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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS
HUMANAS - DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA
VICTOR HUGO FONSECA DA SILVA COELHO
A HERANCcedilA E O PARRICIacuteDIO
O ELEATISMO NO SOFISTA DE PLATAtildeO
Satildeo Paulo 2019
2
VICTOR HUGO FONSECA DA SILVA COELHO
A HERANCcedilA E O PARRICIacuteDIO
O ELEATISMO NO SOFISTA DE PLATAtildeO
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Roberto Bolzani Filho
Satildeo Paulo
2019
3
Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte
Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
C672h
Coelho Victor Hugo Fonseca da Silva Coelho A heranccedila e o parriciacutedio o eleatismo no Sofista de Platatildeo Victor Hugo Fonseca da Silva Coelho Coelho orientador Roberto Bolzani Filho Bolzani Filho - Satildeo Paulo 2019
95 f
Dissertaccedilatildeo (Mestrado)- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Filosofia 1 Platatildeo 2 ontologia 3 eleatismo 4 dialeacutetica 5 discurso I Bolzani Filho Roberto Bolzani Filho orient II Tiacutetulo
4
A Lucia Maria da Fonseca
sempre presente em minha ausecircncia
5
ldquoQual seria o negoacutecio da filosofia Natildeo se trata necessariamente
de propagar uma visatildeo de mundo (seja ela historicista naturalista
socionaturalista ou espiritualista) demolindo a visatildeo adversa
caccedilando os erros categoriais que lhe satildeo subjacentes Haacute uma
hybris que se esconde sob a aparente modeacutestia da chamada
metafiacutesica descritiva a de poder como se nada fosse
circunscrever sem resto a natureza e o espiacuterito humanos na forma
de uma teoria positiva Pode ser que a tarefa da filosofia seja mais
modesta a de nos livrar de certas ilusotildees que natildeo deixam de nos
fascinar e de nos seduzir a principal ilusatildeo da filosofia seria a de
nos fornecer com uma teoria uma ancoragem no Ser uma
linguagem finalmente transparente esse instrumento que nos
garantiraacute para sempre contra o erro e tornaraacute possiacutevel a fundaccedilatildeo
de nossa forma de vida ignorando sua contingecircncia absolutardquo
(Bento Prado Jr Ipseitas pp 95-96 grifos do proacuteprio autor)
6
RESUMO
Visamos com esta dissertaccedilatildeo compreender os movimentos loacutegico-ontoloacutegicos operados
por Platatildeo no diaacutelogo Sofista O diaacutelogo nos parece de grande importacircncia na obra
platocircnica pois (i) eacute por meio da ontologia ali estabelecida que Platatildeo institui a forma
proposicional de um discurso que possa ser valorado tanto como verdadeiro quanto como
falso e (ii) a relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia parece estar indicada por certa mudanccedila na
Teoria das Formas que de algum modo forneceria ainda na obra platocircnica uma teoria
da boa imagem e da boa mimese Em primeiro lugar procuramos identificar a aporia
eleaacutetica apresentada no iniacutecio do texto aporia que nega a possibilidade de discursos falsos
e de discursos verdadeiros natildeo tautoloacutegicos Em segundo lugar buscamos compreender
o modo como Platatildeo parece contornar tal aporia por meio da formulaccedilatildeo de um tipo de
oposiccedilatildeo propriamente dialeacutetica a antiacutetese entre os gecircneros ou formas Podemos dizer
portanto que como condiccedilatildeo para a bipolaridade do discurso temos no caso platocircnico
a conjunccedilatildeo ou dissociaccedilatildeo entre as formas isto eacute a conjunccedilatildeo e dissociaccedilatildeo garantidas
por meio do esquema fornecido pelo ceacutelebre meacutetodo da divisatildeo (diairesis) Seraacute esta
operaccedilatildeo realizada pelo Estrangeiro de Eleia que permitiraacute ao final do diaacutelogo que os
diferentes elementos do enunciado sejam articulados sem que o emissor esteja
necessariamente enredado pela contradiccedilatildeo discursiva Assim acreditamos ser possiacutevel
nos aproximar do jogo de rupturas e continuidades que parece haver entre Platatildeo e a
filosofia do grande mestre de Eleia o platonismo pretende matar seu pai para que a
filosofia deste continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de
Parmecircnides faccedila com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e
da ilusatildeo
7
ABSTRACT
We aim with this master dissertation to understand the logic-ontological moves operated
by Plato in the Sophist dialogue This dialogue seems to us enormly important in the
platonic works because (i) its by virtue of the ontology there estabilished that Plato
found the propositional form of discourse that can be valuated as true such false and (ii)
the relation between logic and ontology seems be indicated by some change in the Theory
of Forms that in some manner could give us in platonic work a theory of good image
and good mimesis First of all we seek to indentify the eleatic aporia presented in the
beginning of the text aporia that deny the possibility of false discourses and of not
tautological truth discouses Secondly we seek to understand the way that Plato seems
outline this aporia by the formulation of a kind of oposition properly dialetical the
antithesis between the genres or forms We may say therefore that as condition to
bipolarity of discourse we have in the platonic case the conjunction or
dissociation among the forms ie the conjunction and dissociation guarantees by schema
provided by famous methode of division (diairesis) Will be this operation made
by Strange of Eleia that will allows in the end of dialogue that the diferents elements of
proposition be articulate without the issuer be necessarily involved by discoursive
contradiction Thus we consider it is possible to approach us to the play of disruptions
and permanences that seems to be between Plato and the philosophy of great master of
Eleia the platonism intent to kill his father so that his philosophy can proceed alive ie
to hinder that the sofistic implosion of parmenidean thesis makes the eleatism succumb
to the interests of masters of retoric and illusion
8
SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
10
modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
11
INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
12
filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
13
De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
14
cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
15
prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
16
filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
17
filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
18
oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
19
imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
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implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
32
questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
33
interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
34
[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
38
Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
39
o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
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a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
41
T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
42
Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
43
doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
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(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
45
T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
46
Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
47
ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
48
ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
49
o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
50
termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
51
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
52
ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
53
Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
54
(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
55
notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
56
do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
57
mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
58
discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
59
INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
60
237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
72
Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
74
ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
75
ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
76
tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
77
existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
78
semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
79
A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
80
elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
81
bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
82
A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
83
discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
84
pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
86
H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
87
O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
89
do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
90
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VICTOR HUGO FONSECA DA SILVA COELHO
A HERANCcedilA E O PARRICIacuteDIO
O ELEATISMO NO SOFISTA DE PLATAtildeO
Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Roberto Bolzani Filho
Satildeo Paulo
2019
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Autorizo a reproduccedilatildeo e divulgaccedilatildeo total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrocircnico para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte
Catalogaccedilatildeo na Publicaccedilatildeo Serviccedilo de Biblioteca e Documentaccedilatildeo
Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
C672h
Coelho Victor Hugo Fonseca da Silva Coelho A heranccedila e o parriciacutedio o eleatismo no Sofista de Platatildeo Victor Hugo Fonseca da Silva Coelho Coelho orientador Roberto Bolzani Filho Bolzani Filho - Satildeo Paulo 2019
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Dissertaccedilatildeo (Mestrado)- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Filosofia 1 Platatildeo 2 ontologia 3 eleatismo 4 dialeacutetica 5 discurso I Bolzani Filho Roberto Bolzani Filho orient II Tiacutetulo
4
A Lucia Maria da Fonseca
sempre presente em minha ausecircncia
5
ldquoQual seria o negoacutecio da filosofia Natildeo se trata necessariamente
de propagar uma visatildeo de mundo (seja ela historicista naturalista
socionaturalista ou espiritualista) demolindo a visatildeo adversa
caccedilando os erros categoriais que lhe satildeo subjacentes Haacute uma
hybris que se esconde sob a aparente modeacutestia da chamada
metafiacutesica descritiva a de poder como se nada fosse
circunscrever sem resto a natureza e o espiacuterito humanos na forma
de uma teoria positiva Pode ser que a tarefa da filosofia seja mais
modesta a de nos livrar de certas ilusotildees que natildeo deixam de nos
fascinar e de nos seduzir a principal ilusatildeo da filosofia seria a de
nos fornecer com uma teoria uma ancoragem no Ser uma
linguagem finalmente transparente esse instrumento que nos
garantiraacute para sempre contra o erro e tornaraacute possiacutevel a fundaccedilatildeo
de nossa forma de vida ignorando sua contingecircncia absolutardquo
(Bento Prado Jr Ipseitas pp 95-96 grifos do proacuteprio autor)
6
RESUMO
Visamos com esta dissertaccedilatildeo compreender os movimentos loacutegico-ontoloacutegicos operados
por Platatildeo no diaacutelogo Sofista O diaacutelogo nos parece de grande importacircncia na obra
platocircnica pois (i) eacute por meio da ontologia ali estabelecida que Platatildeo institui a forma
proposicional de um discurso que possa ser valorado tanto como verdadeiro quanto como
falso e (ii) a relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia parece estar indicada por certa mudanccedila na
Teoria das Formas que de algum modo forneceria ainda na obra platocircnica uma teoria
da boa imagem e da boa mimese Em primeiro lugar procuramos identificar a aporia
eleaacutetica apresentada no iniacutecio do texto aporia que nega a possibilidade de discursos falsos
e de discursos verdadeiros natildeo tautoloacutegicos Em segundo lugar buscamos compreender
o modo como Platatildeo parece contornar tal aporia por meio da formulaccedilatildeo de um tipo de
oposiccedilatildeo propriamente dialeacutetica a antiacutetese entre os gecircneros ou formas Podemos dizer
portanto que como condiccedilatildeo para a bipolaridade do discurso temos no caso platocircnico
a conjunccedilatildeo ou dissociaccedilatildeo entre as formas isto eacute a conjunccedilatildeo e dissociaccedilatildeo garantidas
por meio do esquema fornecido pelo ceacutelebre meacutetodo da divisatildeo (diairesis) Seraacute esta
operaccedilatildeo realizada pelo Estrangeiro de Eleia que permitiraacute ao final do diaacutelogo que os
diferentes elementos do enunciado sejam articulados sem que o emissor esteja
necessariamente enredado pela contradiccedilatildeo discursiva Assim acreditamos ser possiacutevel
nos aproximar do jogo de rupturas e continuidades que parece haver entre Platatildeo e a
filosofia do grande mestre de Eleia o platonismo pretende matar seu pai para que a
filosofia deste continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de
Parmecircnides faccedila com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e
da ilusatildeo
7
ABSTRACT
We aim with this master dissertation to understand the logic-ontological moves operated
by Plato in the Sophist dialogue This dialogue seems to us enormly important in the
platonic works because (i) its by virtue of the ontology there estabilished that Plato
found the propositional form of discourse that can be valuated as true such false and (ii)
the relation between logic and ontology seems be indicated by some change in the Theory
of Forms that in some manner could give us in platonic work a theory of good image
and good mimesis First of all we seek to indentify the eleatic aporia presented in the
beginning of the text aporia that deny the possibility of false discourses and of not
tautological truth discouses Secondly we seek to understand the way that Plato seems
outline this aporia by the formulation of a kind of oposition properly dialetical the
antithesis between the genres or forms We may say therefore that as condition to
bipolarity of discourse we have in the platonic case the conjunction or
dissociation among the forms ie the conjunction and dissociation guarantees by schema
provided by famous methode of division (diairesis) Will be this operation made
by Strange of Eleia that will allows in the end of dialogue that the diferents elements of
proposition be articulate without the issuer be necessarily involved by discoursive
contradiction Thus we consider it is possible to approach us to the play of disruptions
and permanences that seems to be between Plato and the philosophy of great master of
Eleia the platonism intent to kill his father so that his philosophy can proceed alive ie
to hinder that the sofistic implosion of parmenidean thesis makes the eleatism succumb
to the interests of masters of retoric and illusion
8
SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
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modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
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INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
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filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
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De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
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cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
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prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
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filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
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filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
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oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
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imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
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implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
32
questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
33
interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
34
[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
38
Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
39
o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
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a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
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T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
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Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
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doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
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(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
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T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
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Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
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ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
48
ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
49
o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
50
termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
51
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
52
ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
53
Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
54
(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
55
notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
56
do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
57
mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
58
discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
59
INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
60
237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
72
Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
74
ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
75
ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
76
tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
77
existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
78
semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
79
A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
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elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
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bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
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A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
83
discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
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pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
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H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
87
O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
89
do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
90
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Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo
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Dissertaccedilatildeo (Mestrado)- Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo Departamento de Filosofia Aacuterea de concentraccedilatildeo Filosofia 1 Platatildeo 2 ontologia 3 eleatismo 4 dialeacutetica 5 discurso I Bolzani Filho Roberto Bolzani Filho orient II Tiacutetulo
4
A Lucia Maria da Fonseca
sempre presente em minha ausecircncia
5
ldquoQual seria o negoacutecio da filosofia Natildeo se trata necessariamente
de propagar uma visatildeo de mundo (seja ela historicista naturalista
socionaturalista ou espiritualista) demolindo a visatildeo adversa
caccedilando os erros categoriais que lhe satildeo subjacentes Haacute uma
hybris que se esconde sob a aparente modeacutestia da chamada
metafiacutesica descritiva a de poder como se nada fosse
circunscrever sem resto a natureza e o espiacuterito humanos na forma
de uma teoria positiva Pode ser que a tarefa da filosofia seja mais
modesta a de nos livrar de certas ilusotildees que natildeo deixam de nos
fascinar e de nos seduzir a principal ilusatildeo da filosofia seria a de
nos fornecer com uma teoria uma ancoragem no Ser uma
linguagem finalmente transparente esse instrumento que nos
garantiraacute para sempre contra o erro e tornaraacute possiacutevel a fundaccedilatildeo
de nossa forma de vida ignorando sua contingecircncia absolutardquo
(Bento Prado Jr Ipseitas pp 95-96 grifos do proacuteprio autor)
6
RESUMO
Visamos com esta dissertaccedilatildeo compreender os movimentos loacutegico-ontoloacutegicos operados
por Platatildeo no diaacutelogo Sofista O diaacutelogo nos parece de grande importacircncia na obra
platocircnica pois (i) eacute por meio da ontologia ali estabelecida que Platatildeo institui a forma
proposicional de um discurso que possa ser valorado tanto como verdadeiro quanto como
falso e (ii) a relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia parece estar indicada por certa mudanccedila na
Teoria das Formas que de algum modo forneceria ainda na obra platocircnica uma teoria
da boa imagem e da boa mimese Em primeiro lugar procuramos identificar a aporia
eleaacutetica apresentada no iniacutecio do texto aporia que nega a possibilidade de discursos falsos
e de discursos verdadeiros natildeo tautoloacutegicos Em segundo lugar buscamos compreender
o modo como Platatildeo parece contornar tal aporia por meio da formulaccedilatildeo de um tipo de
oposiccedilatildeo propriamente dialeacutetica a antiacutetese entre os gecircneros ou formas Podemos dizer
portanto que como condiccedilatildeo para a bipolaridade do discurso temos no caso platocircnico
a conjunccedilatildeo ou dissociaccedilatildeo entre as formas isto eacute a conjunccedilatildeo e dissociaccedilatildeo garantidas
por meio do esquema fornecido pelo ceacutelebre meacutetodo da divisatildeo (diairesis) Seraacute esta
operaccedilatildeo realizada pelo Estrangeiro de Eleia que permitiraacute ao final do diaacutelogo que os
diferentes elementos do enunciado sejam articulados sem que o emissor esteja
necessariamente enredado pela contradiccedilatildeo discursiva Assim acreditamos ser possiacutevel
nos aproximar do jogo de rupturas e continuidades que parece haver entre Platatildeo e a
filosofia do grande mestre de Eleia o platonismo pretende matar seu pai para que a
filosofia deste continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de
Parmecircnides faccedila com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e
da ilusatildeo
7
ABSTRACT
We aim with this master dissertation to understand the logic-ontological moves operated
by Plato in the Sophist dialogue This dialogue seems to us enormly important in the
platonic works because (i) its by virtue of the ontology there estabilished that Plato
found the propositional form of discourse that can be valuated as true such false and (ii)
the relation between logic and ontology seems be indicated by some change in the Theory
of Forms that in some manner could give us in platonic work a theory of good image
and good mimesis First of all we seek to indentify the eleatic aporia presented in the
beginning of the text aporia that deny the possibility of false discourses and of not
tautological truth discouses Secondly we seek to understand the way that Plato seems
outline this aporia by the formulation of a kind of oposition properly dialetical the
antithesis between the genres or forms We may say therefore that as condition to
bipolarity of discourse we have in the platonic case the conjunction or
dissociation among the forms ie the conjunction and dissociation guarantees by schema
provided by famous methode of division (diairesis) Will be this operation made
by Strange of Eleia that will allows in the end of dialogue that the diferents elements of
proposition be articulate without the issuer be necessarily involved by discoursive
contradiction Thus we consider it is possible to approach us to the play of disruptions
and permanences that seems to be between Plato and the philosophy of great master of
Eleia the platonism intent to kill his father so that his philosophy can proceed alive ie
to hinder that the sofistic implosion of parmenidean thesis makes the eleatism succumb
to the interests of masters of retoric and illusion
8
SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
10
modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
11
INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
12
filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
13
De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
14
cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
15
prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
16
filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
17
filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
18
oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
19
imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
20
implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
32
questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
33
interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
34
[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
38
Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
39
o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
40
a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
41
T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
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Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
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doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
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(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
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T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
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Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
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ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
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ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
49
o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
50
termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
51
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
52
ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
53
Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
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(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
55
notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
56
do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
57
mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
58
discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
59
INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
60
237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
72
Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
74
ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
75
ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
76
tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
77
existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
78
semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
79
A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
80
elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
81
bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
82
A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
83
discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
84
pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
86
H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
87
O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
89
do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
90
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4
A Lucia Maria da Fonseca
sempre presente em minha ausecircncia
5
ldquoQual seria o negoacutecio da filosofia Natildeo se trata necessariamente
de propagar uma visatildeo de mundo (seja ela historicista naturalista
socionaturalista ou espiritualista) demolindo a visatildeo adversa
caccedilando os erros categoriais que lhe satildeo subjacentes Haacute uma
hybris que se esconde sob a aparente modeacutestia da chamada
metafiacutesica descritiva a de poder como se nada fosse
circunscrever sem resto a natureza e o espiacuterito humanos na forma
de uma teoria positiva Pode ser que a tarefa da filosofia seja mais
modesta a de nos livrar de certas ilusotildees que natildeo deixam de nos
fascinar e de nos seduzir a principal ilusatildeo da filosofia seria a de
nos fornecer com uma teoria uma ancoragem no Ser uma
linguagem finalmente transparente esse instrumento que nos
garantiraacute para sempre contra o erro e tornaraacute possiacutevel a fundaccedilatildeo
de nossa forma de vida ignorando sua contingecircncia absolutardquo
(Bento Prado Jr Ipseitas pp 95-96 grifos do proacuteprio autor)
6
RESUMO
Visamos com esta dissertaccedilatildeo compreender os movimentos loacutegico-ontoloacutegicos operados
por Platatildeo no diaacutelogo Sofista O diaacutelogo nos parece de grande importacircncia na obra
platocircnica pois (i) eacute por meio da ontologia ali estabelecida que Platatildeo institui a forma
proposicional de um discurso que possa ser valorado tanto como verdadeiro quanto como
falso e (ii) a relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia parece estar indicada por certa mudanccedila na
Teoria das Formas que de algum modo forneceria ainda na obra platocircnica uma teoria
da boa imagem e da boa mimese Em primeiro lugar procuramos identificar a aporia
eleaacutetica apresentada no iniacutecio do texto aporia que nega a possibilidade de discursos falsos
e de discursos verdadeiros natildeo tautoloacutegicos Em segundo lugar buscamos compreender
o modo como Platatildeo parece contornar tal aporia por meio da formulaccedilatildeo de um tipo de
oposiccedilatildeo propriamente dialeacutetica a antiacutetese entre os gecircneros ou formas Podemos dizer
portanto que como condiccedilatildeo para a bipolaridade do discurso temos no caso platocircnico
a conjunccedilatildeo ou dissociaccedilatildeo entre as formas isto eacute a conjunccedilatildeo e dissociaccedilatildeo garantidas
por meio do esquema fornecido pelo ceacutelebre meacutetodo da divisatildeo (diairesis) Seraacute esta
operaccedilatildeo realizada pelo Estrangeiro de Eleia que permitiraacute ao final do diaacutelogo que os
diferentes elementos do enunciado sejam articulados sem que o emissor esteja
necessariamente enredado pela contradiccedilatildeo discursiva Assim acreditamos ser possiacutevel
nos aproximar do jogo de rupturas e continuidades que parece haver entre Platatildeo e a
filosofia do grande mestre de Eleia o platonismo pretende matar seu pai para que a
filosofia deste continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de
Parmecircnides faccedila com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e
da ilusatildeo
7
ABSTRACT
We aim with this master dissertation to understand the logic-ontological moves operated
by Plato in the Sophist dialogue This dialogue seems to us enormly important in the
platonic works because (i) its by virtue of the ontology there estabilished that Plato
found the propositional form of discourse that can be valuated as true such false and (ii)
the relation between logic and ontology seems be indicated by some change in the Theory
of Forms that in some manner could give us in platonic work a theory of good image
and good mimesis First of all we seek to indentify the eleatic aporia presented in the
beginning of the text aporia that deny the possibility of false discourses and of not
tautological truth discouses Secondly we seek to understand the way that Plato seems
outline this aporia by the formulation of a kind of oposition properly dialetical the
antithesis between the genres or forms We may say therefore that as condition to
bipolarity of discourse we have in the platonic case the conjunction or
dissociation among the forms ie the conjunction and dissociation guarantees by schema
provided by famous methode of division (diairesis) Will be this operation made
by Strange of Eleia that will allows in the end of dialogue that the diferents elements of
proposition be articulate without the issuer be necessarily involved by discoursive
contradiction Thus we consider it is possible to approach us to the play of disruptions
and permanences that seems to be between Plato and the philosophy of great master of
Eleia the platonism intent to kill his father so that his philosophy can proceed alive ie
to hinder that the sofistic implosion of parmenidean thesis makes the eleatism succumb
to the interests of masters of retoric and illusion
8
SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
10
modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
11
INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
12
filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
13
De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
14
cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
15
prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
16
filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
17
filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
18
oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
19
imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
20
implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
32
questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
33
interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
34
[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
38
Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
39
o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
40
a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
41
T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
42
Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
43
doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
44
(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
45
T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
46
Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
47
ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
48
ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
49
o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
50
termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
51
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
52
ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
53
Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
54
(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
55
notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
56
do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
57
mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
58
discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
59
INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
60
237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
72
Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
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ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
