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Herdeiro da névoa

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Primeiros capítulos do livro.

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Chiado Editorachiadoeditora.com

COLEÇÃO

V I A G E N S N A F I C Ç Ã O

chiadoeditora.com

© 2013, Raquel Pagno e Chiado Editora

E-mail: [email protected]

Título: Herdeiro da Névoa

Coordenação editorial: Rosa Machado

Composição gráfica: Isabel Andrade– Departamento Gráfico

Capa: Prasad Siva – Departamento Gráfico

Impressão e acabamento: Chiado Print

1.ª edição: Maio, 2013

ISBN: 978-989-510-232-7

Depósito Legal n.º 355702/13

Um livro vai para além de um objeto. É um encontro entre duas pessoas

através da palavra escrita. É esse encontro entre autores e leitores que a

Chiado Editora procura todos os dias, trabalhando cada livro com a dedicação

de uma obra única e derradeira, seguindo a máxima pessoana “põe tudo

quanto és no mínimo que fazes”. Queremos que este livro seja um desafio

para si. O nosso desafio é merecer que este livro faça parte da sua vida.

raquel PagNo

Herdeiro daNévoa

Chiado Editora

Prefácio

Por quem você venderia a sua alma?Tal indagação me soaria estranha até há pouco

tempo. Eu certamente julgaria a resposta óbvia demais: filhos,

amores, pais... uma leva de entes queridos por quem ofaríamos facilmente. Jamais pensei que a escolha pudesseser feita para salvar a vida de um inimigo...

Muitos anos se passaram. Estou sentado na cadeiradura do meu escritório, num luxuoso hotel no centro deParis, diante da minha velha máquina de escrever.‘François Roux – Advogado’ é o dizer entalhado na antigaplaca de madeira, por mim pendurada cuidadosamentediante da porta da suíte. Ainda sinto orgulho deste nome edeste título, embora há muito tempo não receba nenhumcliente nem tenha mais energia ou vontade para atenderalgum.

Observo as gotas de chuva que escorrem pela vidraçaem minha frente, lentas, juntando-se umas às outras.Penso que as palavras sairão de minha mente como essasgotas de chuva, com tamanha profundidade e ao mesmotempo com uma transparência suficientemente cristalina,tal que se possa ver através delas.

Aperto os olhos, tentando vencer as sombras datempestade que se derrama sobre a cidade. Lá embaixo,um vulto se move, correndo pela rua alagada em direçãoao meu prédio. Levanto-me rápido, precisamente a tempode definir a silhueta da mulher sob o guarda-chuva; omesmo belo demônio que me enfeitiçou.

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quando retorno ao meu assento, a fim de concluir amissão de escrever minha história, ela já está tão próximaque posso ouvir seus passos através da porta fechada dasuíte transformada em meu escritório particular. O toc tocdos saltos pontiagudos sobem impacientes pela escadaria.

De certa forma, creio que o habitual não uso doelevador seja uma forma implícita que ela arranjou parame anunciar sua chegada. Como se eu não a sentisse,como se não fôssemos parte de um mesmo todo, umúnico ser dividido em duas partes.

não quero abrir a porta. Ela me confunde, rouba-mea inspiração. Tenho de me concentrar nas letras, nas teclasa minha frente. não vou levantar-me e deixá-la entraroutra vez em minha casa para roubar-me as forças e asesperanças, impedir-me de contar a verdade.

Recolho-me em toda a insignificância de umacriatura que desafia seu criador. Recolho-me em meusilêncio e ignoro os nós dos seus dedos que bateminsistentemente à porta. Percebo, pelo tom das batidas,que ela está ansiosa. Sua mão está trêmula e insegura.

Talvez a verdade que decidi expor seja também averdade dela, não tenho certeza. Seus passos estão sedistanciando da porta, voltando pelas mesmas escadasque a trouxeram para cá, para mim.

Se ela não o quisesse, jamais me permitiria tamanhaliberdade. Se não desejasse ardentemente que sua históriafosse contada, apenas me impediria. Ela sempre conseguefazer de mim o que quer.

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– Chloé Champoudry! – a voz ecoou pelo imensoauditório.

Virei-me. Ouvira falar na família Champoudry,famosa em toda a França, por sua fortuna e seu poder.Ouvira estórias assustadoras. Acidentes terríveis,suicídios, decadência completa... nunca dei importânciaa essas estórias. Pessoas muito ricas como osChampoudry, são sempre alvos para invenções de mentesperturbadas.

