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 www.derechoycambiosocial.com  ISSN: 2224-4131  Depósito legal: 2005-5822 1 Derecho y Cambio Social HERMENÊUTICA E DECISÃO JUDICIAL: EM BUSCA DE RESPOSTAS ADEQUADAS À CONSTITUIÇÃO Nelson Camatta Moreira 1  Leonardo Zehuri Tovar 2   Fecha de publicación: 01/04/2015 SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. A INTEPRETAÇÃO JURÍDICA E AS REVOLUÇÕES PARADIGMÁTICAS QUE JUSTIFICAM SEU (RE) PENSAR: um esboço à Teoria da Decisão Judicial. 2.1. Teoria das fontes: reflexos na decisão  judicial. 2.2. A Teoria da Norma: aportes críticos. 2.3. O ato de decidir diante de uma nova visão da teoria das fontes e da norma: uma crítica ao silogismo sentencial. 2.4 Entre a  ponderação e a integridade: uma breve alusão às regras, aos  princípios e a busca por respostas adequadas à Constituição. 3. CONCLUSÕES. RESUMO: O artigo analisa a teoria da decisão judicial à luz da Crítica Hermenêutica do Professor Doutor Lenio Luiz Streck. A  problematização fica por conta da necessidade de se construir e discutir uma teoria da decisão judicial para evitar decisões  judiciais arbitrárias. 1  Doutor em Direito (Unisinos-RS), com estágio anual, co m bolsa de estudos da CAPES, na Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre em Direito (Unisinos-RS). Professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu e da Graduação em Direito da FDV-ES. Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional”, da FDV-ES. Membro Honorário da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Advogado. Endereço eletrônico:  [email protected]  2  Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FD V, Pós-G raduado em Direito Público também pela FDV, Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Cândido Mendes de Vitória (ES), Professor Universitário, membro do grupo de  pesquisa "Hermenêutica Ju rídica e Jurisdição Constitucional" (FD V), Procurador do Município de Vitória (ES), Advogado.  www.zehuritovar.com.br  / [email protected]  

Hermeneutica e Decisao Judicial

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Hermenêutica

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    Derecho y Cambio Social

    HERMENUTICA E DECISO JUDICIAL:

    EM BUSCA DE RESPOSTAS ADEQUADAS CONSTITUIO

    Nelson Camatta Moreira1

    Leonardo Zehuri Tovar2

    Fecha de publicacin: 01/04/2015

    SUMRIO: 1. INTRODUO. 2. A INTEPRETAO

    JURDICA E AS REVOLUES PARADIGMTICAS QUE

    JUSTIFICAM SEU (RE) PENSAR: um esboo Teoria da

    Deciso Judicial. 2.1. Teoria das fontes: reflexos na deciso

    judicial. 2.2. A Teoria da Norma: aportes crticos. 2.3. O ato de

    decidir diante de uma nova viso da teoria das fontes e da

    norma: uma crtica ao silogismo sentencial. 2.4 Entre a

    ponderao e a integridade: uma breve aluso s regras, aos

    princpios e a busca por respostas adequadas Constituio. 3.

    CONCLUSES.

    RESUMO:

    O artigo analisa a teoria da deciso judicial luz da Crtica

    Hermenutica do Professor Doutor Lenio Luiz Streck. A

    problematizao fica por conta da necessidade de se construir e

    discutir uma teoria da deciso judicial para evitar decises

    judiciais arbitrrias.

    1 Doutor em Direito (Unisinos-RS), com estgio anual, com bolsa de estudos da CAPES, na

    Universidade de Coimbra (Portugal). Mestre em Direito (Unisinos-RS). Professor do

    Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu e da Graduao em Direito da FDV-ES. Lder do

    Grupo de Pesquisa CNPq Hermenutica Jurdica e Jurisdio Constitucional, da FDV-ES. Membro Honorrio da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). Advogado. Endereo

    eletrnico: [email protected]

    2 Doutorando e Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV, Ps-Graduado em

    Direito Pblico tambm pela FDV, Ps-Graduado em Direito Processual Civil pela

    Faculdade Cndido Mendes de Vitria (ES), Professor Universitrio, membro do grupo de

    pesquisa "Hermenutica Jurdica e Jurisdio Constitucional" (FDV), Procurador do

    Municpio de Vitria (ES), Advogado. www.zehuritovar.com.br /

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    PALAVRAS-CHAVES: Direito Constitucional e Processual,

    deciso jurdica, hermenutica.

    ABSTRACT

    This paper analyzes the theory of judicial decision in the light of

    Critical Hermeneutics of law developed in Brazil by Professor

    Lenio Luiz Streck. The questioning is due to the need to build

    and discuss a theory of judicial decision to avoid judgments

    activists and arbitrary.

    KEYWORDS: Constitutional law and procedures, legal

    decision, hermeneutics.

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    1 INTRODUO

    O desenvolvimento do tema teoria da deciso judicial, tem como desgnio mostrar como difcil suplantar o positivismo e, particularmente,

    a discricionariedade judicial.

    Busca-se trabalhar, a partir da Hermenutica Filosfica de Gadamer,

    do Direito como Integridade de Dworkin e, em especial, da Crtica

    Hermenutica do Direito de Streck, o direito que cada cidado possui de

    obter uma resposta constitucionalmente adequada ao caso posto sob o crivo

    do judicirio.

    Para tanto e de acordo com o tema proposto sero traadas

    consideraes acerca do combate discricionariedade judicial,

    notadamente porque se presenciam decises, que, conquanto supostamente

    embasadas, so arbitrrias, despidas de motivao suficiente e at mesmo

    arbitrrias.

    Enfrentar-se-, de modo sucinto, dados os limites do presente, a

    Teoria das Fontes, tendo como parmetro o Constitucionalismo Dirigente e

    Democrtico ps-19883, propondo-se uma readequao da Teoria da

    Norma, tambm a partir deste mesmo paradigma, desenhando-se, ainda, em

    carter histrico e problematizador, a evoluo do ato de decidir e a

    influncia das escolas metodolgicas do sculo XX em diante4. Dissecando

    melhor, objetiva-se problematizar como o constitucionalismo

    contemporneo no foi suficiente para que, de fato, ocorresse uma

    readequao da Teoria das Fontes, da Norma, da Interpretao e, por

    conseguinte, da aplicao/deciso.