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ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
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tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
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existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
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semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
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A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
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elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
81
bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
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A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
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discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
84
pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
86
H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
87
O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
89
do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
90
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ldquoQual seria o negoacutecio da filosofia Natildeo se trata necessariamente
de propagar uma visatildeo de mundo (seja ela historicista naturalista
socionaturalista ou espiritualista) demolindo a visatildeo adversa
caccedilando os erros categoriais que lhe satildeo subjacentes Haacute uma
hybris que se esconde sob a aparente modeacutestia da chamada
metafiacutesica descritiva a de poder como se nada fosse
circunscrever sem resto a natureza e o espiacuterito humanos na forma
de uma teoria positiva Pode ser que a tarefa da filosofia seja mais
modesta a de nos livrar de certas ilusotildees que natildeo deixam de nos
fascinar e de nos seduzir a principal ilusatildeo da filosofia seria a de
nos fornecer com uma teoria uma ancoragem no Ser uma
linguagem finalmente transparente esse instrumento que nos
garantiraacute para sempre contra o erro e tornaraacute possiacutevel a fundaccedilatildeo
de nossa forma de vida ignorando sua contingecircncia absolutardquo
(Bento Prado Jr Ipseitas pp 95-96 grifos do proacuteprio autor)
6
RESUMO
Visamos com esta dissertaccedilatildeo compreender os movimentos loacutegico-ontoloacutegicos operados
por Platatildeo no diaacutelogo Sofista O diaacutelogo nos parece de grande importacircncia na obra
platocircnica pois (i) eacute por meio da ontologia ali estabelecida que Platatildeo institui a forma
proposicional de um discurso que possa ser valorado tanto como verdadeiro quanto como
falso e (ii) a relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia parece estar indicada por certa mudanccedila na
Teoria das Formas que de algum modo forneceria ainda na obra platocircnica uma teoria
da boa imagem e da boa mimese Em primeiro lugar procuramos identificar a aporia
eleaacutetica apresentada no iniacutecio do texto aporia que nega a possibilidade de discursos falsos
e de discursos verdadeiros natildeo tautoloacutegicos Em segundo lugar buscamos compreender
o modo como Platatildeo parece contornar tal aporia por meio da formulaccedilatildeo de um tipo de
oposiccedilatildeo propriamente dialeacutetica a antiacutetese entre os gecircneros ou formas Podemos dizer
portanto que como condiccedilatildeo para a bipolaridade do discurso temos no caso platocircnico
a conjunccedilatildeo ou dissociaccedilatildeo entre as formas isto eacute a conjunccedilatildeo e dissociaccedilatildeo garantidas
por meio do esquema fornecido pelo ceacutelebre meacutetodo da divisatildeo (diairesis) Seraacute esta
operaccedilatildeo realizada pelo Estrangeiro de Eleia que permitiraacute ao final do diaacutelogo que os
diferentes elementos do enunciado sejam articulados sem que o emissor esteja
necessariamente enredado pela contradiccedilatildeo discursiva Assim acreditamos ser possiacutevel
nos aproximar do jogo de rupturas e continuidades que parece haver entre Platatildeo e a
filosofia do grande mestre de Eleia o platonismo pretende matar seu pai para que a
filosofia deste continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de
Parmecircnides faccedila com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e
da ilusatildeo
7
ABSTRACT
We aim with this master dissertation to understand the logic-ontological moves operated
by Plato in the Sophist dialogue This dialogue seems to us enormly important in the
platonic works because (i) its by virtue of the ontology there estabilished that Plato
found the propositional form of discourse that can be valuated as true such false and (ii)
the relation between logic and ontology seems be indicated by some change in the Theory
of Forms that in some manner could give us in platonic work a theory of good image
and good mimesis First of all we seek to indentify the eleatic aporia presented in the
beginning of the text aporia that deny the possibility of false discourses and of not
tautological truth discouses Secondly we seek to understand the way that Plato seems
outline this aporia by the formulation of a kind of oposition properly dialetical the
antithesis between the genres or forms We may say therefore that as condition to
bipolarity of discourse we have in the platonic case the conjunction or
dissociation among the forms ie the conjunction and dissociation guarantees by schema
provided by famous methode of division (diairesis) Will be this operation made
by Strange of Eleia that will allows in the end of dialogue that the diferents elements of
proposition be articulate without the issuer be necessarily involved by discoursive
contradiction Thus we consider it is possible to approach us to the play of disruptions
and permanences that seems to be between Plato and the philosophy of great master of
Eleia the platonism intent to kill his father so that his philosophy can proceed alive ie
to hinder that the sofistic implosion of parmenidean thesis makes the eleatism succumb
to the interests of masters of retoric and illusion
8
SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
10
modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
11
INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
12
filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
13
De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
14
cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
15
prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
16
filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
17
filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
18
oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
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imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
20
implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
32
questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
33
interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
34
[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
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Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
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o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
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a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
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T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
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Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
43
doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
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(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
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T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
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Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
47
ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
48
ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
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o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
50
termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
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ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
52
ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
53
Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
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(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
55
notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
56
do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
57
mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
58
discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
59
INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
60
237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
72
Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
74
ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
75
ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
76
tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
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existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
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semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
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A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
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elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
81
bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
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A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
83
discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
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pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
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H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
87
O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
89
do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
90
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6
RESUMO
Visamos com esta dissertaccedilatildeo compreender os movimentos loacutegico-ontoloacutegicos operados
por Platatildeo no diaacutelogo Sofista O diaacutelogo nos parece de grande importacircncia na obra
platocircnica pois (i) eacute por meio da ontologia ali estabelecida que Platatildeo institui a forma
proposicional de um discurso que possa ser valorado tanto como verdadeiro quanto como
falso e (ii) a relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia parece estar indicada por certa mudanccedila na
Teoria das Formas que de algum modo forneceria ainda na obra platocircnica uma teoria
da boa imagem e da boa mimese Em primeiro lugar procuramos identificar a aporia
eleaacutetica apresentada no iniacutecio do texto aporia que nega a possibilidade de discursos falsos
e de discursos verdadeiros natildeo tautoloacutegicos Em segundo lugar buscamos compreender
o modo como Platatildeo parece contornar tal aporia por meio da formulaccedilatildeo de um tipo de
oposiccedilatildeo propriamente dialeacutetica a antiacutetese entre os gecircneros ou formas Podemos dizer
portanto que como condiccedilatildeo para a bipolaridade do discurso temos no caso platocircnico
a conjunccedilatildeo ou dissociaccedilatildeo entre as formas isto eacute a conjunccedilatildeo e dissociaccedilatildeo garantidas
por meio do esquema fornecido pelo ceacutelebre meacutetodo da divisatildeo (diairesis) Seraacute esta
operaccedilatildeo realizada pelo Estrangeiro de Eleia que permitiraacute ao final do diaacutelogo que os
diferentes elementos do enunciado sejam articulados sem que o emissor esteja
necessariamente enredado pela contradiccedilatildeo discursiva Assim acreditamos ser possiacutevel
nos aproximar do jogo de rupturas e continuidades que parece haver entre Platatildeo e a
filosofia do grande mestre de Eleia o platonismo pretende matar seu pai para que a
filosofia deste continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de
Parmecircnides faccedila com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e
da ilusatildeo
7
ABSTRACT
We aim with this master dissertation to understand the logic-ontological moves operated
by Plato in the Sophist dialogue This dialogue seems to us enormly important in the
platonic works because (i) its by virtue of the ontology there estabilished that Plato
found the propositional form of discourse that can be valuated as true such false and (ii)
the relation between logic and ontology seems be indicated by some change in the Theory
of Forms that in some manner could give us in platonic work a theory of good image
and good mimesis First of all we seek to indentify the eleatic aporia presented in the
beginning of the text aporia that deny the possibility of false discourses and of not
tautological truth discouses Secondly we seek to understand the way that Plato seems
outline this aporia by the formulation of a kind of oposition properly dialetical the
antithesis between the genres or forms We may say therefore that as condition to
bipolarity of discourse we have in the platonic case the conjunction or
dissociation among the forms ie the conjunction and dissociation guarantees by schema
provided by famous methode of division (diairesis) Will be this operation made
by Strange of Eleia that will allows in the end of dialogue that the diferents elements of
proposition be articulate without the issuer be necessarily involved by discoursive
contradiction Thus we consider it is possible to approach us to the play of disruptions
and permanences that seems to be between Plato and the philosophy of great master of
Eleia the platonism intent to kill his father so that his philosophy can proceed alive ie
to hinder that the sofistic implosion of parmenidean thesis makes the eleatism succumb
to the interests of masters of retoric and illusion
8
SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
10
modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
11
INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
12
filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
13
De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
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cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
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prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
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filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
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filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
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oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
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imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
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implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
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questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
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interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
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[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
38
Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
39
o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
40
a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
41
T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
42
Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
43
doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
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(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
45
T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
46
Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
47
ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
48
ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
49
o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
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termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
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ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
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ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
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Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
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(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
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notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
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do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
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mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
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discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
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INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
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237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
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Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
74
ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
75
ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
76
tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
77
existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
78
semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
79
A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
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elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
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bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
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A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
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discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
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pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
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H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
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O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
89
do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
90
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7
ABSTRACT
We aim with this master dissertation to understand the logic-ontological moves operated
by Plato in the Sophist dialogue This dialogue seems to us enormly important in the
platonic works because (i) its by virtue of the ontology there estabilished that Plato
found the propositional form of discourse that can be valuated as true such false and (ii)
the relation between logic and ontology seems be indicated by some change in the Theory
of Forms that in some manner could give us in platonic work a theory of good image
and good mimesis First of all we seek to indentify the eleatic aporia presented in the
beginning of the text aporia that deny the possibility of false discourses and of not
tautological truth discouses Secondly we seek to understand the way that Plato seems
outline this aporia by the formulation of a kind of oposition properly dialetical the
antithesis between the genres or forms We may say therefore that as condition to
bipolarity of discourse we have in the platonic case the conjunction or
dissociation among the forms ie the conjunction and dissociation guarantees by schema
provided by famous methode of division (diairesis) Will be this operation made
by Strange of Eleia that will allows in the end of dialogue that the diferents elements of
proposition be articulate without the issuer be necessarily involved by discoursive
contradiction Thus we consider it is possible to approach us to the play of disruptions
and permanences that seems to be between Plato and the philosophy of great master of
Eleia the platonism intent to kill his father so that his philosophy can proceed alive ie
to hinder that the sofistic implosion of parmenidean thesis makes the eleatism succumb
to the interests of masters of retoric and illusion
8
SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
10
modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
11
INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
12
filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
13
De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
14
cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
15
prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
16
filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
17
filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
18
oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
19
imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
20
implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
32
questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
33
interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
34
[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
38
Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
39
o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
40
a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
41
T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
42
Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
43
doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
44
(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
45
T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
46
Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
47
ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
48
ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
49
o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
50
termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
51
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
52
ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
53
Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
54
(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
55
notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
56
do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
57
mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
58
discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
59
INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
60
237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
72
Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
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ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
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ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
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tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
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existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
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semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
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A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
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elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
81
bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
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A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
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discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
84
pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
86
H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
87
O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
89
do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
90
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SUMAacuteRIO
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS9
INTRODUCcedilAtildeO11
A APORIA DE ELEIA25
INTERMEZZO DIALEacuteTICO59
A TESSITURA DO SER82
BIBLIOGRAFIA90
9
NOTA SOBRE AS EDICcedilOtildeES UTILIZADAS
Utilizamos em associaccedilatildeo duas ediccedilotildees do texto grego do Sofista a de D B
Robinson (OCT) publicada pela Oxford University Press e a de A Diegraves publicada pela
Editora Les Belles Lettres Por vezes consultamos tambeacutem a ediccedilatildeo de J Burnet (coleccedilatildeo
antiga da OCT) Se a ediccedilatildeo de Robinson teve mais acesso agrave colaccedilatildeo direta dos
manuscritos de um papiro publicado em meados do seacuteculo XX e de ediccedilotildees as mais
variadas do texto por outro lado a ediccedilatildeo de Diegraves confere maior importacircncia aos
testemunhos indiretos (sobretudo Estobeu e Simpliacutecio) fato facilmente identificaacutevel no
aparato criacutetico exposto ao longo da ediccedilatildeo da Belles Lettres Auguste Diegraves considera
vaacutelido utilizar o manuscrito Y (Vindobonensis 21 provavelmente da mesma famiacutelia que
o manuscrito T ndash chamada por Robinson de Famiacutelia II) devido justamente agrave proximidade
deste manuscrito com a tradiccedilatildeo indireta antiga D B Robinson por sua vez seguindo
Apelt e Burnet recusa a utilizaccedilatildeo de Y provavelmente pela sua grande quantidade de
erros Ademais Robinson inova ao acrescentar D (Venetus gr 185) da mesma famiacutelia
de B (manuscrito base) entre os manuscritos consultados para o estabelecimento de sua
ediccedilatildeo Ao utilizar as duas ediccedilotildees em conjunto esperamos tomar uma postura comedida
frente agraves diferenccedilas editoriais destes dois grandes estudiosos do texto platocircnico
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria as citaccedilotildees em portuguecircs foram feitas a partir da
traduccedilatildeo de Henrique Murachco Juvino Maia Jr e Joseacute Trindade Santos publicada pela
editora portuguesa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian e como reza a convenccedilatildeo sempre
com referecircncia agrave paginaccedilatildeo da ediccedilatildeo de Henricus Stephanus Quanto nos referimos em
nossas citaccedilotildees agraves linhas do texto platocircnico sempre tomamos como referecircncia as ediccedilotildees
mais recentes da Oxford Classical Texts (OCT) Consultamos tambeacutem a traduccedilatildeo e as
notas feitas por Neacutestor-Luis Cordero para a ediccedilatildeo da GF-Flammarion e a traduccedilatildeo de
Diegraves na jaacute citada ediccedilatildeo da Belles Lettres
Para o Poema de Parmecircnides o texto grego utilizado foi aquele estabelecido em
Deux chemins de Parmenide de Neacutestor-Luis Cordero em comparaccedilatildeo com aquele
instaurado em Die Fragmente der Vorsokratiker por Hermann Diels e Walther Kranz
Salvo indicaccedilatildeo contraacuteria utilizamos a traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza (publicada
pela coleccedilatildeo ldquoOs Pensadoresrdquo da Abril) Informaremos sempre que realizarmos alguma
10
modificaccedilatildeo na traduccedilatildeo do Prof Cavalcante de Souza Utilizamos para as citaccedilotildees dos
versos do Poema a numeraccedilatildeo proposta por Diels-Kranz aos fragmentos de Parmecircnides
Para Antiacutestenes nos utilizamos do livro de Susan Prince Antisthenes of Athens
texts translations and commentary publicado em 2015 Buscamos sempre informar natildeo
soacute a numeraccedilatildeo de Prince aos fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes mas tambeacutem
aquela mais antiga de Decleva Caizzi As traduccedilotildees utilizadas variam conforme a obra
que conteacutem os testemunhos de Antiacutestenes as fontes foram citadas ao longo do texto
Quando natildeo houve traduccedilatildeo para o portuguecircs fizemos a traduccedilatildeo diretamente do grego
Para Goacutergias utilizamos o texto de I Sofisti de Mario Untersteiner e Si
Parmenide de Barbara Cassin A numeraccedilatildeo foi baseada na ediccedilatildeo jaacute citada de Diels-
Kranz
Para as demais obras as ediccedilotildees e traduccedilotildees seratildeo sempre citadas ao longo do
trabalho
Todas as ediccedilotildees utilizadas encontram-se referenciadas na bibliografia
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INTRODUCcedilAtildeO
Uma pesquisa que trate da Antiguidade sempre exige de partida uma posiccedilatildeo do
pesquisador em relaccedilatildeo a um problema fundamental devido aos milecircnios de tradiccedilatildeo
criacutetica escrita eacute natural que ao seu objeto de estudo se somem uma biblioteca de
comentaacuterios das mais variadas eacutepocas e gostos Este fato num primeiro momento nos
leva inevitavelmente agrave sensaccedilatildeo de nossa falta de originalidade no que diz respeito agraves
anaacutelises dos documentos histoacutericos tratados Podemos dizer ainda que em relaccedilatildeo a tais
textos que foram trabalhados por exegetas certamente muito mais cuidadosos que noacutes
sempre parecemos estar em uma impagaacutevel e adiada diacutevida Mas afinal por que apoacutes
mais de dois mil anos de belos comentaacuterios deveriacuteamos em pleno seacuteculo XXI
renitentemente fazer mais uma leitura de um texto antigo leitura que no melhor dos
casos se mostraria pouco original De fato originalidade eacute algo que natildeo podemos
pretender
Por outro lado podemos dizer que a leitura de tais textos traz uma oacutetima
particularidade devido ao seu caraacuteter claacutessico e permanente temos com o estudo desses
documentos uma oportunidade iacutempar para observar as variaccedilotildees e mudanccedilas nas posturas
interpretativas que a histoacuteria dos comentaacuterios nos proporcionou investigaccedilatildeo que natildeo
raro denuncia as preocupaccedilotildees estritamente filosoacuteficas por detraacutes daquela exegese
aparentemente isenta de algueacutem que se apresenta como um mero explicador de texto Esta
indistinccedilatildeo por vezes notada entre a explicaccedilatildeo do texto e as posiccedilotildees filosoacuteficas
tomadas pelo seu interprete possibilitou inclusive que uma vez um eminente filoacutesofo
dissesse que a proacutepria histoacuteria da filosofia eacute a histoacuteria das notas de rodapeacute a certo autor
antigo ou seja a filosofia consistiria num retorno incessante e quase miacutetico a um mesmo
repositoacuterio textual determinado que lhe serviria de origem1 De qualquer modo certo eacute
que haacute tempos colocamos e recolocamos a questatildeo que diz respeito agrave relaccedilatildeo entre a
1 ldquoThe safest general characterization of the European philosophical tradition is that it consists of a series of footnotes to Plato I do not mean the systematic scheme of thought which scholars have doubtfully extracted from his writings I alude to the wealth of general ideas scattered through them His personal endowments his wide opportunities for experience at a great period of civilization his inheritance of an intelectual tradition not yet stiffened by excessive systematization have made his writings an inexhaustive mine of suggestion Thus in one sense by stating my belief that the train of thought is Platonic I am doing no more than expressing the hope that it falls within the European traditionrdquo (WHITEHEAD 1978 p 39)
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filosofia e sua histoacuteria com pouca originalidade mais uma vez natildeo poderemos deixar de
colocaacute-la
Comecemos fazendo uma distinccedilatildeo interessada e didaacutetica no que diz respeito agrave
abordagem que podemos fazer da histoacuteria da filosofia pelo menos duas diferentes
posiccedilotildees podem ser assumidas (mesmo que como veremos adiante no limite elas natildeo
sejam tatildeo distantes assim uma da outra)2 Na primeira delas podemos dizer que as
diferentes anaacutelises de alguns textos claacutessicos incluindo aiacute tambeacutem casos que poderiam
ser classificados como ldquoerros de interpretaccedilatildeordquo abrem caminho para diferentes posturas
filosoacuteficas Podemos ver no caso relatado por Pierre Hadot acerca de uma leitura
possivelmente porfiriana do Parmecircnides de Platatildeo um caso paradigmaacutetico deste
procedimento que parece ter projetado por boa parte da histoacuteria da filosofia uma suposta
distinccedilatildeo entre o ser (infinitivo) e o ente (particiacutepio) distinccedilatildeo esta a qual podemos
registrar a data e hora de nascimento (HADOT 1968 Tomo I p 129-132 HADOT
1973 HADOT 2010 [1968] p 9) Seria da tentativa de soluccedilatildeo dos contrassensos ou
disparates presentes numa doutrina escrita que apareceriam os novos conceitos e as
distinccedilotildees filosoacuteficas que atenuariam tais problemaacuteticas textuais3 Deste ponto de vista
natildeo estariacuteamos procurando a verdade uacuteltima impliacutecita na sistematicidade garantida pela
autoridade daquele texto isto eacute natildeo precisariacuteamos realizar a tarefa hercuacutelea de identificar
a estrutura do texto antigo com nossas pretensotildees modernas de razatildeo sistemaacutetica
Diferentemente seria preciso passar em revista a histoacuteria dos comentadores de um
determinado texto para identificar o nascimento das novas questotildees que tal exegese
ensejou ou seja as torccedilotildees conceituais que a todo tempo permitem a apariccedilatildeo de
problemaacuteticas filosoacuteficas inesperadas e ateacute entatildeo inexistentes A histoacuteria da filosofia
seria portanto uma incansaacutevel busca de atenuaccedilatildeo de incoerecircncias textuais especiacuteficas
mas que partiriam sempre do texto com uma pretensatildeo de estabelecer uma soluccedilatildeo que
tenha coerecircncia loacutegico-sistemaacutetica para cada doutrina em questatildeo Digamos que essa
abordagem privilegiaria a historicidade e particularidade do texto
2 Eacute claro que diversas outras posturas legiacutetimas e interessantes tambeacutem podem ser assumidas Nossa escolha pelo tratamento dessas abordagens quanto agrave histoacuteria da filosofia natildeo eacute desinteressada mas pretende nos direcionar sem rodeios para uma certa discussatildeo em torno de nosso tema bem como de encaminhar para nossas proacuteprias posiccedilotildees 3 ldquoMais il doit constater un fait ce sont les contrasens et les incompreacutehensions qui tregraves solvente ont provoqueacute une eacutevolution importante dans lrsquohistoire de la philosophie et qui notamment ont fait apparaicirctre des notions nouvellesrdquo (HADOT 2010 [1968] p 9)
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De maneira semelhante mas inversa pois partiria da teoria filosoacutefica em direccedilatildeo
agrave anaacutelise do material particular eacute possiacutevel por outro lado que tomemos uma outra
postura aquela de projetar nossas proacuteprias posiccedilotildees filosoacuteficas ou ao menos aquelas
hegemocircnicas de nosso meio ou eacutepoca sobre a nossa anaacutelise das obras canocircnicas Desta
maneira reconheceriacuteamos sempre as mesmas ldquoquestotildees essenciais da filosofiardquo por detraacutes
das diversas roupagens proporcionadas por cada eacutepoca ou filoacutesofo Em casos mais
extremos alguns partidaacuterios deste ponto de vista num rompante de dissociaccedilatildeo entre a
filosofia e sua histoacuteria podem mesmo chegar a considerar a histoacuteria da filosofia
irrelevante para o exerciacutecio propriamente filosoacutefico Digamos que isso pode acontecer
porque essa abordagem privilegiaria a sistematicidade da razatildeo universal (e natildeo a razatildeo
interna de cada doutrina) em detrimento da histoacuteria documental Logo podemos dizer
que nos casos mais moderados para os partidaacuterios desta posiccedilatildeo os problemas
filosoacuteficos encontrados nos textos antigos podem ser entendidos como prefiguraccedilatildeo
daqueles paradoxos enfrentados pela nossa razatildeo em desenvolvimento4
