  • Se, porm, a humanitas est to essencialmente no campo visual do

    pensar do ser, no deve ento a Ontologia ser completada por uma

    tica? No seria ento seu empenho, que exprime em sua frase, muito

    especial: Ce que je cherche faire, depuis longtemps dj, c'est prciser

    le rapport de l'ontologie avec une thique possible?

    Logo aps a publicao de Ser e Tempo, perguntou-me um jovem

    amigo: Quando escrever o senhor uma tica? L, onde a essncia do

    homem pensada to essencialmente, a saber, unicamente a partir da

    questo da verdade do ser, mas onde, contudo, o homem no foi elevado

    para o centro do ente, deve realmente despertar a aspirao por uma

    orientao a partir da ex-sistncia para o ser, deve viver convenientemente

    ou de acordo com o destino. A aspirao por uma tica urge, com tanto

    mais pressa por uma realizao, quanto mais a perplexidade manifesta do

    homem e, no menos, a oculta, se exacerbam para alm de toda a medida.

    Deve dedicar-se todo o cuidado possibilidade de criar uma tica de

    carter obrigatrio, uma vez que o homem da tcnica, entregue aos meios

    de comunicao de massa, somente pode ser levado a uma estabilidade

    segura, atravs de um recolhimento e ordenao do seu planejar e agir

    como um todo, correspondente tcnica.

    Quem poderia deixar de perceber a indigncia nesta situao? No

    seria conveniente poupar e garantir os laos estabelecidos, ainda que

    somente consigam manter a unidade do ser humano precariamente e

    apenas na situao de hoje? Sem dvida. Mas j desobriga esta indigncia

    o pensar de considerar aquilo que principalmente deve ser pensado e que

    permanece, enquanto ser, mais que todo ente, garantia e verdade? Ser que

  • o pensar pode ainda continuar a esquivar-se de pensar o ser, quando este se

    manteve escondido em longo esquecimento e, ao mesmo tempo, se

    anuncia, neste momento da histria universal, atravs da comoo de todos

    os entes?

    Antes de procurarmos determinar mais exatamente as relaes entre

    a Ontologia e a tica, devemos perguntar o que so a prpria

    Ontologia e a prpria tica. Impe-se considerar se aquilo que

    nomeado nestas duas expresses ainda permanece adequado e prximo

    para aquilo que foi entregue ao pensar como tarefa, que como pensar deve,

    antes de tudo, pensar a verdade do ser.

    Caso tanto a Ontologia como a tica, junto com todo o pensar

    por disciplinas, se tomassem caducas, adquirindo assim, o nosso pensar

    mais disciplina, qual ser ento a situao da questo da relao das duas

    disciplinas mencionadas com a Filosofia?

    A tica aparece junto com a Lgica e a Fsica, pela primeira

    vez, na Escola de Plato. As disciplinas surgem na poca que permite a

    transformao do pensar em Filosofia, a Filosofia em (Cincia)

    e a Cincia mesma em um assunto de escola e de atividade escolar. Na

    passagem por esta Filosofia assim entendida, surge a Cincia e passa o

    pensar. Os pensadores antes desta poca no conhecem nem uma Lgica,

    nem uma tica e nem uma Fsica. E, contudo, o seu pensar no nem

    ilgico nem imoral. A era, porm, pensada por eles numa

    profundidade e amplitude que toda a Fsica posterior nunca mais foi

    capaz de alcanar. As tragdias de Sfocles ocultam permita-me uma tal

    comparao em seu dizer, , de modo mais originrio, que as

  • prelees de Aristteles sobre a tica. Uma sentena de Herclito, que

    consiste apenas em trs palavras, diz algo to simples que dela brota e

    chega luz, de maneira imediata, a essncia do .

    A sentena de Herclito a seguinte (Fragmento 119):

    . De maneira geral costuma traduzir-se: o carter

    prprio do homem o seu demnio. Essa traduo pensa de maneira

    moderna e no de modo grego. significa morada, lugar da habitao.

    A palavra nomeia o mbito aberto onde o homem habita. O aberto de sua

    morada torna manifesto aquilo que vem ao encontro da essncia do homem

    e assim, aproximando-se, demora-se em sua proximidade. A morada do

    homem contm e conserva o advento daquilo a que o homem pertence em

    sua essncia. Isto , segundo a palavra de Herclito, o , o Deus. A

    sentena diz: o homem habita, na medida em que homem, na

    proximidade de Deus. Com esta sentena de Herclito concorda uma

    histria que Aristteles relata (de part. anim. A 5.645 a 17). a seguinte:

    ,

    .

    Narra-se de Herclito uma palavra que teria dito aos forasteiros que

    queriam chegar at ele. Aproximando-se, viram-no como se aquecia junto

    ao forno. Detiveram-se surpresos; isto, sobretudo, porque Herclito ainda

    os encorajou a eles que hesitavam convidando-os a entrar, com as

    palavras: Pois tambm aqui esto presentes deuses....

    Esta narrativa fala por si; destaquemos, contudo, alguns aspectos.

    O grupo de visitantes est frustrado e desconsertado na curiosidade

  • que os levou a dirigir-se ao pensador; o desconserto provocado pelo

    aspecto d