    Ento, a partir desta evoluo e deste novo paradigma -

    Constitucionalismo Dirigente e Democrtico ps-1988 - que ser

    enfrentada a questo envolvendo a superao da Hermenutica Clssica

    pela Filosfica.

    Tendo-se como base, alm da Hermenutica Filosfica, o Direito

    como integridade, passar-se- anlise de decises que, segundo se v,

    3 Por todos, vide: CANOTILHO, Jos Joaquim Gomes. Constituio dirigente e vinculao do

    legislador: contributo para a compreenso das normas constitucionais programticas.

    Reimpresso, Coimbra: Coimbra Editora, 1994.

    4 Neste ponto, vale transcrever Alexandre Coura: Assim sendo, como a indeterminao do Direito no pode ser simplesmente eliminada, a abertura hermenutica da atividade jurisdicional h de ser enfrentada, a partir de uma anlise crtica da fundamentao das decises

    judiciais. Tais decises so, muitas vezes, condicionadas por pressupostos inadequados ao atual

    paradigma constitucional, que devem, portanto, ser superados - como o caso das escolas do

    Positivismo, da Hermenutica Jurdica e do Realismo. In: COURA, Alexandre. Hermenutica Jurdica e Jurisdio (in)constitucional: para anlise crtica da jurisprudncia de valores luz da teoria discursiva de Habermas. Belo Horizonte: Mandamentos, 2009, p. 69.

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    (des) legitimam a atividade judiciria de decidir e implementam a

    discricionariedade.

    O grande alvo deste artigo, pois, investigar a possibilidade de

    justificar, de modo legtimo, a tomada de uma deciso judicial. Sabe-se que

    os tribunais, proferem decises a partir do paradigma de que a interpretao

    um ato de vontade circunstncia que legitima o decisionismo, o arbtrio e o ativismo.

    Por tudo isso, como dito, o desgnio do presente elencar

    pressupostos para obteno de decises judiciais que no se mostrem

    caracterizadas pela discricionariedade, mesmo porque um dos grandes

    dilemas da contemporaneidade demonstrado pela pergunta: como e a

    partir do que se decide?

    Ora, no so raras as hipteses em que o julgador decide e depois

    fundamenta sua escolha, desconsiderando os avanos das teorias da

    linguagem e da Hermenutica Filosfica, que j superaram inmeros

    problemas voltados a um tema correlato: como se interpreta.

    Nesse sentido, a partir da Hermenutica Filosfica de Gadamer e do Direito como Integridade de Dworkin, que se objetiva confrontar a maneira como se decide.

    Portanto, o que se busca no artigo enfrentar, ainda que de forma

    resumida, como o problema da arbitrariedade judicial decisria pode

    contribuir para o no fornecimento de uma prestao jurisdicional

    adequada, luz do Estado Democrtico de Direito e do Constitucionalismo

    Dirigente ps-1988.

    Logo, ser demonstrada a necessidade de superao da filosofia da

    conscincia e do esquema sujeito-objeto, alm da aposta no protagonismo

    judicial. Afinal, luz da Hermenutica Filosfica de Gadamer, a carncia

    de mtodo no abre ensejo para atribuio discricionria de sentido aos

    textos normativos, pois, alm de a interpretao ocorrer no caso concreto,

    no se pode cindir questo de fato e questo de direito, tampouco

    conhecimento, interpretao e aplicao.

    Lembre-se, por oportuno, a maneira como a discricionariedade

    presente na, muitas vezes, vaga ideia de ponderao, utilizada em abundncia e de forma muitas vezes desvirtuada, pode, se mal-empregada,

    gerar instabilidade, decisionismo e arbtrio5.

    5 Nelson Camatta Moreira problematiza e afirma: vontade do povo passa a estar nas mos dos juzes... E o problema passa a ser justamente o grau de criatividade dos juzes In: MOREIRA, Nelson Camatta. Fundamentos de uma Teoria da Constituio Dirigente. Florianpolis:

    Conceito Editorial, 2010, p. 102.

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    E o juzo de ponderao se desvirtuado, acarreta considervel discricionariedade. Isto foi notado por Virglio Afonso da Silva, quando de

    suas crticas falta de preciso e rigor tcnico e metodolgico por parte dos

    Tribunais brasileiros, em especfico o Supremo Tribunal Federal, tribunal

    que, para o autor, parece ter descoberto na proporcionalidade o remdio

    prodigioso para as mais diversificadas questes constitucionais6.

    Sobre este especfico ponto, so vrias as crticas lanadas em direo

    utilizao da proporcionalidade. Eis alguns exemplos: (i) ofensa ao

    princpio da separao dos poderes, em especial a transformao dos

    Tribunais Constitucionais em ntidas Assembleias Constituintes; (ii)

    desnaturao dos direitos fundamentais e da unidade normativa da

    Constituio; (iii) politizao do judicirio e acerbado utilitarismo; (iv)

    decises arbitrrias, muitas vezes marcadas por preferncias subjetivas do

    julgador; (v) irracionalidade metodolgica; (vi) depsito de esperanas no

    judicirio, no diz respeito concretizao dos direitos constitucionais.

    Diante disso, coloca-se a seguinte problematizao, de modo a

    justificar, de plano o porqu do tema desenvolvido neste artigo: a Teoria da

    Argumentao de Alexy, tal como utilizada (de forma equivocada), pode

    gerar decises irracionais e ativistas?

    Esta questo, por si s, justifica e confere relevncia ao artigo. Melhor

    dissecando, tangenciam o presente estudo, os pontos seguintes, que,

    resumidamente, tem como desgnio enfrentar como as decises judiciais

    podem ser travestidas de posturas arbitrrias, o que no se coaduna com o

    Estado Democrtico de Direito.

    2 A INTEPRETAO JURDICA E AS REVOLUES

    PARADIGMTICAS QUE JUSTIFICAM SEU (RE) PENSAR:

    um esboo Teoria da Deciso Judicial

    2.1 Teoria das fontes: reflexos na deciso judicial.

    Conquanto se observe o avano das teorias jurdicas contemporneas,

    vive-se, nos dias atuais, uma crise paradigmtica. A estrutura e o papel do

    Estado foram, pouco a pouco, sendo modificados, mas a viso tradicional

    envolvendo a interpretao jurdica e a forma de decidir as questes

    judiciais, ao que tudo indica, no acompanhou tal revoluo paradigmtica.