O mais interessante seria notar que talvez a partir da junccedilatildeo destas duas
abordagens pudeacutessemos passar a identificar a existecircncia de diversas linhagens filosoacuteficas
ou conceituais ou seja ao mesmo tempo que num processo de traduccedilatildeo aproximamos
aquele texto antigo dos nossos termos por outro lado devemos respeitar as
particularidades do texto que nem sempre se apresentam a noacutes de uma maneira evidente
Assim poderiacuteamos talvez tomar consciecircncia de que cada sistema filosoacutefico conteacutem em
si uma interpretaccedilatildeo de diversos sistemas filosoacuteficos anteriores que lhe satildeo por sua vez
partes constituintes Isto eacute tais interpretaccedilotildees e comentaacuterios aos textos satildeo mesmo
constituintes de qualquer pretensatildeo de sistematicidade filosoacutefica
Evidentemente essas disputas propriamente filosoacuteficas inseridas na interpretaccedilatildeo
de textos natildeo devem abrir matildeo do auxiacutelio dos rigorosos instrumentos teacutecnicos disponiacuteveis
(quanto a isso parece que de fato a tendecircncia eacute justamente a oposta as anaacutelises estatildeo
4 Talvez uma boa descriccedilatildeo desta posiccedilatildeo possa ser vista no comentaacuterio de Jonathan Barnes agrave recepccedilatildeo dos textos aristoteacutelicos em Oxford ldquoSans deacutedaigner la philologie lanalyse ne sengage avec elle que dans la mesure ougrave elle peut contribuer agrave la compreacutehension philosophique et on se sert de la logique formelle et des autres outils de la philosophie moderne plutocirct que de la critique textuelle En effet lorientation est toujours philosophique on neacutetudie Aristote on ne sadresse agrave ses arguments et agrave ses constatations que pour en recueillir des aperccedilus philosophiques lire Aristote cest philosopher avec lui et tout en le lisant on essaie encourageacute par cet Hercule philosophique de poursuivre ses propres travaux intellectuels La tacircche cest lanalyse deacutetailleacutee du texte la meacutethode revient agrave une approche rigoureuse mecircme peacutedante et moderne mecircme anachronique le but cest leacuteclaircissement philosophiquerdquo (BARNES 1977 205-6)
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cada vez mais distantes de serem tecnicamente moderadas) Isto eacute nos melhores casos
para que sejam justificadas tais disputas hermenecircuticas sempre se mostram diretamente
ancoradas na materialidade documental da letra escrita - ainda mais que isso o arsenal
teacutecnico seraacute mesmo utilizado para desatar os noacutes conceituais nos quais estatildeo contidos
uma seacuterie de particularidades histoacutericas que por vezes nos satildeo de difiacutecil compreensatildeo E
vale notar que muitas vezes nossas dificuldades de compreensatildeo do texto natildeo denunciam
necessariamente uma falta de sistematicidade de sua parte mas sim evidenciam o quatildeo
distante dele jaacute estamos
Eacute com os olhos nesta questatildeo que pretendemos restringir o escopo deste trabalho
sobre Platatildeo voltando os olhos para certa discussatildeo do seacuteculo XX que diz respeito agrave
relaccedilatildeo entre discurso e realidade ou o que daacute no mesmo entre loacutegica e ontologia Com
tal intuito escolhemos prioritariamente estabelecer neste trabalho um diaacutelogo com certa
leitura dos textos platocircnicos centralizada nos magistrais comentaacuterios de Gilbert Ryle De
fato Ryle atuou como um importante motor para o estudo do platonismo em Oxford
Deste modo priorizando tal discussatildeo levaremos em conta tambeacutem outros trabalhos
associados agrave sua leitura ou no mesmo campo de interesse loacutegico e ontoloacutegico Obviamente
natildeo trataremos as anaacutelises de Ryle em sua plenitude natildeo a comentaremos linha a linha
nem as citaremos incessantemente em nosso texto muito menos comentaremos a parte
estritamente filosoacutefica de seus escritos Nos limitaremos a tomaacute-las como referecircncia para
discussatildeo da obra platocircnica valorizando o que diz respeito agraves consideraccedilotildees que
importam a uma certa leitura do diaacutelogo Sofista que ganhou forccedila no seacuteculo passado e
ainda parece colher seus frutos no presente
Eacute importante notar que em artigo que escreve na ocasiatildeo da morte de seu
supervisor de tese G E L Owen faz questatildeo de enfatizar a revoluccedilatildeo que em 1939 o
texto de Gilbert Ryle intitulado Platorsquos Parmenides iniciou no acircmbito da interpretaccedilatildeo
dos diaacutelogos tardios de Platatildeo (OWEN 1976-77 p 266) O texto de Ryle com certeza
cumpre uma funccedilatildeo seminal e abre caminho para boa parte dos estudos mais consistentes
e interessantes do seacuteculo XX natildeo somente no que diz respeito ao diaacutelogo Parmecircnides
mas especialmente para as pesquisas relacionadas aos diaacutelogos Teeteto e Sofista
No entanto a feacutertil interpretaccedilatildeo de Ryle natildeo pode ser lida apenas como fruto de
uma exegese desinteressada do texto platocircnico Platorsquos Parmenides segue o projeto de
um texto publicado por ele mesmo alguns meses antes Categories (1938) A investigaccedilatildeo
dos tipos categoriais do texto de 1938 leva Ryle a encontrar no Parmecircnides de Platatildeo a
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prefiguraccedilatildeo do chamado paradoxo de Russell e de sua consequente soluccedilatildeo que ficou
conhecida como teoria dos tipos ambas expressas no livro escrito a quatro matildeos por
Bertrand Russell e Alfred North Whitehead Principia Mathematica (1910)
Ao ldquoparadoxo de Russellrdquo era comparado o ldquoargumento do terceiro homemrdquo5
(Parmecircnides 132a1-b2) para em seguida oferecer como resposta uma ldquoteoria dos tiposrdquo
identificada a partir de uma leitura categorial dos gecircneros supremos6 do Sofista (RYLE
2009 [1939] p 19 22 33-34 37 RYLE 2009 [1960] p 70-71) Essa leitura de Ryle
para a qual uma teoria categorial seria a resposta a uma problemaacutetica ligada agrave teoria
platocircnica das formas corroboraria a interpretaccedilatildeo bastante difundida de que Russell e o
Tractatus de Wittgenstein aristotelizaram a teoria platonizante de Frege De fato natildeo
podemos negar que Ryle bem notou que havia uma importante analogia entre estes dois
argumentos (o antigo e o moderno) e suas respectivas soluccedilotildees Certo eacute tambeacutem que ali
no Sofista aparecia pela primeira vez algo muito parecido com o que seria posteriormente
chamado por Russell e Wittgenstein de ldquoforma loacutegicardquo Em suma para Ryle os textos
tardios de Platatildeo se direcionavam imediatamente ao Tractatus Logico-Philosophicus de
Wittgenstein (1921)
Eacute claro que fazendo uso dessas comparaccedilotildees Ryle natildeo pretendia insinuar
qualquer ldquofalta de originalidaderdquo por parte de Russell Whitehead e Wittgenstein mas
sim incluir aquela recente linha de pesquisa realizada na Gratilde-Bretanha como parte
constituinte de um importante ramo da cultura ocidental que teria se iniciado no
pensamento filosoacutefico da Atenas claacutessica No entanto muito aleacutem disso o trabalho de
Ryle propotildee certa passagem entre a atividade filosoacutefica ela mesma e a histoacuteria da
filosofia7 Tal posiccedilatildeo permitiu que muitos trabalhos especiacuteficos sobre histoacuteria da
5 No ldquoargumento do terceiro homemrdquo temos se tomarmos que para um ldquoFrdquo temos sempre uma ldquoF-daderdquo somos obrigados a assumir que haveraacute sempre e indefinidamente uma ldquoF-dade-daderdquo composta de ldquoFrdquo adicionado agrave ldquoF-daderdquo impossibilitando que cheguemos assim a uma forma ou ideia determinada e estaacutevel Jaacute no chamado ldquoparadoxo de Russellrdquo encontramos que ldquoa existecircncia de um conjunto C que contenha todos os conjuntos que natildeo tem a si mesmo como elementos implica necessariamente uma contradiccedilatildeordquo Vale notar que o ldquoparadoxo de Russellrdquo foi encontrado por Russell na teoria que estava sendo construiacuteda por Frege esta permitia a existecircncia de um tal conjunto C 6 Os cinco gecircneros supremos satildeo o ser (τὸ ὂν) o mesmo (ταὐτόν) o outro (θάτερον) o movimento (κίνησις) e o repouso (στάσις) expostos no Sofista (254d e ss) 7 ldquoWittgenstein himself not only properly distinguished philosophical from exegetic problems but also less properly gave the impressions first that he himself was proud not to have studied other philosophers which he had done though not much and second that he thought that people who did study them were academic and therefore unauthentic philosophers which was often but not always true This contempt for thoughts other than Wittgensteins seemed to me pedagogically
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filosofia antiga do periacuteodo posterior ao trabalho de Ryle natildeo soacute tivessem importante
relevacircncia para o debate propriamente filosoacutefico em curso como tambeacutem fossem guiados
diretamente por ele
Entretanto por detraacutes de tal ponto de vista ryleano eacute possiacutevel notar que estaacute
embutida certa compreensatildeo da histoacuteria da filosofia (ou mesmo uma teoria da histoacuteria)
que identifica sempre a reposiccedilatildeo sucessiva dos mesmos problemas filosoacuteficos ao longo
do tempo histoacuterico problemas estes que todavia retornariam sempre sob novas
roupagens Ou seja poderiacuteamos dizer que esta posiccedilatildeo de Ryle estaria identificada com
uma certa concepccedilatildeo proacutepria de philosophia perennis Por outro lado ao mesmo tempo
podemos ver algo como uma constante evoluccedilatildeo teacutecnica das ferramentas que dispomos
para compreender tais problemas filosoacuteficos tornando assim esses problemas cada vez
mais compreensiacuteveis e claros para uma possiacutevel soluccedilatildeo ou uma simples dissoluccedilatildeo
desses paradoxos que chegaram ateacute noacutes Em outras palavras talvez seja possiacutevel dizer
que por meio do uso do aparato teacutecnico loacutegico-linguiacutestico ocorreria um preenchimento
histoacuterico daquelas questotildees filosoacuteficas que jaacute haviam sido prefiguradas historicamente
nos textos antigos Deste ponto de vista a questatildeo melhor compreendida pela evoluccedilatildeo
teacutecnica voltaria para a anaacutelise do texto antigo fornecendo-lhe a mais correta chave de
leitura para sua interpretaccedilatildeo filosoacutefica8
Para sermos justos vale notar que Ryle assume uma posiccedilatildeo intermediaacuteria que
pretende fugir da dicotomia entre a contingecircncia histoacuterica e a necessidade sistemaacutetica
disastrous for the students and unhealthy for Wittgenstein himself It made me resolve not indeed to be a philosophical polyglot but to avoid being amonoglot and most of all to avoid being one monoglots echo even though he was a genius and a friend This resolve was all the easier to keep because for local curricular reasons I and my colleagues had as students had to study and had now as teachers to teach in considerable detail some of the thoughts of inter alios Plato Aristotle Descartes Hume and Kant Some of these thoughts were potent enough to make comparison of their author with say Wittgenstein honorific to both and what matters much more elucidatory of bothrdquo (RYLE 1970 p 11-12) 8 ldquoJe ne pense pas de surcroicirct que la preacutesupposition inverse de deacuteclin si celle-ci suscite des admirations parfois naiumlves pour les lsquocommencementsrsquo celle-lagrave conduit agrave traiter les Grecs avec une condescendance que risque de meacuteconnaicirctre le geacutenie propre de leurs solutions voire mecircme leur litteacuteraliteacute Quel historien analytique de la philosophie nrsquoest au fond de lui-mecircme persuadeacute que le problegraveme de lrsquoecirctre a eacuteteacute reacutesolu ou a commenceacute drsquoecirctre reacutesolu le jour et le jour seulement ougrave Bertrand Russell a distingueacute entre les trois fonctions du verbe lsquoecirctrersquo existentielle identificatrice et copulative Degraves lors les discussions sur la partie centrale du Sophiste de Platon ont eacuteteacute focaliseacutees ndash des milliers de pages ont eacuteteacute eacutecrites lagrave-dessus ndash sur la question de savoir si Platon a deacutecouvert ou non la fonction copulative de lrsquoecirctre Mais cette question lieacutee agrave une lecture reacutetrospective et comme je lrsquoai dit condescendant est-elle la bonne question celle qui permet de donner au texte le maximum de sens ou en tout cas est-elle la seule question et ne masque-t-elle pas drsquoautres probleacutematiques possiblesrdquo (AUBENQUE 1992 p 25)
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filosoacutefica nem a histoacuteria erudita dos filoacutelogos nem a sistematicidade a-histoacuterica de
Wittgenstein (para quem parecia haver uma ruptura completa entre a histoacuteria da filosofia
e o exerciacutecio do filosofar) No entanto tal proposta de meio-termo nos direciona a uma
leitura teleoloacutegica ou evolutiva da histoacuteria na qual se enxerga uma necessidade histoacuterica
que leva o conteuacutedo de tais textos antigos a se amalgamar imediatamente aos
questionamentos filosoacuteficos contemporacircneos Pretendemos mostrar no entanto que para
realizar tal empreendimento interpretativo Ryle teraacute de fazer vista grossa a alguns dos
elementos mais fundamentais do texto platocircnico9
No que concerne ao Sofista objeto de estudo do presente trabalho essa concepccedilatildeo
da histoacuteria da filosofia eacute bem marcada na interpretaccedilatildeo do diaacutelogo Natildeo eacute difiacutecil ver a
displicecircncia senatildeo o desprezo de Gilbert Ryle dirigido tanto ao debate filosoacutefico que o
texto platocircnico pretende estabelecer com relaccedilatildeo ao eleatismo quanto ao meacutetodo dialeacutetico
da divisatildeo10 que estrutura as paacuteginas deste texto escrito no seacuteculo IV antes de Cristo Ao
9 ldquoEn effet plus on pousse la comparaison avec les projets contemporains de lsquogrammaire philosophiquersquo plus on coupe le projet platonicien de ses racines ontologiques mais aussi du paysage grec de la langue Degraves lors en neutralisant lrsquoengagement ontologique qui motive la syntaxe du discours au niveau profond des relations lrsquointerpregravete nrsquoa plus rien agrave mettre sous le terme de lsquonaturelrsquo quand il cherche agrave comprendre autrement qursquoen reacutefeacuterence agrave la simple convention linguistique le rapport entre lsquogrammaire apparentrsquo et lsquoforme logiquersquodes expressions Telle est semble-t-il lrsquoimpasse qui guette lrsquoespegravece de projection analytique pratiqueacutee ici par G Ryle et qui me paraicirct reacutesulter drsquoun transfert illeacutegitime dans le contexte grec des consideacuterations lsquoonto-seacutemantiquesrsquo du plan de lrsquoontologie agrave celui drsquoun lsquomeacuteta-langagersquo qui le surplomberait et dont relegraveveraient exclusivement les concepts de relations entre concepts agrave savoir justement les lsquogenres suprecircmesrsquo du Sophiste Crsquoest mon objection principale agrave lrsquoencontre drsquoune certaine modernisation de ce dialogue La philosophie lsquoanalytiquersquo qui se penche sur des questions drsquohistoire se doit de deacuteterminer les limites au-delagrave desquelles ses propres squegravemes cessent drsquoecirctre opeacuterants pour la compreacutehension du problegraveme drsquoorigine qursquoon srsquoest proposeacute drsquoeacutelucider agrave lrsquoaide de ces mecircmes squegravemes Elle doit rester critique et crsquoest cet aspect critique qui deacutefinit les limites de son application formelle Lrsquoapplication non critique drsquoune meacutethodologie analytique en histoire de la philosophie peut aboutir agrave une vision deacuteformeacutee du texte-sourcerdquo (SOULEZ 1991 p 28-29) 10 Quanto agrave recusa com relaccedilatildeo agrave discussatildeo eleaacutetica ver Platorsquos Progress e Platorsquos Parmenides (RYLE 1966 p 28 RYLE 2009 [1939] pp 19-20) Quanto agrave divisatildeo dialeacutetica basta citar a seguinte passagem ldquoWhether Plato did or did not believe that the Method of Division was a powerful philosophic instrument we can be quite clear that it is not so No philosopher including Plato has ever tried to employ it for the resolution of any serious philosophical problem and if they had done so they would not have succeeded For first of all it can only be applied to concepts of genus-species or determinable-determinate sort and it is not concepts of this sort that in general if ever engender philosophical problemsrdquo (RYLE 2009 [1939] p 43) Ver tambeacutem o artigo de Ackrill sobre Ryle e o meacutetodo da divisatildeo (ACKRILL 1970) assim como a sessatildeo ldquoThe philosophical value of dialecticrdquo o capiacutetulo de Platorsquos Progress dedicado agrave dialeacutetica (RYLE 1966 pp 136-137)
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oferecermos a estes elementos a atenccedilatildeo que merecem uma leitura diferente da posiccedilatildeo
filosoacutefica do velho Platatildeo pode aparecer frente aos nossos olhos
O que acontece eacute que ao fazer a junccedilatildeo entre a histoacuteria circular dos problemas
filosoacuteficos que natildeo se cansam de repor e a linearidade evolutiva das teacutecnicas de anaacutelise
do discurso a histoacuteria da filosofia operada por Ryle pode ter como resultado um
anacronismo que natildeo decirc lugar ao dado especiacutefico de um texto tatildeo distanciado
historicamente e geograficamente de nossa compreensatildeo como os textos de Platatildeo Tal
anacronismo de Ryle jaacute comeccedila pela leitura categorial dos gecircneros supremos do Sofista
mais do que mostrar a coleccedilatildeo dos vaacuterios tipos de predicados da linguagem subconjuntos
de uma proposiccedilatildeo Platatildeo parece com o diaacutelogo dizer argumentando dialeticamente
quais satildeo os pressupostos ontoloacutegicos da forma loacutegica de uma expressatildeo predicativa Natildeo
eacute necessaacuterio aceitar todas as reviravoltas histoacutericas perpetradas por Ryle na ordem dos
textos platocircnicos e aristoteacutelicos11 para que leiamos o Sofista a partir das Categorias de
Aristoacuteteles Talvez se fossemos obrigados em assumir Aristoacuteteles como medida do texto
platocircnico poderia ser mais interessante em oposiccedilatildeo a Gilbert Ryle retomar a tese de
G E L Owen12 e ver nos gecircneros supremos algo mais parecido com a ldquosignificaccedilatildeo
focalrdquo (focal meaning) de Metafiacutesica G o que estaria em consonacircncia com um indicativo
da possibilidade de uma ciecircncia geral do ser do que com as compartimentalizaccedilotildees
departamentais da teoria categorial do jovem Aristoacuteteles
Conferindo certa autonomia ao diaacutelogo Sofista escolhemos portanto natildeo tratar
do ldquoargumento do terceiro homemrdquo que como jaacute dissemos acima foi exposto no diaacutelogo
Parmecircnides Mesmo que acreditemos ser possiacutevel associar das mais variadas formas tal
argumento ao diaacutelogo Sofista escolhemos nos deter agrave aporia tal como aparece
textualmente no iniacutecio do diaacutelogo isto eacute o problema da existecircncia do natildeo ser Tal
problema pode ser dito do seguinte modo na opccedilatildeo afirmativa de existecircncia do natildeo ser
nos direcionariacuteamos para uma contradiccedilatildeo implicada por algo que ao mesmo tempo eacute e
natildeo eacute e na negativa de sua existecircncia a impossibilidade de veicular discursos falsos ou
11 Ver principalmente Platorsquos Progress Cap 1 (RYLE 1966 pp 1-20) 12 Logic and Metaphysics in some Earlier Works of Aristotle (OWEN 1986 [1957] pp 180-199) e The Platonism of Aristotle (OWEN 1986 [1966] pp 200-220) Devemos dizer que para Owen a teoria do ldquosentido focalrdquo aristoteacutelica escaparia do argumento do terceiro homem Para uma visatildeo divergente da de Ryle ver Self-Predication in the Sophist (HEINAMAN 1981) Neste artigo o autor defende que a ontologia do Sofista natildeo escaparia do paradoxo da teoria das formas indicado pelo argumento do terceiro homem
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imagens desprovidas de um modelo pois seria impossiacutevel dizer ou ter contato com algo
que natildeo eacute Neste sentido ao resolver a aporia do natildeo ser o intuito de Platatildeo no diaacutelogo
Sofista seria garantir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia de imagens corretas e
imagens deturpadas de discursos verdadeiros e falsos (ou seja o princiacutepio de bivalecircncia
proposicional) em suma o objetivo seria possibilitar uma boa e uma maacute mimese13
Portanto podemos dizer que as questotildees acima dirigiram o presente trabalho a se
estruturar do seguinte modo esse imbroacuteglio que chamamos de ldquoaporia do natildeo serrdquo ao
lado da consequente ldquoaporia do serrdquo seraacute tratado no primeiro capiacutetulo desta dissertaccedilatildeo
destinada a colocar os termos do problema ontoloacutegico tratado no diaacutelogo Eacute inevitaacutevel
que para o tratamento do problema faccedilamos referecircncia agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica do eleatismo
berccedilo da concepccedilatildeo helecircnica acerca do ser e da existecircncia a aporia do natildeo ser eacute uma
aporia essencialmente eleaacutetica muito provavelmente identificada no seio do proacuteprio
Poema de Parmecircnides Podemos depreender das fontes antigas (o que nos restou de
Goacutergias ou Antiacutestenes) o fato de ser bem possiacutevel a existecircncia de uma disputa na Atenas
do seacuteculo IV em torno da interpretaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides Ao que parece tal
disputa interpretativa seria decisiva para a posteridade filosoacutefica
Dado que a concepccedilatildeo grega de verdade estava atrelada ao ser mostraremos
entatildeo neste capiacutetulo que a divisatildeo aparentemente trivial da arte da produccedilatildeo de imagens
[εἰδωλοποιικὴ] em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ) gera um
grave problema ou seja nos joga diretamente para a compreensatildeo de que a indistinccedilatildeo
entre a noccedilatildeo de coisa (τι)14 e a noccedilatildeo de ser (ὄν) impedia a existecircncia de qualquer
falsidade seja como imagem ou como discurso Para apresentarmos o problema seraacute uacutetil
nos utilizarmos da leitura loacutegico-ontoloacutegica de Antiacutestenes como modelo ou referecircncia
para a vertente interpretativa do eleatismo que Platatildeo visava combater com o diaacutelogo
Sofista15
Ao nosso ver eacute possiacutevel dizer que ao final do diaacutelogo tal distinccedilatildeo entre algo e
ser jaacute teraacute sido consolidada indicando na junccedilatildeo das coisas uma possibilidade e natildeo uma
13Em oposiccedilatildeo ao livro X da Repuacuteblica que parece soacute permitir a possibilidade de uma maacute mimese 14 A palavra grega ldquoτιrdquo pode ser traduzida por ldquocoisardquo ou por ldquoalgordquo Utilizaremos das duas traduccedilotildees desta palavra escolhendo uma delas conforme as necessidades da frase em portuguecircs 15 Eacute possiacutevel que o debate do Sofista fosse antes com a vertente eleaacutetica presente nos textos atribuiacutedos a Goacutergias vertente essa que poderia ter se expressado na posiccedilatildeo de Antiacutestenes No entanto natildeo estariacuteamos em condiccedilotildees por hora de investigar os pormenores de uma investigaccedilatildeo de tal porte para confirmar tal hipoacutetese Posto isso a referecircncia a Antiacutestenes parece ser suficiente para nosso intuito
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implicaccedilatildeo necessaacuteria para atingir o ser Desta maneira podemos nos posicionar
utilizando como referecircncia o belo texto de Pierre Aubenque sobre o Sofista
(AUBENQUE 1991) se por um lado seguimos Aubenque na reconstruccedilatildeo da grande
aporia gerada pela indistinccedilatildeo entre coisa e ser por outro discordamos quanto agrave acusaccedilatildeo
de que Platatildeo natildeo operou a separaccedilatildeo entre tais termos no Sofista (para Aubenque teria
sido apenas com os estoacuteicos que esta separaccedilatildeo foi operada)
No segundo capiacutetulo trataremos da divisatildeo dialeacutetica de Platatildeo Sabemos que duas
versotildees do dialeacutetico haviam sido expostas no Fedro (266b3-c1) aquele que divide
segundo as articulaccedilotildees naturais e aquele que reuacutene por meio de uma visatildeo de conjunto
No limite estas duas versotildees parecem ser duas faces de uma mesma moeda que se
complementando operam a passagem do um ao muacuteltiplo (divisatildeo) e do muacuteltiplo ao um
(visatildeo sinoacuteptica) guiadas no caso do Sofista por meio de uma maneira especiacutefica de
compreender a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo Veremos que a possibilidade de um simulacro
(imagem ruim) e de uma boa imagem que faccedila referecircncia ao ser16 seraacute garantida para
Platatildeo a partir da utilizaccedilatildeo de um novo meacutetodo ou caminho a ser percorrido partir das
coisas dadas e apoacutes especificaacute-las em suas partes subir em direccedilatildeo ao ser identificando
linhagens Se quisermos ainda nos utilizar dos termos eternizados por Parmecircnides
poderiacuteamos dizer que este caminho esmiuacuteccedila a opiniatildeo (δόξα)17 para partir com fluidez
em direccedilatildeo agrave verdade (ἀλήθεια)18
Essa passagem nos conduziraacute ao tipo aparentemente novo de dialeacutetica que
organiza o Sofista de Platatildeo a divisatildeo (διαίρεσις) O meacutetodo da divisatildeo tatildeo subestimado
16 Vale notar que Platatildeo natildeo parece abandonar a premissa eleaacutetica que postula que ldquodizer o verdadeiro eacute dizer o que eacuterdquo 17 Platatildeo a todo momento aproxima o verbo δοκέω (ldquoparecerrdquo no sentido judicativo de ldquoparece a fulano querdquo) do verbo φαίνοmicroαι (ldquoaparecerrdquo no sentido fenomecircnico) como por exemplo na armaccedilatildeo da aporia do natildeo ser do Sofista τὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή (236e1-2) Tal aproximaccedilatildeo frequente no contexto deste diaacutelogo nos conduz a identificar uma interpretaccedilatildeo fenomecircnica da δόξα parmeniacutedica por parte de Platatildeo (como veremos no primeiro capiacutetulo era possiacutevel ver algo desta leitura platocircnica na passagem dos livros V para o VI da Repuacuteblica platocircnica) De qualquer modo mesmo que estejamos forccedilando a barra no cotejo do Poema de Parmecircnides com o texto platocircnico Neacutestor-Luis Cordero identifica que tal leitura platonizante da δόξα de Parmecircnides jaacute estaria consolidada nos escritos neoplatocircnicos de Simpliacutecio Segundo o pesquisador franco-portenho Simpliacutecio anacronicamente enxergava o Poema de Parmecircnides atraveacutes de uma seacuterie de dicotomias platocircnicas pois somente apoacutes a sofiacutestica a palavra δόξα deixou de ser entendida apenas como ldquoopiniatildeordquo ou ldquoponto de vistardquo e passou a ser compreendida tambeacutem como ldquoaparecircnciardquo (CORDERO 2013a CORDERO 2015) 18 ldquoFor Plato doxa can be true while for Parmenides the fundamental disjunction had been either doxa and thuthrdquo (CORDERO 2013b p 191)
21
por Gilbert Ryle parece ser a via de acesso privilegiada natildeo soacute para compreender o que
eacute um sofista mas tambeacutem para entender o funcionamento e o lugar ocupado pelos gecircneros
supremos na ontologia platocircnica do Sofista bem como para elucidar o processo por detraacutes
da forma proposicional de um discurso que se pretenda verdadeiro ou falso Ryle no
entanto enxerga a dialeacutetica platocircnica apenas como um debate entre interlocutores
interessados (RYLE 1966 Cap IV) Para compreender a estrutura proposicional Ryle
se vale da comparaccedilatildeo da relaccedilatildeo entre nomes e verbos de um enunciado com a de letras
e siacutelabas19 de uma palavra (RYLE 2009 [1960]) sem ver nenhuma ligaccedilatildeo desta relaccedilatildeo
com o meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo
No entanto a divisatildeo dialeacutetica sendo estabelecida segundo a natureza das coisas
(κατὰ φύσιν) esconde uma indistinccedilatildeo entre forma (εἶδος) e gecircnero (γένος) que eacute muito
elucidativa para compreensatildeo da ontologia do Sofista20 Cabe ao dialeacutetico neste caso
mostrar e enumerar os intermediaacuterios da hierarquia dos gecircneros produzindo o muacuteltiplo a
partir do uno ou seja iniciar a divisatildeo de um gecircnero superior do qual podemos conhecer
sua natureza (por exemplo a arte da produccedilatildeo) e dissecando-o nas divisotildees ir em direccedilatildeo
agrave determinaccedilatildeo da coisa pretendida (no caso deste diaacutelogo do sofista) Ao enumerar as
mediaccedilotildees entre os gecircneros Platatildeo ldquotravardquo a indefiniccedilatildeo recursiva identificada na teoria
das formas pelo argumento do terceiro homem proporcionando uma via pavimentada
para trafegarmos entre os diversos graus de ser Eacute desta maneira que Platatildeo parece
relativizar a separaccedilatildeo (χωρισmicroός) entre o mundo sensiacutevel e o mundo das ideias
(CORDERO 2013b) estabelecendo uma metodologia que opere uma passagem mediada
entre a hierarquia dos gecircneros Assim Platatildeo pode mostrar que um gecircnero inferior (por
exemplo o sofista) participa de um gecircnero superior (no caso da arte da produccedilatildeo) tal
conjunccedilatildeo possiacutevel de um gecircnero inferior num gecircnero superior eacute o que filoacutesofo ateniense
chamaraacute de participaccedilatildeo (microέθεξις)
No entanto para que a composiccedilatildeo ou divisatildeo de um gecircnero superior natildeo seja
simplesmente arbitraacuteria Platatildeo parece propor uma noccedilatildeo de oposiccedilatildeo bem particular
fornecendo-nos uma oposiccedilatildeo determinada e metodoloacutegica a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
utilizada pela dialeacutetica fornece uma opccedilatildeo metodologicamente viaacutevel e construtiva tanto
19 Inuacutemeras vezes a relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas eacute citada por Platatildeo em referecircncia agrave arte dialeacutetica (Sofista 253a e 261d Teeteto 202e Poliacutetico 277d-e Filebo 17a-b) 20 Sobre o meacutetodo da divisatildeo e sua relaccedilatildeo com a ontologia Platorsquos method of division (MORAVCSIK 1973)
22
agrave dura inviabilidade discursiva fornecida pela contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) da primeira
aporia (236e) quanto agrave controveacutersia (ἀντιλογία) vaidosa e inoacutecua dos eriacutesticos A
contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)21 estabeleceria um tipo de alteridade que abre possibilidade
para a comunidade entre gecircneros ou formas diferentes Daiacute a nova ontologia para serem
verdadeiras as formas natildeo teriam mais de ser completamente irredutiacuteveis e disjuntas entre
si agora a alteridade e a conjunccedilatildeo entre as formas satildeo mesmo condiccedilatildeo para o
verdadeiro22
O estudo da dialeacutetica do segundo capiacutetulo nos daacute instrumentos justamente para
compreender a relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos Aleacutem disso permitiraacute ir agrave procura da
concepccedilatildeo de discurso e de imagem elaboradas no Sofista Do mesmo modo a
formulaccedilatildeo de uma nova teoria da boa mimese ao lado da possibilidade de uma maacute
mimese ainda melhor garantida passa a tomar contornos mais definidos Esta seraacute a
conjunccedilatildeo de temas do terceiro e uacuteltimo capiacutetulo da dissertaccedilatildeo a soluccedilatildeo das duas
aporias do iniacutecio do diaacutelogo a partir de uma teoria do ser da imagem e do discurso
No Sofista (252a) eacute afirmado que tanto o movimento quanto o repouso que faratildeo
parte mais a frente dos chamados gecircneros supremos participam do ser apesar de natildeo
serem misturaacuteveis entre si Ou seja aparentemente o que Platatildeo estaacute dizendo seria que
cada um dos gecircneros opostos participa do existente Deste modo natildeo teriacuteamos que relegar
um dos lados da oposiccedilatildeo a um puro natildeo ser A afirmaccedilatildeo somada a definiccedilatildeo de natildeo ser
como alteridade (256e) daacute a entender para a teoria platocircnica do Sofista existiram
diferentes cadeias hieraacuterquicas todas se encontrando na unidade do ser
Quanto ao discurso este eacute sempre imagem ou figuraccedilatildeo da cadeia dos seres
quando o discurso reproduz fielmente o segmento da cadeia mimetiza o ser e portanto
eacute um discurso verdadeiro caso ele reproduza algo diferente da configuraccedilatildeo de tal cadeia
temos um discurso falso ou o simulacro Acreditamos que eacute por isso que o discurso para
que tenha sentido e possa ser bivalorado tem de apresentar a mesma estrutura da tessitura
21 Nossa compreensatildeo da contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) deveu bastante ao debate Cordero-OrsquoBrien sobre Sofista 258a11-b4 (PLATON 1993 nota 330 OrsquoBRIEN 1999 pp 27-28) 22 Vale dizer que a oposiccedilatildeo entre gecircneros natildeo se daacute necessariamente em duas partes ou seja dicotomicamente No entanto para Platatildeo parece ser mais belo ou perfeito que uma boa divisatildeo assim o faccedila para este assunto consultar Poliacutetico (262e) De qualquer modo certo eacute que ao utilizar no Sofista sempre a palavra ldquoheacuteteronrdquo (ἕτερον) diferenccedila determinada entre dois elementos e natildeo ldquoaacutellonrdquo (ἄλλον) alteridade indeterminada entre muitos Platatildeo parece considerar preferencialmente divisotildees ditas dicotocircmicas A dicotomia eacute marcada de maneira ainda mais forte pela presenccedila do artigo como em ldquothaacuteteronrdquo (θάτερον) um dos gecircneros supremos do diaacutelogo (por exemplo Sofista 255a1)
23
do ser isto eacute a mesma forma esta eacute o que estaacute por detraacutes do que se chamaraacute adiante de
forma loacutegica Seratildeo todavia os conteuacutedos da cadeia de seres em questatildeo encadeados
corretamente ou natildeo que determinaratildeo a sua verdade ou a sua falsidade O discurso falso
ao natildeo mimetizar corretamente estaacute desligado da cadeia do ser eacute o outro do ser mas natildeo
o natildeo ser este uacuteltimo Platatildeo concordaria por definiccedilatildeo natildeo existe
Eacute deste modo que aparentemente para Platatildeo a totalidade das coisas do mundo
podem ser ligadas atraveacutes de uma pletora de linhagens mas todas estas linhagens
deveriam a princiacutepio levar ao ser Portanto todas as coisas satildeo emanaccedilotildees ou imagens de
um ser que unifica a multiplicidade Natildeo poderemos desta maneira aceitar a leitura dita
categorial de que os gecircneros supremos sejam subconjuntos da proposiccedilatildeo ou diferentes
tipos de elementos que constituem o enunciado com a funccedilatildeo de exercer de maneira
independente um papel formal sobre os elementos do discurso De outro modo posto
que satildeo gecircneros superiores isto eacute por estar em posiccedilatildeo mais alta na hierarquia dos
gecircneros logo toda a multiplicidade de gecircneros que estatildeo abaixo deles eacute regida e afetada
pela sua forccedila ontoloacutegica nisto estaacute sua funccedilatildeo formal pois satildeo os gecircneros inferiores que
satildeo subconjuntos dos superiores
Esta compreensatildeo da teoria loacutegico-ontoloacutegica do Sofista nos permitiraacute interpretar
as 7 divisotildees que pretendem definir a figura do sofista as 6 primeiras definiccedilotildees eram
corretas apenas parcialmente Seraacute somente na seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo como produtor