Mudara-me para Paris há pouco tempo. Sequercompreendia tais estórias completamente. Estudara oidioma francês enquanto me preparava para a viagem. noentanto, por mais que o tenha estudado, suponho que nuncao dominei com perfeição. Dediquei-me ao máximo, queriarealizar o sonho de quase todos os jovens brasileiros daminha época: estudar na França, mais precisamente naSorbonne, símbolo máximo de status que um recém-formado poderia ter.

A garota levantou-se e deslizou suavemente emdireção à professora. Minha cabeça a seguiu, despudora-damente. Meus olhos vidraram nos cachos de fogo que lhecaíam sobre os ombros, encobertos apenas por um finoxale de renda negra, pelo qual transparecia a palidez de suapele. O vestido, também negro, era decotado e deixavaaparecer as beiradas do espartilho apertado que lhedemarcava a cintura e espremia os seios miúdos. Sua faceera um mistério, escondido por trás de um fino tule, quasetransparente, que ocultava a pureza do rosto feminino,mostrando apenas o cinza profundo dos seus olhos.

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Chloé era a figura mais linda que eu vira na vida.Cheguei mais perto para ouvir qual seria sua audição econstatei que Belas Artes era o curso que escolhera. nemprecisava, ela era tão linda quanto as divas francesas doteatro. Depois de conferir a papelada, a professora saiupelo corredor. Chloé a seguiu. Tive a impressão de queela me lançara um olhar curioso quando passou ao meulado, tão perto que pude sentir o perfume que sedesprendia de sua pele e atiçava-me as narinas.

Eu viera a Paris para estudar Direito. Estava com 21anos de idade em 1951, quando me surgiu a oportunidadede ingressar na Sorbonne. Eu não fora um jovem rico.Reuni minhas economias e parti para a França em buscade boa formação. Arranjei um pequeno quarto numamodesta pensão do Marais, não muito longe da Île de LaCité, de onde eu conseguia enxergar, ao longe, pela janelada frente, as torres de Notre Dame. Dividiria o minúsculoquarto com outro estudante, e consegui um trabalho delavador de pratos que me garantiria teto e sustento nosanos vindouros.

Cheguei apenas uma semana antes da audição. nãoconhecia a cidade, tampouco sabia o nome das ruas, oucomo encontrar os endereços de que precisava. Por sorte,meu colega de quarto estivera antes em Paris. Vindo deLondres, era mais velho e experiente do que eu. Stephentinha 28 anos, um conhecimento e uma experiência de vidaque me inspirava e fascinava. Era o tipo de pessoa que sedaria bem em qualquer coisa que fizesse na vida. Viera àFrança para formar-se em História, cujos conhecimentosserviriam para escrever um livro. Entre suas inúmerashabilidades e diversas profissões que já exercera, eratambém escritor.

não era fácil ser aceito, ainda mais como bolsista,nas universidades francesas. Eu sempre fora bom aluno.

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Trouxera cartas e mais cartas de recomendação dos meusantigos professores brasileiros. Depois de 22 longos diasde viagem, enfiado em um arcaico navio movido acarvão, e de percorrer de trem os mais de 585 quilômetrosque separavam Paris de Bordeux, sentia-me um meninoperdido, ao desembarcar na estação Montparnasse.

Confuso, demorei a encontrar as principais avenidas,como a Avenue des Champs-Elysées, na margem direita doSenna, que além de conduzir ao Arco do Triunfo, abrigavao Consulado do Brasil, onde eu regularizaria minhasituação como bolsista do governo francês.

O que eu não esperava, era depois de ter atravessadotodas as dificuldades, e de conseguir chegar até aondemeu sonho se iniciaria, eu encontraria um anjo, no exatomomento em que meu nome fora chamado para o testeque decidiria o meu destino.

– Vaz! inácio Vaz! – por pouco não perdi a vez.Mantinha meus olhos fixos na jovem Chloé que se afastavapor entre o corredor abarrotado de homens tão pasmadosquanto eu.

Enfim, acordei do transe e segui minha professora.Levaram-me para uma sala distinta, na qual me esperavamdois entrevistadores que avaliariam minhas possibilidadesde ingresso no curso de Direito.

na hora da pergunta final, depois de julgadoqualificado e merecedor da bolsa de estudos, foi quecometi o engano.

quando questionado sobre qual dos cursos pretendia,involuntariamente meus lábios se abriram para a palavraArtes.