    Ainda so enfatizados mtodos interpretativos clssicos como o

    gramatical, lgico, histrico e sistemtico, de modo simplrio, como se,

    6 SILVA, Virgilio Afonso da. O proporcional e o razovel. Revista dos Tribunais, So Paulo,

    a. 91, v. 798, abr. 2002.

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    ainda sob o prisma de Carlos Maximiliano, interpretar fosse precisar o sentido e o alcance da norma diante do caso7.

    Termos como hermenutica, exegese, intepretao, explicao e

    explanao, de modo repetitivo e hodierno, so utilizados como sinnimos.

    Talvez por isso, a advertncia doutrinria de Arthur Kaufmman se mostre

    to correta:

    Quando examinamos a prtica judicial atual de um ponto de

    vista metodolgico, ficamos com a impresso de que, neste

    campo, o tempo parou, e que ainda dominante o mtodo

    subsuntivo igual ao utilizado no sculo XIX. Ainda vigora a tese

    segundo a qual o juiz s est sujeito lei, e provavelmente, ainda existiro juzes que esto, realmente, convencidos de que

    formulam decises de um modo puramente objetivo, baseados

    nica e exclusivamente na lei, sem interferncia de nenhum

    juzo de valor pessoal8.

    E exatamente pelo fato do tempo no ter paralisado que se reputa

    pertinente o estudo da Teoria das Fontes, a partir de uma perspectiva

    contempornea. Sabe-se, entretanto, que a classificao tradicional das

    fontes do direito se encontra ultrapassada, ao menos pela linha que se

    objetiva adotar. Como exemplo, Castanheira Neves identifica variaes que

    sugeririam a alterao da tradicional Teoria das Fontes do direito. So elas:

    (i) a mudana na concepo do direito; (ii) na realizao do direito; e, por

    fim, (iii) ao sentido do sistema jurdico9.

    Segundo o autor, o direito no mais visualizado de modo estatista,

    diante da sobrevinda do constitucionalismo e a consequente racionalizao

    do poder, dada a insero e consagrao dos princpios constitucionais e

    direitos fundamentais do cidado10.

    J quanto realizao, deixa o direito de ser pura e simplesmente a

    aplicao da lei, vindo a ser tido como meio de promoo dos direitos e da

    consagrao da democracia11.

    No tocante ao sentido jurdico, a alterao est consubstanciada no

    fato do direito estar condicionado realidade histrico-social, deixando de

    7 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenutica e aplicao do direito. Rio de Janeiro: Forense,

    1984, passim.

    8 KAUFMMAN, Arthur. Introduo Filosofia do Direito e Teoria do Direito

    Contemporneas. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 2002, p.184.

    9 CASTANHEIRA NEVES, Antonio. Fontes do direito. Digesta: escritos acerca do direito do

    pensamento jurdico da sua metodologia e outros. Coimbra: Coimbra Ed., 1995, vol. 2, p. 45 et

    seq.

    10 Idem, p. 45.

    11 Idem, p. 49-51.

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    ser apenas um sistema legislativo12. Acertada, nesse pormenor, a posio de

    Lenio Streck quando diz que a Constituio altera (substancialmente) a teoria das fontes que sustentava o positivismo e os princpios vm a

    propiciar uma nova teoria da norma (atrs de cada regra, h, agora, um

    princpio que no a deixa desvencilhar do mundo prtico)13.

    partir de tais premissas que a teoria das fontes tradicional merece ser

    revista. A teoria tradicional apenas considera como pertencentes a este

    grupo (fontes), a lei, os costumes, a jurisprudncia e a doutrina. Lei e

    costume so considerados fontes diretas (pois influenciam a formao do

    direito), ao passo que doutrina e jurisprudncia seriam mediatas (porquanto

    modos de revelao do direito).

    Nessa linha, diversos outros institutos podem ser considerados fontes.

    Como exemplo disso, tm-se as smulas vinculantes e precedentes

    judiciais, as medidas provisrias, alm da prpria doutrina, cuja

    importncia, nos tempos modernos, deve ser revitalizada e, inclusive,

    potencializada.

    Sobre este ltimo ponto o relevante papel da doutrina impossvel concordar com o trecho extrado do voto proferido pelo ento Min.

    Humberto Gomes de Barros do STJ:

    No me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for

    Ministro do Superior Tribunal de Justia, assumo a autoridade

    da minha jurisdio. O pensamento daqueles que no so

    Ministros deste Tribunal importa como orientao. A eles,

    porm, no me submeto. Interessa conhecer a doutrina de

    Barbosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porm, conforme

    minha conscincia. Precisamos estabelecer nossa autonomia

    intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. preciso

    consolidar o entendimento de que os Srs. Ministros Francisco

    Peanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim,

    porque pensam assim. E o STJ decide assim, porque a maioria

    de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse o

    pensamento do Superior Tribunal de Justia, e a doutrina que se

    amolde a ele. fundamental expressarmos o que somos.

    Ningum nos d lies. No somos aprendizes de ningum.

    Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a

    declarao de que temos notvel saber jurdico - uma imposio

    da Constituio Federal. Pode no ser verdade. Em relao a

    mim, certamente, no , mas, para efeitos constitucionais, minha

    12 Idem, p. 56.

    13 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituio, hermenutica e teorias discursivas

    da possibilidade necessidade de respostas corretas em direito. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011,

    p. 69.

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    investidura obriga-me a pensar que assim seja (AgReg em

    ERESP n 279.889-AL).

    Com efeito, de Castanheira Neves, como adiantado, a crtica ao

    pensamento desenvolvido pela teoria tradicional das fontes. No

    adequado que se leve em conta a perspectiva poltico-constitucional para

    entende-la, pois no basta apreender quem o titular do poder de

    prescrever normas jurdicas cogentes14. Assim, o autor prossegue e extrai as

    seguintes concluses e demonstra o motivo pelo qual esta concepo

    estreita de fonte no a mais correta: 1 que o direito imputado

    exclusivamente ao Estado, como seu nico titular e criador; a 2 que o

    problema das fontes um problema poltico-constitucional, que por um

    lado trataria de identificar qual poder do Estado poderia criar direito, e por

    outro, de definir as formas, juridico-constitucionalmente admitidas, para

    essa criao; a 3 que, o sentido de fonte do direito nessa perspectiva, s

    pode ser a prescrio legislativa; a 4 que o conceito de fonte se restringe

    a um conceito formal s as formas de prescrio importam, no o contedo normativo prescrito15.