de ilusotildees (268c-d) que podemos compreender completamente a figura do sofista ele
produz mal ou seja eacute e ao mesmo tempo faz uma coacutepia malfeita O sofista natildeo copia a
cadeia dos seres ilude e finge copiar natildeo aspira ao ser Numa interpretaccedilatildeo possiacutevel mas
um pouco violenta com o texto platocircnico poderiacuteamos dizer que dado que somente os
deuses satildeo saacutebios (σοφός) o filoacutesofo (φιλόσοφος) posto que divino (216b-c 254a8-b1)
eacute sua boa imagem ao sofista (σοφιστής) restaria ser sua maacute imagem O sofista estaria
para o filoacutesofo assim como o lobo estaacute para o catildeo
Eacute curioso que se passarmos os olhos sobre os trabalhos que tratam de Platatildeo
especialmente ao longo do seacuteculo XX veremos uma enorme profusatildeo de scholars
dedicados ao Sofista No entanto as interpretaccedilotildees do Sofista ao longo deste seacuteculo se
concentraram na grande maioria das vezes na sua parte loacutegica-ontoloacutegica (236e-264)
Natildeo seria por acaso Nesta seccedilatildeo que parece ser um enorme apecircndice a uma das
definiccedilotildees de sofista presentes no diaacutelogo estaacute o que se poderia dizer ser o sistema
filosoacutefico do diaacutelogo Nesta parte tambeacutem parece estar o que haacute de mais interessante para
24
questotildees proacuteprias do mundo contemporacircneo seja a crise da ontologia e da metafiacutesica ou
sua pretensatildeo de refundaccedilatildeo seja a nossa vivecircncia corriqueira rodeada e transpassada por
uma profusatildeo de imagens e simulacros seja a liberdade de formalizar sistemas loacutegicos
que rigorosamente natildeo se utilizam da bivaloraccedilatildeo Seraacute deste modo que neste trabalho
buscaremos nos dedicar tambeacutem mais uma vez a compreender esta parte do diaacutelogo tatildeo
sistemaacutetica quanto obscura que cumpre a funccedilatildeo de particularizar o Sofista no interior da
obra platocircnica como um diaacutelogo que apresenta uma tese final aparentemente definida e
bem-acabada Natildeo aceitaremos todavia a opccedilatildeo de trataacute-lo como um simples sandwich
(RYLE 1966 pp 139-140) Pretendemos pelo contraacuterio comeccedilar a juntar as complexas
peccedilas deste complicado quebra-cabeccedilas que eacute o Sofista de Platatildeo ficaraacute claro ao final
desta dissertaccedilatildeo que este eacute um duriacutessimo e importante trabalho ao qual esta dissertaccedilatildeo
certamente natildeo estaacute agrave altura e se mostra apenas como um simples indicativo de caminho
Eacute evidente que a ldquoleitura filosoacuteficardquo de Ryle pode muito bem ser proliacutefica para a
discussatildeo contemporacircnea natildeo ousamos dizer o contraacuterio No entanto de modo geral
colocamos nossas fichas na crenccedila de que valorizar o desniacutevel histoacuterico entre o
pensamento ontoloacutegico grego e o contemporacircneo seja mais elucidativo para a
compreensatildeo de nosso mundo atual que marcar suas superficiais concordacircncias de
essecircncia Como disse certa vez Pierre Aubenque ldquocerto eacute que os gregos sabiam de outra
maneira que noacutesrdquo23 Esperamos que este trabalho tatildeo restrito ao Sofista de Platatildeo ajude a
fortalecer tal posiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica Afinal de contas a histoacuteria natildeo eacute feita somente
das heranccedilas mas tambeacutem dos constantes parriciacutedios que natildeo cessamos de operar
23 ldquoCe qui est sucircr crsquoest que les Grecs savaient autrement que nousrdquo (AUBENQUE 1992 p 24-25) ndash o grifo eacute do autor
25
A APORIA DE ELEIA
Parriciacutedio Em que consistiria isso O ato de assassinar o proacuteprio pai sempre se
mostrou como um fato intrigante afinal natildeo eacute algo muito aceito pela nossa sociedade De
fato eacute algo chocante o suficiente para natildeo ser mencionado de modo leviano todos os
dias Entretanto apesar dos juiacutezos morais que o cercam o que nos interessa aqui eacute
principalmente esta palavra que parece em si mesma contraditoacuteria eacute certo que mesmo
apoacutes o filho ter matado o proacuteprio pai aquele ainda continua a ser filho deste Ou seja
assassinar o proacuteprio pai natildeo revoga atestado de paternidade algum Portanto certo eacute dizer
que duas coisas diferentes ocorrem nesta contrariedade haacute realidade tanto na morte do
pai assassinado quanto na heranccedila geneacutetica deixada pelo progenitor ainda presente em
cada parte do filho Separando deste modo podemos dizer que em qualquer parriciacutedio
estaacute envolvido um jogo de rupturas e continuidades com as quais o assassino teraacute sempre
que lidar
Eacute justamente da palavra ldquoparricidardquo (πατραλοία) que Platatildeo na boca do
Estrangeiro de Eleia (241d3) se vale para representar sua proacutepria condiccedilatildeo no diaacutelogo
Sofista Ao consolidar a instituiccedilatildeo de uma forma proposicional bem como uma nova
maneira de compreender as noccedilotildees de ideia e de alteridade o saldo loacutegico-ontoloacutegico
deste diaacutelogo parece se desdobrar pela histoacuteria da filosofia assim como a desgraccedila do
parricida Eacutedipo sobre seus descendentes24
Ao considerar o diaacutelogo de um ponto de vista loacutegico podemos dizer que o Sofista
trata principalmente da anaacutelise das condiccedilotildees de possibilidade para a existecircncia de
discursos verdadeiros e de discursos falsos Com o objetivo de identificar tais condiccedilotildees
veremos que no diaacutelogo foram realizadas uma seacuterie de reviravoltas ontoloacutegicas que
seriam necessaacuterias para que dois valores de verdade (Verdadeiro ou Falso) pudessem ser
atribuiacutedos a uma sentenccedila Eacute portanto no diaacutelogo Sofista que podem ser identificados os
pressupostos ontoloacutegicos sedimentados no interior da primeira formulaccedilatildeo do ceacutelebre
24 A comeccedilar pelas semelhanccedilas com a forma proposicional apresentada por Aristoacuteteles no capiacutetulo V do De Interpretatione (17a9-12 17a17-20) ldquoHaacute necessidade de que todo discurso declaratoacuterio decorra do verbo ou de um caso dele Com efeito o discurso do homem se natildeo lhe for aposto o lsquoeacutersquo o lsquoseraacutersquo ou o lsquofoirsquo ou alguma coisa desse tipo ainda natildeo eacute discurso declaratoacuteriordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 7) ou ldquoSeja portanto apenas uma foacutermula de expressatildeo o nome e o verbo uma vez que natildeo eacute possiacutevel por sons articulados a exprimir somente um deles acertar de maneira que se chegue a um discurso declaratoacuterio como quando algueacutem pergunta ou natildeo mas outro daacute seu proacuteprio julgamentordquo (ARISTOacuteTELES 2013 p 9)
26
princiacutepio loacutegico da bivalecircncia25 No Sofista eacute possiacutevel dizer estaacute sendo operado o
trabalho que nos levaraacute pela primeira vez em direccedilatildeo agrave realizaccedilatildeo de uma semacircntica
proposicional26
Tambeacutem seraacute necessaacuterio notar entretanto que Platatildeo realiza uma importante
aproximaccedilatildeo entre imagem e discurso que natildeo pode ser relegada a segundo plano Para o
filoacutesofo de Atenas qualquer discurso vaacutelido por se referir a algo exterior a ele mesmo
deve ser tratado como um tipo de imagem Em outras palavras todo discurso significativo
se pretende como imagem de algo Seraacute por conta desta referecircncia a algo seja da imagem
visual seja da discursiva que se justificaraacute a discussatildeo propriamente ontoloacutegica do
diaacutelogo Do ponto de vista imageacutetico o intuito do diaacutelogo eacute distinguir e garantir
filosoficamente a existecircncia de imagens boas e de imagens ruins
Assim podemos dizer que buscaremos compreender os movimentos loacutegico-
ontoloacutegicos operados por Platatildeo no Sofista e em paralelo pois parecem ser duas faces da
mesma moeda natildeo poderemos deixar de investigar a sua controversa relaccedilatildeo com a
filosofia de Parmecircnides Afinal de contas antes de tudo eacute na trilha do vocabulaacuterio
ontoloacutegico formulado em Eleia que se trava a discussatildeo estabelecida pelo diaacutelogo Sofista
Mais do que isso natildeo podemos deixar de notar que as duas aporias identificadas pelo
Estrangeiro podem e devem ser compreendidas como a exposiccedilatildeo de paradoxos cuja
origem remonta agrave tradiccedilatildeo filosoacutefica iniciada por Parmecircnides no seacuteculo V Ou seja em
resumo o diaacutelogo Sofista seria a discussatildeo a respeito da identificaccedilatildeo de possiacuteveis
inconsistecircncias teoacutericas no interior do eleatismo bem como responsaacutevel pela
apresentaccedilatildeo de uma proposta de resoluccedilatildeo para elas
25 Tomamos a liberdade de utilizar do termo princiacutepio de bivalecircncia para nos referir agrave dupla valoraccedilatildeo de um enunciado Poreacutem como indica Balthazar Barbosa Filho (primeira nota de seu artigo Aristoacuteteles e o princiacutepio da bivalecircncia) o termo foi empregado originalmente por Jan Łukasiewicz em 1920 fazendo referecircncia ao que era exposto no Da Interpretaccedilatildeo (IV 17a2-3) de Aristoacuteteles O texto de Łukasiewicz estaacute no anexo a Observaccedilotildees filosoacuteficas sobre os sistemas de caacutelculo proposicional multivalentes (ŁUKASIEWICZ 2013 p 128) 26 Pelo termo ldquosemacircntica proposicionalrdquo pretendemos designar a abordagem loacutegica que privilegia a identificaccedilatildeo dos termos proposicionais (como os nomes e os verbos) e de seus respectivos correlatos assim como da relaccedilatildeo entre o signo proposicional em seu conjunto (a conjunccedilatildeo dos termos proposicionais) e o referente ao qual a proposiccedilatildeo pretende significar Grosso modo na obra platocircnica esta abordagem semacircntica natildeo parecia ainda ter sido destinada agraves proposiccedilotildees mas apenas aos nomes Aleacutem da semacircntica teriacuteamos tambeacutem a abordagem sintaacutetica (GRANGER 1979 pp 149-150) esta uacuteltima visaria fazer jus agrave relaccedilatildeo entre os signos (deste modo a silogiacutestica aristoteacutelica diria respeito portanto agrave sintaxe loacutegica) Ficaraacute claro mais afrente nossa compreensatildeo de que no Sofista de Platatildeo a proposiccedilatildeo eacute considerada como um signo que imita alguma coisa
27
O debate com o eleatismo pode mesmo ser visto no personagem mais proeminente
do diaacutelogo o Estrangeiro de Eleia Eacute possiacutevel dizer que essa personagem condutora do
diaacutelogo carrega em si mesma a ambiguidade proveniente da apropriaccedilatildeo dos textos da
escola de Eleia A desconfianccedila com relaccedilatildeo a sua idoneidade eacute bem marcada no iniacutecio
do diaacutelogo (216a-217a) Natildeo sabemos exatamente o que esperar daquele que chega da
cidade de Eleia podemos estar diante tanto de um filoacutesofo quanto de um sofista27
Neste primeiro capiacutetulo portanto trataremos de (i) evidenciar a origem eleaacutetica
das aporias do diaacutelogo (ii) apresentar a aporia do natildeo ser (236e) e a do ser (251a-b)
assim com (iii) identificar como o problema eleaacutetico se desbobra a partir de algumas
consideraccedilotildees platocircnicas a respeito da noccedilatildeo de mimese e de imagem Acreditamos que
somente este trabalho preliminar de reconstituiccedilatildeo histoacuterico-filosoacutefica do problema
abordado no diaacutelogo poderaacute fazer com que as fraturas da filosofia platocircnica com relaccedilatildeo
ao eleatismo sejam diagnosticadas e o propoacutesito do diaacutelogo possa ser compreendido em
sua inteireza
Acreditamos que o adjetivo ldquoparricidardquo possa ser utilizado como uma espeacutecie de
mote para a leitura do diaacutelogo De algum modo neste termo estariam presentes as torccedilotildees
conceituais que marcam a leitura que um sistema filosoacutefico faz de um outro (no caso a
leitura que Platatildeo faz do Poema de Parmecircnides) - passagens estas que conferem ao
sistema filosoacutefico um caraacuteter fundamentalmente histoacuterico Desta maneira podemos ver
por meio dessas metamorfoses a emergecircncia de problemaacuteticas filosoacuteficas que ateacute entatildeo
eram inexistentes e natildeo imaginadas pelo sistema filosoacutefico anterior Posto isso podemos
dizer que na imanecircncia de um discurso filosoacutefico nunca podemos nos abster do impulso
de inventariar os vaacuterios tipos de heranccedilas que nossos pais mortos ou natildeo deixaram para
noacutes Este eacute o trabalho que para noacutes assumimos como o de um historiador da filosofia
I
A explicaccedilatildeo do termo ldquoparricidardquo requisitada por Teeteto eacute dada pelo
Estrangeiro de maneira programaacutetica
27 Para uma anaacutelise mais completa da a figura do Estrangeiro de Eleia ver o livro de Jean-Franccedilois Matteacutei (MATTEacuteI 1983)
28
Que para nos defendermos ser-nos-aacute necessaacuterio pocircr agrave prova o
discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-lhe pela forccedila que o que
natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez tambeacutem o que eacute de algum
modo natildeo eacute28 (Sofista 241d5-7)
De fato seraacute exatamente de justificar que o ser de certo modo natildeo eacute e que o natildeo
ser de certo modo eacute que o diaacutelogo se ocuparaacute ateacute 264c Consideremos a seguinte divisatildeo
do diaacutelogo Sofista estruturada a partir das 7 definiccedilotildees29 que o Estrangeiro daacute agrave figura do
sofista30 objeto do diaacutelogo em questatildeo com o objetivo de localizar no texto platocircnico o
momento no qual o atentado contra o pai aparece
I - Caccedilador interesseiro de jovens ricos (222a-223b)
II - Comerciante em ciecircncias (223c-224d)
III - Comerciante de primeira matildeo de ciecircncias como produtor (224e)
IV - Comerciante de segunda matildeo de ciecircncias natildeo como produtor (224e)
V - Eriacutestico mercenaacuterio (225a-226a)
VI - Refutador e purificador de almas (226a-231b)
VII - Imitador de artes produtor de ilusotildees e perplexidade (233d-236e com continuaccedilatildeo
em 264c-268d)
A condiccedilatildeo de parricida do pai Parmecircnides eacute confessada no interior da seacutetima
definiccedilatildeo definiccedilatildeo que se inicia em 233d eacute interrompida em 236e e retomada a partir
28 Diz Platatildeo ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo (Sofista 241d5-7) 29 Utilizaremos o termo definiccedilatildeo devido agrave falta de um melhor Na verdade Soacutecrates pergunta ao Estrangeiro se os nomes sofista poliacutetico e filoacutesofo corresponderiam a um dois ou trecircs gecircneros O vocabulaacuterio proacuteprio agrave definiccedilatildeo utilizado no iniacutecio do diaacutelogo bem como o fato da questatildeo ter sido colocada por Soacutecrates indicariam uma proximidade com o procedimento definitoacuterio No entanto Platatildeo natildeo parece estar pretendendo encontrar a essecircncia do sofista mas apenas identificar a atividade relacionada ao uso da palavra ldquosofistardquo Eacute tambeacutem possiacutevel que o objetivo pretendido seja tatildeo somente localizar o sofista na trama das atividades teacutecnicas Para a defesa de um ponto de vista definitoacuterio do meacutetodo da divisatildeo mas que natildeo consegue se concretizar devido ao fato da sofiacutestica natildeo ser propriamente uma teacutecnica ver BROWN 2010 30 Apesar do Estrangeiro contar seis definiccedilotildees do sofista em 231c9-e6 agraves quais eacute acrescentada a uacuteltima contabilizando sete ao total pelo texto parece ser perfeitamente possiacutevel admitir que o que seria a segunda terceira e quarta definiccedilotildees seja uma soacute com duas subdivisotildees
29
de 264c Deste modo portanto parece ser possiacutevel compreender o trecho entre 236e e
264c (que corresponde a pouco mais da metade do diaacutelogo) como um enorme apecircndice agrave
seacutetima definiccedilatildeo do sofista justamente sob o jugo de tal acerto de contas com a figura de
Parmecircnides Em outras palavras pode-se dizer que entre 236e e 264c seraacute cumprido o
programa enunciado em 241d5-7 impor que de algum modo o ser natildeo seja e o natildeo ser
seja
Pois a menos que estas coisas [que o que natildeo eacute de certo modo eacute e
que o que eacute de certo modo natildeo eacute31] tenham sido refutadas ou
aceites algueacutem poderaacute em algum momento de lazer ao falar a
respeito do discurso falso ou da opiniatildeo falsa quer do simulacro
quer da imagem quer da imitaccedilatildeo quer das aparecircncias ou mesmo
a respeito das muitas artes que haacute acerca dessas coisas natildeo ser
ridicularizado ao ser forccedilado a contradizer-se a si mesmo32
(Sofista 241e1-6)
De fato as dificuldades apresentadas no diaacutelogo para noccedilotildees tais como a de
simulacro ou de discurso falso podem ser remetidas a uma aporia de origem eleaacutetica
Como seria possiacutevel instaurar uma imagem daquilo que natildeo eacute Natildeo seria condiccedilatildeo para
imagem ser imagem de algo que eacute E quanto ao discurso o fato de se referir ao que eacute natildeo
seria uma condiccedilatildeo para a sua proacutepria existecircncia Mas tal condiccedilatildeo ou seja a aparente
necessidade da imagem e do discurso se referenciarem ao ser jaacute natildeo garantiria a qualquer
discurso ou imagem o estatuto de verdadeiro As perguntas proacuteprias ao diaacutelogo partem
da completa dissociaccedilatildeo entre ser e natildeo ser por parte da filosofia de Eleia Desta
separaccedilatildeo estrita entre ser e natildeo ser tiacutepica do eleatismo o sofista aparentemente
concluiu natildeo existem nem imagens nem discursos falsos33
31 O discurso de Parmecircnides negava tal possibilidade Assim o que estaacute em jogo eacute o consentimento ou refutaccedilatildeo das palavras do grande Parmecircnides (241d5-7) O dito de Parmecircnides estaacute exposto em 237a8-9 32 ldquoτούτων γὰρ microήτ᾽ ἐλεγχθέντων microήτε ὁmicroολογηθέντων σχολῇ ποτέ τις οἷός τε ἔσται περὶ λόγων ψευδῶν λέγων ἢ δόξης εἴτε εἰδώλων εἴτε εἰκόνων εἴτε microιmicroηmicroάτων εἴτε φαντασmicroάτων αὐτῶν ἢ καὶ περὶ τεχνῶν τῶν ὅσαι περὶ ταῦτά εἰσι microὴ καταγέλαστος εἶναι τά γ᾽ ἐναντία ἀναγκαζόmicroενος αὑτῷ λέγεινrdquo (Sofista 241e1-6) 33 ldquoO discernimento dessas condiccedilotildees [condiccedilotildees loacutegicas e ontoloacutegicas do discurso proposicional tal como formuladas pelo Estrangeiro de Eleacuteia no Sofista] tem como motor o intuito de dissoluccedilatildeo de um paradoxo de origem sofiacutestica que potildee em linha de fogo a proacutepria possibilidade do discurso
30
Temos pelo menos dois indicativos de que a aporia tratada do Sofista natildeo eacute uma
novidade uma contradiccedilatildeo encontrada pelas reflexotildees do proacuteprio Platatildeo mas sim um
problema antigo jaacute trabalhado e retrabalhado por filoacutesofos antecessores e ao qual Platatildeo
pretende nos oferecer uma soluccedilatildeo nova e original Podemos ver por algumas vezes o
testemunho de que Platatildeo fazia referecircncia a uma questatildeo jaacute antiga
Em 236e2-3 ao apresentar a primeira aporia do diaacutelogo (chamada de aporia do
natildeo ser) Platatildeo natildeo deixa de acrescentar que ldquotudo isso estaacute cheio de dificuldades o
tempo todo tanto no passado quanto agorardquo34 Aristoacuteteles tambeacutem numa passagem da
Metafiacutesica em que comenta o Sofista de Platatildeo (Met N 2) tambeacutem se mostra consciente
do histoacuterico desta problemaacutetica a respeito do ser e do natildeo ser Ao ldquoproblematizar
antiquadamenterdquo (τὸ ἀπορῆσαι ἀρχαϊκῶς em 1089a1-2) Platatildeo aos olhos de Aristoacuteteles
segue a tradiccedilatildeo de Eleia e apresenta o problema nos mesmos termos em que aquele foi
apresentado por Parmecircnides35 Mas que termos arcaicos satildeo estes dos quais Aristoacuteteles
discorda O Estargirita faz uso da mesma citaccedilatildeo do Poema de Parmecircnides utilizada por
Platatildeo no Sofista (237a8-9)
Natildeo impossiacutevel que isto prevaleccedila ser (os) natildeo entes
Tu poreacutem deste caminho de investigaccedilatildeo afasta o pensamento36
(Parmecircnides DK B 7 1-2 Traduccedilatildeo de Joseacute Cavalcante de Souza
com alteraccedilotildees)
O descontentamento de Aristoacuteteles se daacute com os termos ldquoserrdquo (εἶναι) e ldquonatildeo entesrdquo
(microὴ ἐόντα) do verso 1 para o fundador do Liceu parece ser pouco proliacutefico dizer que o
proposicional Adaptado de um argumento de Parmecircnides pretende demolir o conceito de discurso falsordquo (LOPES DOS SANTOS 2010 p 18) 34 ldquoπάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦνrdquo (236e2-3) 35 ldquoQue la ligneacutee Parmeacutenide-Platon-Aristote soit agrave lrsquoorigine drsquoune figure de penseacutee que diviendra plus tard dominante sous le nom de lsquomeacutetaphysiquersquo ne doit masquer le fait que cette orientation lsquoontologiquersquo reste relativement isoleacutee non seulement dans lrsquohistoire de la penseacutee en geacuteneacuteral (qursquoon songe agrave sa totale absense dans les systegravemes de penseacutee non occidentaux) mais mecircme dans la penseacutee grecque qui a eacuteteacute pourtant le lieu incontestable de son surgissement Ainsi Parmeacutenide est-il le seul penseur preacutesocratique agrave srsquointeacuteresser agrave lrsquoecirctre Si crsquoest seulement par abus de langage que lrsquoon peut parler drsquoune ontologie drsquoHeacuteraclite drsquoEmpeacutedocle ou drsquoAnaxagore il est vrai en revanche que Parmeacutenide est avant la lettre un penseur onto-logiquerdquo (AUBENQUE 1987 p 104) 36 Οὐ γὰρ microή ποτε τοῦτο δαmicroῇ εἶναι microὴ ἐόντα ἀλλὰ σὺ τῆσδ΄ ἀφ΄ ὁδοῦ διζήσιος εἶργε νόηmicroα (Parmecircnides DK B 7 1-2)
31
natildeo ser deve de algum modo ser Afinal diz o fundador do Liceu se de muitas maneiras
se diz o ser tambeacutem de muitas maneiras eacute dito o natildeo ser (Met N 2 1089a15ss) ou seja
os termos ldquoserrdquo e ldquonatildeo serrdquo fariam taacutebula-rasa de uma complexidade subjacente37
Poderiacuteamos observar com a ajuda desta passagem da Metafiacutesica que a criacutetica
dirigida por Aristoacuteteles contra Platatildeo e Parmecircnides se por um lado direciona a doutrina
aristoteacutelica das categorias para rebater o modo como Platatildeo e Parmecircnides formulam sua
problemaacutetica por outro nos daacute um importante testemunho da heranccedila lexical transmitida
do Poema para o Sofista de Platatildeo Em suma diriacuteamos que ao realizar o parriciacutedio Platatildeo
se volta contra o interdito promulgado em Eleia mas ao mesmo tempo aceita aqueles
termos impostos pelo pai de Eleia
Devemos observar que de maneira diferente daquela aristoteacutelica eacute tambeacutem contra
este mesmo trecho do Poema de Parmecircnides citado duas vezes no Sofista (em 237a8-938
e 258d2-3) que Platatildeo pensa estar se voltando ao operar o parriciacutedio
ldquoQue para nos defendermos [da aporia do natildeo ser] ser-nos-aacute
necessaacuterio pocircr agrave prova o discurso do nosso pai Parmecircnides e impor-
lhe pela forccedila que o que natildeo eacute de certo modo eacute e que por sua vez
tambeacutem o que eacute de algum modo natildeo eacuterdquo39 (Sofista 241d5-7)
Ao realizar o atentado contra o pai Platatildeo parece acreditar estar se enveredando
por aquele que costuma ser identificado como o caminho (ὁδός) que coage natildeo entes a
ser isto eacute trilha o caminho da mistura entre ser e natildeo ser40 Platatildeo no Sofista se
contraporaacute portanto ao postulado presente no verso 1 do fragmento 7 buscaraacute garantir
que o que natildeo eacute de algum modo seja bem como que o que eacute de certo modo natildeo seja
O pequeno trecho de dois versos do Poema exposto no Sofista (237a8-9) apresenta
muitas das questotildees fundamentais que nos permitiratildeo propor a identificaccedilatildeo de uma
possiacutevel anaacutelise platocircnica para a filosofia de Parmecircnides como um todo No segundo
verso (DK 7 2) eacute exposto o termo a partir do qual poderemos comeccedilar a desdobrar a
37 Na criacutetica aristoteacutelica de Met N 2 fica claro que para Aristoacuteteles a resoluccedilatildeo por meio da teoria das categorias natildeo eacute utilizada por Platatildeo no Sofista O testemunho vai justamente contra a linha interpretativa encabeccedilada por Ryle (RYLE 2009 [1939] p 37 2009 [1960] p 70-71) 38 διζήmicroενος eacute grafado no lugar de διζήσιος na citaccedilatildeo de 237a8-9 39 ldquoτὸν τοῦ πατρὸς Παρmicroενίδου λόγον ἀναγκαῖον ἡmicroῖν ἀmicroυνοmicroένοις ἔσται βασανίζειν καὶ βιάζεσθαι τό τε microὴ ὂν ὡς ἔστι κατά τι καὶ τὸ ὂν αὖ πάλιν ὡς οὐκ ἔστι πῃrdquo(241d5-7) 40 O Estrangeiro pretende refutar (ἐλέγχειν) a tese de Parmecircnides a partir de 242b
32
questatildeo de como o conteuacutedo de tal citaccedilatildeo se posiciona no interior da filosofia eleaacutetica
seria necessaacuterio para Parmecircnides que nos afastaacutessemos de um certo caminho de
investigaccedilatildeo (ὁδοῦ διζήσιος) Mas que caminho seria este
Sem duacutevida o caminho (ὁδός) do segundo verso do fr 7 faz referecircncia ao segundo
caminho expresso no fr 2 6 do Poema
os uacutenicos caminhos de inqueacuterito que satildeo a pensar
o primeiro que eacute e portanto que natildeo eacute natildeo ser
de Persuasatildeo eacute o caminho (pois agrave verdade acompanha)
o outro que natildeo eacute e portanto que eacute preciso natildeo ser
este entatildeo eu te digo eacute o atalho completamente desinformado
pois nem conhecerias o que natildeo eacute (pois natildeo eacute exequumliacutevel)
nem o dirias41 (Parmecircnides DK B 2 2-8 Traduccedilatildeo de Joseacute
Cavalcante de Souza com modificaccedilotildees)
Tais caminhos de investigaccedilatildeo seriam os uacutenicos - confiramos a devida ecircnfase ao
plural - a serem pensados (ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι) No entanto eacute preciso dizer
que o segundo caminho natildeo seria de fato impossiacutevel de ser traccedilado ele eacute sim de todo
desinformado inteiramente desorientado (παναπευθέα) A traduccedilatildeo da palavra
ldquoπαναπευθέαrdquo por inteiramente inviaacutevel42 talvez natildeo capte a nuance fundamental para
a compreensatildeo filosoacutefica ldquoinviaacutevelrdquo daria a entender que este eacute um caminho que natildeo
seria possiacutevel de traccedilar e que por exclusatildeo soacute haveria um caminho aberto ao pensamento
ndash aquele do ser Ao traduzir ldquoπαναπευθέαrdquo por ldquocompletamente desinformadordquo
41 αἵπερ ὁδοὶ microοῦναι διζήσιός εἰσι νοῆσαι ἡ microὲν ὅπως ἔστιν τε καὶ ὡς οὐκ ἔστι microὴ εἶναι πειθοῦς ἐστι κέλευθος (ἀληθείη γὰρ ὀπηδεῖ) ἡ δ᾿ ὡς οὐκ ἔστιν τε καὶ ὡς χρεών ἐστι microὴ εἶναι τὴν δή τοι φράζω παναπευθέα ἔmicromicroεν ἀταρπόν οὔτε γὰρ ἂν γνοίης τό γε microὴ ἐὸν (οὐ γὰρ ἀνυστόν) οὔτε φράσαις (Parmecircnides DK 2 2-8) 42 O termo πευθώ significa em inglecircs ldquotidingsrdquo (Liddel-Scott 1996) algo como ldquoinformaccedilatildeordquo ou ldquonotiacuteciasrdquo Os tradutores vatildeo quase sempre na direccedilatildeo que poderia dar a entender a inviabilidade do segundo caminho ldquointeiramente inviaacutevelrdquo (Santoro) ldquode todo incriacutevelrdquo parecendo ler ldquoπαναπειθέαraquo com o manuscrito procliano P (Cavalcante de Souza) ldquoem tudo ignotordquo (Trindade) ldquotout agrave fait inconnaissablerdquo (Cordero) Orsquo Brien ldquoche non si puograve scrutarerdquo (Untersteiner) ldquowholly unknowablerdquo (Taraacuten) Nossa traduccedilatildeo eacute mais proacutexima daquela de A H Coxon ldquowholly without reportrdquo
33
interpretamos que haacute uma completa desorientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir esta
difiacutecil vereda isto eacute natildeo haacute nada que sirva de orientaccedilatildeo para aquele que pretende seguir
o caminho do natildeo ser No verso seguinte (DK B 2 7) natildeo exequumliacutevel (οὐ ἀνυστόν)
obviamente se refere ao fato de conhecer o natildeo ente (γνοίης τό γε microὴ ἐὸν) Assim ao que
parece haacute uma vinculaccedilatildeo entre o conhecer e o ente soacute se conhece aquilo que eacute O natildeo
ser seria incognosciacutevel
Ao final Parmecircnides completa o fragmento 2 afirmando que o natildeo ser natildeo poderaacute
sequer ser enunciado (οὔτε φράσαις)43 Natildeo seria este uacuteltimo sob o signo da aporia do
discurso falso justamente o problema tratado a partir de 236e no Sofista Nos termos de
Parmecircnides o problema poderia ser exposto da seguinte maneira como eacute possiacutevel pensar
(νοῆσαι em DK 2 2) algo ldquocomo natildeo eacuterdquo (ὡς οὐκ ἔστιν) se conforme o fragmento 344
pensar e ser satildeo indissociaacuteveis No iniacutecio do Sofista poderiacuteamos dizer que o postulado
da inteligibilidade do ser expresso no fragmento 3 de Parmecircnides estaacute posto em questatildeo
O problema soacute pode ser inteiramente compreendido se lembrarmos de mais um
postulado de Parmecircnides o caminho do ser eacute o caminho do verdadeiro (DK 2 v 4 DK
8 vs 50-51) O verdadeiro estaacute ligado sempre ao ser e dele eacute indissociaacutevel ou seja aceita-
se o ser como criteacuterio para o verdadeiro Se considerarmos o natildeo ser nem diziacutevel nem
pensaacutevel (DK B 8 7-8) estariacuteamos negando a existecircncia do contraacuterio do verdadeiro isto
eacute do falso Em consequecircncia disso tudo o que falariacuteamos por ser enunciado em
referecircncia a um ser estaria condenado a estar necessariamente sob o valor do verdadeiro
Platatildeo natildeo parece estar disposto a aceitar esta consequecircncia
Estes parecem ser exatamente os passos seguidos pela interpretaccedilatildeo do Poema
posta em circulaccedilatildeo por Goacutergias de Leontinos no seu Tratado do natildeo ser Dizia Goacutergias
na versatildeo transmitida por Sexto Empiacuterico
ldquoUm e primeiro que nada eacute segundo que se eacute natildeo eacute
apreensiacutevel [ἀκατάληπτον] pelo homem terceiro que se eacute
apreensiacutevel eacute com efeito inefaacutevel [ἀνέξοιστον] e incomunicaacutevel
43 ldquoEm resumo podemos concluir que a ontologia de Parmecircnides resulta de duas bases fundamentais o princiacutepio de natildeo-contradiccedilatildeo forte que separa completamente ser e natildeo ser e o princiacutepio de que pensar e dizer eacute pensar e dizer o ser O primeiro estabelece que soacute haacute dois caminhos de investigaccedilatildeo e que e que um deve ser escolhido em detrimento do outro O segundo determina qual o caminho a ser escolhido (SOUZA 2009 p 34) 44 ldquoτὸ γὰρ αὐτὸ νοεῖν ἐστίν τε καὶ εἶναιrdquo (DK B 3)
34
[ἀνερmicroήνευτον] ao proacuteximordquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3
linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66)45
Diz na versatildeo exposta pelo tratado pseudo-aristoteacutelico De Melisso Xenoacutefanes e
Goacutergias
ldquo[Goacutergias] diz nada natildeo ser se eacute eacute natildeo cognosciacutevel [ἄγνωστον]
se eacute e tambeacutem eacute cognosciacutevel natildeo eacute todavia transmissiacutevel [οὐ
δηλωτὸν] aos outrosrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B
3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles De M X G 979a
10ss)46
Ao negar qualquer existecircncia ao natildeo ser Goacutergias evidencia o abismo entre ser e
natildeo ser que pode ser encontrado no Poema de Parmecircnides (eacute ou natildeo eacute47) Goacutergias
mostraria que no discurso de Parmecircnides se nada eacute entatildeo tudo eacute e este ser deve ser
absolutamente monoliacutetico sem fissuras partes ou divisotildees Caso contraacuterio estariacuteamos
novamente misturando ser e natildeo ser natildeo sairiacuteamos desta contradiccedilatildeo irresoluta A me-
ontologia sofiacutestica de Goacutergias trata portanto de implodir o Poema do velho saacutebio de
Eleia destruindo-o por dentro a partir da radicalizaccedilatildeo de suas proacuteprias teses48 soacute haveria
o caminho do ser seria um contrassenso haver um caminho de algo que natildeo pode ser dito
ou pensado Na visatildeo de Goacutergias ao ser dito imediatamente o natildeo ser se tornaria ser e o
45 ldquoἓν microὲν καὶ πρῶτον ὅτι οὐδὲν ἔστιν δεύτερον ὅτι εἰ καὶ ἔστιν ἀκατάληπτον ἀνθρώπωι τρίτον ὅτι εἰ καὶ καταληπτόν ἀλλὰ τοί γε ἀνέξοιστον καὶ ἀνερmicroήνευτον τῶι πέλαςrdquo (Goacutergias DK B 3 Untersteiner B 3 linhas 18-21 Sexto Empiacuterico Adv Math VII 65-66) Traduccedilatildeo nossa Os termos utilizados por Sexto carregam um forte traccedilo das formulaccedilotildees estoicas e ceacuteticas Para a sofiacutestica de Goacutergias natildeo devemos levar a seacuterio este contexto filosoacutefico especiacutefico do periacuteodo heleniacutestico 46 ldquoοὐκ εἶναί φησιν οὐδὲν εἰ δ᾿ ἔστιν ἄγνωστον εἶναι εἰ δὲ καὶ ἔστι καὶ γνωστόν ἀλλ᾽ οὐ δηλωτὸν ἄλλοιςrdquo (Goacutergias ed Untersteiner fragmento DK B 3 bis linhas 160-162 Pseudo-Aristoacuteteles 979a 12ss) Traduccedilatildeo nossa 47ldquoἔστιν ἢ οὐκ ἔστινrdquo (DK B 8 v 16) 48 ldquo lsquoSe Parmecircnides entatildeo Goacutergiasrsquo significa que ao tomar ao peacute da letra o imperativo do Poema ao aplicar Parmecircnides a Parmecircnides eacute o Tratado que se escreve pois o Tratado natildeo faz senatildeo repetir o Poema mas de maneira tal que a exigecircncia de identidade o princiacutepio universal seja nele efetivamente respeitada O Tratado eacute a escrita da falta constitutiva da origem o que quer dizer que o Poema natildeo eacute senatildeo a falha do Tratado falha equiacutevoca jaacute que ele repousa em uma distinccedilatildeo natildeo sustentaacutevel insustentaacutevel entre lsquoeacutersquo e lsquonatildeo eacutersquo rdquo (CASSIN 2015 p 70)
35
discurso passaria a criar realidades49 No entanto a tese de Goacutergias por contraste
tambeacutem levava agrave inocuidade um discurso completamente engessado nos criteacuterios do ser
revela que ao ser nada poderia ser acrescentado pelo discurso pois aleacutem do ser natildeo
haveria coisa alguma
Assim o sofista de Leontinos fazia o ontoacutelogo de Eleia cair em contradiccedilatildeo Platatildeo
parece natildeo ter deixado de perceber o que estava acontecendo Natildeo seria mera coincidecircncia
o filoacutesofo de Atenas expor o problema do natildeo ser exatamente nos mesmos moldes que o
sofista de Leontinos
ldquoConcordas entatildeo que natildeo eacute possiacutevel pronunciar corretamente nem
dizer nem pensar o que natildeo eacute [τὸ microὴ ὂν] em si e por si mas pelo
contraacuterio que eacute impensaacutevel [ἀδιανόητόν] indiziacutevel [ἄρρητον]
impronunciaacutevel [ἄφθεγκτον] e inexplicaacutevel [ἄλογον]rdquo (Sofista
238c8-11)50
Com o objetivo de oferecer uma saiacuteda para este imbroacuteglio Platatildeo tentaraacute traccedilar o
caminho desaconselhado pelo pai poreacutem sem cair em contradiccedilatildeo com o proacuteprio
discurso deveraacute misturar ser e natildeo ser como na confusatildeo dos mortais de duas cabeccedilas
(δίκρανοι) exposta nos uacuteltimos versos do Fragmento 6 do Poema Isto eacute por natildeo estar
disposto a aceitar como consequecircncia a inexistecircncia do falso Platatildeo trataraacute de fazer com
que por meio de tal mistura de ser e natildeo ser natildeo incorramos num tipo de contradiccedilatildeo
que leve a condenar o discurso ao silecircncio (aporia do natildeo ser) ou agrave simples tautologia
(aporia do ser)
II
49 Baacuterbara Cassin especifica ldquonatildeo que natildeo haja pseudos mas de modo mais exato porque uma mentira um erro uma ficccedilatildeo existem tanto quanto o verdadeiro tatildeo logo o proferimos Se basta ser pensado para ser e ser dito para ser pensado entatildeo agrave evidecircncia sensiacutevel se substitui o fato de liacutengua natildeo eacute portanto o ente parmenidiano mas de igual modo e indiscernivelmente o natildeo-ente que nos eacute assim acessiacutevelrdquo (CASSIN 2005 p 38) 50 ldquoσυννοεῖς οὖν ὡς οὔτε φθέγξασθαι δυνατὸν ὀρθῶς οὔτ᾽ εἰπεῖν οὔτε διανοηθῆναι τὸ microὴ ὂν αὐτὸ καθ᾽ αὑτό ἀλλ᾽ ἔστιν ἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo (Sofista 238c8-11)