Tão logo calei-me, percebi o terrível erro. Estive tãoconcentrado em Chloé, que meus sentidos me traíram.Eu abdicara de meu sonho, para seguir o destino que meaguardava junto a outro sonho, mais recente e mais

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ardente, que me tentara na saleta das audições. Rezeisecretamente para que Chloé também tivesse sido aceita.

quando deixei o prédio, sentia-me zonzo. Andei aesmo pelas ruas desconhecidas durante muito tempo. nãoconseguia acreditar no que acabara de fazer. Minhapreocupação principal era de como eu daria a notícia a meupai. Percorri as ruas que cercavam o Quartier Latin, atérecuperar a lucidez. Voltei para meu quartinho, decidido aescrever-lhe uma carta, contando que acabara de desistirdo futuro brilhante que ele sonhara para seu filho.

Stephen estava deitado. não pareceu surpreso,quando lhe contei minha tremenda burrada. Pedi-lhe umconselho de como contar a verdade a meu pai. Stephenrecusou, esquivando-se da responsabilidade que eraunicamente minha, e saiu rindo às gargalhadas.

não entendi como ele poderia achar graça de umaquestão tão séria. Talvez, ele que vinha de uma famíliaimportante e que podia escolher o que fazer da vida,preocupando-se apenas com o seu bel-prazer, nãosoubesse o que aquilo significava para alguém como eu.Segurei o papel com força. não sabia nem por ondecomeçar. Decidi então sair pé pela cidade, ainda nãotivera tempo de conhecer Paris e certamente a caminhadae a sensação do vento frio na pele me ajudariam aesquecer o imperdoável erro.

Percorri a Rue de Rivoli, até encontrar a esquina que melevaria à Pont d’Arcole. queria ir à catedral de Notre Dame.Apesar de estarmos nos primeiros dias de março, o frio doinverno insistia em não se ausentar de Paris e a primaverainiciava como se fosse uma irmã siamesa do inverno. Eraquase meio-dia, mas o sol não brilhava. um aglomerado denuvens pálidas e carregadas envolvia o céu da cidade,tornando-a melancólica. Minúsculas gotas geladas de chuvacobriam meu rosto, enquanto um vento álgido atravessava-

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me as vestes e penetrava em minha pele, fazendo doer osdentes e congelar o sangue em minhas veias.

Estava pronto para entrar na catedral, ajoelhar-me erezar. quem sabe Deus não me enviaria a inspiraçãonecessária para a inevitável carta que escreveria embreve? Caminhei depressa, sem me importar com agrande quantidade de pessoas que se aglomeravam nasruas. imaginei ter visto os mesmos cachos de fogoesvoaçando em minha frente, correndo pela praça,migrando para a igreja.

Corri também. Se Chloé estava ali, então eu já nãome importava com a carta a meu pai, ou com a desculpaesfarrapada que eu teria de inventar. Só queria olharnovamente para aquele anjo que mudara o meu destino,perder-me naqueles olhos cinza de tempestade.

Segui pela Praça Parvis, esbarrando nas pessoas. Via saia esvoaçante de Chloé sumir na gigantesca porta daentrada principal, que alcancei segundos depois. Perdi-me na beleza da nave central. Precisei concentrar-me paraperceber que Chloé estava sentada na última fileira àdireita, cabeça baixa. Esperei um tempo, para deixar deofegar. Segui lentamente e sentei-me ao lado dela.

– Eu sabia que viria – afirmou, sem mudar deposição, nem me olhar. Olhei em volta, em dúvida seaquelas palavras eram mesmo para mim. não havia maisninguém ali. Hesitei um instante, apavorado, e só entãorespondi.

– Perdoe, mas ouvi quando a professora a chamou,Srta. Champoudry. Eu... acho... que seremos colegas deturma... – disse encabulado. Ouvi um leve gemido queimaginei ser choro, mas ao olhar melhor para seu rostoparcialmente encoberto pelo véu, vi que sorriatimidamente. Ri também, sentindo-me ridículo e refletindosobre qual fora a besteira que eu acabara de dizer.

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– Desculpe, eu... – ela levantou totalmente o véu eme olhou curiosa, certamente esperando pela próximaidiotice que sairia dos meus lábios. – Bem, eu só penseique, já que vamos ser colegas de classe, talvez a senhoritaaceitasse tomar um café comigo.