    V-se, portanto, que o problema das fontes, melhor compreendido se

    estas forem tidas como so pontes de positivao, os modos pelos quais uma normatividade se torna direito positivo, como bem salienta o autor mencionado16.

    2.2 A Teoria da Norma: aportes crticos.

    O mesmo se diga quanto necessidade de readequao da Teoria da

    Norma17. Com efeito, a partir do sculo XX se exaltaram os embates

    envolvendo conceito de norma.

    Hans Kelsen no desenvolvimento de sua teoria18 insere a norma no

    centro de suas investigaes, da o motivo pelo qual chamado de

    positivista normativista. Para o jurista, portanto, o conceito de norma

    jurdica se confunde com o de direito, mas bom que se ressalte: lei

    espcie de norma.

    14NEVES, Antnio Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento

    Jurdico, da sua metodologia e outros. vol. 2. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 38.

    15 NEVES, Antnio Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento

    Jurdico, da sua metodologia e outros. vol. 2. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 39.

    16 NEVES, Antnio Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento

    Jurdico, da sua metodologia e outros. vol. 2. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 8.

    17 Sobre o tema o estudo de SANCHIS, Luis Pietro. Neoconstitucionalismo y ponderacin. In:

    CARBONELL, Miguel (Org.). Neoconstitucionalismo(s). Madrid: Trotta, 2003.

    18 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1992.

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    E se para Kelsen o contedo primordial do direito a norma jurdica,

    sendo a lei uma espcie desta, a pergunta relevante seria: o que norma

    jurdica para o jurista em questo? a norma um esquema de interpretao da realidade, por meio da qual o direito traz para o seu mbito

    um fato ocorrido no mundo. Ocorre que para cada descrio ftica, poder

    ser extrada uma diferente norma, da porque, em apertado resumo, o jurista

    desenvolveu o critrio da validade.

    Uma norma vlida e por isso pode existir quando encontra sua existncia autorizada por outra que se encontra em patamar hierrquico

    superior. Acima de todas as normas, inclusive da Constituio, est a

    norma hipottica fundamental. Trata-se, esta ltima, de um ato lgico, cuja

    funo fechar o escalonamento normativo. No se trata de norma posta,

    mas suposta, porquanto dela que todo o direito adquire juridicidade e

    coercitividade.

    O critrio da validade, entretanto, como mtodo de identificao da

    norma, deixa marcas nos tempos modernos. Afinal, se de cada descrio

    ftica pode ser extrada uma diferente norma (por vezes mais de uma),

    como julgar qual interpretao pode ser eleita como a mais consentnea e

    adequada?

    Kelsen afirma que no subsiste mtodo que defina ou avalie as

    interpretaes sobre uma norma a no ser o critrio da validade. Se vlida a

    interpretao, ento nada obsta sua aplicao19. que o ato de escolha

    discricionrio e, por isso, de competncia do aplicador do direito.

    E a doutrina, qual seu papel para Kelsen? Cabe a ela descrever,

    imparcialmente e sem juzo de valor, as possveis interpretaes, de modo a

    delimitar um quadro (ou moldura) que permita ao aplicador identificar as

    que so vlidas e as que no so. Kelsen denomina tal proceder de

    interpretao no autntica (pois de lavra daqueles que no so aplicadores

    do direito), estatuindo ainda que a intepretao autntica, esta sim

    reservada aos aplicadores, discricionria20.

    19 Idem, p. 391-392.

    20 Muito embora exista, a moldura no vincula e engessa o aplicador: As referncias moldura indicam que, segundo Kelsen, o aplicador realiza a interpretao das normas adotando uma

    postura cognitiva. Mas, quando no so indicados os mtodos que permitem essa cognio, a

    atividade interpretativa se transforma em puro ato de vontade. Isso se torna claro quando Kelsen

    afirma que da interpretao de uma norma pelo rgo jurdico que a tem de aplicar se pode

    produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar

    representa, e conclui que, se a autoridade possui competncia de decidir de forma definitiva, sua

    deciso vale independentemente do respeito s normas vigentes, isto , independentemente do

    respeito moldura. In: DIMOULIS, Dimitri. Positivismo jurdico: introduo a uma teoria do direito e defesa do pragmatismo jurdico-poltico. So Paulo: Mtodo, 2006, p. 215.

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    O jurista e filsofo austraco afirma a possibilidade de interpretao

    autntica, fora das descritas pela cincia do direito, o que se extrai de sua

    Teoria Pura do Direito, na edio de 1960. Com efeito, diz Kelsen:

    A propsito importa notar que, pela via da interpretao

    autntica, quer dizer, da interpretao de uma norma pelo rgo

    jurdico que a tem de aplicar, no somente se realiza uma das

    possibilidades reveladas pela interpretao cognoscitiva da

    mesma norma, como tambm se pode produzir uma norma que

    se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar

    representa21.

    Resqucios de tal afirmao que muitos sugerem embasar a concluso de que a interpretao um ato de vontade22 - so encontrados

    em trecho de acrdo do Supremo Tribunal Federal: ... No mais, a respeito da interpretao dada a textos de lei, observe-se que tal atividade revela

    sempre um ato de vontade, possuindo uma carga construtiva muito grande,

    no que buscada a prevalncia do trinmio Lei, Direito e Justia...23.

    No difcil perceber que o objeto da epistemologia jurdica

    kelseniana tem como ponto fulcral o sistema de normas jurdicas, as quais

    imprimem sentidos nos atos sociais, como bem adverte Luis Alberto

    Warat24. No que se faz relevante ao presente, entende-se o motivo pelo

    qual, certos ou errados (pois como visto na nota de rodap, no se trata de

    concluso uniforme), os crticos de Kelsen afirmam que quando o autor d

    prevalncia autoridade estatal no ato de definir a vontade do direito, teria

    ocorrido o chamado giro decisionista25, porquanto estaria sendo assumida uma postura preponderantemente realista (do mundo do ser).

    21 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito (1960). So Paulo: Martins Fontes, 2000b, p. 394.