36
No caso do Sofista de Platatildeo a problemaacutetica que fez e faz tal texto ceacutelebre entre
os estudiosos comeccedila pela perplexidade a respeito de uma palavra O termo ldquosimulacrordquo
(φάντασmicroα em 236b7) segundo o diaacutelogo carregaria um problema em si mesmo algo
que imita e aparece sem copiar pode ser dito como algo que seja sem ser ou seja algo
que eacute e ao mesmo tempo natildeo eacute Podemos ver tambeacutem que jaacute na enunciaccedilatildeo da aporia
o termo φάντασmicroα proacuteprio de um vocabulaacuterio imageacutetico eacute associado ao acircmbito
discursivo e agrave falsidade51 Desta maneira este simples termo poderaacute ser explicitado de
pelo menos duas maneiras aquilo que imita e aparece mas que por natildeo ser semelhante
ao modelo natildeo copia ou por outro lado dizer algo mas que natildeo seja o verdadeiro neste
uacuteltimo caso estaria o problema de dizer e pensar o falso Apesar das diversas maneiras
pelas quais o problema pode ser identificado pode-se ver que o problema eacute sempre
relativo a um referencial externo ou a um modelo que se pretenderia tomar como base
mas natildeo eacute devidamente legiacutetimo na realizaccedilatildeo do procedimento Tal eacute o modo como
Platatildeo formula a primeira aporia chamada aporia do falso ou aporia do natildeo ser
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer [τὸ φαίνεσθαι]
e parecer [τὸ δοκεῖν] isso mas natildeo ser [εἶναι δὲ microή] e o de dizer
[τὸ λέγειν] algumas coisas [ἄττα] mas natildeo verdadeiras [ἀληθῆ δὲ
microή] tudo isso estaacute cheio de dificuldades [ἀπορίας] o tempo todo
tanto no passado quanto agora Pois como se pode falando dizer
[λέγειν] e opinar [δοξάζειν] que coisas falsas [ψευδῆ] na realidade
satildeo [εἶναι] e tendo-as pronunciado [φθεγξάmicroενον] natildeo se enlear
na contradiccedilatildeo [ἐναντιολογίᾳ] Isso Teeteto eacute em tudo e por tudo
difiacutecilrdquo52 (Sofista 236e1-237a1)
Como seria possiacutevel dizer algo (ἄττα) mas que natildeo seja verdadeiro A referecircncia
a algo jaacute natildeo implicaria um discurso verdadeiro Eacute necessaacuterio dizer que qualquer imagem
51 Em 240d1-4 Platatildeo faz a analogia entre o simulacro (φάντασmicroα) e opinar falsidades (ψευδῆ δοξάζειν) 52 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαι παντάπασιν ὦ Θεαίτητε χαλεπόνrdquo (Sofista 236e1-237a1)
37
jaacute seria um algo e tambeacutem eacute fato que ao dizer qualquer coisa jaacute nos refeririacuteamos a algum
tipo de coisa existente Como premissa impliacutecita no trecho citado acima necessaacuteria para
a compreensatildeo do problema e dos rumos que o diaacutelogo tomaraacute temos a vinculaccedilatildeo do
verdadeiro ao que eacute e do falso ao que natildeo eacute Portanto para Platatildeo a possibilidade de
soluccedilatildeo da aporia deveraacute nos levar a uma generalizaccedilatildeo nestes termos ontoloacutegicos o natildeo
ser de algum modo deveraacute ser A generalizaccedilatildeo em termos de ser e natildeo ser seria
necessaacuteria para a existecircncia do falso isto eacute uma condiccedilatildeo ontoloacutegica geral para que seja
possiacutevel falsificar No entanto tal generalizaccedilatildeo teraacute de ajustar as contas com algo
determinado para entendermos a aporia do que natildeo eacute (microὴ ὄν) seraacute necessaacuterio a passagem
pelo algo (τι)
O contrassenso que apareceu no termo φάντασmicroα (simulacro) pode ser visto na
proacutepria expressatildeo ldquonatildeo serrdquo (microὴ ὄν) Se uma coisa (τι) eacute algo que sempre estaacute vinculado
ao que eacute (τὸ ὄν) a que coisa (τι) este nome (ὄνοmicroα) natildeo ser (microὴ ὄν) se refere53 O que
estaacute em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo que aparentemente eacute necessaacuteria entre o nome e a coisa
(ὄνοmicroατι) bem como uma indistinccedilatildeo entre o que eacute e um algo qualquer (τὸ ὄντι)54
Segundo Aubenque (AUBENQUE 1991 p 373) dois argumentos satildeo utilizados pelo
Estrangeiro para recusar a distinccedilatildeo entre uma coisa e aquilo que eacute
(i) Um τι natildeo existe por si mesmo pois eacute uma determinaccedilatildeo do ser (237d1-
4)
(ii) Um τι configura sempre uma unidade (237d9-10)
Como corolaacuterio de (ii) teriacuteamos que natildeo dizer um τι significa dizer nem um
(microηδέν) ou seja pela ambiguidade do termo microηδέν seria dizer nada (237e1-2)
53Sofista 237b10-c4 54 ldquoLa lecture attentive du texte de Platon montre que lrsquoincoheacuterence est due uniquement agrave lrsquoassimilation platonicienne du lsquoquelque chosersquo et de lrsquolsquoeacutetantrsquordquo(AUBENQUE 1991 p 378) Temos concordacircncia com Aubenque e o seguimos no que diz respeito a sua formulaccedilatildeo para a problemaacutetica do diaacutelogo Sofista mas ao inverso da leitura do comentador francecircs acreditamos que ao final do diaacutelogo τι e τὸ ὄν estaratildeo devidamente distinguidos Esperamos que ateacute o final de nossa dissertaccedilatildeo fique claro que natildeo seraacute necessaacuterio esperar os estoicos como acredita Aubenque (AUBENQUE 1991 p 379ss) para que tal distinccedilatildeo seja realizada
38
Tal problemaacutetica do natildeo ser exposta no Sofista parece ser bem proacutexima de uma
tese costumeiramente atribuiacuteda a Antiacutestenes55 natildeo seria possiacutevel dizer o falso nem
estabelecer controveacutersia (ἀντιλέγειν) Eacute provaacutevel que o discurso de Antiacutestenes estivesse
contaminado pelas jaacute citadas teses sofiacutesticas de Goacutergias56 de quem segundo Dioacutegenes
Laeacutercio ele teria sido disciacutepulo57 Temos pelo menos dois importantes testemunhos sobre
a questatildeo O primeiro nos eacute oferecido por Aristoacuteteles
ldquomas a noccedilatildeo falsa [ψευδὴς λόγος] eacute absolutamente falando noccedilatildeo
de nada [οὐθενός] Por isso Antiacutestenes considerava de maneira
simplista que de qualquer coisa soacute se podia afirmar sua proacutepria
noccedilatildeo [τῷ οἰκείῳ λόγῳ] uma noccedilatildeo uacutenica de uma coisa uacutenica [ἕν
ἐφrsquo ἑνός] do que deduziu que natildeo eacute possiacutevel a contradiccedilatildeo
[ἀντιλέγειν] e ateacute mesmo que eacute praticamente impossiacutevel dizer o
falso [ψεύδεσθαι]rdquo58 (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34
traduccedilatildeo de Marcelo Perine ed Prince 152 A ed Decleva Caizzi
47 A)
O segundo por Proclo
ldquoAntiacutestenes disse que natildeo se deve estabelecer controveacutersia Uma
vez que diz todo discurso diz a verdade [ἀληθεύει] pois quem
fala diz algo [τι] E quem diz algo diz o que eacute [τὸ ὄν] E quem diz
55 Para os fragmentos e testemunhos de Antiacutestenes utilizamos o livro de Susan Prince (PRINCE 2015) 56 Acreditamos que tanto Goacutergias quanto Antiacutestenes estabelecem um abismo entre ser e natildeo ser dos eleaacuteticos este abismo faria com que a distinccedilatildeo entre o verdadeiro e o falso perdesse completamente o sentido No entanto as teses de Goacutergias e de Antiacutestenes podem ser opostas segundo o criteacuterio da comunicabilidade o discurso de Antiacutestenes comunica sempre o que eacute enquanto o de Goacutergias natildeo tem funccedilatildeo comunicativa (SOUZA 2009 p47) 57DIOacuteGENES LAEacuteRCIO VI 1 ed Prince 11 A ed Decleva Caizzi 125 58Traduccedilatildeo de Marcelo Perine a partir da traduccedilatildeo italiana de Giovanni Reale (Aristoacuteteles ldquoMetafiacutesicardquo Ediccedilotildees Loyola Satildeo Paulo 2005) Em grego ldquoὁ δὲ ψευδὴς λόγος οὐθενός ἐστιν ἁπλῶς λόγος διὸ Ἀντισθένης ᾤετο εὐήθως microηθὲν ἀξιῶν λέγεσθαι πλὴν τῷ οἰκείῳ λόγῳ ἕν ἐφrsquo ἑνός ἐξ ὧν συνέβαινε microὴ εἶναι ἀντιλέγειν σχεδὸν δὲ microηδὲ ψεύδεσθαιrdquo (Aristoacuteteles Metafiacutesica D 29 1024b31ndash34)
39
o que eacute diz a verdade [ἀληθεύει]rdquo59 (Proclo comentaacuterio a 285b2-
5 do Craacutetilo de Platatildeo ed Prince 155 Decleva Caizzi 49 Traduccedilatildeo
nossa)
O ponto de Antiacutestenes eacute quanto agrave ligaccedilatildeo necessaacuteria entre o discurso e a coisa
mas tomados um a um (ἕν ἐφrsquo ἑνός) Este parece tambeacutem ser o problema da aporia do
falso tal como exposta por Platatildeo no Sofista A dificuldade seria a seguinte o discurso
sempre se refere a algo (τι) e para ser uma coisa (τι) deve-se pressupor algo existente
(τὸ ὄν) nessa coisa mas por outro lado o discurso falso eacute aquele que se refere a nada
(οὐθενός) Devemos concluir portanto que todo discurso por se referir a algo eacute
verdadeiro e que natildeo eacute possiacutevel proferir um discurso falso A uacutenica forma de erro que eacute
possiacutevel neste contexto eacute tomar uma coisa por outra dizer outra coisa que a que eacute tomar
Teeteto por Teodoro o 11 pelo 12 uma pomba silvestre ao inveacutes de uma domeacutestica
(Teeteto 199b) Confundir duas coisas que satildeo eacute dizer outra coisa Nos termos de Platatildeo
a confusatildeo entre duas coisas diferentes causa do erro poderia ser chamada entatildeo ldquooutra
opiniatildeordquo (ἀλλοδοξία em Teeteto189b12-c4)
Poderiacuteamos dizer que para Antiacutestenes cada discurso deve estabelecer uma
relaccedilatildeo funcional com a coisa que por ele eacute dita e se o discurso natildeo diz nada natildeo eacute
discurso A referencialidade eacute portanto condiccedilatildeo para o discurso No entanto outra coisa
eacute pressuposta neste argumento de Antiacutestenes tanto o discurso quanto a coisa satildeo
concebidas como uma unidade (dizia ldquoum a umrdquo ldquoἕν ἐφrsquo ἑνόςrdquo) Para Antiacutestenes se por
um lado o discurso (a palavra λόγος eacute utilizada por Antiacutestenes) sendo uno deve ser
sempre tomado como um nome (daiacute a palavra ὄνοmicroα utilizada por Platatildeo) por outro
aquilo que eacute (τὸ ὄν) e a coisa (τι) satildeo vistos como o mesmo
A unidade entre τι e τὸ ὄν pode ser explicada a partir da equivalecircncia gerada por
duas implicaccedilotildees A primeira eacute vista de maneira clara no testemunho de Proclo temos ali
a implicaccedilatildeo ldquose τι entatildeo τὸ ὄνrdquo Soma-se a isso o fato de no comentaacuterio agraves Categorias
de Aristoacuteteles Simpliacutecio (fragmento 149 B-1 segundo Susan Prince 50 A para Decleva
Caizzi) relatar que Antiacutestenes teria dito contra Platatildeo ldquoVejo cavalo mas natildeo vejo
cavalidaderdquo (Ἴππον microὲν ὁρῶ ἱππότητα δὲ οὐχ ὁρῶ traduccedilatildeo nossa) Se compreendermos
59No original ldquoὅτι Ἀντισθένης ἔλεγεν microὴ δεῖν ἀντιλέγειν πᾶς γάρ φησί λόγος ἀληθεύει ὁ γὰρ λέγων τι λέγει ὁ δέ τι λέγων τὸ ὂν λέγει ὁ δὲ τὸ ὂν λέγων ἀληθεύειrdquo (Proclo comentaacuterio a 285b2-5 do Craacutetilo de Platatildeo)
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a negaccedilatildeo do universal (a cavalidade no caso) como restriccedilatildeo do ser (τὸ ὄν) temos entatildeo
que todo ser eacute um particular (um τι no caso um cavalo) e consolidaremos portanto a
outra implicaccedilatildeo que eacute necessaacuteria para a equivalecircncia entre τι e τὸ ὄν ldquose τὸ ὄν entatildeo
τιrdquo
No Sofista Platatildeo atacaraacute o pressuposto de Antiacutestenes que enuncia a unidade (ἕν)
tanto aquela que se apresenta no discurso (compreendido como nomeaccedilatildeo) quanto a
unidade entre a coisa (τι) e aquilo que eacute (τὸ ὄν) esta uacuteltima apresentada na passagem do
τι para τὸ ὄν tal como testemunhada por Proclo Este problema que pode ser identificado
em Antiacutestenes o da unidade entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como de sua
vinculaccedilatildeo com um nome (ὄνοmicroα) eacute tratado pelo Estrangeiro em 244b9-d12
ldquoHoacutespede de Eleia60 ndash Pois bem que respondam a isto lsquovoacutes dizeis
que soacute um eacutersquo lsquoDizemosrsquo responderatildeo eles [o pronome ldquoelesrdquo se
refere aos que dizem que o todo eacute um] pois natildeo
Teeteto ndash Sim
H ndash lsquoChamais a algo lsquoserrsquorsquo [ὂν καλεῖτέ τι]
T ndash Sim
H ndash lsquoDe duas uma como a lsquoumrsquo servindo-se de dois nomes para o
mesmo ou comorsquo
T ndash E aiacute que resposta Hoacutespede haveraacute para eles depois disso
H ndash Eacute evidente Teeteto que agravequele que supotildee essa hipoacutetese em
relaccedilatildeo ao perguntado agora e em relaccedilatildeo a outra coisa qualquer
que seja natildeo eacute nada faacutecil responder
T ndash Como
H ndash O facto de concordar que satildeo dois nomes nada postulando
aleacutem de um eacute de algum modo ridiacuteculo
T ndash Como natildeo
H ndash E de todo aceitar de quem fala que haacute um certo nome [ὄνοmicroά]
que natildeo tem explicaccedilatildeo [λόγον]
60 A traduccedilatildeo portuguesa optou por traduzir a palavra Ξένος por ldquoHoacutespederdquo Cabe informar que a personagem a que nos referimos como ldquoEstrangeirordquo ou ldquoEstrangeiro de Eleiardquo designa o mesmo que eacute denominado ldquoHoacutespederdquo pela traduccedilatildeo da Editora Calouste Gulbenkian
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T ndash Porquecirc
H ndash Ao postular que o nome eacute diferente da coisa [τοὔνοmicroα τοῦ
πράγmicroατος ἕτερον] de algum modo ele diz que satildeo dois
T ndash Sim
H ndash E mais se sustentar que o nome eacute o mesmo que a coisa ou seraacute
obrigado dizer que eacute nome de nada [microηδενὸς] ou se disser que eacute
nome de algo [τινος] seguir-se-aacute que o nome eacute somente nome do
nome e de nenhuma outra coisa [οὐδενὸς ὄν]
T ndash Eacute assim
H ndash E o um eacute nome do um e por sua vez eacute o um do nome [καὶ τὸ
ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν]rdquo61 (Sofista
244b9-d12 traduccedilatildeo ligeiramente modificada por noacutes)
Esta uacuteltima frase (244d11-12) que parece dar uma conclusatildeo ao bloco antes da
inserccedilatildeo de um novo conceito62 tem grave divergecircncia nas liccedilotildees dos manuscritos Dentre
as ediccedilotildees do texto grego que conhecemos para esta frase certamente a versatildeo de Burnet
(ediccedilatildeo na qual se baseou a traduccedilatildeo da editora Gulbenkian) eacute a menos fiel aos
manuscritos As ediccedilotildees de Diegraves e Robinson satildeo mais proacuteximas dos manuscritos
(discordam apenas da separaccedilatildeo ou natildeo da palavra ldquoαὐτὸrdquo em ldquoαὖ τὸrdquo) e assim como
61 ldquoΞένος - τόδε τοίνυν ἀποκρινέσθων lsquoἕν πού φατε microόνον εἶναιrsquo mdash lsquoφαmicroὲν γάρrsquo φήσουσιν ἦ γάρ Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoτί δέ ὂν καλεῖτέ τιrsquo Θεαίτητος - ναί Ξένος - lsquoπότερον ὅπερ ἕν ἐπὶ τῷ αὐτῷ προσχρώmicroενοι δυοῖν ὀνόmicroασιν ἢ πῶςrsquo Θεαίτητος - τίς οὖν αὐτοῖς ἡ microετὰ τοῦτ᾽ ὦ ξένε ἀπόκρισις Ξένος - δῆλον ὦ Θεαίτητε ὅτι τῷ ταύτην τὴν ὑπόθεσιν ὑποθεmicroένῳ πρὸς τὸ νῦν ἐρωτηθὲν καὶ πρὸς ἄλλο δὲ ὁτιοῦν οὐ πάντων ῥᾷστον ἀποκρίνασθαι Θεαίτητος - πῶς Ξένος - τό τε δύο ὀνόmicroατα ὁmicroολογεῖν εἶναι microηδὲν θέmicroενον πλὴν ἓν καταγέλαστόν που Θεαίτητος - πῶς δ᾽ οὔ Ξένος - καὶ τὸ παράπαν γε ἀποδέχεσθαί του λέγοντος ὡς ἔστιν ὄνοmicroά τι λόγον οὐκ ἂν ἔχον Θεαίτητος - πῇ Ξένος - τιθείς τε τοὔνοmicroα τοῦ πράγmicroατος ἕτερον δύο λέγει πού τινε Θεαίτητος - ναί Ξένος - καὶ microὴν ἂν ταὐτόν γε αὐτῷ τιθῇ τοὔνοmicroα ἢ microηδενὸς ὄνοmicroα ἀναγκασθήσεται λέγειν εἰ δέ τινος αὐτὸ φήσει συmicroβήσεται τὸ ὄνοmicroα ὀνόmicroατος ὄνοmicroα microόνον ἄλλου δὲ οὐδενὸς ὄν Θεαίτητος - οὕτως Ξένος - καὶ τὸ ἕν γε ἑνὸς ὄνοmicroα ὂν καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὖ τὸ ἓν ὄν (Sofista 244b9-d12) 62 O de ldquotodordquo (ὅλον) em 244d14
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Cordero (PLATON 1993 p 244 nota 211) seguem os manuscritos B D e W63 Tais
alteraccedilotildees mudam significativamente o sentido da frase Na versatildeo de Diegraves poderiacuteamos
traduzi-la ldquoE o um que eacute somente unidade do um tambeacutem eacute ele unidade do nomerdquo (ldquoκαὶ
τὸ ἕν γε ἑνὸς ἓν ὂν microόνον καὶ τοῦ ὀνόmicroατος αὐτὸ ἓν ὄνrdquo em 244d11-12) Burnet segue
a intromissatildeo de Apelt (este grafa ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂνrdquo) que por sua vez parecia seguir
Zeller (ldquoἑνὸς ὄνοmicroα ὂν microόνονrdquo) ambas sem referecircncia nos manuscritos A
divergecircncia entre os textos eacute filosoficamente relevante pois a passagem trata da unidade
do um que eacute tambeacutem unidade do nome (ldquoo um eacute umrdquo e ldquoo nome eacute umrdquo com o ser
compreendido em sentido existencial) e natildeo do nome da unidade e da unidade do nome
(como se pretendesse uma equivalecircncia entre ldquounidaderdquo e ldquonomerdquo) como parece ter
compreendido a ediccedilatildeo de Burnet A questatildeo filosoacutefica eacute que o um eacute um e o nome eacute um
ou seja o um abarca certa multiplicidade pois eacute um e eacute nome Assim como mais adiante
o ser eacute ser e tambeacutem o ser eacute natildeo ser ou seja eacute o mesmo e tambeacutem o outro aqui
aparentemente identifica-se que em qualquer unidade haacute certo espaccedilo para a
multiplicidade eacute um e eacute outro e se eacute outro de algum modo eacute muacuteltiplo64
De qualquer modo o problema aqui eacute com efeito bem semelhante agravequele que
identificamos nos testemunhos sobre Antiacutestenes65 parece estar assegurada a relaccedilatildeo
paralela entre discurso e ser o problema se daraacute na unidade entre algo (τι) e o que eacute (τὸ
ὄν) Na versatildeo de Platatildeo teremos como eacute possiacutevel atribuir dois nomes (τι e τὸ ὄν na
passagem acima) a algo que eacute um Como podemos considerar a unidade ao mesmo tempo
algo e ser Como podemos atribuir dois nomes (τι e ὄν) a um (ἓν) Deveraacute ficar garantida
a correlaccedilatildeo entre discurso e ser pois caso estejam em mesmo niacutevel natildeo poderaacute haver
referecircncia discursiva a algo e nossa linguagem portanto natildeo diraacute nada Seraacute esta
problemaacutetica que nos conduziraacute agraves famosas oposiccedilotildees entre doutrinas tal como foram
expostas no Sofista (a partir de 242b) se iniciando pela doutrina do muacuteltiplo versus a
63 Os manuscritos T e Y suprimem o segundo ἓν da frase o que natildeo altera o sentido da frase grafada em B D e W 64 Tal passagem nos remete ao diaacutelogo Parmecircnides (137c-d) 65 Platatildeo mostra que natildeo bastaraacute a unidade ldquoum a umrdquo (ἕν ἐφrsquo ἑνός) de Antiacutestenes proporcionada pela nomeaccedilatildeo de algum ser Seraacute necessaacuterio mostrar que se quisermos demarcar a oposiccedilatildeo entre verdade e falsidade a unidade deve abarcar certo tipo de multiplicidade Afinal de contas parece ser um pressuposto da proacutepria leitura de Antiacutestenes aceitar que a unidade tautologicamente eacute unidade mas ao mesmo tempo tambeacutem o nome eacute uma unidade Lida desta forma essa passagem parece conter um embriatildeo daquilo que seraacute exposto na segunda aporia (Sofista 251a-c)
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doutrina do um passando pela batalha de gigantes entre os partidaacuterios do corpo versus os
das formas ateacute finalizar tratando do movimento em oposiccedilatildeo ao repouso
Podemos ver portanto que natildeo eacute por acaso que a continuaccedilatildeo da exposiccedilatildeo do
problema do falso no Sofista a partir de 238a se direcionaraacute para a questatildeo da unidade
(ἓν) e da multiplicidade (πλῆθος) como vimos a questatildeo eacute identificada pelo problema da
unidade ontoloacutegica entre a coisa (τι) e o que eacute (τὸ ὄν) bem como pela correlata unidade
do discurso (λόγος) compreendido como nome (ὄνοmicroα) Para Platatildeo natildeo poderiacuteamos
associar o natildeo ser nem agrave unidade (τὸ microὴ ὂν no singular) nem agrave multiplicidade (τὰ microὴ
ὄντα no plural) posto que tanto a unidade quanto a multiplicidade satildeo (238b) No
entanto a aporia do natildeo ser se potencializa ainda mais quando o Estrangeiro percebe que
quando conclui que o natildeo ser eacute ldquoimpensaacutevel indiziacutevel impronunciaacutevel e inexplicaacutevelrdquo
(ldquoἀδιανόητόν τε καὶ ἄρρητον καὶ ἄφθεγκτον καὶ ἄλογονrdquo 238c10-11) ao mesmo tempo
em que nega a unidade e a multiplicidade do natildeo ser trata-o como um (unidade expressa
pelo singular ldquoτὸ microὴ ὂνrdquo) Como se natildeo bastasse termina por adicionar ao natildeo ser o verbo
ldquoserrdquo (ldquoo natildeo ser eacuterdquo ldquoτὸ microὴ ὂν ἔστινrdquo)66 o que confere uma nova recaiacuteda na
contradiccedilatildeo O Estrangeiro percebe portanto que caiu na armadilha do sofista armadilha
que obriga o filoacutesofo na acircnsia de capturar o sofista a entrar em contradiccedilatildeo com seu
proacuteprio discurso e a concordar que o que natildeo eacute de alguma forma eacute (240c6) Teeteto diz
ldquoHaacute o risco de nos termos emaranhado numa certa
complicaccedilatildeo (συmicroπλοκὴν) por demais absurda (ἄτοπον)
do que natildeo eacute com o que eacute (τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι)rdquo67 (Sofista
240c2-3)
A esta altura do diaacutelogo o entrelaccedilamento entre ser e natildeo ser eacute visto como absurdo
(ἄτοπον) mas seraacute justamente este caminho que o Estrangeiro de Eleia iraacute trilhar para a
resoluccedilatildeo da problemaacutetica trazida pelas duas aporias de problema o entrelaccedilamento
(συmicroπλοκὴ) se tornaraacute em 259e5-6 a soluccedilatildeo Assim se possibilitaraacute a existecircncia de
opiniotildees falsas68 (ψευδὴς δόξα em 240d6) e natildeo mais apenas a confusatildeo entre nomes
66 Deste modo claramente estariacuteamos indo contra as recomendaccedilotildees de Parmecircnides que dizia para nunca trilhar o caminho que forccedila a mistura entre ser e natildeo ser (Sofista 237a8-9 e 258d2-3) 67 ldquoκινδυνεύει τοιαύτην τινὰ πεπλέχθαι συmicroπλοκὴν τὸ microὴ ὂν τῷ ὄντι καὶ microάλα ἄτοπονrdquo (Sofista 240c2-3) 68 O termo ldquodiscurso falsordquo (λόγος ψευδὴς) tambeacutem eacute utilizado (Sofista 240e10)
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(ἀλλοδοξία) aparentemente defendida por Antiacutestenes e apontada por Platatildeo no Teeteto
Com base no que foi dito poderemos dizer portanto e a partir de agora com propriedade
que a problemaacutetica tratada no Sofista eacute loacutegica-ontoloacutegica aparece na primeira aporia
com a vinculaccedilatildeo do natildeo ser ao discurso falso
A relaccedilatildeo entre loacutegica e ontologia se desdobraraacute de modo paralelo na segunda
aporia (aporia do ser) a dificuldade seraacute agora a de associar o ser a um discurso
verdadeiro que natildeo tenha de ser necessariamente tautoloacutegico Se eacute a partir de 242c que o
Estrangeiro de Eleia passa conduzir o problema do natildeo ser em direccedilatildeo ao ser eacute soacute em
251a5 que a segunda aporia a aporia do ser eacute manifestada E a aporia que natildeo permitia
que nenhum lado dos pares doutrinaacuterios expostos (unomuacuteltiplo formascorpos
movimentorepouso) desse conta da explicaccedilatildeo do que natildeo eacute (microὴ ὂν) agora passa a
mostrar que qualquer uma dessas doutrinas se mostra tambeacutem inoacutecua para a explicaccedilatildeo
do que eacute (τὸ ὄν) A segunda aporia eacute identificada a partir das noccedilotildees de movimento
(κίνησις) e repouso (στάσις) mas se aplica tambeacutem aos outros pares doutrinaacuterios que
foram anteriormente expostos69
Teeteto Corremos o risco de entrever o ser verdadeiramente como
um terceiro quando afirmamos que repouso e movimento satildeo
Hoacutespede de Eleia Portanto o ser natildeo eacute a combinaccedilatildeo de
movimento e repouso mas ao contraacuterio algo diferente desses
T Parece
H Portanto segundo a sua natureza o ser natildeo estaacute parado nem se
move
T Eacute quase isso
H Para onde ainda precisa dirigir o raciociacutenio aquele que quiser
chegar a ter seguro em si algo claro a respeito do ser
T Pois para onde
H Creio que ainda natildeo eacute faacutecil chegar a nenhum lugar Pois se algo
natildeo se move como natildeo estaacute parado Ou o que de nenhum modo
estaacute parado por sua vez natildeo se move Ora o ser manifesta-se a noacutes
agora alheio a uma e outra dessas alternativas Eacute isso possiacutevel
69 Eacute possiacutevel interpretar tambeacutem que Platatildeo parece pretender resolver todas essas querelas doutrinaacuterias num soacute golpe com a resoluccedilatildeo das duas aporias
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T Eacute mais impossiacutevel que tudo70 (250c1-250d4 os grifos satildeo
nossos e a traduccedilatildeo foi levemente modificada)
O trecho que de certa forma retoma 243d6-e6 (sobre aqueles que afirmam que
tudo eacute dois quente e frio) agora introduz a noccedilatildeo de oposiccedilatildeo contraditoacuteria
(ἐναντιώτατα em 250a8-1071) e posto isto impossibilita a alternativa do ser natildeo
pertencer nem ao repouso nem ao movimento (pois se natildeo fosse movimento seria
necessariamente repouso e se natildeo fosse repouso seria necessariamente movimento)
Assim a princiacutepio natildeo existe a possibilidade do ser existir como um terceiro
independente dos contraacuterios A impossibilidade de tal alternativa eacute postulada neste
momento do texto platocircnico e ao nosso ver se mostra muito semelhante ao que se
chamou de terceiro excluiacutedo em Aristoacuteteles72 No entanto mais a frente pretendemos
notar como Platatildeo resolveraacute isso a partir da instituiccedilatildeo de duas noccedilotildees que natildeo sejam mais
opostas contraditoriamente mas contrapostas dialeticamente (oposiccedilatildeo que deixaraacute de ser
contradiccedilatildeo ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar contraposiccedilatildeo ἀντίθεσιςrdquo)
70 Θεαίτητος - κινδυνεύοmicroεν ὡς ἀληθῶς τρίτον ἀποmicroαντεύεσθαί τι τὸ ὄν ὅταν κίνησιν καὶ στάσιν εἶναι λέγωmicroεν Ξένος - οὐκ ἄρα κίνησις καὶ στάσις ἐστὶ συναmicroφότερον τὸ ὂν ἀλλ᾽ ἕτερον δή τι τούτων Θεαίτητος ἔοικεν Ξένος - κατὰ τὴν αὑτοῦ φύσιν ἄρα τὸ ὂν οὔτε ἕστηκεν οὔτε κινεῖται Θεαίτητος - σχεδόν Ξένος - ποῖ δὴ χρὴ τὴν διάνοιαν ἔτι τρέπειν τὸν βουλόmicroενον ἐναργές τι περὶ αὐτοῦ παρ᾽ ἑαυτῷ βεβαιώσασθαι Θεαίτητος - ποῖ γάρ Ξένος - οἶmicroαι microὲν οὐδαmicroόσε ἔτι ῥᾴδιον εἰ γάρ τι microὴ κινεῖται πῶς οὐχ ἕστηκεν ἢ τὸ microηδαmicroῶς ἑστὸς πῶς οὐκ αὖ κινεῖται τὸ δὲ ὂν ἡmicroῖν νῦν ἐκτὸς τούτων ἀmicroφοτέρων ἀναπέφανται ἦ δυνατὸν οὖν τοῦτο Θεαίτητος - πάντων microὲν οὖν ἀδυνατώτατον (250c1-250d4 o grifo eacute nosso) 71 Hoacutespede de Eleia Pudesse ser Acaso natildeo afirmas que movimento e repouso satildeo o mais contraacuterios um ao outro Teeteto Pois como natildeo Ξένος - εἶεν δή κίνησιν καὶ στάσιν ἆρ᾽ οὐκ ἐναντιώτατα λέγεις ἀλλήλοις Θεαίτητος - πῶς γὰρ οὔ (Sofista 250a8-10) 72 Mesmo que natildeo seja de nenhuma valia pois a questatildeo natildeo parece ser puramente proposicional vale notar que o princiacutepio de natildeo contradiccedilatildeo em conjunccedilatildeo com o princiacutepio do terceiro excluiacutedo implica o princiacutepio de bivalecircncia pois para qualquer proposiccedilatildeo P natildeo eacute possiacutevel P e natildeo P (natildeo contradiccedilatildeo) e tambeacutem natildeo podemos ter nem P nem natildeo P (terceiro excluiacutedo) logo resta apenas P ou natildeo P (bivalecircncia) A comparaccedilatildeo se torna ainda mais interessante pelo fato do estabelecimento da bivalecircncia proposicional parecer ser o grande objetivo do ldquoSofistardquo Apesar do interesse ser grande natildeo operaremos esta leitura por acharmos esta aplicaccedilatildeo da loacutegica formal contemporacircnea aos textos antigos por demais anacrocircnica Tal dificuldade no uso do instrumental formal contemporacircneo se torna ainda maior quando se trata de um pensamento preacute-aristoteacutelico
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Conforme indicado em 250e6-251a173 a soluccedilatildeo proposta pelo estrangeiro agiraacute
sobre as duas aporias e solucionaraacute as duas dificuldades em um soacute lance As aporias
ontoloacutegicas satildeo identificadas por meio da estrutura entre as oraccedilotildees que as enunciam ou
seja por sua forma loacutegica Primeira aporia a do natildeo ser e do falso o natildeo ser eacute (P e natildeo-
P) Segunda aporia do ser e do verdadeiro posto que P natildeo eacute o mesmo que o ser o ser
nem eacute P nem eacute natildeo-P Esta uacuteltima aporia eacute evidenciada pelo ldquonemhellipnemhelliprdquo que
expusemos acima(ldquoοὔτεhellipοὔτεhelliprdquo em 250c6-7) Diz o Estrangeiro para manifestar a
segunda aporia
ldquoDigamos entatildeo como de cada vez chamamos a mesma coisa com
muitos nomesrdquo74 (Sofista 251a5-6)
Podemos considerar entatildeo que ldquoo ser natildeo estar parado nem se moverrdquo ldquoo ser natildeo
eacute nem um nem muacuteltiplordquo e ldquoa mesma coisa eacute chamada de muitos nomesrdquo sejam
manifestaccedilotildees ou diferentes pontos de vista sobre um mesmo e determinado problema
Ao decorrer do diaacutelogo a existecircncia desse discurso que mistura os opostos deveraacute ser
justificada e fundamentada isto eacute deveraacute ser garantida uma legitimidade para o seu uso
O problema do um e do muacuteltiplo que jaacute havia sido prenunciado em 244d volta agrave
tona e se transfigura na passagem citada acima no problema da incompatibilidade do
mesmo (ταὐτὸν) com os muitos (πολλοῖς) Esta uacuteltima discrepacircncia direcionada ao
discurso seraacute identificada com o problema da impossibilidade da definiccedilatildeo natildeo
tautoloacutegica de algo ou para dizer de outro modo com a inviabilidade daquilo que
chamariacuteamos hoje de predicaccedilatildeo (isto eacute sendo X diferente de Y como atribuir um Y a
um X) aparentemente para garantir o uso da predicaccedilatildeo e de uma definiccedilatildeo que tenha
relevacircncia teriacuteamos que assumir que a uma mesma coisa possa ser acrescentada muitas
outras Platatildeo explicita a aporia da seguinte maneira
73 Uma vez que em peacute de igualdade o ser e o natildeo ser fazem parte da aporia surge agora uma esperanccedila de que se um dos dois aparecer mais embaccedilado ou mais claro que o outro deles assim tambeacutem apareccedilardquo Em grego ἐπειδὴ δὲ ἐξ ἴσου τό τε ὂν καὶ τὸ microὴ ὂν ἀπορίας microετειλήφατον νῦν ἐλπὶς ἤδη καθάπερ ἂν αὐτῶν θάτερον εἴτε ἀmicroυδρότερον εἴτε σαφέστερον ἀναφαίνηται καὶ θάτερον οὕτως ἀναφαίνεσθαι(Sofista 250e6-251a1) 74ldquoλέγωmicroεν δὴ καθ᾽ ὅντινά ποτε τρόπον πολλοῖς ὀνόmicroασι ταὐτὸν τοῦτο ἑκάστοτε προσαγορεύοmicroενrdquo (Sofista 251a5-6)
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ldquoFalamos de homem aplicando-lhe variadas denominaccedilotildees
atribuindo-lhe cores e figuras grandezas viacutecios virtudes e em
todos estes e milhares de outros casos natildeo soacute dizemos o proacuteprio
homem mas tambeacutem que eacute bom e outras coisas sem fim E tambeacutem
outras coisas ainda cada uma das quais de acordo com o mesmo
discurso supomos serem uma [ἓν] e dizemos muitas [πολλὰ] com
muitos nomes [πολλοῖς ὀνόmicroασι] rdquo75 (Sofista 251a8-b4)
E continua
ldquoDe onde creio preparaacutemos um banquete para os mais jovens e
de entre os velhos os tardios a aprender a qualquer um estaacute ao
alcance das matildeos retrucar que eacute impossiacutevel [ἀδύνατον] o muacuteltiplo
ser um [τά τε πολλὰ ἓν] e o um ser muacuteltiplo [καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι]
por isso alegram-se natildeo deixando chamar ao homem bom mas ao
bom bom e ao homem homemrdquo76 (Sofista 251b6-c2)
Deste modo a dificuldade em justificar a atribuiccedilatildeo de um predicado a um sujeito
mostra-se completamente decorrente da problemaacutetica que dizia respeito ao um e
consequentemente ao seu par oposto o muacuteltiplo Assim como a primeira a segunda
aporia eacute tambeacutem bem parecida com uma tese atribuiacuteda a Antiacutestenes a da impossibilidade
de definiccedilatildeo Tenhamos em mente que a importacircncia da noccedilatildeo de definiccedilatildeo (marcada pela
pergunta ldquoo que eacuterdquo em grego ldquoτί ἐστιrdquo) para o contexto dos diaacutelogos platocircnicos eacute
central principalmente nos diaacutelogos da juventude ditos ldquosocraacuteticosrdquo Relata-nos
Aristoacuteteles a respeito de tal tese de Antiacutestenes
75 ldquoλέγοmicroεν ἄνθρωπον δήπου πόλλ᾽ ἄττα ἐπονοmicroάζοντες τά τε χρώmicroατα ἐπιφέροντες αὐτῷ καὶ τὰ σχήmicroατα καὶ microεγέθη καὶ κακίας καὶ ἀρετάς ἐν οἷς πᾶσι καὶ ἑτέροις microυρίοις οὐ microόνον ἄνθρωπον αὐτὸν εἶναί φαmicroεν ἀλλὰ καὶ ἀγαθὸν καὶ ἕτερα ἄπειρα καὶ τἆλλα δὴ κατὰ τὸν αὐτὸν λόγον οὕτως ἓν ἕκαστον ὑποθέmicroενοι πάλιν αὐτὸ πολλὰ καὶ πολλοῖς ὀνόmicroασι λέγοmicroενrdquo (ldquoSofistardquo 251a8-b4) 76 ldquoὅθεν γε οἶmicroαι τοῖς τε νέοις καὶ τῶν γερόντων τοῖς ὀψιmicroαθέσι θοίνην παρεσκευάκαmicroεν εὐθὺς γὰρ ἀντιλαβέσθαι παντὶ πρόχειρον ὡς ἀδύνατον τά τε πολλὰ ἓν καὶ τὸ ἓν πολλὰ εἶναι καὶ δήπου χαίρουσιν οὐκ ἐῶντες ἀγαθὸν λέγειν ἄνθρωπον ἀλλὰ τὸ microὲν ἀγαθὸν ἀγαθόν τὸν δὲ ἄνθρωπον ἄνθρωπονrdquo (Sofista 251b6-c2)
48
ldquoPor conseguinte tem algum acerto o impasse com o qual os
Antistecircnicos e outros assim desprovidos de formaccedilatildeo se
embaraccedilam a saber que natildeo eacute possiacutevel definir lsquoo que eacutersquo [οὐκ ἔστι
τὸ τί ἐστιν ὁρίσασθαι] (pois a definiccedilatildeo seria um enunciado longo)
mas que seria possiacutevel sim ensinar de que realidade eacute mas natildeo o
que eacute (por exemplo que a prata eacute tal como o estanho) Por
conseguinte haveria uma essecircncia da qual seria possiacutevel haver
definiccedilatildeo e enunciado ndash isto eacute a composta seja ela sensiacutevel ou
inteligiacutevel - por outro lado dos itens primeiros de que ela se
constitui mas natildeo seria possiacutevel haver definiccedilatildeo visto que o
enunciado definitoacuterio indica algo a respeito de algo [εἴπερ τὶ κατὰ
τινὸς σηmicroαίνει ὁ λόγος ὁ ὁριστικὸς] e eacute preciso que um desses itens
seja como mateacuteria e o outro como formardquo (Aristoacuteteles
Metafiacutesica VIII 1043b23-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni77 ed
Prince 150 A Decleva Caizzi 44 A)
Ou seja definir algo eacute de algum modo articular diferentes nomes e isso
pressuporia tratar de uma unidade em associaccedilatildeo com uma multiplicidade Outra
passagem exposta por Aristoacuteteles tambeacutem pode ser comparada ao trecho do Sofista Uma
passagem aristoteacutelica que tambeacutem identifica o problema do ser com relaccedilatildeo ao um e ao
muacuteltiplo
ldquoAteacute mesmo os uacuteltimos dos antigos se perturbaram cuidando para
que a mesma coisa natildeo se lhes tornasse ao mesmo tempo uma e
muitas (ἓν καὶ πολλά) Por isso uns suprimiram o lsquoeacutersquo como
Licofratildeo ao passo que outros requintaram o modo de falar natildeo lsquoo
homem eacute brancorsquo mas lsquobranquejou-sersquo nem lsquoeacute caminhantersquo mas
lsquocaminharsquo a fim de que natildeo fizessem um ser muitos ao aplicar-lhe
77 ARISTOacuteTELES 2005 p 117
49
o lsquoeacutersquo ndash como se um e ente se dissessem de uma soacute maneirardquo78
(Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32 traduccedilatildeo de Lucas Angioni79)
Isto eacute como o problema do um e do muacuteltiplo eacute tratado em termos relativos ao ser
muitos pensadores da antiguidade imaginaram que o problema estaria resolvido por um
simples ocultamento do verbo ldquoserrdquo No entanto concluiacutemos pela interpretaccedilatildeo da
primeira aporia e de sua passagem agrave segunda que para Platatildeo pelo menos no Sofista as
dificuldades oriundas das oposiccedilotildees entre ummuacuteltiplo todopartes formacorpo
mesmooutro e repousomovimento satildeo expressotildees de um mesmo problema ontoloacutegico
fundamental o do abismo ontoloacutegico entre ser e natildeo ser Identificada a origem comum