– um café? – repetiu ela, interrompendo-me com arzombeteiro.

– Sim, mas, caso não goste de café, poderia ser umsorvete, ou quem sabe, um suco, ou... – senti meu rostoem chamas, o que me permitiu avaliar o quão coradoficara, enquanto tentava engatilhar uma conversa. Penseise o meu francês estava tão ruim, a ponto de ela nãocompreender o que eu dizia.

– Eu aceito o café! – surpreendeu-me, cortando meuspensamentos e deixando-me ainda mais nervoso. Eu tinhame preparado para enfrentar a dor de uma recusa, masnão para a surpresa que aquele sim me causou. – Mas sóse você for à minha casa.

– À sua casa? – perguntei, em um tom mais surpresodo que gostaria. – Sim, é claro!

– Venha – disse apenas, segurando-me pelo braço epuxando-me para fora da catedral. Chloé parecia fugir dealguém, ou dos olhares maliciosos que a acompanhavampor onde passava.

Minhas pernas se recusavam a obedecer enquantoChloé me puxava. Percorremos uma das pontes, rumo aBoulevard Saint Germain, de onde entreveramo-nos aoeste, em ruelas secundárias, até passarmos às áreasnobres de Paris, onde se erguiam a Tour Eiffel e antigosprédios de moradia de gente rica e elegante. não soubeexatamente para onde ela me levaria, era ainda umcompleto estranho perambulando na bela Paris.

Estava tão tenso que poderia ter me desequilibrado outropeçado e caído. Só sentia a mão forte de Chloé, que

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segurava firmemente o meu braço e me arrastava para ocasarão dos Champoudry, e só enxergava seus cabelosruivos à minha frente, que se moviam balançados pelovento.

Caminhamos apressados, tanto que perdi a conta dequanto tempo se passara. Ela sempre a minha frente e eu aseguindo, guiado por sua mão dominadora. quandochegamos, eu mal conseguia respirar, de tão exausto.Chloé não parecia nem um pouco cansada.

Pensei em como a minha vida poderia ter mudadotanto em um único dia. quando acordara naquela manhã,tudo o que pretendia era ser aceito na Sorbonne, tornar-meadvogado e voltar para casa com o orgulho de um sonhorealizado. Desde o momento em que eu vi Chloé pelaprimeira vez, essas coisas perderam toda a importânciapara mim. Todos os meus objetivos se transfiguraram emapenas um: decifrar aquela mulher misteriosa, que mearrastava rua afora, como se o resto do mundo tivessedeixado de existir.

Subimos a escadaria que antecedia a entrada luxuosado casarão. Chloé correu seus dedos até o meu pulso, ondeapertou, puxando-me para trás de si, como se quisesse meproteger ou me esconder. Então lembrei-me de que elapoderia ter um pai e que o Sr. Champoudry poderia ser umhomem temeroso, e tive vontade de voltar. Cheguei a darum passo atrás, mas a mão de Chloé segurava-me de talforma, que não pude livrar-me dela. Eu não disse nada. Sófiquei ali e esperei que abrisse a porta.

ninguém nos recepcionou. Ou estávamos sós, ou osrangidos da porta não podiam ser ouvidos no interior daconstrução. Entrei. Olhei para os lados, admirando oespaçoso salão, habitado apenas por um gato, que dormiasobre o único móvel do recinto, um piano de cauda.Sobre um ressalto do piso, um carpete felpudo

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inteiramente branco e solitário, tal qual o piano e o gato.As luminárias pendiam do teto como lágrimas, e oslustres cintilavam uma iluminação amarelada, que davaao ambiente uma sensação calorosa e aconchegante,apesar da amplitude.

no extremo oposto do cômodo, havia uma portaentreaberta, pela qual eu enxerguei dois corrimãos doura-dos. Chloé dirigiu-se até lá, abrindo-a completamente.Olhou-me como se me convidasse a subir as escadas. Olheipara ela, e em seguida para uma pequena passagem que aladeava pela direita, tendendo a atravessá-la, imaginandoque a cozinha estivesse do outro lado, atrás da escada.