    22 ADEODATO, Joo Maurcio, reputa infundada a acusao comumente feita a Kelsen de que

    o autor d sustentculo a decisionismos, de modo que a transcrio de seu pensamento

    pertinente: No h preciso terica em acusa-lo hoje de fundamentar o ativismo judicial na atividade hermenutica, nem no passado em acusa-lo de justificar o nazismo. A ideia de Kelsen

    descrever o que efetivamente ocorre no fazer uma pregao missionria por mais poder para os juzes e defender que uma iluso achar que a regra geral determina a deciso individual, assim negando expressamente a possibilidade de uma nica resposta correta. Isso

    porque, como discpulo de Kant enfatiza o dualismo entre ser e dever ser e vai mais alm ao

    associ-lo aos dualismos entre o princpio da causalidade (kausalprinzip) e o princpio da

    imputao (Zerechnungsprinzip) e, respectivamente, entre o ato de conhecimento e o ato de

    vontade (In: Filosofia do direito uma crtica verdade na tica e na cincia. So Paulo: Saraiva, 2013, p. 82).

    23 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AI: 252347 MG, Relator: Min. MARCO AURLIO,

    Data de Julgamento: 04/11/1999, Data de Publicao: DJ 10/12/1999 PP-00054.

    24 WARAT, Luis Alberto. Epistemologia jurdica e ensino do direito. Florianpolis: Fundao

    Boiteux, 2004, p. 241.

    25 De acordo com Cattoni de Oliveira a partir de 1960, Kelsen passa a admitir que pela via da intepretao autntica no somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela

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    Equivale dizer: o direito seria to s, um ato de criao dos

    magistrados, circunstncia que relegaria aplicao, em tom paradoxal, ao

    contemporneo texto de Haberle que versa sobre uma sociedade aberta de

    intrpretes, no s da Constituio, como do Direito26.

    Ou seja: ainda h quem apregoe que o direito aquilo que dito e

    repetido pelos Tribunais27. Na expresso de Ovdio Arajo Baptista da

    Silva: imagina-se que a vontade da lei28 seja um segredo, zelosamente guardado pelos tribunais de ltima instncia29. O conto adiante, retratado por Lenio Streck, exemplifica a temtica perfeitamente:

    [...] conto de talo Calvino. Pela estria, Al ditava o Coro para

    Maom, que, por sua vez, ditava para Abdula, o escrivo. Em

    determinado momento Maom deixou uma frase interrompida.

    Instintivamente, o escrivo Abdula sugeriu-lhe a concluso.

    Distrado, Maom aceitou como palavra divina o que dissera

    Abdula. Este fato escandalizou o escrivo, que abandonou o

    profeta e perdeu a f. Abdula no era digno de falar em nome de

    Al. [...]. Assim como o personagem Abdula no tinha

    conscincia de seu poder (e de seu papel), os operadores

    jurdicos tambm no conhecem as suas possibilidades

    hermenuticas de produo de sentido. Em sua imensa maioria,

    prisioneiros das armadilhas e dos grilhes engendrados pelo

    campo jurdico, sofrem dessa sndrome de Abdula. Consideram que sua misso e seu labor o de apenas

    interpretao cognoscitiva da norma a aplicar, como tambm se pode produzir uma norma geral

    ou individual, conforme o caso, que se situe completamente fora da moldura que a norma a

    aplicar representa. In: CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual

    constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 50.

    26 HBERLE, Peter. Hermenutica constitucional a sociedade aberta dos intrpretes da constituio: contribuio para a interpretao pluralista e procedimental da constituio. Porto

    Alegre: Safe, 1997.

    27 MACCORMICK, Neil. Retrica e o Estado de Direito: uma teoria da argumentao

    jurdica. Trad. Conrado Hubner Mendes e Marcos Paulo Verssimo. Rio de Janeiro: Elservier,

    2008, p. 192

    28 Tratando de assunto correlato ao especfico ponto, um dos autores do presente texto afirma:

    No h mais Direito, portanto, para alm do conjunto de normas estabelecidas pela autoridade

    legtima. Deve-se obedecer s disposies normativas estatais, porque foram elaboradas por

    quem tem competncia para faz-lo, correspondendo delegao de poderes da sociedade em

    geral, tendo como referncia a noo hipottica de contrato social. (MOREIRA, Nelson Camata.

    O Dogma da Onipotncia do Legislador e o Mito da Vontade da Lei: A vontade geral como pressuposto fundante do Paradigma da Interpretao da Lei. Revista de Estudos

    Criminais, Porto Alegre, n. 15, ano IV, p. 127-142, 2004, p. 127-142).

    29 SILVA, Ovdio A. Baptista. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro:

    Forense, 2004, p. 267.

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    reproduzir os sentidos previamente dados/adjudicados/atribudos

    por aqueles que possuem o skeptron, isto , a fala autorizada30!

    Defende-se, piamente, que impossvel o desenvolvimento e a

    promoo de uma readequao da teoria da norma, sob um vis ps-

    positivista, acaso se apegue a uma teorizao cujas bases estejam fincadas

    no primado da deciso como ato discricionrio. Ou, na confuso que muitas

    teorias da argumentao ainda promovem ao no dissociarem texto e

    norma31. Mesmo que sob outra perspectiva a Retrica Joo Maurcio Adeodato preciso ao elencar a importncia da diferena existente entre

    significante e significado:

    Em sntese, as diferenas entre a norma como ideia (o

    significado ideal para controle de expectativas atuais sobre

    condutas futuras) e a norma como smbolo lingustico (os

    significantes que se percebem por meio da comunicao a partir

    das chamadas fontes do direito) so particularmente importantes

    para interpretao e argumentao jurdicas. (...).

    Entender a norma como significante revelador do direito o

    sentido mais antigo da expresso norma jurdica, a primeira metonmia. o que ocorre quando o professor aponta para o

    cdigo e diz que ali esto as normas do ordenamento jurdico, do mesmo modo que os hebreus viram normas no texto dos Dez

    Mandamentos. A perspectiva retrica no pode confundir esses

    dois elementos do conhecimento jurdico significantes e significados pois h um abismo entre eles32.

    Alis, confuses tais irradiam efeitos para o conceito de sentena.

    Afinal, luz da perspectiva ps-positivista33 que se adota aqui, pode-se

    adiantar que s ser possvel o desenvolvimento de um novo conceito de

    norma a partir de um novo conceito de sentena.

    2.3 O ato de decidir diante de uma nova viso da teoria das fontes

    e da norma: uma crtica ao silogismo sentencial.

    30 STRECK, Lenio Luiz. Hermenutica jurdica e(m) crise: uma explorao hermenutica da

    construo do direito. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 236-237.