de todas essas querelas ou seja aquilo que para Platatildeo seria a raiz das vaacuterias
discordacircncias entre doutrinas a resoluccedilatildeo da questatildeo relativa aos diversos pares de
conceitos opostos deveraacute ser realizada a partir de um uacutenico e certeiro golpe80
De certa forma aqueles que suprimiram o verbo ldquoserrdquo de suas frases fizeram um
diagnoacutestico correto mas erraram na profilaxia isto eacute natildeo enfrentaram o problema
ocultando-o de maneira apenas paliativa Fato eacute que tais problemas soacute poderatildeo ser
resolvidos ao voltarmos os olhos para as relaccedilotildees entre os elementos que constituem os
enunciados isto eacute teremos que garantir que o discurso seja constituiacutedo de partes que seja
um discurso articulado que o um seja muacuteltiplo e que o ser de algum modo natildeo seja Em
termos ontoloacutegicos para resolver a aporia devemos instituir uma comunidade entre os
entes (ou como queira entre as formas) e um modo de fazecirc-los participar um do outro
III
No entanto muitas vezes os platonistas e estudiosos do diaacutelogo Sofista natildeo nos
informaram que estas duas aporias expostas acima decorrem da tentativa de justificar dois
78 ἐθορυβοῦντο δὲ καὶ οἱ ὕστεροι τῶν ἀρχαίων ὅπως microὴ ἅmicroα γένηται αὐτοῖς τὸ αὐτὸ ἓν καὶ πολλά διὸ οἱ microὲν τὸ ἐστὶν ἀφεῖλον ὥσπερ Λυκόφρων οἱ δὲ τὴν λέξιν microετερρύθmicroιζον ὅτι ὁ ἄνθρωπος οὐ λευκός ἐστιν ἀλλὰ λελεύκωται οὐδὲ βαδίζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες ζων ἐστὶν ἀλλὰ βαδίζει ἵνα microή ποτε τὸ ἐστὶ προσάπτοντες πολλὰ εἶναι ποιῶσι τὸ ἕν ὡς microοναχῶς λεγοmicroένου τοῦ ἑνὸς ἢ τοῦ ὄντοςrdquo (Aristoacuteteles Fiacutesica I 2 185b25-32) 79 ARISTOacuteTELES 2009 80 Platatildeo diz ldquoTodas essas doutrinas nada diriam se natildeo houvesse misturardquo (ldquoκατὰ πάντα ταῦτα λέγοιεν ἂν οὐδέν εἴπερ microηδεmicroία ἔστι σύmicromicroειξιςrdquo em 252b5-6)
50
termos de uma das divisotildees operadas no diaacutelogo81 Podemos recuar no texto platocircnico e
identificar que toda essa discussatildeo com o eleatismo tem origem em 235c9-d2 quando
Platatildeo no interior da seacutetima e uacuteltima definiccedilatildeo de sofista enuncia a divisatildeo de duas
formas da arte de imitar a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ em 235d6) e a arte do simulacro
(φανταστικὴ em 236c3-4) Neste contexto a primeira aporia (a aporia do natildeo ser) estaacute
vinculada agrave justificaccedilatildeo da existecircncia de um simulacro (φάντασmicroα) condiccedilatildeo necessaacuteria
para uma arte do simulacro (φανταστικὴ) que denote falsidade jaacute a segunda aporia (a
aporia do ser) se associa agrave tentativa de conferir as condiccedilotildees ontoloacutegicas para a existecircncia
de um iacutecone ou coacutepia (εἰκών) e por conseguinte de uma arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) que
o tomaria como base ou seja garantiria a possibilidade de se conceber uma coacutepia fiel e
verdadeira
A arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) eacute apresentada em 235d7-8 como aquela que imita
ldquoconforme a proporccedilatildeo do modelordquo (κατὰ τὰς τοῦ παραδείγmicroατος συmicromicroετρίας) ou seja
esta arte seguiraacute ldquodas coisas belas a verdadeira proporccedilatildeordquo (τῶν καλῶν ἀληθινὴν
συmicromicroετρίαν em 235e6-7) o produto de tal arte seria uma coacutepia (ldquoεἰκώνrdquo origem
etimoloacutegica da palavra portuguesa ldquoiacuteconerdquo) Diraacute Platatildeo em 236a8-9 ldquonatildeo eacute justo o que
eacute copiado [εἰκός] chamar coacutepia [εἰκόνα]rdquo82 Esta teacutecnica estaacute vinculada agravequilo que eacute
verdadeiro e ao que parece para garantir a possibilidade de tal arte seraacute necessaacuterio
perseguir (a partir de 250e) a soluccedilatildeo da aporia do verdadeiro83
Seraacute todavia pela chamada arte do simulacro (φανταστικὴ) que se chegaraacute ao
grande problema que tomaraacute grande parte do diaacutelogo Deste modo seraacute a partir da
incompreensatildeo e perplexidade a respeito da possibilidade de uma arte do simulacro que
se originaraacute a primeira aporia a aporia do falso Em 236b7 o Estrangeiro explicita a arte
do simulacro (φανταστικὴ) produz aquilo que aparece (φαίνεται) mas natildeo copia (ἔοικε)
produz aquilo que chamaremos de simulacro (φάντασmicroα) Assim natildeo demora a ser
enunciada a aporia do falso
81 Sobre a falta de interesse dos comentadores com relaccedilatildeo agrave ligaccedilatildeo entre a uacuteltima definiccedilatildeo de sofista e a proposta ontoloacutegica do diaacutelogo ver DIXSAUT 2000 p 272 82 Traduccedilatildeo nossa 83 A aporia do falso parece incontestavelmente decorrer da possibilidade de realizaccedilatildeo da arte do simulacro Se considerarmos que a aporia do verdadeiro estaacute relacionada agrave arte da coacutepia compreenderemos por que a soluccedilatildeo de uma aporia leva agrave soluccedilatildeo da outra (em 250e-251a) tal relaccedilatildeo se deve agrave compreensatildeo do proacuteprio meacutetodo da divisatildeo no qual a conjunccedilatildeo das duas partes que satildeo contrapostas numa determinada divisatildeo necessariamente deve resultar numa unidade sintetizada a partir delas Assim solucionando uma das partes da divisatildeo posto que satildeo a dupla divisatildeo de um todo conhecido se solucionaria por exclusatildeo a outra parte tambeacutem
51
ldquoCom efeito o facto de uma coisa aparecer e parecer isso mas natildeo
ser e o de dizer muitas coisas mas natildeo verdadeiras tudo isso estaacute
cheio de dificuldades o tempo todo tanto no passado quanto agora
Pois como se pode falando dizer ou opinar que coisas falsas na
realidade satildeo e tendo-as pronunciado natildeo se enlear na
contradiccedilatildeordquo84 (Sofista 236e1-5)
E o Estrangeiro ainda conclui
ldquoEssa declaraccedilatildeo teve a ousadia de supor que o que natildeo eacute eacute pois de
outra maneira a falsidade natildeo viria a serrdquo85 (Sofista 237a3-4)
Entretanto para Platatildeo a dificuldade na distinccedilatildeo entre a arte da coacutepia e a arte
do simulacro se deve ao fato de ambas serem espeacutecies de um soacute gecircnero resultam da
divisatildeo da arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴ] A microιmicroητικὴ arte de imitar (que
ocorre em 235d1 e 235c3) por sua vez parece neste contexto especiacutefico ser sinocircnima
de arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴν τέχνην)86 ou seja a arte de imitar e a arte de
produzir imagens fazem referecircncia pelo menos aqui agrave mesma praacutetica e agrave mesma
atividade
ldquoFica entatildeo acordado dividir o mais raacutepido possiacutevel a arte de produzir imagens [εἰδωλοποιικὴν τέχνην]rdquo (Sofista 235b8-9)
Paralelamente temos a identificaccedilatildeo desta com a arte de imitar
84 ldquoτὸ γὰρ φαίνεσθαι τοῦτο καὶ τὸ δοκεῖν εἶναι δὲ microή καὶ τὸ λέγειν microὲν ἄττα ἀληθῆ δὲ microή πάντα ταῦτά ἐστι microεστὰ ἀπορίας ἀεὶ ἐν τῷ πρόσθεν χρόνῳ καὶ νῦν ὅπως γὰρ εἰπόντα χρὴ ψευδῆ λέγειν ἢ δοξάζειν ὄντως εἶναι καὶ τοῦτο φθεγξάmicroενον ἐναντιολογίᾳ microὴ συνέχεσθαιrdquo (Sofista 336e1-5) 85 ldquoτετόλmicroηκεν ὁ λόγος οὗτος ὑποθέσθαι τὸ microὴ ὂν εἶναι ψεῦδος γὰρ οὐκ ἂν ἄλλως ἐγίγνετο ὄνrdquo (Sofista 237a3-4) 86 Opiniatildeo tambeacutem de Nestor-Luis Cordero ldquoLe mot εἰδωλοποιικὴ que nous avons traduit simplement par lsquotechnique de production drsquoimages est um synonyme de microιmicroητικὴrdquo (PLATON 1993 p 227 n 106 p 286) Ao que parece a palavra ldquoεἴδωλονrdquo natildeo tem aiacute sentido pejorativo significa simplesmente ldquoimagemrdquo (como podemos bem ver no uso do termo εἴδωλον em 239d-240b)
52
ldquoSegundo o modo de divisatildeo proposto eu mesmo agora acho que
distingo duas formas da arte de imitar [microιmicroητικῆς]rdquo87 (Sofista
235c9-d2)
As duas partes decorrentes desta divisatildeo seriam (a) ldquoarte de copiar [εἰκαστικὴ]rdquo
(235d6) e (b) ldquoarte dos simulacros [φανταστικὴ]rdquo (236c4) Desta maneira como a
questatildeo eacute a da divisatildeo da arte de produzir imagens em duas espeacutecies pode-se dizer que o
grande problema que a soluccedilatildeo das duas aporias pretende resolver natildeo deve ser o de
garantir a mera possibilidade de produzir qualquer imagem mas sim garantir que seja
possiacutevel realizar dois tipos diferentes de produccedilatildeo por um lado de boas imagens por
meio da arte da coacutepia por outro de maacutes imagens por meio da arte do simulacro No
Sofista se fundamentaraacute portanto algo que fica apenas indicado em outros diaacutelogos
platocircnicos a possibilidade de uma boa e de uma maacute mimese88
Mas para compreender a origem e desenvolvimento dos termos εἰδωλοποιικὴ
microιmicroητικὴ εἰκαστικὴ e φανταστικὴ deveremos fazer um recuo para tratar da localizaccedilatildeo
desses gecircneros no interior da seacutetima definiccedilatildeo de sofista
No iniacutecio do diaacutelogo antes de instituir qualquer definiccedilatildeo de sofista Platatildeo
estabelece uma averiguaccedilatildeo do meacutetodo que deveraacute ser utilizado para a definiccedilatildeo isto eacute
realizaraacute um teste com o intuito de conferir se o meacutetodo das divisotildees cumpriria a tarefa
que lhe era requisitada associar corretamente pelo discurso um nome a uma atividade89
Como modelo para a definiccedilatildeo mais complexa eacute proposto o estudo da definiccedilatildeo de pesca
agrave linha (218e2-5) Nesta antecacircmara metodoloacutegica visando a divisatildeo da arte (τέχνη) em
produccedilatildeo (ποιητικῆς) e aquisiccedilatildeo (κτητικῆς) o estrangeiro nos define o que eacute produzir90
De tudo que natildeo existindo antes algueacutem depois leve agrave existecircncia
dizemos que aquele que leva a existir produz e o que eacute levado eacute
produzido91 (Sofista 219b4-6)
87 ldquoκατὰ δὴ τὸν παρεληλυθότα τρόπον τῆς διαιρέσεως ἔγωγέ microοι καὶ νῦν φαίνοmicroαι δύο καθορᾶν εἴδη τῆς microιmicroητικῆςrdquo (Sofista 235c9-d2) 88 ldquoThe crucial distinction between eikastike and phantastike must be understood as the distinction between true and false mimesisrdquo (PALUMBO 2013 p 269) 89 218b6-d6 e sua retomada em 221a7-b2 90 Esta definiccedilatildeo de produccedilatildeo do Sofista retoma o que jaacute havia sido dito no Banquete (205b-c) 91 ldquoπᾶν ὅπερ ἂν microὴ πρότερόν τις ὂν ὕστερον εἰς οὐσίαν ἄγῃ τὸν microὲν ἄγοντα ποιεῖν τὸ δὲ ἀγόmicroενον ποιεῖσθαί πού φαmicroενrdquo (219b4-6)
53
Esta fala do estrangeiro se sobressai agraves outras pelo poderoso arsenal ontoloacutegico
empregado ateacute entatildeo oculto no diaacutelogo Entretanto a frase aparentemente eacute inoacutecua
como um tiro na aacutegua Pois eacute escolhido prosseguir por uma anaacutelise da aquisiccedilatildeo92 e natildeo
da produccedilatildeo
Para estabelecer a primeira definiccedilatildeo do sofista o Estrangeiro de maneira muito
estranha se limita a postular a semelhanccedila entre pesca agrave linha e sofiacutestica fazendo entatildeo
a nova cadeia de divisotildees se iniciar pela quinta divisatildeo da definiccedilatildeo de pesca agrave linha opta
por comeccedilar pelo gecircnero da caccedila Ou seja aquela divisatildeo preliminar do pescador agrave linha
inicialmente realizada apenas para testar a validade formal do meacutetodo eacute utilizada tambeacutem
como ponto de partida para os conteuacutedos da divisatildeo que pretende definir o sofista
Assim enquanto estabelece a primeira definiccedilatildeo do sofista (como caccedilador
interessado de jovens ricos 222a-223c) Platatildeo desconsidera fazer um exame sobre as
quatro primeiras divisotildees que lhe serviam de condiccedilatildeo para a desejada definiccedilatildeo a saber
entre animados e inanimados entre luta e caccedila entre troca e captura e entre produccedilatildeo
e aquisiccedilatildeo Poreacutem o que para um leitor desatento poderia ser interpretado como uma
falha na exposiccedilatildeo platocircnica na verdade pode ser explicado por meio das definiccedilotildees
seguintes do sofista o estrangeiro brilhantemente retoma uma a uma as divisotildees que
estavam ldquopendentesrdquo Ao que parece segundo a regra exposta em 218c7-d2 a ordem
destas anaacutelises parte do mais faacutecil em direccedilatildeo ao mais difiacutecil de ser solucionado o
estrangeiro cerca o sofista de modo a encontrar o esconderijo em que este se abriga
Ao problema dos inanimados Platatildeo natildeo demonstra muito interesse (ver 220a1-
4) mas mesmo assim comentaacuterios a respeito da alma (ψυχή) satildeo feitos no interior de
outras cadeias de divisatildeo (223e1-6 sobre comeacutercios dedicados agrave alma ou principalmente
em 227a7-228a2 sobre a sauacutede a doenccedila e a purificaccedilatildeo da alma) A questatildeo da troca
seraacute relembrada em 223c6-7 Seu desenrolar (223c-224d) daraacute origem agrave segunda
definiccedilatildeo do sofista como comerciante de ciecircncia das virtudes93 Para a quinta definiccedilatildeo
92 As divisotildees seguem ldquoaquisiccedilatildeordquo se dividiria em ldquopor trocardquo e ldquopor capturardquo ldquopor capturardquo em ldquopor lutardquo e ldquopor caccedilardquo ldquopor caccedilardquo em ldquoa inanimadosrdquo e ldquoa animadosrdquo ldquoa animadosrdquo em ldquoterrestresrdquo e ldquomariacutetimosrdquo ldquomariacutetimosrdquo em ldquoque voamrdquo e ldquoque ficam na aacuteguardquo ldquoque ficam na aacuteguardquo em ldquoque prende a presardquo e ldquoque fera a presardquo ldquoque fere a presardquo em ldquoao fogordquo e ldquocom fisgardquo ldquocom fisgardquo em ldquode cima para baixordquo (por meio de tridente) e ldquode baixo pra cimardquo (por meio de anzol) E com este uacuteltimo teriacuteamos chegado agrave definiccedilatildeo de ldquopesca agrave linhardquo 93 Como jaacute foi dito anteriormente a terceira e quarta definiccedilotildees parecem excertos da segunda definiccedilatildeo
54
(de eriacutestico mercenaacuterio) seraacute levada em consideraccedilatildeo a noccedilatildeo de luta (225a2-226a4) Na
definiccedilatildeo do sofista como purificador de almas pela refutaccedilatildeo (a sexta 226a-231c) o
estrangeiro adiciona mais uma possibilidadade de divisatildeo de artes Ao considerar a arte
da separaccedilatildeo (διακριτικήν) examinaraacute a purificaccedilatildeo (καθαρmicroός) e a educaccedilatildeo (παιδεία)
e isto terminaraacute por aproximar perigosamente o sofista do filoacutesofo (230e6-231a5)
Conveacutem notar que natildeo somente todas as definiccedilotildees do sofista conferem a este um tom de
equiacutevoco moral que deve ser reprovado mas tambeacutem que tais definiccedilotildees retomam
caracteriacutesticas jaacute atribuiacutedas ao sofista ao longo do corpus platocircnico94
A referecircncia agrave sexta definiccedilatildeo do sofista aquela que o classifica como contraditor
(ldquoἀντιλογικὸνrdquo em 232b1-b6) se alia agrave impossibilidade de algueacutem tudo saber (233a3-4)
e introduz a questatildeo que apontaraacute para o parecer saber e consequentemente para a anaacutelise
da imitaccedilatildeo a microίmicroησις (a vinculaccedilatildeo com a microίmicroησις eacute feita em 234b1-2)
Pretendemos defender com base na frase do estrangeiro de 233d9-10 a saber Se
algueacutem afirmasse nem dizer nem contradizer mas por uma soacute arte fazer e conseguir
conhecer todas as coisas (233d9-10)95 que neste momento haacute uma virada no texto e
Platatildeo se volta para a arte da produccedilatildeo com a qual ainda estaria em diacutevidas desde a sua
primeira divisatildeo (no exemplo da pesca agrave linha em 218e-221c)96 Por meio desta
interpretaccedilatildeo explicariacuteamos o motivo daquela frase protuberante em 219b4-6
justificariacuteamos o retorno das divisotildees para uma nova definiccedilatildeo do sofista a partir de 264c
(exatamente sob o jugo da produccedilatildeo) e o relembrar da mesma frase em 265b8-10
Obviamente se aceitarmos tal interpretaccedilatildeo somos necessitados a compreender a maior
e mais ceacutelebre parte do diaacutelogo como um grande apecircndice para solucionar a divisatildeo das
imagens imitadas pela coacutepia [εἰκών] e pelo simulacro [φάντασmicroα] Eacute de grande interesse
94 Podemos fornecer alguns exemplos caccedilador interessado de jovens ricos em Apologia de Soacutecrates (19e4-20a2) e Protaacutegoras (316c5- d2) comerciante em Protaacutegoras (313c4-6) eriacutestico mercenaacuterio pode ser encontrada no Eutidemo (272a5-b4) referindo-se aos irmatildeos Eutidemo e Apolodoro sofistas segundo a personagem Criacuteton (271c1) refutador e purificador de almas em Protaacutegoras (312b8-c1) por comparaccedilatildeo com as divisotildees a constituem a sexta definiccedilatildeo bem pode ser notada no diaacutelogo Goacutergias (450a e 464b-c) Apesar da seacutetima definiccedilatildeo parecer ser a mais caracteriacutestica do Sofista podemos tambeacutem no Goacutergias entrever algumas frases que jaacute a antecipam Por exemplo a noccedilatildeo equivocada da retoacuterica como a arte que abarca todas as outras (Goacutergias 456a-c Sofista 233c) ou a abordagem da retoacuterica como algo associado agrave imagem ao εἴδωλον isto eacute imagem de uma parte da poliacutetica (Goacutergias 463d1-2) No Sofista a sofiacutestica eacute tida como produtora de imagens(Sofista 268d1) 95 ldquoεἴ τις φαίη microὴ λέγειν microηδ᾽ ἀντιλέγειν ἀλλὰ ποιεῖν καὶ δρᾶν microιᾷ τέχνῃ συνάπαντα ἐπίστασθαι πράγmicroαταrdquo (Sofista 233d9-10) 96 A retomada da arte da produccedilatildeo eacute confirmada em 265a4-5
55
notar que se esta distinccedilatildeo operada no Sofista entre uma maneira correta e outra incorreta
de mimetizar se confirmasse ficaria clara e expliacutecita a existecircncia de uma boa microίmicroησις
questatildeo que atormentou e atormenta os estudiosos que buscam conciliar o livro X da
ldquoRepuacuteblicardquo com passagens em que uma boa microίmicroησις era simplesmente insinuada
Assim dizia Platatildeo em 236c76-7
ldquoEntatildeo eu chamava a essas duas formas da arte de fazer imagens
[εἰδωλοποιικῆς] a da coacutepia [εἰκαστικὴν] e a do simulacro
[φανταστικήν]rdquo97 (Sofista 236c6-7)
Seraacute justamente esta fala que o Estrangeiro retomaraacute quase no final do diaacutelogo
em 264c4-5
ldquoDa arte de fazer imagens [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas
formas a da coacutepia [εἰκαστικήν] e a do simulacro [φανταστικήν]rdquo98
(Sofista 264c4-5 modificamos a traduccedilatildeo da editora
Gulbenkian99)
Deste modo pretendemos evidenciar o modo como a seacutetima definiccedilatildeo foi
interrompida mas retorna exatamente do ponto em que parou para que seja feita a sua
recapitulaccedilatildeo Entre estes dois trechos citados acima a justificaccedilatildeo da divisatildeo da arte de
produzir imagens (ou se quiser da arte mimeacutetica) em dois por um lado arte da coacutepia e
por outro arte do simulacro seraacute o motor de todo o desenvolvimento loacutegico-ontoloacutegico
do diaacutelogo Assim em primeiro lugar eacute identificada a aporia do natildeo ser esta seria
dedicada a garantir a existecircncia de uma arte do simulacro (φανταστικὴ) produtora de
falsidades Por consequecircncia da primeira aporia cairemos tambeacutem na segunda a aporia
97 ldquoτούτω τοίνυν τὼ δύο ἔλεγον εἴδη τῆς εἰδωλοποιικῆς εἰκαστικὴν καὶ φανταστικήνrdquo (Sofista 236c6-7) 98 ldquoδιειλόmicroεθα τῆς εἰδωλοποιικῆς εἴδη δύο τὴν microὲν εἰκαστικήν τὴν δὲ φανταστικήνrdquo (Sofista 264c4-5) 99 Cabe notar que a traduccedilatildeo portuguesa natildeo captou a referecircncia a 236c6-7 No grego os mesmos termos de 236c foram utilizados mas os tradutores responsaacuteveis optaram pela seguinte opccedilatildeo ldquoDa arte dos simulacros [εἰδωλοποιικῆς] distinguimos duas formas a das imagens [εἰκαστικήν] e a das apariccedilotildees [φανταστικήν]rdquo (264c4-5) Ao aceitaacute-la se instaura certa confusatildeo entre os termos conceituais estabelecidos no iniacutecio do diaacutelogo confusatildeo esta que tem um alto preccedilo a pagar natildeo identificar a retomada da divisatildeo interrompida em 236e
56
do ser esta por sua vez legitimaria a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) produtora de imagens
verdadeiras A resoluccedilatildeo das duas aporias exigiraacute a construccedilatildeo de uma ontologia que
permita de algum modo a mistura de ser e natildeo ser
No entanto apoacutes a retomada da definiccedilatildeo interrompida ao prosseguir na cadeia
das divisotildees Platatildeo realiza uma mudanccedila fundamental que complica o entendimento
daquele trecho que nos direcionava agrave primeira aporia (233d-236e) ao que parece natildeo
haveria agora identidade entre a arte de produzir imagens (εἰδωλοποιικὴ) e a arte
mimeacutetica (microιmicroητικὴ) Desta vez como anteriormente a arte de produzir imagens
(εἰδωλοποιικὴ) se divide em arte da coacutepia (εἰκαστικὴ) e arte do simulacro (φανταστικὴ)
no entanto o mimeacutetico (microιmicroητικὸν em 267a10) eacute apenas uma parte da arte do simulacro
(φανταστικὴ) aquela parte que produz simulacros sem se valer da utilizaccedilatildeo de
instrumentos Entretanto neste caso duas perguntas continuam a intrigar
(i) Produzir imagens falsas com a utilizaccedilatildeo de instrumentos natildeo faria parte
da mimeacutetica Por exemplo a pintura natildeo seria uma arte mimeacutetica
(ii) Realizar uma coacutepia fiel natildeo seria tambeacutem uma forma de imitaccedilatildeo
Uma proposta de soluccedilatildeo para este impasse este titubear platocircnico no lugar
confiado agrave imitaccedilatildeo nos eacute fornecido por Monique Lassegravegue aquele que que produz
simulacros sem ao auxiacutelio de instrumentos eacute um miacutemico (LASSEgraveGUE 1991 p 256-
257) Deste modo a estudiosa pretende resguardar a arte mimeacutetica como sinocircnimo de
arte da produccedilatildeo de imagens Natildeo somente uma parte da arte dos simulacros mas
tambeacutem envolvendo a arte da coacutepia o que poderia ser entendido como uma boa mimese
A tentativa de Lassegravegue natildeo eacute completamente convincente mas fornece alguma resposta
para a dificuldade do texto platocircnico Uma outra resposta poderia ser a de que Platatildeo de
fato oferece na recapitulaccedilatildeo oferecida no final do diaacutelogo uma correccedilatildeo daquilo que
teria dito antes da primeira aporia Nesta uacuteltima opccedilatildeo natildeo haveria boa mimese Haveria
sim boas imagens mas a mimese estaria inserida como parte da produccedilatildeo de imagens
falsas ou seja seria uma parte da arte dos simulacros Lidia Palumbo tambeacutem vecirc o
57
mesmo problema e para resolvecirc-lo enfatiza o ldquosobretudordquo (microάλιστα) da frase em 267 a8-
9 com o objetivo de defender que haveria um outro tipo imitaccedilatildeo uma boa imitaccedilatildeo100
De qualquer forma de modo independente do problema da mimese se juntarmos
a passagem inicial que trata da produccedilatildeo de imagens (235c-236e) passagem esta que
gerou as duas aporias com a aplicaccedilatildeo da soluccedilatildeo ontoloacutegica dessas aporias ao acircmbito
discursivo (realizada a partir de 259e) parece ser possiacutevel estabelecer que Platatildeo estaacute
operando uma analogia clara entre imagem e discurso no Sofista101 Isto fica claro quando
em 234c5-6 o Estrangeiro se utiliza da expressatildeo ldquoimagens faladasrdquo (εἴδωλα λεγόmicroενα)
ao comparar a pintura com o discurso A grande tarefa do diaacutelogo seraacute portanto demarcar
com clareza a distinccedilatildeo entre uma boa e uma maacute imagem uma boa e maacute mimese102 ou
seja por analogia marcar a distinccedilatildeo entre um discurso verdadeiro e um discurso falso
Esta analogia no entanto soacute poderaacute ser efetivada pois Platatildeo parece compreender
que o discurso (λόγος) age do mesmo modo que uma imagem (εἴδωλον) assim como a
imagem todo discurso se refere a algo externo a ele mesmo103 Seraacute tal tarefa comparativa
que permitiraacute distinguir a figura do sofista aquele que produz imagens ruins e discursos
falsos da do filoacutesofo aparentemente o produtor por excelecircncia da boa coacutepia e do
discurso verdadeiro
Seria interessante portanto investigar a maneira como o filoacutesofo organiza seu
proacuteprio discurso Se partirmos de duas premissas (i) de que a arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria ligada agrave segunda aporia (a do ser) e (ii) de que a esta arte da coacutepia (εἰκαστικὴ)
estaria vinculada agrave atividade do por excelecircncia do filoacutesofo104 teriacuteamos entatildeo de ter uma
iacutentima ligaccedilatildeo entre a articulaccedilatildeo discursiva utilizada por Platatildeo o filoacutesofo no proacuteprio
diaacutelogo e os conteuacutedos ontoloacutegicos que forneceram uma soluccedilatildeo para a segunda aporia
Isto eacute seriacuteamos direcionados a encontrar uma coerecircncia profunda entre o meacutetodo
100 ldquoIt is interesting to notice that Plato emphasizes how it is this specific aspect of phantastike ldquoabove allrdquo (malista) which is called mimesis (267a8ndash9) In my opinion this means not only that there are other aspects of the phantastike that are called mimesis which can be described and understood as ldquoimitationrdquo but also that there are mimeseis which are not aspects of phantastike and which are not falserdquo (PALUMBO 2012 p 277) 101 Sobre este tema eacute indispensaacutevel o livro de Anca Vasiliu (VASILIU 2009) Para a tese contraacuteria de que imagem e discurso natildeo devem ser comparados temos opiniatildeo de William Bondeson (BONDESON 1972) 102 Na visatildeo de Lidia Palumbo ldquoboth the true and the false image are mimemata but only in the case of the true image does the soul receive a mimema that corresponds to realityrdquo (PALUMBO 2013 p 270) 103 No entanto a questatildeo permanece o discurso seria imagem de quecirc 104 A premissa (ii) eacute conjectural provaacutevel mas natildeo textual
58
discursivo que estrutura o diaacutelogo ou seja a divisatildeo dialeacutetica e a soluccedilatildeo ontoloacutegica
conferida no Sofista ao impasse gerado pela dramaacutetica relaccedilatildeo entre os objetivos
platocircnicos e a filosofia de Parmecircnides Comecemos portanto por compreender o
funcionamento do meacutetodo dialeacutetico da divisatildeo a διαίρεσις
59
INTERMEZZO DIALEacuteTICO
Bem conhecida eacute a passagem do Fedro na qual Platatildeo distingue claramente entre
dois tipos de dialeacutetica
ldquoSoacutecrates Primeiro a uma soacute ideia em visatildeo de conjunto levar o
que estaacute disperso em multiplicidade para que definindo cada
unidade se ponha em claro aquilo que em cada caso se quer
ensinarrdquo105 (Fedro 265d3-5)
ldquo[quanto ao segundo modo] O oposto por espeacutecies poder recortar
segundo as articulaccedilotildees naturais e tentar natildeo quebrar nenhuma
parte como faz um mau cozinheirordquo106 (Fedro 265e1-3)
ldquoDisso eacute que eu mesmo sou amante oacute Fedro dessas divisotildees e
conjunccedilotildees que me qualifiquem para falar e pensar e se algum
outro eu considero capaz de ver um naturalmente sobre muitos a
este eu o persigo lsquoatraacutes de seus passos como aos de um deusrsquo E o
que eacute certo tambeacutem eacute que os capazes de fazer isto deus sabe se os
designo corretamente ou natildeo mas ateacute o momento os chamo
dialeacuteticosrdquo107 (Fedro 266b3-c1)108
Nesta passagem com o intuito de diferenciar os dois tipos de dialeacuteticos Platatildeo se
vale da ambiguidade semacircntica do verbo que no infinitivo da voz meacutedia διαλέγεσθαι
significa dialogar ou simplesmente conversar mas na sua voz ativa διαλέγειν denota
escolher selecionar separar ou ateacute mesmo examinar (cf AUBENQUE 2012 p 238
nota 7) Ao primeiro modo estaacute associado o ato de olhar as coisas em conjunto
(συνορῶντα Fedro 265d tambeacutem em Leis 965b συνοπτικὸς διαλεκτικός Repuacuteblica
105 ldquomicroίαν τε ἰδέαν συνορῶντα ἄγειν τὰ πολλαχῇ διεσπαρmicroένα ἵνα ἕκαστον ὁριζόmicroενος δῆλον ποιῇ περὶ οὗ ἂν ἀεὶ διδάσκειν ἐθέλῃrdquo (Fedro 265d3-5) 106 ldquoτὸ πάλιν κατ᾽ εἴδη δύνασθαι διατέmicroνειν κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν καὶ microὴ ἐπιχειρεῖν καταγνύναι microέρος microηδέν κακοῦ microαγείρου τρόπῳ χρώmicroενονrdquo (Fedro 265e1-3) 107 τούτων δὴ ἔγωγε αὐτός τε ἐραστής ὦ Φαῖδρε τῶν διαιρέσεων καὶ συναγωγῶν ἵνα οἷός τε ὦ λέγειν τε καὶ φρονεῖν ἐάν τέ τιν᾽ ἄλλον ἡγήσωmicroαι δυνατὸν εἰς ἓν καὶ ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν τοῦτον διώκω κατόπισθε microετ᾽ ἴχνιον ὥστε θεοῖο καὶ microέντοι καὶ τοὺς δυναmicroένους αὐτὸ δρᾶν εἰ microὲν ὀρθῶς ἢ microὴ προσαγορεύω θεὸς οἶδε καλῶ δὲ οὖν microέχρι τοῦδε διαλεκτικούςrdquo (Fedro 266b3-c1) 108 Utilizamos a traduccedilatildeo do professor Cavalcante de Souza (PLATAtildeO 2016)
60
237c) que grosso modo estaacute vinculado agrave obtenccedilatildeo de uma ideia a partir de um tipo de
reuniatildeo da multiplicidade sensiacutevel Quanto ao segundo modo dialeacutetico a ele estaacute
associado o chamado meacutetodo da divisatildeo (διαίρεσις)
Pode-se dizer com tranquilidade que tal meacutetodo de destrinchar uma unidade em
suas multiplicidades teraacute prevalecircncia principalmente nos diaacutelogos considerados tardios
particularmente no Sofista Poliacutetico e Filebo Mais do que uma simples presenccedila fortuita
no entanto talvez possamos encarar este aparecimento tardio como uma misteriosa
novidade a ser decifrada
Talvez com certo exagero mas natildeo sem algum fundo de verdade Pierre Pellegrin
(PELLEGRIN 1991 p 412) brinca com uma possiacutevel mudanccedila do subtiacutetulo atribuiacutedo
possivelmente por Trasiacuteloco ao diaacutelogo Sofista do original ldquosobre o serrdquo (περὶ τοῦ ὄντος)
para ldquosobre a divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρέσεως) De fato Olimpiodoro (em seu
Prolegocircmenos) mesmo que assumindo uma posiccedilatildeo contraacuteria a seu emprego nos relata
a existecircncia de ldquosobre a arte da divisatildeordquo (περὶ τῆς διαιρετικῆς) como subtiacutetulo ao Sofista
Podemos ver tambeacutem numa traduccedilatildeo aacuterabe de uma obra de Galeno a atribuiccedilatildeo de ldquosobre
a divisatildeordquo (περὶ διαιρέσεως) como subtiacutetulo alternativo ao ldquosobre o serrdquo que
frequentemente encontramos nos manuscritos medievais do Sofista (ALLINE 1984 pp
127-128) Essa interpretaccedilatildeo de Pellegrin nos sugere o quanto pode ser esclarecedor ligar
a ontologia tardia de Platatildeo a tal meacutetodo conhecido como o ldquoda divisatildeordquo Entretanto de
todo modo parece ser muito forte afirmar como quer Pellegrin a prevalecircncia da divisatildeo
(διαίρεσις) sobre a tatildeo comentada ontologia do Sofista
Por outro lado de maneira oposta eacute forte na literatura a posiccedilatildeo interpretativa de
Gilbert Ryle que tem a pretensatildeo de postular a irrelevacircncia do meacutetodo da divisatildeo para a
resoluccedilatildeo de qualquer problema filosoacutefico que se queira verdadeiramente seacuterio Isso
valeria ateacute mesmo para os objetivos especiacuteficos da receacutem-nascida filosofia antiga (RYLE
2009 p 43) para Ryle nem Platatildeo nem a filosofia do seacuteculo XX teria algo a fazer com
este procedimento precursor da taxonomia bioloacutegica de Lineu
Se de certa forma o distanciamento que Ryle toma do meacutetodo da divisatildeo cumpre
a funccedilatildeo de impossibilitar uma continuidade entre os gecircneros supremos e dos demais
gecircneros (o que corroboraria a diferenciaccedilatildeo estabelecida por Wittgenstein entre mostrar
e dizer) de outra busca garantir que os gecircneros supremos tomados por Ryle como tipos
categoriais natildeo estabeleccedilam qualquer relaccedilatildeo entre si Pois afinal correriacuteamos o risco
de que o entrelaccedilamento entre eles nos reenviasse em direccedilatildeo agrave uma unidade primeira natildeo
61
predicativa e natildeo articulaacutevel pelo discurso Deste modo para Ryle o fosso entre os
gecircneros supremos e os demais gecircneros natildeo deveria ser apenas de grau mas de natureza
os gecircneros supremos eram lidos como conceitos formais e relacionais que natildeo
funcionariam segundo o modelo da divisatildeo gecircneroespeacutecie109
Natildeo haacute duacutevidas de que no Sofista o meacutetodo da divisatildeo estruturaraacute o texto
platocircnico como um todo Ele eacute testado no iniacutecio do diaacutelogo (no caso do pescador agrave linha
218c-221c) e seraacute utilizado como modelo (παράδειγmicroα) para se chegar agraves vaacuterias
definiccedilotildees de sofista seraacute justamente essas definiccedilotildees que iratildeo conferir uma estrutura
geral ou uma ossatura ao diaacutelogo No entanto pouco eacute falado no Sofista sobre as
caracteriacutesticas fundamentais de tal meacutetodo e quando algo a respeito disso eacute comentado
temos apenas observaccedilotildees impliacutecitas e incompletas sobre a divisatildeo (διαίρεσις) Cabe a
noacutes saber se por detraacutes da funccedilatildeo organizativa que as divisotildees proporcionam haacute de fato
alguma afinidade entre as novidades ontoloacutegicas do diaacutelogo e o meacutetodo que nele eacute
utilizado
I
A primeira informaccedilatildeo relevante sobre o meacutetodo da divisatildeo nos eacute oferecida pouco
antes de Platatildeo colocaacute-lo em praacutetica quais satildeo os objetivos de tal meacutetodo O que
pretendemos solucionar a partir de sua aplicaccedilatildeo O que ganhamos ao utilizaacute-lo Diz o
Estrangeiro sobre o problema relativo ao gecircnero do sofista
ldquoMas primeiro parece que deves comeccedilar agora por
examinar em comum comigo acerca do sofista buscando
explicar por um enunciado o que ele eacute [ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί
ποτ᾽ ἔστι] Pois ateacute agora em comum tu e eu temos acerca
dele apenas o nome [τοὔνοmicroα microόνον] mas a funccedilatildeo [ἔργον]
109 Antonia Soulez pontua ao lado de Julius Moravcsik que a distinccedilatildeo entre relaccedilatildeo e propriedade utilizada na leitura de Ryle natildeo existe para a Greacutecia antiga ldquoLrsquoideacutee du peu drsquoimportance que preacutesenterait pour le dialicien la tacircche de division [o que eacute a interpretaccedilatildeo de Gilbert Ryle] vient tout droit de cette distinction moderne entre proprieacuteteacutes et relations Crsquoest bien elle en effet qui permet de comprendre que dans le Sophiste les concepts tenus par Ryle pour philosophiquement inteacuteressants sont croit-il nettement et exclusivement relationnelsrdquo (SOULEZ 1991 p 223)
62
que lhe atribuiacutemos seraacute particular a cada um de noacutes Eacute
preciso sempre acerca de tudo estar de acordo sobre o
proacuteprio facto [πρᾶγmicroα] mais por enunciados [διὰ λόγων] do
que apenas pelo nome [τοὔνοmicroα microόνον] sem enunciado
[χωρὶς λόγου]rdquo110 (Sofista 218b7-c5)111
Em primeiro lugar devemos notar neste trecho a uso de um vocabulaacuterio tiacutepico das
definiccedilotildees socraacuteticas investigar o que eacute (τί ποτ᾽ ἔστι) Logo na frase seguinte Platatildeo
especifica melhor o que o termo quer dizer O objetivo pretendido seria aquele de
encontrar uma atividade para cada nome ou melhor para ser mais preciso verificar se
para cada nome distinto temos uma atividade correlata ao respectivo nome
A questatildeo que estaacute em vista eacute aquela exposta no iniacutecio do diaacutelogo (217a7-9) para
trecircs nomes distintos (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo) teriacuteamos um dois ou trecircs gecircneros
correspondentes Aos olhos de Platatildeo natildeo basta que estejamos em acordo quanto agrave
utilizaccedilatildeo dos mesmos nomes (ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo ldquofiloacutesofordquo) devemos estar em
concordacircncia por meio do discurso ou argumento (λόγος) utilizado para tratar das coisas
No contexto do diaacutelogo o meacutetodo da divisatildeo seria justamente o discurso (λόγος) que nos
permitiraacute entrar em concordacircncia com relaccedilatildeo agraves coisas (τά πράγmicroατα)