– Venha comigo – disse, estendendo-me a mão.Subi o primeiro degrau timidamente, depois o

segundo e finalmente a mão de Chloé segurou a minha eela me conduziu até o segundo lance da escada, queacabava em outro cômodo de dimensões descomunais. Olugar era composto por enormes prateleiras encostadasem todas as paredes e forradas de livros, de todos ostamanhos e espessuras. Olhei encantado para a majestosabiblioteca, os livros com suas capas de couro, adornosdourados nas lombadas e imaginei-me agarrado a cadaum deles, devorando-os um a um. no centro do aposentohavia pequenas mesas arredondadas, torneadas emmadeira escura, que conferiam ao ambiente um armisterioso, mas ao mesmo tempo, confortável. Duaspoltronas escoltavam cada uma delas. E no centro dissotudo, uma lareira redonda lançava chamas avermelhadase aumentava a sensação gótica e sombria do lugar.

Relutei em sair dali, mas Chloé me conduziu nova-mente à escada até uma comprida circulação, no terceiroandar. Havia muitas portas, em ambos os lados, todasigualmente pintadas de branco, como quase tudo ali. Bemno meio da circulação, sobre um aparador, repousavam

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antigos retratos, que pareciam vindos de alguma épocaremota. não tive tempo de reparar bem neles, mas nopouco que vi, reconheci a imagem de Chloé, os cachos queme eram tão familiares, apesar de eu conhecê-los há tãopouco tempo.

Chloé parou diante da última porta do corredor.Segurou a maçaneta dourada e girou-a rapidamente, em-purrando a pesada madeira da porta. Para minha surpresa,não se tratava de uma sala de estar, ou de qualquer tipo deambiente social. Chloé me levara para o quarto.

Relutei por um instante. não era correto entrar, nemera correto estar ali, sozinho com Chloé. Meus pelos searrepiaram, só em pensar na possibilidade de ser pego.Mas ela olhou-me com seu olhar mais doce, e eu nãopude resistir. Deixei que me tocasse com suas mãosquentes, que me apertavam as carnes, e espalhavam seucalor reconfortante pelo meu corpo ofegante, enquantotirava-me a camisa e depois as calças, para, em seguida,quase implorar-me para que a possuísse.

Entreguei meu corpo e minha alma àquela mulherque eu não conhecia e que jamais viria a conhecertotalmente. Entreguei minha vida e meus sonhos à Chloé,naquele exato momento, em meio a uma tarde nublada,quando senti o calor da sua pele em minhas mãos pelaprimeira vez. E a partir de então, eu já não era mais eu,inácio Vaz, e me tornei parte dela. uma unidade de duaspessoas, uma única alma.

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quando saí da casa de Chloé, o sol já se punha. Osreflexos lançados pelos poucos raios de luz e pelo queainda restava do dia, tingiam o horizonte de escarlate,tornando corado o céu cinza de Paris. Ventava um pouco,o bastante para despentear meus cabelos mais do que jáestavam.

não quis refazer o caminho, como sempre, temiaperder-me. Segui margeando o rio que alimentava e davavida à cidade. Pensava na loucura que fizera. Estavanervoso, porque me sentia culpado, mas também,incrivelmente feliz. Eu apaixonara-me por Chloé comtodo o meu coração, e então, refazia a cena em minhamente, milhares de vezes, repetidamente, e desejava queaquela tarde tivesse durado para sempre.

Joguei-me na cama, aproveitando a privacidade quea ausência de Stephen me conferia. não me preocupeipor não ter ido trabalhar. nem sequer recordei-me de queminhas aulas começariam na próxima manhã. Só Chloéhabitava meus pensamentos, ocupando todo o espaçodisponível em minha cabeça. O cheiro da pele brancaainda estava impregnado no meu corpo. O perfumerecusava-se a sair das minhas roupas. Eu cheirava-mecomo um louco, tentando sorver o máximo possível doaroma de Chloé. Adormeci agarrado ao casaco quevestira naquela tarde.

Os sonhos vieram logo, nem tão felizes, no entanto.Sonhei estar perdido, em meio a uma floresta densa, ondeChloé aparecia-me em forma de fada. Senti medo, mas

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fiquei hipnotizado com a beleza daquela visão. Mirei-anos olhos. não encontrei neles o temor das tempestades,mas sim, um mar azul, tomado por ondas de puro calor.uma imensidão espectral e estonteante.