    31 A diferena entre texto e norma , dentre outros, descrita por Friedrich Muller. Para o autor, a

    normatividade descrita por ao menos duas dimenses que a estruturam. So elas: (i) o

    programa da norma, constitudo do ponto de vista da interpretao por fora da assimilao de

    dados primariamente lingusticos; e, (ii) o mbito normativo, construdo pela intermediao

    lingustico-jurdica de dados primariamente no lingusticos. In: MULLER, Friedrich. Mtodos

    de trabalho de direito constitucional. 3. Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, n. III. 1, p. 42.

    32 ADEODATO, Joo Maurcio. Uma teoria retrica da norma jurdica e do direito

    subjetivo. So Paulo: Noeses, 2011, p. 208.

    33 Adiante-se que a utilizao do termo tem a ver com o advento de um novo modelo de teoria

    do direito, no interior da qual o problema da discricionariedade judicial combatida e no com

    uma mera e simples continuao do positivismo.

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    Reafirmando: no se confunde a norma com o texto, porquanto aquela

    surge com a soluo do caso, seja ele real ou no. Logo, a norma no

    contida (encapsulada) na lei (no texto), muito embora seja este elemento

    importante e verdadeiro ponto de partida. com a interpretao, cujo

    desiderato solucionar o caso concreto (real ou no, frise-se), que surge a

    norma jurdica.

    Da se v que perde completamente o sentido dizer que a atividade

    interpretativa do jurista limitada a descobrir a vontade da lei (voluntas

    legis) ou do legislador (voluntas legislatoris)34. Ora, interpretar um texto

    jurdico, no pode ser simplesmente revelar tais vontades, pela simples

    razo de que impossvel desconsiderar a modificao e a alterao

    compreensiva que advm das questes histricas.

    O sentido de um texto normativo no unvoco, muito menos detm

    contedo atemporal; a atividade interpretativa no um trabalho que se

    limita a reproduzir sentido. Acrescente-se: com o movimento do giro

    lingustico, foi superada a metodologia positivista, e assim no se mostra

    vivel separar a compreenso, a intepretao e a aplicao, mesmo porque,

    como adverte Gadamer o conhecimento do sentido de um texto e sua aplicao a um caso concreto no so atos separados, mas um processo

    unitrio35. E mais: o sentido de um texto supera seu autor no ocasionalmente, mas sempre. Por isso a compreenso no nunca um

    comportamento somente reprodutivo, mas , por sua vez, sempre

    produtivo36.

    Tais consideraes, advindas de um filsofo como Gadamer, aplicam-

    se inteiramente ao mundo jurdico. Ora, o jurista, na medida em que

    interpreta um texto normativo, v nesta atividade, serem operados os

    efeitos da histria37. Por isso se diz que na atividade interpretativa ocorre

    uma fuso de horizontes, um autntico dilogo que possibilita a

    34 Cf. MOREIRA, Nelson Camata. O Dogma da Onipotncia do Legislador e o Mito da

    Vontade da Lei: A vontade geral como pressuposto fundante do Paradigma da Interpretao da Lei. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n. 15, ano IV, p. 127-142, 2004, p. 127-142.

    35 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo. Traos fundamentais de uma

    hermenutica filosfica. 3. ed. Petrpolis: Vozes. 1999. p. 460.

    36 Idem, p. 444.

    37 Como diz Gadamer, referindo-se ao intrprete e no propriamente ao jurista: ele s possui uma tal conscincia porque histrico. Ele seu futuro, a partir do qual ele se temporaliza em

    suas possibilidades. Todavia, o seu futuro no o seu projeto livre, mas um projeto jogado.

    Aquilo que ele pode ser aquilo que ele j foi. In: GADAMER, Hans-Georg. Hermenutica em retrospectiva. Petrpolis: Vozes, 2008, vol. II, p. 143.

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    compreenso da mensagem passada pelo texto38. Nessa medida,

    efetivamente se pode afirmar que no h compreenso originria da norma,

    e, ulteriormente, sua aplicao. Interpretar aplicar; um momento nico

    reitere-se, que ocorre em um processo de circularidade com a tradio do

    texto em si. Friedrich Muller, afirma que:

    a concretizao do direito, impossvel fora da linguagem, sempre co-

    caracterizada por esse horizonte universal pr-jurdico da

    compreenso. Ao lado dos seus problemas de interpretao, o texto,

    tambm o texto normativamente intencionado da norma jurdica,

    veicula ao mesmo tempo uma precedente referncia material do

    intrprete a esses problemas39.

    A fuso de horizontes, para Gadamer, portanto, leva a uma fuso de

    pr-concepes e de interpretaes, com o advento de uma sequncia de

    perguntas e respostas entre aquele que escreveu um texto e aquele que l,

    como bem observou lvaro Ricardo de Souza Cruz:

    E tais perguntas devem permitir ao intrprete ouvir adequadamente o que o texto pretende lhe dizer, de modo a facilitar-lhe aferir as virtudes/vcios de seus preconceitos,

    entendidos por ele como antecipaes necessrias e decorrentes

    da condio de ser humano. Somente assim poder-se-ia dar a fuso de horizontes entre as tradies e a histria efeitual do

    intrprete com o horizonte do texto que lido. Com isso estava

    aberto o caminho para uma nova teoria do conhecimento e para

    a fundao de um novo conceito de verdade pelo

    desocultamento do sentido de algo como algo em sua circunstncia explicativa40.

    O intrprete compreende a norma partindo de sua pr-compreenso41.

    E esta que vai lhe dar o norte para um pr-projeto interpretativo42, que,

    38 Precisa, neste ponto, a fala de Nelson Camatta Moreira: pode-se afirmar que jamais existir um leitor que, com um texto ante seus olhos, leia simplesmente o que est nele. Em toda leitura

    tem lugar uma aplicao e aquele que l um texto se encontra dentro do sentido que percebe. O

    leitor pertence ao texto compreendido. E sempre h de ocorrer que a linha de sentido vai se

    mostrando a ele ao longo da leitura de um texto, constituindo-se, assim, uma indeterminao

    aberta. Por isso, a interpretao requer uma pr-compreenso anterior, na medida em que o

    sentido do texto atribudo por aquele que interpreta In: MOREIRA, Nelson Camatta. Direitos e garantias constitucionais e tratados internacionais de direitos humanos. So Paulo:

    Frum, 2012, p. 72.

    39 MULLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. So Paulo: RT, 2008, n. 1. p. 59.

    40 CRUZ, lvaro Ricardo de Souza. Hermenutica Jurdica e(m) Debate O Constitucionalismo Brasileiro entre a Teoria do Discurso e a Ontologia Existencial. Belo

    Horizonte: Frum, 2007, p. 84.