O mais proacuteximo que temos de uma definiccedilatildeo da divisatildeo (διαίρεσις) estaacute no proacuteprio
Sofista
ldquoHoacutespede de Eleia O acto de fazer divisotildees segundo os gecircneros e
de natildeo considerar a mesma forma diferente ou outra a mesma
acaso diremos que natildeo eacute da ciecircncia dialeacutetica
Teeteto Sim diremos
Hoacutespede de Eleia Pois bem aquele que eacute capaz de fazer isso
percebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitas estando uma
disposta separada de cada uma estendida por tudo e muitas
110 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 111 Este trecho seraacute retomado em 221b pois acredita-se que o objetivo do meacutetodo foi cumprido no caso do pescador agrave linha
63
formas diferentes contidas entre si por uma soacute de fora e uma
estendendo-se atraveacutes de muitos todos ajustados em conjunto
numa forma soacute e muitas formas separadas em tudo Isso eacute saber e
ser capaz de discernir cada coisa que comunga e cada coisa que natildeo
comunga segundo o gecircnerordquo112 (Sofista 253d1-e2)
O primeiro ponto que deve ser levado em conta a respeito da διαίρεσις eacute que segundo a
passagem que citamos do Fedro a divisatildeo deve ser feita ldquosegundo as formasrdquo (κατ᾽ εἴδη)
e ldquosegundo as articulaccedilotildees naturaisrdquo (κατ᾽ ἄρθρα ᾗ πέφυκεν) O verbo φύω daraacute origem
ao substantivo φύσις e segundo Pierre Hadot (HADOT 2004 p 25-26) apresenta duplo
significado natildeo soacute ldquoaparentar um aspectordquo mas tambeacutem algo em torno de ldquocrescerrdquo
ldquobrotarrdquo ldquoformarrdquo ou ldquoengendrarrdquo Assim o primeiro sentido faz prevalecer as
caracteriacutesticas de algo jaacute os demais evidenciam o processo de constituiccedilatildeo desta coisa
No caso da passagem do Fedro o aspecto perfeito do verbo φύω πέφυκεν marca
o resultado de um ato direcionando portanto a interpretaccedilatildeo da frase para a compreensatildeo
de que as articulaccedilotildees jaacute estatildeo constituiacutedas e natildeo em processo de crescimento ou
formaccedilatildeo Ou seja podemos dizer que no meacutetodo da divisatildeo devemos desmembrar algo
respeitando as conjunccedilotildees que constituem esta coisa separando corretamente cada parte
que lhe eacute caracteriacutestica
No entanto quando trata sobre a διαίρεσις na outra passagem que citamos aquela
do Sofista Platatildeo afirma que a divisatildeo se faz ldquosegundo o gecircnerordquo ou segundo os gecircneros
(κατὰ γένη διαιρεῖσθαι ou διακρίνειν κατὰ γένος) O radical γεν- de ldquogecircnerordquo por sua
vez eacute tido como signo da noccedilatildeo de geraccedilatildeo ou de vir-a-ser Eacute bem previsiacutevel no entanto
que uma sociedade gestada nos versos da Teogonia de Hesiacuteodo compreenda que a
constituiccedilatildeo e aspectos de algo natildeo estatildeo dissociados do seu processo de geraccedilatildeo a partir
de noccedilotildees preacute-existentes Assim os elementos que datildeo origem agrave determinada coisa
naturalmente satildeo constituintes de sua proacutepria natureza visiacutevel se fazendo assim sempre
112 Ξένος τὸ κατὰ γένη διαιρεῖσθαι καὶ microήτε ταὐτὸν εἶδος ἕτερον ἡγήσασθαι microήτε ἕτερον ὂν ταὐτὸν microῶν οὐ τῆς διαλεκτικῆς φήσοmicroεν ἐπιστήmicroης εἶναι Θεαίτητος ναί φήσοmicroεν Ξένος οὐκοῦν ὅ γε τοῦτο δυνατὸς δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν ἑνὸς ἑκάστου κειmicroένου χωρίς πάντῃ διατεταmicroένην ἱκανῶς διαισθάνεται καὶ πολλὰς ἑτέρας ἀλλήλων ὑπὸ microιᾶς ἔξωθεν περιεχοmicroένας καὶ microίαν αὖ δι᾽ ὅλων πολλῶν ἐν ἑνὶ συνηmicromicroένην καὶ πολλὰς χωρὶς πάντῃ διωρισmicroένας τοῦτο δ᾽ ἔστιν ᾗ τε κοινωνεῖν ἕκαστα δύναται καὶ ὅπῃ microή διακρίνειν κατὰ γένος ἐπίστασθαιrdquo (Sofista 253d1-e2)
64
presentes
Para ficar claro cabe notar que tanto no Sofista quanto no Poliacutetico natildeo haacute
distinccedilatildeo semacircntica entre γένος e εἶδος113 tais termos satildeo perfeitamente
intercambiaacuteveis114 Natildeo haacute nenhum problema em enxergar aiacute certa indistinccedilatildeo entre
processo e produto desde que entendamos que a divisatildeo deva ser feita para distinguir as
caracteriacutesticas daquilo que pretende ser conhecido
Eacute deste modo que natildeo podemos deixar de ouvir nestas passagens de Platatildeo os
ecos do meacutetodo exposto no fragmento 1 de Heraacuteclito (DK B 1) fazer a divisatildeo ldquosegundo
a naturezardquo (κατὰ φύσιν) e jaacute comeccedilar a notar como na proacutepria definiccedilatildeo de διαίρεσις
vamos nos direcionando para a questatildeo do movimento e repouso que seraacute trabalhada no
Sofista a partir de 249b Aleacutem do mais como veremos nos distanciamos cada vez mais
do velho Parmecircnides que dizia em seu fragmento 8 (DK 8 v 22) que o ser natildeo eacute
divisiacutevel posto que eacute todo homogecircnio (οὐδὲ διαιρετόν ἐστιν ἐπεὶ πᾶν ἐστιν ὁmicroοῖον)
Mas como pode a διαίρεσις ser feita ao mesmo tempo segundo coisas tatildeo
distintas γένος e εἶδος algo gerado dinamicamente e algo visto estaticamente Fato eacute
que nos diaacutelogos em que o meacutetodo da divisatildeo aparece com toda a sua forccedila como no
Sofista ou no Poliacutetico os objetos de tal divisatildeo natildeo satildeo seres abstratos como ldquoA Justiccedilardquo
ou ldquoO Amorrdquo mas sim figuras bem conhecidas como o poliacutetico ou o sofista ou teacutecnicas
bem praticadas na poacutelis como a pesca agrave linha ou a arte mimeacutetica tais satildeo os γένη ou εἴδη
em questatildeo Tais objetos dignos de ser divididos natildeo satildeo simplesmente ideais mas estatildeo
logo ali satildeo coisas que apresentam certa materialidade e estatildeo proacuteximas de quem quiser
conferi-las ou frequentaacute-las
O escrutiacutenio desta indistinccedilatildeo entre γένος e εἶδος pode ganhar forccedila ao
identificarmos que cada um destes termos estaacute tematizado na parte relativa agrave batalha entre
os partidaacuterios do corpo e os partidaacuterios das formas (a partir de 246a) no Sofista Dado
que Platatildeo associa o corpo agravequilo que eacute gerado como poderia se valer da indistinccedilatildeo entre
os dois termos se ali nesta seccedilatildeo o proacuteprio Platatildeo os exibe como contraditoacuterios alvo de
controveacutersia entre escolas de pensamento Por hora guardemos esta questatildeo
113 Assim eacute a posiccedilatildeo de Auguste Diegraves em sua Notice ao Poliacutetico (PLATAtildeO 2012b p XVIII-XIX) e de John Ackrill em In defense of platonic divison (ACKRILL 1970 p 389) 114 Vale notar que na διαίρεσις aristoteacutelica γένος e εἶδος natildeo satildeo intercambiaacuteveis Para Aristoacuteteles εἶδος eacute sempre um subconjunto de um γένος ou seja um γένος se divide em dois ou mais εἴδη
65
O segundo ponto que queremos comentar diz respeito agraves noccedilotildees de unidade e de
multiplicidade noccedilotildees que sempre aparecem ao lado da explicaccedilatildeo do meacutetodo da divisatildeo
Esta eacute mais uma querela dos antigos tematizada no Sofista (a partir de 242c) como uma
controveacutersia entre as escolas filosoacuteficas partidaacuterios do um versus partidaacuterios do
muacuteltiplo Se bem lembrarmos tal questatildeo aparece tambeacutem nas jaacute citadas passagens que
tratam da dialeacutetica tanto na versatildeo do Fedro quanto na do Sofista Para Platatildeo o dialeacutetico
- Fedro (266b5-6) ndash eacute ldquocapaz de ver um naturalmente entre muitosrdquo (δυνατὸν εἰς ἓν καὶ
ἐπὶ πολλὰ πεφυκόθ᾽ ὁρᾶν)
- Sofista (253d5-6) ndash ldquopercebe suficientemente uma forma atraveacutes de muitasrdquo (δυνατὸς
δρᾶν microίαν ἰδέαν διὰ πολλῶν)
Desta forma a dialeacutetica consiste sempre em intermediar entre o um e o muacuteltiplo
seja juntando os muacuteltiplos numa unidade seja dividindo uma unidade para encontrar a
sua multiplicidade Nisto parecem consistir os dois tipos de dialeacutetica E natildeo eacute necessaacuterio
que tal unidade seja abstrata invisiacutevel e inacessiacutevel perceptivelmente Como Platatildeo diz
no Filebo (15a4-7) consideremos natildeo somente o belo enquanto unidade ou o bom como
unidade mas tambeacutem o homem como unidade ou o boi como unidade
Em 1954 num texto de grande importacircncia para o estudo da διαίρεσις A C Lloyd
(LLOYD 1967 p 221) cita a seguinte passagem do Filebo
ldquoSoacutecrates () E os mais antigos que eram superiores a noacutes e
habitavam mais perto dos deuses transmitiram esta tradiccedilatildeo lsquoas
coisas que se pode sempre dizer que satildeo vecircm do um e do muacuteltiplo
e tecircm nelas mesmas um limite e uma ilimitaccedilatildeo inatosrsquo Se as coisas
foram belamente dispostas em tal ordem devemos entatildeo admitir
sempre para cada caso apenas uma forma para cada uma delas e
devemos buscaacute-la e certamente a encontraremos presente Se
entatildeo a apreendermos devemos depois de uma examinar duas se
houver caso natildeo haja duas devemos examinar trecircs ou qualquer
outro nuacutemero Devemos examinar da mesma maneira cada uma
delas ateacute que se veja essa unidade original natildeo apenas como uma
66
muacuteltipla e ilimitada mas tambeacutem que se vejam quantos elementos
ela tem mas natildeo devemos aplicar a forma do ilimitado agrave
pluralidade antes de percebermos o nuacutemero total da pluralidade que
existe entre o ilimitado e o um e soacute entatildeo podemos nos despedir
dessas coisas e abandonar cada uma delas no ilimitado Como
disse os deuses ofereceram-nos essa tradiccedilatildeo para examinarmos
aprendermos e ensinarmos uns aos outros Mas os saacutebios atuais
produzem o um e o muacuteltiplo ao acaso mais raacutepido ou mais lento
do que deveriam fazer Vatildeo de imediato do um ao ilimitado
deixando escapar os intermediaacuteriosrdquo115 (Filebo 16c7-17a3)116
Tal passagem eacute fundamental para compreendermos como unidade e
multiplicidade estatildeo imbricadas no contexto da divisatildeo A passagem do Filebo parece
portanto estar fazendo referecircncia aos intermediaacuterios que devem ser considerados quando
se pretende definir algo ou seja entre todos aqueles componentes que satildeo elencados
como constituintes do gecircnero sofista No entanto para se chegar em cada um destes
inuacutemeros componentes Platatildeo nos oferece uma divisatildeo mais simples normalmente
dividindo cada unidade em duas metades Mas como na praacutetica operar a passagem do
um ao muacuteltiplo e irmos chegando aos muitos intermediaacuterios constituintes do sofista Isto
eacute como dividir de modo que tenhamos a garantia da passagem do um para o muacuteltiplo de
maneira segura com todos os intermediaacuterios Qual eacute a medida correta para a divisatildeo de
um gecircnero qualquer
115 ldquoΣωκράτης () καὶ οἱ microὲν παλαιοί κρείττονες ἡmicroῶν καὶ ἐγγυτέρω θεῶν οἰκοῦντες ταύτην φήmicroην παρέδοσαν ὡς ἐξ ἑνὸς microὲν καὶ πολλῶν ὄντων τῶν ἀεὶ λεγοmicroένων εἶναι πέρας δὲ καὶ ἀπειρίαν ἐν αὑτοῖς σύmicroφυτον ἐχόντων δεῖν οὖν ἡmicroᾶς τούτων οὕτω διακεκοσmicroηmicroένων ἀεὶ microίαν ἰδέαν περὶ παντὸς ἑκάστοτε θεmicroένους ζητεῖνmdashεὑρήσειν γὰρ ἐνοῦσανmdash ἐὰν οὖν microεταλάβωmicroεν microετὰ microίαν δύο εἴ πως εἰσί σκοπεῖν εἰ δὲ microή τρεῖς ἤ τινα ἄλλον ἀριθmicroόν καὶ τῶν ἓν ἐκείνων ἕκαστον πάλιν ὡσαύτως microέχριπερ ἂν τὸ κατ᾽ ἀρχὰς ἓν microὴ ὅτι ἓν καὶ πολλὰ καὶ ἄπειρά ἐστι microόνον ἴδῃ τις ἀλλὰ καὶ ὁπόσα τὴν δὲ τοῦ ἀπείρου ἰδέαν πρὸς τὸ πλῆθος microὴ προσφέρειν πρὶν ἄν τις τὸν ἀριθmicroὸν αὐτοῦ πάντα κατίδῃ τὸν microεταξὺ τοῦ ἀπείρου τε καὶ τοῦ ἑνός τότε δ᾽ ἤδη τὸ ἓν ἕκαστον τῶν πάντων εἰς τὸ ἄπειρον microεθέντα χαίρειν ἐᾶν οἱ microὲν οὖν θεοί ὅπερ εἶπον οὕτως ἡmicroῖν παρέδοσαν σκοπεῖν καὶ microανθάνειν καὶ διδάσκειν ἀλλήλους οἱ δὲ νῦν τῶν ἀνθρώπων σοφοὶ ἓν microέν ὅπως ἂν τύχωσι καὶ πολλὰ θᾶττον καὶ βραδύτερον ποιοῦσι τοῦ δέοντος microετὰ δὲ τὸ ἓν ἄπειρα εὐθύς τὰ δὲ microέσα αὐτοὺς ἐκφεύγειrdquo (Filebo 16c7-17a3) 116 Traduccedilatildeo de Fernando Muniz (PLATAtildeO 2012a)
67
A questatildeo que diz respeito ao modo correto de dividir cada um dos gecircneros foi
tratada com maior ecircnfase em algumas partes do Poliacutetico Diz Platatildeo ldquoSe dividiria de
certa forma belamente e sobretudo segundo a forma (κατ᾽ εἴδη) e dicotomicamente
(δίχα) se os nuacutemeros se repartirem em pares e iacutemparesrdquo117 (Poliacutetico 262e) Seguindo o
princiacutepio da economia devemos primeiro tentar dividir em dois (e esta eacute a verdadeira
dicotomia) Mas se as partes resultantes natildeo assumirem algum tipo de unidade interna
ou certo espiacuterito de comunidade deve estar sempre aberta ao meacutetodo a possibilidade de
dividir em 3 ou mais partes ateacute que se encontre algo que se dignifique a receber o nome
de forma ou espeacutecie (εἶδος) Dizia Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEntatildeo posto que natildeo eacute possiacutevel dividir em dois por membros noacutes
dividiremos como a uma viacutetima de sacrifiacutecio Pois devemos acima
de tudo dividir sempre pelo menor nuacutemerordquo118 (Poliacutetico 287c3-
5)119
No entanto da passagem entre 262d-e do Poliacutetico eacute possiacutevel depreender a
exigecircncia de certa consistecircncia ou certa comunhatildeo interna entre as partes daquilo que foi
dividido para que o meacutetodo da divisatildeo seja aplicado corretamente Afinal de contas
como Platatildeo diz no Poliacutetico (263b) a forma ou espeacutecie (εἶδος) sempre eacute parte (microέρος)
daquela coisa da qual eacute a forma entretanto uma parte qualquer de algo nem sempre pode
ser considerada uma espeacutecie consistente Ou seja na divisatildeo aplicada corretamente o
gecircnero deveraacute ser ao mesmo tempo parte e forma aquilo que eacute fruto da divisatildeo deve ser
tambeacutem um produto consistente que apresente certa unidade Portanto podemos dizer
que se gecircnero e espeacutecie satildeo palavras intercambiaacuteveis nos textos tardios de Platatildeo por
outro lado espeacutecie e parte natildeo significam de maneira alguma a mesma coisa Toda
espeacutecie eacute uma parte mas nem toda parte eacute uma espeacutecie
Isto natildeo quer dizer todavia que soacute exista uma uacutenica e riacutegida maneira de se dividir
corretamente um determinado gecircnero Desde que se preserve a unidade das partes
podemos dividir corretamente de diversos modos Isto ocorre por exemplo no Sofista
117 ldquoκάλλιον δέ που καὶ microᾶλλον κατ᾽ εἴδη καὶ δίχα διαιροῖτ᾽ ἄν εἰ τὸν microὲν ἀριθmicroὸν ἀρτίῳ καὶ περιττῷ τις τέmicroνοιrdquo (262e) Traduccedilatildeo nossa 118ldquoκατὰ microέλη τοίνυν αὐτὰς οἷον ἱερεῖον διαιρώmicroεθα ἐπειδὴ δίχα ἀδυνατοῦmicroεν δεῖ γὰρ εἰς τὸν ἐγγύτατα ὅτι microάλιστα τέmicroνειν ἀριθmicroὸν ἀείrdquo (Poliacutetico 287c3-5) 119 Traduccedilatildeo nossa
68
(266a1-2) quando a arte produtiva eacute dividida em divina e humana mas logo em seguida
eacute dividida em produtora das proacuteprias coisas (αὐτοποιητικὴ) e produtora de imagens
(εἰδωλοποιικὴ) uma cortando a arte produtiva segundo a largura (κατὰ πλάτος) e a outra
cortando a arte produtiva segundo o comprimento (κατὰ microῆκος) Deste modo naquele
contexto a arte produtiva se divide em divina e humana mas tanto a parte divina quanto
a parte humana se dividem em produtora das proacuteprias coisas e em produtora de imagens
Podemos dizer que o modo como devem ser feitas as divisotildees tambeacutem pode ser
explicitado por meio da distinccedilatildeo feita por Platatildeo no Sofista entre alguns tipos de
oposiccedilatildeo Em 236e5 acontece uma mudanccedila de vocabulaacuterio fundamental para o
prosseguimento do diaacutelogo se para se referir ao sofista como contraditor Platatildeo se
utilizava de ldquoἀντιλογικόςrdquo (225b-c) agora para falar da contradiccedilatildeo natildeo usaraacute
ldquoἀντιλογίαrdquo mas sim ldquoἐναντιολογίαrdquo A diferenccedila entre os termos eacute marcada no diaacutelogo
pois natildeo se trata aqui da discoacuterdia ou da controveacutersia oposiccedilatildeo externa entre discursos
mas sim de uma contradiccedilatildeo ou oposiccedilatildeo interna ao proacuteprio discurso
A palavra ldquoἐναντίοςrdquo que faz parte da composiccedilatildeo do termo seraacute utilizada por
Platatildeo de forma decisiva para indicar as oposiccedilotildees entre termos notadamente na
enunciaccedilatildeo dos gecircneros supremos) que seratildeo fundamentais para o desenvolvimento do
diaacutelogo (que deixaratildeo no entanto de ser ldquoἐναντίοςrdquo para se tornar ἀντίθεσις por meio
da noccedilatildeo de ldquoἕτερονrdquo diferente entre 257b e 258b) Lembremos que eacute da palavra
ldquoἐναντίοςrdquo que Aristoacuteteles se utilizaraacute por exemplo em Metafiacutesica Gama (Capiacutetulo VII)
para indicar a noccedilatildeo de contradiccedilatildeo
Essa mudanccedila terminoloacutegica marca ao nosso ver a passagem de um tom mais
frouxo da controveacutersia entre discursos para um tom mais rigoroso que visa a necessidade
de uma coerecircncia interna de um discurso que se pretenda bem estruturado e verdadeiro
Esta primeira dificuldade (ἀπορίας em 236d9-237a1) se daacute pois parece ao estrangeiro
que o discurso em desenvolvimento caiu em uma contradiccedilatildeo interna (ἐναντιολογία)
Daquele ponto de vista dado que o natildeo ser por definiccedilatildeo natildeo eacute se o natildeo ser eacute (237a3-
4) entatildeo o natildeo ser eacute e natildeo eacute e assim temos uma contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) Mas agora
nos dirigindo para o final do diaacutelogo temos o seguinte
69
ldquoSempre que dizemos o natildeo ser [microὴ ὂν] natildeo dizemos algo contraacuterio
[ἐναντίον] ao ser [τοῦ ὄντος] mas apenas outro [ἕτερον]rdquo120
(Sofista 257b3-4)
Daquela dificuldade e de sua aparente contradiccedilatildeo em 236e se seguia no
diaacutelogo o problema de nomeaccedilatildeo do natildeo ser (237b10-c4) No entanto o texto entre 257b-
258b opera a passagem e a substituiccedilatildeo da contradiccedilatildeo (ἐναντίος) pela contraposiccedilatildeo
(ἀντίθεσις) esta uacuteltima justamente ligada agrave noccedilatildeo de alteridade ou diferenccedila (ἕτερον)
ldquoHoacutespede de Eleia Entatildeo natildeo acontece com isto que o natildeo belo
[τὸ microὴ καλόν] eacute algo outro [ἄλλο τι] dentre as coisas que satildeo que
foi separado [ἀφορισθὲν] por um certo gecircnero [γένους] e de novo
por sua vez contraposto [ἀντιτεθὲν] a alguma das coisas que satildeo
Teeteto Eacute sim
Hoacutespede de Eleia Entatildeo segue-se que o natildeo belo eacute uma certa
contraposiccedilatildeo do ser em relaccedilatildeo ao ser [ὄντος δὴ πρὸς ὂν
ἀντίθεσις]
Teeteto Corretiacutessimo
Hoacutespede de Eleia Pois entatildeo Segundo esse discurso portanto
estaraacute o belo mais dentre as coisas que satildeo e o natildeo belo menos
Teeteto Em nadardquo121 (Sofista 257e2-11)
Antes de qualquer coisa cabe notar que no trecho acima (257e2) Platatildeo utiliza
ldquoἄλλοrdquo (outro de vaacuterios) para marcar a diferenccedila entre as coisas mas um pouco mais a
frente em 258a5 e no mesmo sentido volta ao vocabulaacuterio padratildeo marcado pela palavra
ldquoθάτερονrdquo (o outro de dois) sem prejuiacutezo de rigor terminoloacutegico Devemos notar tambeacutem
120 ldquoὁπόταν τὸ microὴ ὂν λέγωmicroεν ὡς ἔοικεν οὐκ ἐναντίον τι λέγοmicroεν τοῦ ὄντος ἀλλ᾽ ἕτερον microόνονrdquo (Sofista 257b3-4) 121 ldquoΞένος ἄλλο τι τῶν ὄντων τινὸς ἑνὸς γένους ἀφορισθὲν καὶ πρός τι τῶν ὄντων αὖ πάλιν ἀντιτεθὲν οὕτω συmicroβέβηκεν εἶναι τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὕτως Ξένος ὄντος δὴ πρὸς ὂν ἀντίθεσις ὡς ἔοικ᾽ εἶναί τις συmicroβαίνει τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος ὀρθότατα Ξένος τί οὖν κατὰ τοῦτον τὸν λόγον ἆρα microᾶλλον microὲν τὸ καλὸν ἡmicroῖν ἐστι τῶν ὄντων ἧττον δὲ τὸ microὴ καλόν Θεαίτητος οὐδένrdquo (Sofista 257e2-11)
70
que na passagem citada a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) parece se dar entre o ldquobelordquo e o ldquonatildeo
belordquo ambos participantes do ser o que poderiacuteamos chamar de uma contraposiccedilatildeo
horizontal entre dois termos de mesmo niacutevel Assim para seguir o exemplo ldquobelordquo e
ldquonatildeo belordquo se contraporiam mas ambos participariam de um gecircnero superior que os teria
dividido e diferenciado No entanto o funcionamento da contraposiccedilatildeo continua sendo
explicitado na obra platocircnica
ldquoPois bem parece que a contraposiccedilatildeo [ἀντίθεσις] da natureza de
uma parte do outro agrave do ser contrapondo-se um ao outro em nada
eacute se eacute permitido dizer menos entidade do que o proacuteprio ser natildeo
sinalizando o contraacuterio [ἐναντίον] daquele mas apenas o outro
[ἕτερον] daquele e nada maisrdquo122 (Sofista 258a11-b4)
Nesta passagem de difiacutecil interpretaccedilatildeo temos uma importante referecircncia para o
modo como Platatildeo compreende a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e como isso se relaciona com
o vocabulaacuterio ontoloacutegico do diaacutelogo Como natildeo podia deixar de ser diferente haacute uma
grande disputa entre os comentadores quanto agrave interpretaccedilatildeo do texto Apesar de envolver
diversos comentadores a polecircmica eacute protagonizada por Denis OrsquoBrien e Nestor Cordero
este uacuteltimo segue a leitura proposta pela traduccedilatildeo de Auguste Diegraves
Como jaacute haviacuteamos visto a divisatildeo platocircnica se daacute sempre ldquosegundo a naturezardquo
(κατὰ φύσιν) por isso natildeo podemos nos surpreender ao encontrarmos este termo nesta
passagem A questatildeo diz respeito basicamente ao modo como eacute entendido os genitivos da
primeira parte da oraccedilatildeo isto eacute se o genitivo ldquoda parterdquo (microορίου) passaria ou natildeo para o
outro lado da conjunccedilatildeo ldquoerdquo (καὶ) Discutir esta questatildeo natildeo se trata de bizantinismo haacute
relevacircncia em saber a maneira como atua a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) principalmente
como eacute o caso quando se trata da relaccedilatildeo entre os gecircneros supremos
Podemos expor a questatildeo do seguinte modo a antiacutetese seria entre natureza da
parte do outro e a natureza da parte do ser (ou seja horizontalmente de parte com parte)
122 ldquoοὐκοῦν ὡς ἔοικεν ἡ τῆς θατέρου microορίου φύσεως καὶ τῆς τοῦ ὄντος πρὸς ἄλληλα ἀντικειmicroένων ἀντίθεσις οὐδὲν ἧττον εἰ θέmicroις εἰπεῖν αὐτοῦ τοῦ ὄντος οὐσία ἐστίν οὐκ ἐναντίον ἐκείνῳ σηmicroαίνουσα ἀλλὰ τοσοῦτον microόνον ἕτερον ἐκείνουrdquo (Sofista 258a11-b4) Sobre este trecho a polecircmica Cordero-OrsquoBrien (O BRIEN 1999 p 27-28 PLATON 1993 nota 330)
71
ou entre a natureza da parte do outro e a natureza do ser (ou seja uma contraposiccedilatildeo
como que diagonal da parte de um gecircnero com seu gecircnero superior)
Da leitura de Cordero depreende-se que a antiacutetese eacute de parte com parte da de
OrsquoBrien que eacute de uma parte com a natureza do ser Nesta uacuteltima o ser apareceria como
particular (segundo ele diz ldquoo ser de cada objetordquo) um pouco mais a frente do texto (em
258e2-3) Acreditamos que a leitura sintaacutetica de OrsquoBrien se mostra a mais correta para a
compreensatildeo da primeira parte da frase mas natildeo nos comprometemos com sua
interpretaccedilatildeo geral que vecirc ldquoduas definiccedilotildees de natildeo serrdquo escalonadas uma geral e a outra
particular na sequecircncia do texto platocircnico Assim ao nosso ver o texto de 258e2-3 apenas
retoma o de 258a11-b4
A continuaccedilatildeo da frase tambeacutem natildeo eacute faacutecil de passar despercebida Platatildeo diz que
essa contraposiccedilatildeo ldquoeacute nada menos essecircncia (οὐσία) que o proacuteprio serrdquo Difiacutecil eacute saber o
que Platatildeo quis dizer com isso Aparentemente o Estrangeiro quer dizer que a
contraposiccedilatildeo do outro que eacute derivado do ser com o ser natildeo eacute menos ser que o ser que
eacute constituinte da oposiccedilatildeo Desta maneira ao contrapormos as coisas poderiacuteamos captar
a essecircncia do que eacute
Ao designar o natildeo ser como diferente (ἕτερον) e natildeo como contraditoacuterio
(ἐναντίον) Platatildeo parece estar pretendendo conferir ao natildeo ser (tomado como alteridade)
um papel determinante para qualquer consideraccedilatildeo a respeito do ser Natildeo eacute a toa que no
contexto geral do diaacutelogo fazer com que o natildeo ser seja e o ser natildeo seja se apresente como
condiccedilatildeo para que possamos veicular natildeo apenas discursos falsos mas tambeacutem discursos
verdadeiros que natildeo sejam tautoloacutegicos Deste modo a existecircncia da antiacutetese garantiria
que algumas coisas se combinariam participando umas das outras enquanto outras
formas natildeo se combinariam entre si mas seriam parte de um gecircnero superior em
comum123
123 Um dos grandes estudiosos da divisatildeo platocircnica Julius Moravcsik tem opiniatildeo contraacuteria ldquoFinally this survey of the passages on naming and cutting reveals the glaring absence of any connection between the relationships between Forms that is being established here and the relation of participation The usual technical terminology indicating participation - which is very much present in the discussions of the megista gene of the Sophist - is simply absent from the passages dealing with divisions This absence must be accounted for by any adequate interpretationrdquo (MORAVCSIK 1973 p 165) Acreditamos que a posiccedilatildeo de Moravcsik foi tomada sem levar em conta a articulaccedilatildeo entre o conceito de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) e o meacutetodo da divisatildeo Ao identificarmos aquilo que chamamos acima de contraposiccedilatildeo diagonal pretendermos mostrar que a estrutura proporcionada pela divisatildeo dos gecircneros apresenta as condiccedilotildees para que se possa dizer que haacute coisas que participam e outras que natildeo participam de
72
Dois tipos de contraposiccedilatildeo portanto uma que chamariacuteamos de horizontal na
qual os gecircneros natildeo se misturariam entre si a outra chamada por noacutes de diagonal na
qual haveria mistura e entrelaccedilamento entre os gecircneros de niacuteveis diferentes Do ponto de
vista dos gecircneros que natildeo se misturam como natildeo apresentam ligaccedilotildees imediatas entre si
podemos dizer que estes satildeo contraditoacuterios (ἐναντίον) entre si Logo caberia ao dialeacutetico
e a sua arte identificar as relaccedilotildees entre os gecircneros ou seja verificar se participam ou natildeo
participam entre si Portanto o verdadeiro filoacutesofo poderaacute apreender a constituiccedilatildeo desta
rede ontoloacutegica composta de gecircneros e espeacutecies que se combinam ou natildeo se combinam
reciprocamente
II
No niacutevel mais geral dos diversos modos discursivos da Atenas claacutessica parece ser
possiacutevel associar estes trecircs modos de oposiccedilatildeo a trecircs tipos de discurso a controveacutersia
(ἀντιλογία) agrave retoacuterica ou eriacutestica a contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) ao discurso loacutegico que
estaacute aiacute ainda em processo de constituiccedilatildeo e a contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) agrave dialeacutetica
Platatildeo no entanto ao longo do Sofista parece transformar as antilogias as
querelas entre as diversas escolas filosoacuteficas em antiacuteteses quer dizer o um e o muacuteltiplo
o todo e as partes o corpo e a forma o movimento e o repouso por exemplo passam a
ser complementares e cada um destes pares juntos se entrelaccedilam na unidade do ser
Veja bem isto natildeo quer dizer que sejam conciliaacuteveis entre si isto eacute natildeo podemos dizer
que o repouso participa ou combina com movimento entretanto eles coexistem e
compotildeem um outro gecircnero ao qual ambos participam Isto eacute evidenciado pela seguinte
passagem da obra de Platatildeo
ldquoHoacutespede de Eleia O quecirc Algum dos dois [movimento e repouso]
seraacute se natildeo participam [microὴ προσκοινωνοῦν] da entidade [οὐσίας]
Teeteto Natildeo seraacute
um gecircnero qualquer
73
Hoacutespede de Eleia Por essa concordacircncia [συνοmicroολογίᾳ] parece
que imediatamente todas as coisas de levantam de novo ao mesmo
tempo os que movem o todo e os que como um imobilizam
quantos de acordo com as formas dizem que as coisas satildeo sempre
segundo elas mesmas do mesmo modo pois todos esses acoplam
[προσάπτουσιν] o ser estes dizendo que realmente se move
aqueles que realmente estaacute em repousordquo124 (Sofista 252a2-10)
A mistura do movimento e do repouso com ser eacute confirmada um pouco mais a
frente
Hoacutespede de Eleia Os gecircneros supremos daqueles que agora
mesmo enumeramos satildeo o ser ele proacuteprio e o repouso e o
movimento
Teeteto Satildeo
Hoacutespede de Eleia E pelo menos dois deles satildeo reciprocamente
sem mistura [ἀmicroείκτω]
Teeteto E muito
Hoacutespede de Eleia Mas o ser mistura-se [microεικτὸν] com ambos pois
de algum modo ambos satildeo
Teeteto Como natildeordquo125 (Sofista 254d4-11)
A mesma coisa vale para o mesmo e o outro
124 ldquoΞένος τί δέ ἔσται πότερον αὐτῶν οὐσίας microὴ προσκοινωνοῦν Θεαίτητος οὐκ ἔσται Ξένος ταχὺ δὴ ταύτῃ γε τῇ συνοmicroολογίᾳ πάντα ἀνάστατα γέγονεν ὡς ἔοικεν ἅmicroα τε τῶν τὸ πᾶν κινούντων καὶ τῶν ὡς ἓν ἱστάντων καὶ ὅσοι κατ᾽ εἴδη τὰ ὄντα κατὰ ταὐτὰ ὡσαύτως ἔχοντα εἶναί φασιν ἀεί πάντες γὰρ οὗτοι τό γε εἶναι προσάπτουσιν οἱ microὲν ὄντως κινεῖσθαι λέγοντες οἱ δὲ ὄντως ἑστηκότ᾽ εἶναιrdquo (Sofista 252a2-10) 125 ldquoΞένος microέγιστα microὴν τῶν γενῶν ἃ νυνδὴ διῇmicroεν τό τε ὂν αὐτὸ καὶ στάσις καὶ κίνησις Θεαίτητος πολύ γε Ξένος καὶ microὴν τώ γε δύο φαmicroὲν αὐτοῖν ἀmicroείκτω πρὸς ἀλλήλω Θεαίτητος σφόδρα γε Ξένος τὸ δέ γε ὂν microεικτὸν ἀmicroφοῖν ἐστὸν γὰρ ἄmicroφω που Θεαίτητος πῶς δ᾽ οὔrdquo (Sofista 254d4-11)
74
ldquoHoacutespede de Eleia Mas eu creio que tu admites que dentre os que
satildeo uns satildeo em si e por si [αὐτὰ καθ᾽ αὑτά] e outros sempre satildeo
ditos em relaccedilatildeo aos outros [πρὸς ἄλλα]
Teeteto Porque natildeo
Hoacutespede de Eleia E o outro [τὸ δέ γ᾽ ἕτερον] em relaccedilatildeo ao outro
[πρὸς ἕτερον] pois natildeo
Teeteto Eacute assimrdquo126 (Sofista 255c14-d2)
No entanto como muitos comentadores natildeo deixaram de notar eacute difiacutecil enquadrar
os chamados gecircneros supremos na relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie proporcionada pelo meacutetodo da
divisatildeo127 Mais do que isso haacute dificuldade de estabelecer qualquer relaccedilatildeo entre os
gecircneros supremos Se com o ser tanto movimento e repouso quanto o mesmo e o outro
se misturam estes natildeo podem ser simples particcedilotildees do ser Ao consideramos particcedilotildees
ou espeacutecies do ser teriacuteamos que determinar qual eacute o tipo de relaccedilatildeo existente entre estas
partes Para escapar desta complicada tarefa os comentadores costumam afirmar que os
gecircneros supremos satildeo completamente independentes entre si128 Assim por exemplo eacute a
posiccedilatildeo de Marcelo Pimenta Marques
ldquoAs objeccedilotildees de Aristoacuteteles que satildeo na verdade as mesmas que
Espeusipo havia feito anteriormente supotildeem uma funccedilatildeo e um
alcance para a divisatildeo que Platatildeo nunca pretendeu que ela tivesse
Platatildeo natildeo se propotildee construir uma estrutura ontoloacutegica totalizante
atraveacutes da divisatildeo A igualdade de extensatildeo dos gecircneros do ser da
identidade e da diferenccedila no Sofista e a unicidade de cada um
deles satildeo incompatiacuteveis com uma hierarquizaccedilatildeo ou dependecircncia
126 Ξένος ἀλλ᾽ οἶmicroαί σε συγχωρεῖν τῶν ὄντων τὰ microὲν αὐτὰ καθ᾽ αὑτά τὰ δὲ πρὸς ἄλλα ἀεὶ λέγεσθαι Θεαίτητος τί δ᾽ οὔ Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἕτερον ἀεὶ πρὸς ἕτερον ἦ γάρ Θεαίτητος οὕτως (Sofista 255c14-d2) 127 Agradeccedilo a Victor Gonccedilalves de Sousa que pouco antes do encerramento desta dissertaccedilatildeo me apresentou um importante argumento contra a leitura dos gecircneros supremos a partir da relaccedilatildeo gecircneroespeacutecie 128 A leitura categorial dos gecircneros supremos como foi encampada por Gilbert Ryle depende desta independecircncia No entanto nem todos que postulam esta independecircncia devem se comprometer com a leitura categorial de matriz ryleana
75
ontoloacutegica entre eles Mesmo o Movimento e o Repouso embora
menos extensos natildeo satildeo menos independentes
Em suma eacute de fundamental importacircncia para a
diferenciaccedilatildeo entre a divisatildeo usada por Platatildeo e a que eacute revista por
Aristoacuteteles compreender que os gecircneros maiores no Sofista natildeo
satildeo obtidos atraveacutes da divisatildeo Um gecircnero natildeo eacute uma divisatildeo nem
uma espeacutecie do outro um natildeo eacute derivaacutevel do outro e nem eacute o
princiacutepio do qual o outro eacute derivado cada um deles eacute o princiacutepio
de um aspecto determinado irredutiacutevel ao outro tal como o
Estrangeiro iraacute estabelecer cuidadosamente etapa por etapa
Principalmente uma vez que ser identidade e diferenccedila tecircm o
maacuteximo possiacutevel de extensatildeo natildeo podem ser derivados de um
outro princiacutepio ideal qualquer que supostamente estaria acima
deles mas cada um tem seu modo proacuteprio de determinar a
totalidade do campo idealrdquo (PIMENTA MARQUES 2006 p 65)
Entretanto se de fato natildeo podemos diferenciar extencionalmente cada gecircnero
supremo - o que joga contra o meacutetodo da divisatildeo que parece se pretender tambeacutem
extensional - ainda causa espanto que haacute certas relaccedilotildees entre eles que lembram aquelas
proporcionadas pela divisatildeo Em primeiro lugar parece haver uma relaccedilatildeo de oposiccedilatildeo
entre dois pares movimentorepouso mesmooutro Em segundo lugar como jaacute dissemos
acima todos eles parecem se misturar com o ser (o quinto gecircnero) Aleacutem do mais ao
apresentar os gecircneros supremos Platatildeo parece fazer uma relaccedilatildeo com aqueles gecircneros
dos quais estava tratando anteriormente no diaacutelogo
ldquoEntatildeo jaacute concordaacutemos que de entre os gecircneros uns aceitam
comungar entre si e outros natildeo e que uns comungam com poucos
e outros comungam com muitos nada impedindo que outros
estejam em comunicaccedilatildeo com todos [πᾶσι κεκοινωνηκέναι]
Depois disso estendemos a nossa teoria considerando desse modo
natildeo todas as formas a fim de natildeo nos atrapalharmos com muitas
mas tendo escolhido algumas dentre as mais importantes Em
primeiro lugar de que qualidade eacute cada uma depois de que modo
76
tem comunicaccedilatildeo reciacuteproca Isto para se natildeo formos capazes de
captar com toda a clareza o ser e o natildeo ser natildeo ficarmos faltos de
argumentos a respeito deles E vejamos tanto quanto a presente
investigaccedilatildeo consente se nos eacute permitido dizer que o natildeo ser eacute
realmente natildeo ser retirando-nos sem danosrdquo129 (Sofista 254b8-d2)
Afinal de contas por que motivo Platatildeo usaria o mesmo termo gecircnero termo
teacutecnico no meacutetodo da divisatildeo para tratar de algo que natildeo significaria e natildeo se comportaria
da mesma forma Deste modo nossa posiccedilatildeo quanto a este problema consiste em
primeiro identificar que haacute uma seacuterie de oposiccedilotildees entre escolas filosoacuteficas elencadas
pelo Estrangeiro de 242b em diante que satildeo refutadas uma a uma No entanto parece
haver uma retomada de algumas destas oposiccedilotildees com o aparecimento do exemplo dos
gecircneros supremos (movimento versus repouso o mesmo versus o outro jaacute haviam sido
tratados anteriormente) Acreditamos que haacute um novo tratamento da oposiccedilatildeo entre estes
termos Platatildeo natildeo compreende mais essas oposiccedilotildees como controveacutersia (ἀντιλογία) ou