Estendi o braço para alcançá-la. Chloé corria. Eumaculava a mata virgem a minha frente e seguia correndoatrás de Chloé. Ela era rodeada por luzes, tão azuisquanto seus olhos marinhos, que saiam do seu corpodeixando para trás um imenso rastro. uma pista para queeu pudesse encontrá-la. Apertei o passo, tomado por umaagonia própria dos sonhos.

quando cheguei perto o suficiente para tocá-la, eladeixara de ser fada e tornara-se uma horrenda bruxa. Seuscabelos ruivos se transformaram em espetos vermelhos,que me espinhavam as mãos. Seu corpo, vigoroso ejovial, nada mais era do que um amontoado de rugas,recoberto de escamas alaranjadas. Mesmo assim eu adesejava, e sofria imensos castigos por desejar tãohorripilante criatura.

Acordei assustado, com as batidas incessantes naporta do quarto. A dona da pensão, uma velha gorda emal-humorada, vinha todas as manhãs acompanhada dafilha Adélie trazer-nos o café da manhã.

A garota me causava calafrios, era magra demais,pálida demais, parecia uma morta-viva, ou um vampiro,eu não estava bem certo quanto a isso. Eu jamais ouvirauma só palavra de sua boca. Adélie parecia muda, ouassustada demais para falar com estranhos.

Stephen me observava de pé ao lado da cama. O suorescorria de minha testa, abundante, e minhas mãos estavamgeladas. Olhei no pequeno relógio de bolso, amarrado aocasaco que eu trazia junto ao peito. Ainda era cedo demaispara partir. Sentei-me na cama e esperei a revoada deperguntas que viriam. Stephen era curioso e parecia ler afelicidade em minhas feições. Contrariando minhas

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expectativas, ele permaneceu calado, apenas me obser-vando com a mesma malícia de sempre, enfiado em umdos seus trajes mais elegantes. Devido às circunstâncias,não lhe contei o que ocorrera, embora soubesse queprecisaria fazê-lo, mais cedo ou mais tarde. Apenas oobservei enquanto ele abria a porta para as mulheres como café da manhã.

Stephen era um cavalheiro. Esperou que o café fosseservido e depois segurou a mão de Adélie e beijou-ademoradamente. Eu jamais seria capaz de tal gesto, nãocom Adélie. Perguntei-me se Chloé teria preferido ele amim. Olhei-o, tão elegante, como sempre. Confiante emcada movimento, em cada gesto. Desejei ter sido comoele. Ao menos durante o tempo que passei ao lado deChloé. Detive meus pensamentos. não era bonito sentirinveja das outras pessoas, principalmente porque éramosamigos, porque teríamos de sê-lo. Passaríamos algunsanos juntos, e eu não queria torná-los insuportáveis nempara mim, nem para Stephen.

Arrumei-me e saí. Caminhei pelas ruelas do Marais,antes de desembocar nas largas avenidas de Paris, atentoa cada ponto de referência que marcara nas saídasanteriores. A cidade era mesmo linda, muito maisencantadora do que eu ouvira dizer e mais linda do queeu via nos cartões postais. As construções medievais, ascatedrais... tudo parecia ter vontade própria e a cada visitaque eu fazia a esses lugares, especialmente à catedral deNotre Dame e ao Jardin Du Luxembourg, no qual osestudantes se divertiam no final das aulas, tinha umavisão e uma sensação diferentes, como se o lugar quisesseme transmitir alguma mensagem.

Cheguei antes da hora na Sorbonne, contornei oprédio, entrando pela fachada principal da Rue desÉcoles. Atravessei o vestíbulo amplo e majestoso, e andeium pouco pelos corredores, admirado com a beleza da

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arquitetura francesa, da qual eu ouvira maravilhas. quisconhecer melhor o local em que passaria grande parte daminha vida. Procurei por Chloé. Era demasiado cedo, nãoa encontrei.

Depois de percorrer incansavelmente o edifício, torneiao lado de fora, onde alguns estudantes começavam a seaglomerar na praça, diante da capela da universidade.Estranhamente, alguns deles me cumprimentaram comose fôssemos antigos colegas. Respondi com educação, masestranhei a atitude.

O tempo passou. Era hora de seguir para a primeiraaula. Atravessei o longo corredor, subi as escadas. Meucoração palpitava de ansiedade pela mera possibilidadede ver Chloé pela segunda vez. Eu não estava preparadopara encará-la. Depois do que acontecera entre nós, nãosabia como reagir diante dela.

Procurei a sala do curso de Artes, onde não encontreimeu nome nem o de Chloé, na lista fixada na porta. queriaprotestar, mas o fato é que eu ficara nervoso demais, e meufrancês já ruim, travou de vez. Permaneci ali, plantado naporta, esperando que algum dos professores aparecessepara me salvar.