    41 A hermenutica filosfica, como vem sendo alertado, entende que a compreenso humana se orienta a partir de uma pr-compreenso que emerge da eventual situao existencial e que

    demarca o enquadramento temtico e o limite de validade de cada tentativa de interpretao.

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    por bvio, necessita de comprovao, reviso e at mesmo de correo,

    tendo como mote o caso concreto.

    Uma vez mais: sempre h uma antecipao de sentido, que surge na

    primeira acepo do texto sob anlise, mesmo porque o intrprete, nesse

    primeiro contato, no se desnuda de seus pr-juzos. Mas ele o intrprete deve deixar que o texto lhe diga algo; deve dialogar com ele, em um verdadeiro juzo de alteridade hermenutica.

    No h possibilidade, diante de tais premissas, de se manter em voga

    pretenso carter silogstico de uma sentena43. que no h um

    desvelamento da norma, a partir do significado j inserido no texto, e sim,

    um nico ato de produo e atribuio de sentido mediante

    problematizao. Lenio Streck esclarece:

    Note-se: no nas palavras que devemos buscar os significados

    do mundo (ou do direito, para ser mais especfico), mas para

    significar (o direito) que necessitamos de palavras. para isso

    que as palavras servem: para dar significado s coisas! Para

    haver compreenso, basta que a articulao do significado dado

    s coisas (ou ao Direito) esteja provido de sentido. Isto significa

    dizer: o Dasein, em seu modo prtico de ser-no-mundo, desde

    sempre j se move compreensivamente em um todo de significados que em Ser e Tempo recebe o nome de significncia e desta relao ftica de compreenso afetivamente disposta que brotam as significaes das palavras.

    Dito de outro modo: articulamos as palavras que temos

    disponveis projetando sentidos a partir deste todo de

    significados. Ou seja, o discurso que o modo de

    In: GRONDIN, Jean. Introduo hermenutica filosfica. So Leopoldo: Unisinos, 1999, p.

    159.

    42 Nossos pr-juzos so a fora motriz de nossa compreenso, porquanto como releve Stein: O sujeito que compreende finito, isto , ocupa um ponto no tempo, determinado de muitos

    modos pela histria. A partir da desenvolve seu horizonte de compreenso, o qual pode ser

    ampliado e fundido com outros horizontes. O sujeito que compreende no pode escapar da

    histria pela reflexo. Dela faz parte. Estar na histria tem como consequncia que o sujeito

    ocupado por pr-conceitos que pode modificar no processo da experincia, mas que no pode

    liquidar inteiramente In: STEIN, Ernildo. Crtica da ideologia e racionalidade. Porto Alegre: Movimento, 1986, p. 37.

    43 Alguns exemplos desse equivocado entendimento. 1) Fazzalari, tratando da sentena salienta

    o seguinte: por ltimo o juiz deve subsumir a situao substancial, como acima acertada, lei que disciplina o seu dever de sentenciar, para concluir, enfim, que ele deva ou no emitir o

    comando jurisdicional requerido. In: FAZZALARI, Elio. Instituies de direito processual. Campinas: Bookseller, 2006. P. 489. 2) Luis Cabral de Moncada, verbis: a sentena traduz-se sempre, no seu aspecto formal, num silogismo, como forma de raciocnio, no qual a norma

    jurdica abstrata aplicvel ao caso faz as vezes de premissa maior; o caso de que se trata, as

    vezes de premissa menor. In: CABRAL DE MONCADA, Luis. Lies de direito civil: parte geral. 4. Ed. Coimbra: Almedina, 1995. P. 818.

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    manifestao da linguagem articulado sempre imerso nesta dimenso de (pr) compreensibilidade da significncia44.

    Nelson Camatta Moreira, ao destacar a importncia da linguagem para

    a hermenutica filosfica de Gadamer e asseverar o carter produtivo da

    intepretao em cada caso, bem resume o ponto:

    Na hermenutica gadameriana, portanto, a linguagem ocupa a

    destacada posio de condio de possibilidade para que o

    homem tenha acesso ao mundo e ao processo interpretativo. A

    linguagem possui uma estrutura especulativa que no consiste

    em ser cpia de algo dado de modo fixo, mas, num vir--fala, no

    qual se enuncia um todo de sentido. Assim, Gadamer resume

    emblematicamente: ser que pode ser compreendido

    linguagem.

    No direito, a proposta terica de Verdade e Mtodo contraria

    todas as tendncias da hermenutica tradicional, tal como

    praticada e apregoada pela dogmtica jurdica. Nesse vis, o

    autor alemo rompe com qualquer possibilidade de um saber

    reprodutivo acerca do Direito, acentuando que a interpretao da

    lei uma tarefa criativa45.

    Em sendo assim, conceituar sentena como ato silogstico, longe de

    ser uma filigrana ou preciosismo acadmico despido de contedo prtico,

    um equvoco que promove confuso entre texto normativo e norma. A

    sentena, diante de confuso tal, seria um ato declarativo e no criador46.

    Isto contrrio ao movimento do giro lingustico e destoa da tarefa da

    interpretao, vista pelo prisma da hermenutica filosfica. Na fala de

    Georges Abboud:

    A sentena judicial no um ato meramente silogstico; pelo

    contrrio, ela um modelo fundamental no qual se fundem a

    compreenso da norma e a sua relevncia aplicativa. A norma

    fruto do conhecimento, proveniente da atividade interpretativa

    criadora do jurista. Diante da hermenutica filosfica, a

    44 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituio, hermenutica e teorias discursivas

    da possibilidade necessidade de respostas corretas em direito. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011,

    posfcio, n. 4.1, p. 491.

    45 MOREIRA, Nelson Camatta. Direitos e garantias constitucionais e tratados internacionais

    de direitos humanos. So Paulo: Frum, 2012, p. 70.

    46 Joo Maurcio Adeodato chega a concluso similar, mesmo se baseando em perspectiva

    filosfica diversa: A separao dos poderes, por parte dos normativistas, de que o juiz cria direito, ainda que a proporo de poder do judicirio, em detrimento dos poderes executivos e

    legislativos, varie de autor para autor. Assim, a generalidade deixa de ser considerada um

    carter essencialmente da norma jurdica e a sentena reconhecida como forma de expresso e

    criao de direito positivo. (In: ADEODATO, Joo Maurcio, A retrica constitucional sobre tolerncia, direitos humanos e outros fundamentos ticos do direito positivo. So

    Paulo: Saraiva, 2010, p. 219).