como simples contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) mas sim como contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις)
Assim sendo a junccedilatildeo de tais termos opostos independentes entre si se fundem
no gecircnero do ser e do gecircnero do ser entatildeo todas as coisas existentes seriam derivadas
Mas o ser ao nosso ver seria a composiccedilatildeo somente entre dois destes termos opostos o
que quer dizer justamente que natildeo devemos considerar por exemplo que cada um dos
outros quatro gecircneros supremos seja uma parte do ser (que deste modo teria sido
dividido em quatro) nem que sejam uma espeacutecie que teve origem da divisatildeo do ser
Em nossa leitura contudo eacute da comunhatildeo de dois termos contrapostos que o ser
partindo da reuniatildeo de dois outros gecircneros eacute composto Portanto de maneira ainda um
pouco turva para noacutes todas aquelas oposiccedilotildees elencadas pelo Estrangeiro (242c-251d) se
empilhariam duas a duas antiteticamente na composiccedilatildeo do ser130 Como todas as coisas
129 ldquoὅτ᾽ οὖν δὴ τὰ microὲν ἡmicroῖν τῶν γενῶν ὡmicroολόγηται κοινωνεῖν ἐθέλειν ἀλλήλοις τὰ δὲ microή καὶ τὰ microὲν ἐπ᾽ ὀλίγον τὰ δ᾽ ἐπὶ πολλά τὰ δὲ καὶ διὰ πάντων οὐδὲν κωλύειν τοῖς πᾶσι κεκοινωνηκέναι τὸ δὴ microετὰ τοῦτο συνεπισπώmicroεθα τῷ λόγῳ τῇδε σκοποῦντες microὴ περὶ πάντων τῶν εἰδῶν ἵνα microὴ ταραττώmicroεθα ἐν πολλοῖς ἀλλὰ προελόmicroενοι τῶν microεγίστων λεγοmicroένων ἄττα πρῶτον microὲν ποῖα ἕκαστά ἐστιν ἔπειτα κοινωνίας ἀλλήλων πῶς ἔχει δυνάmicroεως ἵνα τό τε ὂν καὶ microὴ ὂν εἰ microὴ πάσῃ σαφηνείᾳ δυνάmicroεθα λαβεῖν ἀλλ᾽ οὖν λόγου γε ἐνδεεῖς microηδὲν γιγνώmicroεθα περὶ αὐτῶν καθ᾽ ὅσον ὁ τρόπος ἐνδέχεται τῆς νῦν σκέψεως ἐὰν ἄρα ἡmicroῖν πῃ παρεικάθῃ τὸ microὴ ὂν λέγουσιν ὡς ἔστιν ὄντως microὴ ὂν ἀθῴοις ἀπαλλάττεινrdquo (Sofista 254b8-d2) 130 Natildeo eacute clara para noacutes a relaccedilatildeo entre os diversos pares de opostos por isso chamamos de ldquoempilhamentordquo pensamos somente que suas extensotildees teriam de ser idecircnticas A relaccedilatildeo entre
77
existentes participam do ser entatildeo tal funcionamento antiteacutetico serviria de modelo para
tudo aquilo que eacute garantindo assim a extensatildeo maacutexima131 de cada um destes conceitos
Deste modo teriacuteamos uma contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) horizontal que comporia o gecircnero
do ser e tais pares de opostos estariam em todas as coisas que satildeo e que portanto
participam diagonalmente do gecircnero do ser Isto que acontece com o caso do ser serve
portanto de modelo para todas as coisas que satildeo
Por isso podemos arriscar um pouco e dizer que o γένος e o εἶδος dos quais
falaacutevamos no iniacutecio deste capiacutetulo tambeacutem deixariam de ser contraditoacuterios e passariam
a coabitar cada coisa que eacute Para cada coisa que eacute ela ao mesmo tempo eacute gerada e
consolidada eacute todo e eacute parte uma e muacuteltipla mesma e outra movimento e repouso132
Tudo indica portanto que podemos dizer que como o sofista e o poliacutetico (alvos do
meacutetodo da divisatildeo) o ser tambeacutem eacute composto de contraacuterios antiteacuteticos que se
complementam compondo a sua unidade Isto eacute justamente o que parece estar ocorrendo
no caso dos gecircneros supremos do Sofista com os pares antiteacuteticos movimentorepouso e
mesmooutro compondo a unidade de um outro gecircnero a do ser Diz Platatildeo no Poliacutetico
ldquoEacute preciso quando algueacutem anteriormente perceber uma
comunidade [αἴσθηται κοινωνίαν] dentre as muitas coisas natildeo a
abandonar antes de ter enxergado [ἴδῃ] nesta comunidade todas as
diferenccedilas contidas nas espeacutecies [ἐν εἴδεσι] Por outro lado quando
ver na multiplicidade todos os tipos de dessemelhanccedilas natildeo se
pode ser inconveniente e desistir antes de ter oferecido o conjunto
de todas as particularidades [τὰ οἰκεῖα] que apresentam uma certa
cada um dos termos da oposiccedilatildeo parece ser uma relaccedilatildeo antiteacutetica Isto explicaria por exemplo que o ser seja considerado um e muacuteltiplo a respeito de cada uma das formas seja muacuteltiplo (256e6) mas por outro lado por si mesmo seja um (257a5) 131 Esta ldquoextensatildeo maacuteximardquo eacute tratada por exemplo no texto de Marcelo Pimenta Marques citado acima 132 No entanto ainda natildeo eacute claro para noacutes o motivo de Platatildeo recusar a divisatildeo daquele que vem-a-ser no Filebo (15a-b)
78
semelhanccedila e as ter reunido na essecircncia [οὐσίᾳ] de um certo gecircnero
[γένους]rdquo133 (Poliacutetico 285a4-b6)134
Assim se seguirmos este comentaacuterio de Platatildeo a respeito do meacutetodo da divisatildeo
dividir corretamente seria saber distinguir entre as semelhanccedilas e as dessemelhanccedilas
juntar e separar corretamente os gecircneros A existecircncia da antiacutetese e do diferente (ἕτερον)
seria portanto aos olhos de Platatildeo condiccedilatildeo necessaacuteria para dizermos com rigor que uns
gecircneros natildeo participam de alguns gecircneros mas participam de outros De fato ao menos
no contexto do Sofista eacute esta diferenccedila que possibilita o discurso falso mas tambeacutem eacute
esta diferenccedila que possibilita o discurso verdadeiro Mas ao nosso ver a noccedilatildeo de
diferente (ἕτερον) fundamental para a compreensatildeo do natildeo ser como alteridade natildeo pode
ser dissociada da noccedilatildeo de contraposiccedilatildeo (ἀντίθεσις) O diferente e a antiacutetese forneceratildeo
para Platatildeo uma alternativa agrave contradiccedilatildeo (ἐναντιολογία) entre os opostos contraditoacuterios
ldquoHoacutespede de Eleia E natildeo soacute demonstramos que as coisas que natildeo
satildeo satildeo (τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν) como tambeacutem fizemos manifesta a
forma do natildeo ser que por acaso eacute ao termos demonstrado que a
natureza do outro (θατέρου φύσιν) existe repartida em pedaccedilos
sobre todas as coisas que satildeo umas em relaccedilatildeo agraves outras E tivemos
a ousadia de dizer que cada parte do outro contraposta
(ἀντιτιθέmicroενον) ao ser eacute realmente natildeo ser (τὸ microὴ ὄν)
Teeteto E parece-me Hoacutespede que dissemos muitas verdades
Hoacutespede de Eleia Pois bem que algueacutem natildeo nos diga que o natildeo
ser eacute o contraacuterio (τοὐναντίον) do ser (τοῦ ὄντος) e que ousamos
dizer que o natildeo ser eacuterdquo135 (Sofista 258d5-258e7)
133 ldquoδέον ὅταν microὲν τὴν τῶν πολλῶν τις πρότερον αἴσθηται κοινωνίαν microὴ προαφίστασθαι πρὶν ἂν ἐν αὐτῇ τὰς διαφορὰς ἴδῃ πάσας ὁπόσαιπερ ἐν εἴδεσι κεῖνται τὰς δὲ αὖ παντοδαπὰς ἀνοmicroοιότητας ὅταν ἐν πλήθεσιν ὀφθῶσιν microὴ δυνατὸν εἶναι δυσωπούmicroενον παύεσθαι πρὶν ἂν σύmicroπαντα τὰ οἰκεῖα ἐντὸς microιᾶς ὁmicroοιότητος ἕρξας γένους τινὸς οὐσίᾳ περιβάληταιrdquo (Poliacutetico 285a4-b6) 134 Traduccedilatildeo nossa 135 ldquoΞένος ἡmicroεῖς δέ γε οὐ microόνον τὰ microὴ ὄντα ὡς ἔστιν ἀπεδείξαmicroεν ἀλλὰ καὶ τὸ εἶδος ὃ τυγχάνει ὂν τοῦ microὴ ὄντος ἀπεφηνάmicroεθα τὴν γὰρ θατέρου φύσιν ἀποδείξαντες οὖσάντε καὶ κατακεκερmicroατισmicroένην ἐπὶ πάντα τὰ ὄντα πρὸς ἄλληλα τὸ πρὸς τὸ ὂν ἕκαστον microόριον αὐτῆς ἀντιτιθέmicroενον ἐτολmicroήσαmicroεν εἰπεῖν ὡς αὐτὸ τοῦτό ἐστιν ὄντως τὸ microὴ ὄν Θεαίτητος καὶ παντάπασί γε ὦ ξένε ἀληθέστατά microοι δοκοῦmicroεν εἰρηκέναι
79
A natureza do diferente se apresenta em todos os gecircneros isto eacute todo gecircnero
participa do diferente
ldquoLogo necessariamente o natildeo ser eacute sobre o movimento e por todos
os gecircneros (κατὰ πάντα τὰ γένη) Pois em todos a natureza do
outro (ἡ θατέρου φύσις) opera fazendo cada um natildeo ser (ἕτερον
ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ) e de acordo com
isto diremos com correccedilatildeo que todas as coisas natildeo satildeo e de novo
por participarem do ser que satildeo e tambeacutem que existemrdquo136
(Sofista 256d11-e4)
Ao apresentar uma indistinccedilatildeo entre gecircnero e espeacutecie na sua formulaccedilatildeo o meacutetodo
da diairesis parece ao nosso ver pressupor o fim da separaccedilatildeo estanque entre o que
chamariacuteamos grosso modo de sensiacutevel e de inteligiacutevel Desta maneira este caminho
dialeacutetico teria como objetivo operar a passagem entre os gecircneros menores e os gecircneros
maiores encadeando-os com a pretensatildeo de elencar todos os seus intermediaacuterios
O ceacutelebre entrelaccedilamento das formas (συmicroπλοκὴ εἰδῶν) em 259e6 do Sofista soacute
parece ser possiacutevel neste novo contexto em que as ideias natildeo satildeo em si e completamente
distintas umas das outras mas ldquomeio γένος meio εἶδοςrdquo temos agora a entidade certa
para encadear um discurso articulado e natildeo monoliacutetico Natildeo podemos esquecer que no
que diz respeito agrave unidade do discurso esta tambeacutem seraacute formada pela contraposiccedilatildeo de
dois termos que parecem ser opostos nomes e verbos (Sofista 261e e seguintes)
Eacute justamente de todo este complicado imbroacuteglio ontoloacutegico que Gilbert Ryle
pretende fugir ao propor que a dialeacutetica do Sofista de Platatildeo deveria ser lida a partir da
analogia entre as letras e as siacutelabas (RYLE 2009 [1960] pp 57-75) de fato tal analogia
eacute recorrente no corpus platocircnico137 Ao compreender que o fonema de uma siacutelaba eacute o
Ξένος microὴ τοίνυν ἡmicroᾶς εἴπῃ τις ὅτι τοὐναντίον τοῦ ὄντος τὸ microὴ ὂν ἀποφαινόmicroενοι τολmicroῶmicroεν λέγειν ὡς ἔστινrdquo (Sofista 256d11-e4) 136 ldquoΞένος ἔστιν ἄρα ἐξ ἀνάγκης τὸ microὴ ὂν ἐπί τε κινήσεως εἶναι καὶ κατὰ πάντα τὰ γένη κατὰ πάντα γὰρ ἡ θατέρου φύσις ἕτερον ἀπεργαζοmicroένη τοῦ ὄντος ἕκαστον οὐκ ὂν ποιεῖ καὶ σύmicroπαντα δὴ κατὰ ταὐτὰ οὕτως οὐκ ὄντα ὀρθῶς ἐροῦmicroεν καὶ πάλιν ὅτι microετέχει τοῦ ὄντος εἶναί τε καὶ ὄνταrdquo (Sofista 256d11-e4) 137 A analogia aparece por exemplo no Sofista (253a) no Teeteto (202e) no Poliacutetico (277e-278d) no Filebo (17a-b) e no Craacutetilo (426c-427c)
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elemento primordial do som emitido anterior agraves vogais e consoantes que o compotildeem
(afinal precisamos utilizar as vogais para emitir o som das consoantes) Ryle pretendia
mostrar que assim como na relaccedilatildeo entre letras e siacutelabas um enunciado era tambeacutem
predominante sobre suas partes que o constituem (para o caso platocircnico mais
fundamental que os nomes e os verbos que o compotildeem) Para assumir tal posiccedilatildeo arcou
com o ocircnus de descartar a importacircncia do meacutetodo da divisatildeo
Em seu artigo Platorsquos Parmenides (RYLE 2009 [1939] pp 1-46) Ryle apontou
5 argumentos que seriam suficientes para natildeo levar a seacuterio o meacutetodo da divisatildeo (RYLE
2009 p 43)
(i) Pois ele se baseia em conceitos de ldquogecircnerordquo e ldquoespeacutecierdquo e ldquodeterminadordquo e
ldquoindeterminadordquooquenatildeoeacutebaseparaproblemasfilosoacuteficos
(ii) Porquenemsempretemosumaoposiccedilatildeoentreduasespeacutecies
(iii) Poisoresultadodadivisatildeopodeserdesmentidoporpesquisasempiacutericas
(iv) Quehaacutecertaarbitrariedadenomeacutetododialeacuteticodadivisatildeo
(v) Devidoaoresultadodasdefiniccedilotildeesobtidasporeleteremcomoresultadoalgo
indeterminado
De certo modo a maioria destes argumentos foi tratada ao longo dessa nossa
exposiccedilatildeo Assim como jaacute havia sido apontado por Akcrill em um importante artigo de
1970 (ACKRILL 1970 p 373-392) Ryle parecia estar completamente enganado ao
desconsiderar e desqualificar o meacutetodo platocircnico da divisatildeo (διαίρεσις)138 Mesmo que a
aplicaccedilatildeo do meacutetodo contenha indiscutiacuteveis imperfeiccedilotildees e a sua formulaccedilatildeo de fato eacute
138 Esta tambeacutem eacute a posiccedilatildeo de Antonia Soulez ldquoPour cette raison je dirais qursquoil y a division et division et que le non-ecirctre comme Autre cause stable de la division entre genres laisse entrevoir une lsquoespegraveciersquo de division agrave laquelle Ryle semble nrsquoavoir pas du tout songeacute une division proprement dialectique qui fait um avec la recension logique des Formes dont les eacutenonceacutes forment systegraveme une diaiacuteresis sans images agrave laquelle ne repugne pas la meacutethode dia tocircn logocircn (253b8) qui revient au dialecticien drsquoapregraves le Sophiste Crsquoest dire qursquoen privileacutegiant excessivamente la fonction opeacuteratoire de la neacutegation agrave lrsquoencontre de la proceacutedure de la division par espegraveces et par genres comme si cette division eacutetait tout ela division G Ryle a finalement sous-estimeacute avec la fonction stable du non-ecirctre lrsquoaspect non pas lsquoformelrsquo mais je dirais lsquoonto-formelrsquo du projet cateacutegorial de Platon La vraie raison moins aparente du sacrifice rylien de la division ne serait-elle pas que cette division des genres em espegraveces ne parle plus au philosophe analytique drsquoaujourdrsquohui plutocirct que la mise entre parenthegraveses de la preacutedication ordinaire sous pretexte quersquoelle est logiquement ininteacuteressante aus yeux de Platon lui-mecircmerdquo (SOULEZ 1991 pp 232-233) Os itaacutelicos no texto satildeo da proacutepria autora
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bem obscura ao nosso ver devemos lecirc-lo com os olhos na consistecircncia com as novas
posiccedilotildees ontoloacutegicas apresentadas no diaacutelogo
De maneira nenhuma a intenccedilatildeo deste nosso texto seria a de defender uma simples
prevalecircncia ontoloacutegica sobre as praacuteticas discursivas Pensamos apenas que no contexto
da obra platocircnica os movimentos ontoloacutegicos e discursivos devam ser considerados em
conjunto haveria neste caso um forte isomorfismo entre o discurso e ontologia isto eacute as
mudanccedilas no posicionamento ontoloacutegico vieram acompanhadas de uma inovaccedilatildeo
dialeacutetica Pensamos que as mudanccedilas ontoloacutegicas no tratamento das ldquoideiasrdquo que agora
natildeo aparecem ser mais completamente em si e nem distintas das outras parece ter uma
correlaccedilatildeo com o novo procedimento dialeacutetico que prevalece nos diaacutelogos tardios
Em um ceacutelebre momento de seu livro Platorsquos Progress Ryle diz que o Sofista se
assemelha a um sandwich uma parte central de elaborados raciociacutenios filosoacuteficos envolto
por operaccedilotildees de divisatildeo nada sofisticadas (RYLE 1966 pp 139-140) Digamos entatildeo
do seguinte modo ao propor uma visatildeo unitaacuteria e consistente do diaacutelogo natildeo buscamos
desfazer das evidentes qualidades da leitura de Ryle pretendemos apenas comeccedilar a
harmonizar aquele sandwich que apesar do delicioso recheio infelizmente oferecia a
nosso paladar um patildeo exageradamente insosso e frio
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A TESSITURA DO SER
No que tange agrave riqueza das interpretaccedilotildees do Sofista de Platatildeo o seacuteculo XX da
era cristatilde pode ser considerado especialmente proliacutefico Grande parte deste interesse
principalmente do interesse anglo-saxatildeo parece ser explicado pela filosofia da linguagem
que pode ser identificada por detraacutes das falas do Estrangeiro de Eleia realizadas mais ao
final do diaacutelogo De fato entre 259d9-264b9 do Sofista o Estrangeiro aplica suas
posiccedilotildees ontoloacutegicas ao discurso e agrave opiniatildeo Este avanccedilo em direccedilatildeo agraves formas
discursivas completaraacute o excurso ontoloacutegico forneceraacute um encerramento a ele e nos
permitiraacute retornar agraves divisotildees propriamente ditas que buscam definir o sofista
Na esteira de Russell e de Wittgenstein inuacutemeros comentadores enxergaram que
estas paacuteginas de Platatildeo apareciam como precursoras de conceitos proposicionais
modernos tais como forma loacutegica bivalecircncia ou a distinccedilatildeo entre o sentido e a veracidade
de uma proposiccedilatildeo Eacute certo que tais comparaccedilotildees parecem ser justificadas e acertadas
No entanto se como vimos no segundo capiacutetulo deste trabalho identificaacutevamos nos
gecircneros supremos o funcionamento do mecanismo antiteacutetico (de separaccedilatildeo e conjunccedilatildeo
entre os gecircneros) agora no caso dos discursos a situaccedilatildeo natildeo parece ser diferente
Por exemplo o filoacutesofo Gilbert Ryle viu no texto platocircnico mais do que uma
prefiguraccedilatildeo da teoria dos tipos de Russell (RYLE 2009 [1939] p 19 22 33-34 37
RYLE 2009 [1960] p 70-71) ao que tudo indica via o iniacutecio de uma linhagem filosoacutefica
que passaria antes pelas categorias de Aristoacuteteles para desembocar na filosofia de
Wittgenstein Deste modo ele natildeo deixou de marcar por meio da analogia platocircnica com
a teacutecnica de juntar letras e siacutelabas numa palavra a prevalecircncia do enunciado sobre as suas
partes constituintes deste discurso (RYLE 2009 [1960]) Tal posiccedilatildeo levava Ryle a
interpretar cada um dos gecircneros supremos como classes ou tipos proto-categoriais de
elementos discursivos eles marcariam os modos de relaccedilatildeo entre os termos que
comporiam um enunciado significativo No entanto aparentemente tal posicionamento
ryleano tinha como ocircnus dar de ombros ao debate entorno da dialeacutetica da divisatildeo e do
debate platocircnico a respeito do eleatismo
Portanto o intuito deste presente capiacutetulo seraacute associar o trabalho antiteacutetico da
dialeacutetica platocircnica do Sofista agrave fundamentaccedilatildeo da forma baacutesica de um enunciado que seja
significativo e digno de receber o valor de ldquoverdadeirordquo ou ldquofalsordquo Esta tarefa ontoloacutegico-
83
discursiva natildeo soacute proporcionaraacute uma finalizaccedilatildeo para a questatildeo em torno da aporia
eleaacutetica mas tambeacutem possibilitaraacute que o Estrangeiro nos forneccedila sua derradeira definiccedilatildeo
de sofista Afinal de contas seraacute apenas por meio de uma nova abordagem da filosofia de
Parmecircnides que ficaraacute possiacutevel capturar aquele sofista que havia se escondido na aporia
eleaacutetica do natildeo ser (Sofista 236d1-3239c4-7254a4-6)
No entanto eacute possiacutevel notar que os comentadores natildeo costumam associar a divisatildeo
platocircnica e nem a oposiccedilatildeo antiteacutetica agravequela conjunccedilatildeo entre nomes e verbos que eacute
apresentada pelo Estrangeiro como elemento fundamental para a construccedilatildeo de um
enunciado significativo Na maioria das vezes os comentadores natildeo articulam as
consideraccedilotildees finais a respeito da dialeacutetica (que comeccedilam em 253d) agraves questotildees relativas
ao discurso Fato eacute que logo apoacutes tratar dos gecircneros supremos e da dialeacutetica o
Estrangeiro imediatamente dirige sua investigaccedilatildeo para o gecircnero do discurso
ldquoAvancemos com vista a estabelecer para noacutes o enunciado
como um dentre os gecircneros Pois privados dele ficariacuteamos
privados da filosofia que eacute o mais importante e mais eacute
preciso que cheguemos agora a acordo em relaccedilatildeo ao que eacute
o enunciado e que natildeo seriacuteamos capazes de dizer coisa
nenhuma de decidiacutessemos que natildeo eacute absolutamente nada e
que seriacuteamos privados dele se concordaacutessemos que natildeo haacute
em nada mistura nenhuma em relaccedilatildeo a nadardquo139 (Sofista
260a5-b2)
Fica claro com esta passagem que o que estaacute em curso eacute uma aplicaccedilatildeo ao
discurso e agrave opiniatildeo dos resultados atingidos pela investigaccedilatildeo anterior a saber a nova
compreensatildeo da noccedilatildeo de natildeo ser e da possibilidade de mistura entre os seres O trabalho
bruto e mais difiacutecil jaacute aparece ter sido feito agora bastaria direcionaacute-lo para o discurso e
para a opiniatildeo (Sofista 260b10-c4) Deste modo segundo Platatildeo dois seriam os
argumentos do sofista (260c11-261a4) (i) posto que natildeo participa do ser o natildeo ser natildeo
139 ldquoπρὸς τὸ τὸν λόγον ἡmicroῖν τῶν ὄντων ἕν τι γενῶν εἶναι τούτου γὰρ στερηθέντες τὸ microὲν microέγιστον φιλοσοφίας ἂν στερηθεῖmicroεν ἔτι δ᾽ ἐν τῷ παρόντι δεῖ λόγον ἡmicroᾶς διοmicroολογήσασθαι τί ποτ᾽ ἔστιν εἰ δὲ ἀφῃρέθηmicroεν αὐτὸ microηδ᾽ εἶναι τὸ παράπαν οὐδὲν ἂν ἔτι που λέγειν οἷοί τ᾽ ἦmicroεν ἀφῃρέθηmicroεν δ᾽ ἄν εἰ συνεχωρήσαmicroεν microηδεmicroίαν εἶναι microεῖξιν microηδενὶ πρὸς microηδένrdquo (Sofista 260a5-b2)
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pode ser dito e (ii) mesmo que o natildeo ser de algum modo participasse de algumas formas
e do ser poderia natildeo participar do gecircnero discursivo e portanto deste modo natildeo seria
possiacutevel existir discursos falsos Como conclusatildeo de cada um desses argumentos o
sofista segundo o Estrangeiro de Eleia dizia natildeo existir arte de produzir imagens ou arte
do simulacro Posto que o Estrangeiro ofereceu uma saiacuteda para a primeira aporia caberia
a ele agora direcionar a resoluccedilatildeo alcanccedilada para este segundo argumento que poderia
ser utilizado pelos mestres da retoacuterica
Assim posto que pelo fato de realizarmos discursos o discurso existe mas ele
natildeo existiria se nenhuma coisa se misturasse com outra (259e4-6) se todas as coisas
fossem completamente disjuntas entre si natildeo haveria possibilidade sequer de existecircncia
da filosofia Logo se existe mistura em algo (e existe como jaacute foi dito anteriormente) eacute
possiacutevel que haja mistura tambeacutem no discurso portanto o discurso tambeacutem pode ser
considerado um gecircnero (γενή) carregando em si a marca do natildeo ser (260b7-8) Cabe
saber como o resultado alcanccedilado pelo Estrangeiro se aplicaria ao context discursive
Somente assim estaraacute garantido o discurso falso ou seja ser possiacutevel dizer aquilo que
de algum modo natildeo eacute (260c1-4)
Por conseguinte como jaacute havia sido indicado por Platatildeo assim como a primeira
aporia do diaacutelogo se articulava com a segunda tambeacutem o discurso verdadeiro estaria
garantido apoacutes este trabalho adicional Entretanto natildeo poderiacuteamos avanccedilar sem antes
estabelecer a forma correta do enunciado que possibilitaraacute que ele participe do ser Para
dizer em outros termos precisamos encontrar a forma loacutegica de um enunciado que possa
ser bivalorado Diz Platatildeo
ldquoPois ele mostra jaacute algo a respeito das coisas que satildeo ou
que vecircm a ser ou que vieram a ser ou que viratildeo a ser mas
conclui algo combinando os verbos com os nomes Eacute por
isso que afirmamos que estaacute a dizer e natildeo somente a
nomear de modo que a essa combinaccedilatildeo damos o nome de
enunciadordquo140 (Sofista 262d2-6 o grifo eacute nosso)
140 δηλοῖ γὰρ ἤδη που τότε περὶ τῶν ὄντων ἢ γιγνοmicroένων ἢ γεγονότων ἢ microελλόντων καὶ οὐκ ὀνοmicroάζει microόνον ἀλλά τι περαίνει συmicroπλέκων τὰ ῥήmicroατα τοῖς ὀνόmicroασι διὸ λέγειν τε αὐτὸν ἀλλ᾽
85
Esta seraacute a forma proposicional um discurso eacute aquilo que eacute formado pelo
entrelaccedilamento de nomes e verbos A nomeaccedilatildeo seria portanto necessaacuteria mas natildeo
suficiente para o estabelecimento de um discurso Para que algo seja considerado
discurso natildeo basta que exerccedilamos uma nomeaccedilatildeo sobre algo ao definir o discurso como
uma espeacutecie de articulaccedilatildeo a significaccedilatildeo de um termo natildeo poderaacute mais ser confundida
com a veracidade do discurso
No Sofista Platatildeo nos oferece trecircs exemplos modelares deste discurso em questatildeo
num primeiro momento diz ldquoHomem entenderdquo (ldquoἄνθρωπος microανθάνειrdquo em 262c9) Na
sequecircncia oferece dois discursos de qualidades diferentes
(i) Discurso verdadeiro ldquoTeeteto sentardquo (ldquoΘεαίτητος κάθηταιrdquo em 263a2)
(ii) Discurso falso ldquoTeeteto voardquo (Θεαίτητος πέτεται141 em 263a9)
O importante eacute notar que em todos os exemplos a forma miacutenima do discurso eacute
composta exatamente pela conjunccedilatildeo de um nome e um verbo segundo Platatildeo o primeiro
e menor dos enunciados (262c6-7) A forma do enunciado eacute descrita por Platatildeo do
seguinte modo
ldquoHoacutespede de Eleia () com efeito para noacutes satildeo dois os
gecircneros de coisas ditas pela voz acerca da entidade
Teeteto Como
H Os gecircneros dos chamados nomes e dos verbos
T Diz cada um dos dois
H Chamamos verbo ao que se mostra na accedilatildeo
T Sim
H E chamamos nome ao signo da voz posto naqueles
mesmos que praticam as acccedilotildees
T Perfeitamente eacute isso
οὐ microόνον ὀνοmicroάζειν εἴποmicroεν καὶ δὴ καὶ τῷ πλέγmicroατι τούτῳ τὸ ὄνοmicroα ἐφθεγξάmicroεθα λόγον (ldquoSofistardquo 262d2-6 o grifo eacute nosso) 141 Originalmente ldquoTeeteto com o qual eu agora dialogo voardquo (Θεαίτητος ᾧ νῦν ἐγὼ διαλέγοmicroαι πέτεται) em 263a9
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H Portanto ao dizer nomes em sequecircncia natildeo obtemos
jamais um enunciado nem por sua vez dizendo verbos
separados de nomesrdquo142 (Sofista 261e4-262a11)
No entanto poderiacuteamos recuar no texto e recordar qual era o primeiro objetivo do
diaacutelogo tratar da distinccedilatildeo ou indistinccedilatildeo entre o sofista o poliacutetico e o filoacutesofo ao qual
o meacutetodo da divisatildeo seria o principal meio para lograr uma soluccedilatildeo
ldquomas primeiro parece que deves comeccedilar agora por examinar em
comum comigo acerca do sofista buscando explicar por um
enunciado o que ele eacute Pois ateacute agora em comum tu e eu temos
acerca dele apenas o nome mas a funccedilatildeo que lhe atribuiacutemos seraacute
particular a cada um de noacutes Eacute preciso sempre acerca de tudo estar
de acordo sobre o proacuteprio facto mais pelo enunciado do que pelo
proacuteprio nome sem enunciadordquo143 (Sofista 218b7-c5)
E tambeacutem um pouco mais a frente
ldquoEntatildeo chegamos agora a um acordo acerca da pesca agrave linha natildeo
apenas captamos o nome mas tambeacutem a definiccedilatildeo bastante proacutepria
da acccedilatildeo144 (Sofista 221 a7-b2)
142 ldquoΞένος () ἔστι γὰρ ἡmicroῖν που τῶν τῇ φωνῇ περὶ τὴν οὐσίαν δηλωmicroάτων διττὸν γένος Θεαίτητος πῶς Ξένος τὸ microὲν ὀνόmicroατα τὸ δὲ ῥήmicroατα κληθέν Θεαίτητος εἰπὲ ἑκάτερον Ξένος τὸ microὲν ἐπὶ ταῖς πράξεσιν ὂν δήλωmicroα ῥῆmicroά που λέγοmicroεν Θεαίτητος ναί Ξένος τὸ δέ γ᾽ ἐπ᾽ αὐτοῖς τοῖς ἐκείνας πράττουσι σηmicroεῖον τῆς φωνῆς ἐπιτεθὲν ὄνοmicroα Θεαίτητος κοmicroιδῇ microὲν οὖν Ξένος οὐκοῦν ἐξ ὀνοmicroάτων microὲν microόνων συνεχῶς λεγοmicroένων οὐκ ἔστι ποτὲ λόγος οὐδ᾽ αὖ ῥηmicroάτων χωρὶς ὀνοmicroάτων λεχθέντωνrdquo (Sofista 261e4-262a11) 143 ldquoκοινῇ δὲ microετ᾽ ἐmicroοῦ σοι συσκεπτέον ἀρχοmicroένῳ πρῶτον ὡς ἐmicroοὶ φαίνεται νῦν ἀπὸ τοῦ σοφιστοῦ ζητοῦντι καὶ ἐmicroφανίζοντι λόγῳ τί ποτ᾽ ἔστι νῦν γὰρ δὴ σύ τε κἀγὼ τούτου πέρι τοὔνοmicroα microόνον ἔχοmicroεν κοινῇ τὸ δὲ ἔργον ἐφ᾽ ᾧ καλοῦmicroεν ἑκάτερος τάχ᾽ ἂν ἰδίᾳ παρ᾽ ἡmicroῖν αὐτοῖς ἔχοιmicroεν δεῖ δὲ ἀεὶ παντὸς πέρι τὸ πρᾶγmicroα αὐτὸ microᾶλλον διὰ λόγων ἢ τοὔνοmicroα microόνον συνωmicroολογῆσθαι χωρὶς λόγουrdquo (Sofista 218b7-c5) 144 ldquoνῦν ἄρα τῆς ἀσπαλιευτικῆς πέρι σύ τε κἀγὼ συνωmicroολογήκαmicroεν οὐ microόνον τοὔνοmicroα ἀλλὰ καὶ τὸν λόγον περὶ αὐτὸ τοὖργον εἰλήφαmicroεν ἱκανῶς (Sofista 221a7-b2)
87
O que parece estar em questatildeo aqui eacute a relaccedilatildeo entre o nome e a accedilatildeo ou como
dizia em 218c a atividade145 A realizaccedilatildeo de um discurso significativo verdadeiro ou
falso eacute cumprir exatamente o mesmo objetivo que o iniacutecio do diaacutelogo apontava temos
trecircs nomes ldquosofistardquo ldquopoliacuteticordquo e ldquofiloacutesofordquo teriacuteamos tambeacutem trecircs atividades a eles
associadas Ali no comeccedilo do diaacutelogo jaacute estava posta mesmo que implicitamente a
questatildeo da forma loacutegica do discurso
Mas de que modo os chamados gecircneros supremos se relacionariam com o
discurso O que a oposiccedilatildeo antiteacutetica poderia acrescentar agrave compreensatildeo do discurso
Acreditamos que posto que gecircneros supremos se mostram como gecircneros superiores na
cadeia do ser que vai do muacuteltiplo ao um e do um ao muacuteltiplo estes parecem exercer
portanto uma certa relaccedilatildeo como os gecircneros inferiores significa que os gecircneros mais
inferiores que estiverem sob o escopo dos superiores estariam como que regidos pelos
gecircneros mais altos Tal relaccedilatildeo poderia estar proacutexima daquela entre um modelo e sua
imagem no entanto a passagem eacute gradual por meio de um ou mais intermediaacuterios (no
caso dos gecircneros supremos provavelmente por muitos intermediaacuterios)
Deste modo o discurso um gecircnero inferior aos gecircneros supremos por estar regido
pelos gecircneros mais altos deve ter um funcionamento semelhante aquele dos gecircneros
supremos isto eacute funcionaraacute com base nas relaccedilotildees antiteacuteticas da dialeacutetica relaccedilatildeo
antiteacutetica agora baseada na uniatildeo entre nomes e verbos
Dizer um discurso verdadeiro significa atribuir as ligaccedilotildees devidas entre os
gecircneros ou atribuir a falta de ligaccedilatildeo entre eles (o que significa a coacutepia da estrutura do
ser) O falso seria fazer o inverso atribuir mistura quando natildeo haacute e natildeo misturar quando
a mistura eacute presente na cadeia dos seres Assim Platatildeo estaria instituindo um novo modo
de compreender o erro completamente diferente daquele modo encontrado no diaacutelogo
Teeteto (tomar por exemplo Teeteto por Teodoro Teeteto 199a-b) e bem diferente do
ldquodizer outra coisardquo de Antiacutestenes ambos erros relacionados de algum modo agrave maacute
nomeaccedilatildeo
Eacute importante notar que mesmo dizendo atentar contra Parmecircnides Platatildeo ainda
continua a aceitar duas importantes teses eleaacuteticas contidas no Poema do mestre de Eleia
(i) que o ser deve ser tomado como criteacuterio de verdade e (ii) que eacute possiacutevel de algum
145 Ao que parece no contexto do Sofista de Platatildeo atividade (ergon) e accedilatildeo (pragma) satildeo sinocircnimos
88
modo pensar e no caso platocircnico dizer o ser Este uacuteltimo conhecido como postulado da
inteligibilidade do ser apresentado por Diels-Kranz como fragmento III do Poema
Entatildeo parece-nos que Platatildeo no intuito de garantir a inteligibilidade do ser (pois
o pensar eacute o discurso mudo proferido da alma consigo mesma146) modifica a interpretaccedilatildeo
deste mesmo (αὐτὸ) do fragmento III de Parmecircnides Se Parmecircnides parecia entender
este mesmo como uma uacutenica e mesma coisa como identidade Platatildeo parece afirmar
que o discurso eacute verdadeiro somente quando apresenta a mesma estrutura do Ser
Assim no caso de Platatildeo o discurso seria como um arqueiro que apesar de sempre buscar
atingir o alvo agraves vezes o acerta e agraves vezes o erra
Cabe notar que as primeiras seis definiccedilotildees natildeo satildeo suficientes para capturar o
sofista que insiste em se esconder no refuacutegio inextrincaacutevel do natildeo ser Para conseguir
capturaacute-lo Platatildeo teraacute portanto que trilhar a vereda do natildeo ser que havia sido proibida
por Parmecircnides
Mesmo que boa parte dos conteuacutedos das sete definiccedilotildees de sofista jaacute pudessem
ser encontrados em passagens de obras precedentes ao Sofista eacute possiacutevel ver que
especialmente a seacutetima definiccedilatildeo natildeo cumpre as exigecircncias tradicionais para uma
definiccedilatildeo pelo menos tal como foram expostas no Ecircutifron147 Isto se deve ao fato de
que tanto o sofista quanto seu discurso sempre devem ter a capacidade de ter em si um
diferente (ἕτερος) de si mesmo natildeo podendo ser sempre e sob todos os aspectos algo
identitaacuterio (ταὐτόν) Do mesmo modo estas feiccedilotildees ou ideacuteias neste caso natildeo podem ser
completamente irredutiacuteveis entre si e de algum modo podem conter aquilo que natildeo satildeo
para resolver este impasse eacute criada a noccedilatildeo de entrelaccedilamento das ideias (συmicroπλοκὴ
εἰδῶν) em 259e6
Notemos que haacute certa correspondecircncia entre a condiccedilatildeo ontoloacutegica dos discursos
146 Hoacutespede de Eleia Pois bem pensamento e discurso satildeo o mesmo mas o primeiro que eacute o diaacutelogo iacutentimo da alma consigo mesma que nasce sem voz eacute esse mesmo que foi por noacutes denominado pensamento Ξένος οὐκοῦν διάνοια microὲν καὶ λόγος ταὐτόν πλὴν ὁ microὲν ἐντὸς τῆς ψυχῆς πρὸς αὑτὴν διάλογος ἄνευ φωνῆς γιγνόmicroενος τοῦτ᾽ αὐτὸ ἡmicroῖν ἐπωνοmicroάσθη διάνοια (263e3-5) 147 O primeiro requisito seria o de que a definiccedilatildeo tenha identidade (ταὐτόν) ou seja seja idecircntica a si mesma em todos os casos Podemos dizer tambeacutem que seu contraacuterio (ἐναντίον) tambeacutem idecircntico a si mesmo tem de se mostrar completamente disjunto do contraacuterio correspondente por exemplo natildeo poderia neste caso em nenhuma hipoacutetese juntarmos o piedoso e o iacutempio (a presenccedila de um exclui a do outro) Por outro lado podemos notar que a definiccedilatildeo do piedoso para ser adequada deve abarcar todos os casos particulares nos quais se identificam accedilotildees piedosas (Platatildeo Ecircutifron 5d1-5 e 6d9-e7)
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do sofista e a proacutepria figura do sofista ambos aparecem sem ser (como a primeira aporia
em 236b) Tudo parece indicar que tanto este enunciador quanto seu enunciado satildeo uma
maacute microίmicroησις de algo entretanto este algo que seria modelo para o discurso e para aquele
que discursa natildeo eacute completamente claro no diaacutelogo Isto pode ser entrevisto na seguinte
passagem que estaacute buscando a uacuteltima definiccedilatildeo do sofista
Teeteto - Dizer que eacute saacutebio [σοφὸν] eacute impossiacutevel porque o
colocamos como natildeo conhecedor mas porque eacute imitador do saacutebio
[microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ] eacute evidente que tomaraacute um nome
paralelo ao dele e agora jaacute quase entendi que eacute preciso nomear
verdadeiramente aquele que por completo eacute realmente um sofista
[σοφιστήν]148 (Sofista 268b11-c4)
Deste modo por natildeo ser o saacutebio mas sim a imitaccedilatildeo dele o sofista leva o nome
de sofista Da mesma maneira caberia perguntar porque entatildeo haveria o filoacutesofo de
carregar o pudor de amigo impresso em seu nome Talvez a condiccedilatildeo intermediaacuteria do
filoacutesofo assim como a do sofista tambeacutem possa ser explicada pela noccedilatildeo de microίmicroησις
mas neste caso boa microίmicroησις
O platonismo portanto parece pretender matar seu pai para que a filosofia deste
continue viva ou seja para impedir que a implosatildeo sofiacutestica das teses de Parmecircnides faccedila
com que o eleatismo sucumba aos interesses dos mestres da retoacuterica e da ilusatildeo
Se como dizia na escatologia final do seu diaacutelogo Fedon aos parricidas estava
reservado queimar permanentemente num rio de fogo Platatildeo natildeo parece com relaccedilatildeo agrave
filosofia de Parmecircnides merecer tamanha puniccedilatildeo Do mesmo modo talvez para todos
noacutes estudiosos e amantes da filosofia mesmo com todos os esforccedilos a interpretaccedilatildeo
definitiva da filosofia platocircnica natildeo exista e assim Platatildeo esteja permanente no lugar
onde Dante Alghieri uma vez o deixou num eterno e bem frequentado limbo
148 ΘΕΑΙ Τὸ microέν που σοφὸν ἀδύνατον ἐπείπερ οὐκ εἰδότα αὐτὸν ἔθεmicroενmiddot microιmicroητὴς δrsquo ὢν τοῦ σοφοῦ δῆλον ὅτι παρωνύmicroιον αὐτοῦ τι λήψεται καὶ σχεδὸν ἤδη microεmicroάθηκα ὅτι τοῦτον δεῖ προσειπεῖν ἀληθῶς αὐτὸν ἐκεῖνον τὸν παντάπασιν ὄντως σοφιστήν(268b11-c4)
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