Para minha surpresa e indignação, não foi isso o queaconteceu. O professor baixinho e carrancudo quemonitoraria o curso de Artes pareceu reconhecer-meimediatamente, chamou-me por um nome estranho econduziu-me à sala dos estudantes de direito. Estranhei aatitude do homem, mas o segui, com os nervos à flor da pele.

quando chegamos, outro homem igualmentecarrancudo, mas desta vez alto e magro, ostentando umcabelo engomado e um elegante terno marrom, recebeu-nos à porta, provavelmente reclamando do meu atraso.Tentei explicar que aquilo tudo não passava de umtremendo engano, mas os dois mal me deixavam falar. O

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professor de direito agarrou a listagem colada à porta emostrou-me um dos nomes na lista: François Roux. nãoentendi o que ele pretendia, mas levei a mão a um dosbolsos do meu casaco, retirando dele um documento.Estendi-o para ele.

O homem segurou o documento em uma das mãos,aproximou-o dos olhos e depois me pediu para entrar.Resmunguei, tentando convencê-lo de seu tosco engano.O homem corou, e pela última vez, mandou que euentrasse. não discuti. Era melhor obedecer agora. Depois,acertaria tudo o que fosse preciso.

Sentei-me em uma das cadeiras do fundo da sala.Larguei minha pasta de couro marrom sobre aescrivaninha e o documento de identidade sobre a pasta.Olhei para o homem mal-humorado que falava egesticulava à frente da classe. Provavelmente umcatedrático famoso de Paris. Senti-me importante porparticipar daquele seleto grupo de estudantes. Chegueimesmo a me imaginar advogado, como se não melembrasse da besteira que havia feito no dia anterior.

Segurei meu documento, a fim de guardá-lonovamente no bolso do casaco. Olhei-o de relance. quasecaí da cadeira, tamanho foi o susto. O nome escrito emletras adornadas, já não era mais inácio Vaz, mas sim,François Roux!

Olhei em volta. Muitos colegas me observavam. Eunão fora silencioso, e as batidas do meu coraçãopalpitante latejavam em meus ouvidos de tal maneira, quenão ouvi o som da carteira rangendo, nem de minha pastacaindo ao chão.

Disfarcei, no primeiro momento. Então fora aquelaa confusão? Eu certamente trocara meus documentos emalgum momento que eu não conseguia imaginar qualpoderia ter sido. Por isso, o engano dos professores.

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Pedi licença e saí pouco depois de ter me sentado.Segui até um banheiro, desejando não precisar sair de lánunca mais. Estava envergonhado pela confusão, e nãoestava certo de que meu engano seria perdoado. Lavei orosto com água gelada e molhei os pulsos.

Saquei o documento do bolso e observei-o comatenção. O que vi me fez passar mal, e quase desfaleci depavor. A fotografia era minha. O nome, de outro. nãoconsegui pensar numa possibilidade racional para o queocorrera. Aquilo era totalmente impossível! Eu tinhacerteza de que era eu quem aparecia naquela imagem,colada ao documento de outro, mas não conseguia explicarcomo tal engano poderia ter ocorrido. imaginei-me no diada expedição do documento. não. Eu o conferira váriasvezes, e era sempre o meu nome que eu via impresso nele.

Decidi voltar para o meu quarto. Caminhei ostradicionais dois quilômetros que separavam a Sorbonneda pensão onde eu vivia. Eu não confiava nos metrôs,trens que se enfiavam debaixo da terra e se arrastavamfeito minhocas. Também estava relutante em entrar emqualquer automóvel, e só o fazia quando era totalmenteinevitável. Precisava pensar em como resolver a situação.Tive medo de ser expulso, mas tive ainda mais medo deser preso, condenado por ter usado documento de outropara tentar vaga na universidade de Paris.

Sentei-me em minha pequena cama, segurei odocumento mais uma vez, atentando a cada detalhe do rostoque me olhava na foto. Parecia um pouco mais redondo queo meu, os cabelos pareciam um tom mais claro. A expressãoera um tanto mais arrogante. nada que pudesse dizer quenão se tratava de uma fotografia autêntica.

De qualquer maneira, inácio Vaz não estava emnenhuma das listas da universidade, e eu não podia voltarpara casa sem ao menos uma desculpa convincente, oumeu pai me mataria. Retirei um pedaço de papel da

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minha pasta e um lápis. Comecei a escrever a carta,contando a minha versão da história, usando a troca dedocumentos como única desculpa para não estarfrequentando o curso de direito, como fora combinado.Omiti a parte em que conhecera Chloé, e também aaudição, onde eu trocara de ideia, jogando fora os sonhosde uma vida inteira.

quando terminei, pus a carta dentro do envelope elacrei-o. Enfiei-a no bolso e saí para postá-la. Eu nãosabia como fazer isto, não tinha ideia de onde se situavao correio em Paris, tampouco se isto funcionaria ali damesma forma como no Brasil. Pedi algumas informações,que sempre me levavam a lugares errados. Andei semrumo, atentando a cada loja, restaurante, a cada pontocomercial por que passava.

Finalmente decidi que rumo tomar. não era mais pelocorreio que procurava, mas sim, tentava refazer cada passodado ao lado de Chloé. queria visitá-la, ver outra vez osolhos cinzentos que me abriram as portas do paraíso.queria sentir a sua pele, tê-la de novo em meus braços,como fizera na tarde anterior, e, se por acaso encontrasseseus pais, não hesitaria em pedi-la em casamento.

Percorri o espaço que me separava de Chloé tremendode nervosismo e ensaiando as palavras que dirigiria ao paida minha doce amada. Ensaiei a cena em meuspensamentos diversas vezes. Coloquei-me de joelhosperante um pai protetor, ou de um pai compreensivo. Atémesmo de um pai burguês, convencido em não ceder amão de sua filha a um pobretão como eu.

Apressei o passo, meu corpo ansiava pela companhiade Chloé. Percorri as ruas cortando o vento que sopravaforte e morno, anunciando uma tempestade. Cruzei umadas pontes sobre o Sena, alcançando a metade do caminho,até que finalmente enxerguei o edifício imponente que selevantava por detrás do movimento parisiense.

HERDEiRO DA néVOA

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quase explodi ao me deparar com o lugar. Já não eramais a fabulosa construção que eu vira na tarde anterior.Agora, não passava de uma velha ruína, abandonada pelotempo e por qualquer pessoa que a possuíra, destoandocompletamente do ardor da Cidade Luz. naquele instante,todo o universo cobriu-se de névoa, a mesma névoa queenvolvia a cidade e ocultava, não muito longe, o topo daTour Eiffel.

Meus pensamentos vaguearam em uma espécie desonho, onde a tontura tomou meu cérebro e uma cortinasurreal desceu-me aos olhos, tapando-me a visão,escondendo o que desejava, camuflando a realidade do diaanterior em uma mera ilusão. Aquilo me devastouinteiramente. Por mais que eu procurasse uma explicaçãorazoável, não encontrava indícios que pudessem levar-mea ela.

Confuso, olhei em volta, procurando um ponto dereferência, tentando convencer-me de que eu errara oendereço. Estava tudo ali. Exatamente tudo como estiverano dia anterior. não pude conceber a ideia de que ficaramaluco. Levei as mãos à cabeça, que nesta altura, pareciaquerer estourar.

As marcas das unhas e dos dentes de Chloé aindaestavam registradas em meu corpo, e isso invalidava apossibilidade de eu ter simplesmente sonhado. Percorri-as com as mãos, meu pescoço molhado de suor frio. Elasestavam ali, mais reais do que minha própria presençanaquele lugar.

Fechei os olhos, na tentativa de clarear os pensamentos,e as lágrimas escorreram involuntariamente pela minha face.Cobri o rosto com as mãos, sentando-me na calçada, comoum garotinho que acaba de perder um brinquedo novo.

Era curioso o sentimento de perda que se apossara deminha alma. Como eu poderia ter perdido o que jamais

RAquEL PAgnO

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fora meu? O fato de eu ter estado com Chloé nãosignificava, em absoluto, que eu a possuía, ou que elaestivesse igualmente apaixonada por mim. Eu é que foraarrogante ao imaginá-la minha, eu que fora por demaispretensioso por ousar pensar em tê-la para sempre.

Mas o fato de Chloé não estar ali para explicar-me oque acontecera, não invalidava a questão que se instaurara.As coisas não poderiam mudar daquela forma, da noitepara o dia, e isso ia contra todas as leis que eu conhecia;as leis da física, da própria natureza, as leis de Deus.Somente alguma coisa demoníaca poderia transfigurar omundo tal qual ele é, para algo destruído, absurdo einexplicável como o via agora.

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