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    intepretao e a cincia jurdica so algo mais que a utilizao

    de um mtodo seguro e pr-definido, do mesmo modo que a

    aplicao do direito algo mais que mera subsuno de um

    enunciado normativo47.

    Em outros termos: no h uma questo de direito espera de um

    encaixe que recaia sobre uma questo de fato. Para a hermenutica

    filosfica no subsistir autonomia entre questo de fato e questo de

    direito48, afinal, uma questo de fato , acima de tudo, uma questo de

    direito e vice-versa49. Em tom crtico, Ovdio Baptista salienta que:

    A alienao dos juristas, a criao do mundo jurdico - lugar encantado em que eles podero construir seus teoremas sem

    importunar o mundo social e seus gestores - imps-lhes uma

    condio singular, radicada na absoluta separao entre fato e direito50.

    O processo hermenutico que norteia a sentena no se realiza por

    partes estanques51. No se interpreta e no momento seguinte se aplica o

    resultado dessa interpretao. Como j salientado, a hermenutica

    filosfica gadameriana avanou nesse pormenor, afinal, como diz

    Heidegger interpretar elaborar as possibilidades projetadas na compreenso52, ou seja, interpretar j aplicar!

    Nelson Camatta Moreira afirma: A tarefa da interpretao consiste, ento, em concretizar a lei em cada caso, isto , em sua aplicao53. E arremata: Gadamer destaca o papel da hermenutica jurdica com relao

    47 ABBOUD, Georges. Jurisdio constitucional e direitos fundamentais. So Paulo: Revista

    dos Tribunais, 2011, p. 73.

    48 Eis, por oportuno, a doutrina de Eros Grau: Sendo concomitantemente aplicao do direito, a interpretao deve ser entendida como produo prtica do direito, precisamente como a toma

    Friedrich Muller: no existe um terreno composto de elementos normativos (=direito), de um

    lado, e de elementos reais ou empricos (=realidade), do outro. (...) a norma produzida, pelo

    intrprete, no apenas a partir de elementos colhidos no texto normativo (mundo do dever-ser),

    mas tambm a partir de elementos do caso ao qual ser aplicada, isto , a partir de dados da

    realidade (mundo do ser). GRAU, Eros Roberto. A jurisprudncia dos interesses e a interpretao do direito, p. 31. In: ADEODATO, Joo Maurcio (org.) Jhering e o direito no

    Brasil. Recife: Editora Universitria, 1996.

    49 CASTANHEIRA NEVES, Antnio. Questo fato e Questo de direito, o problema

    metodolgico da juridicidade. Coimbra, 1967.

    50 SILVA, Ovdio A. Baptista. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro:

    Forense, 2004, p. 302.

    51 De acordo com Gadamer o conhecimento do sentido de um texto jurdico e sua aplicao a um caso jurdico concreto no so atos separados, mas um processo unitrio. In: GADAMER, Hans-George. Verdade e Mtodo. op. cit., p. 463.

    52 HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 12. ed. Petrpolis: Vozes, 2002, Parte I, p. 204.

    53 Idem, p. 71-72.

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    dogmtica, afirmando no ser sustentvel a ideia de uma dogmtica

    jurdica total sob a qual se pudesse baixar qualquer sentena por um

    simples ato de subsuno54.

    Mas bom que fique claro, conquanto o processo hermenutico no se

    faa por partes e no seja dotado de pr-juzos e pr-compreenses de

    sentido, as acepes extradas pelo intrprete somente iro adquirir

    validade se e quando forem compatveis com a coisa em si. O respeito ao texto, portanto, algo impositivo. Isto porque, se, por um lado, a

    conscincia subjetiva do intrprete e sua carga histrica55 carregam pr-

    juzos56, sendo somente por tais que se consegue atribuir sentido ao texto

    interpretado, por outro, a atribuio de sentido no poder, sob qualquer

    hiptese, representar arbtrio do intrprete. Isto pode ser extrado de duas

    passagens da obra de Gadamer, adiante transcritas:

    Aquele que quer compreender no pode se entregar de

    antemo ao arbtrio de suas prprias opinies prvias, ignorando

    a opinio do texto da maneira mais obstinada e consequente

    possvel at que este acabe por no poder ser ignorado e derrube a suposta compreenso57.

    (...)

    Os preconceitos e opinies prvias que ocupam a

    conscincia do intrprete no se encontram sua disposio,

    enquanto tais. Este no est em condies de distinguir por si

    mesmo e de antemo os preconceitos produtivos, que tornam

    possvel a compreenso, daqueles outros que a obstaculizam os

    mal-entendidos58.

    Da porque, muitos autores da contemporaneidade que se debruam no

    problema da deciso judicial. Tomem-se alguns, como exemplo. O

    primeiro Robert Alexy arrima uma teoria procedimental da deciso e

    54 Idem, p. 72.

    55 Ainda no tocante historicidade do intrprete, Gadamer, assevera que cada nova leitura de

    um texto uma leitura diversa, pois cada momento e poca aquele que o interpreta

    compreender o texto segundo o seus prprios interesses e circunstncias. Ou seja, a

    compreenso temporal. Veja a passagem: Na realidade, no a histria que pertence a ns, mas ns que a ela pertencemos. Muito antes de que ns compreendamos a ns mesmos na

    reflexo, j estamos nos compreendendo de uma maneira auto-evidente na famlia, na sociedade

    e no Estado em que vivemos. In: GADAMER, Hans Georg. Verdade e mtodo. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. 4.ed. Petrpolis: Vozes, 2002, v.1, p. 415.

    56 Conforme Gadamer: A lente da subjetividade um espelho deformante. A auto-reflexo do indivduo no mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histrica. Por isso, os

    preconceitos de um indivduo so, muito mais que seus juzos, a realidade histrica do seu ser. In: Idem, p. 416.

    57 Idem, p. 405.

    58 Idem, p. 442-443.

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    oferece uma Espcie de frmula, cujo desgnio racionalizar o discurso da

    deciso. O segundo Ronald Dworkin sustenta um ideal de deciso judicial a partir de sua teoria do Direito como Integridade. O terceiro Lenio Luiz Streck, a partir da aproximao entre Gadamer e Dworkin,

    procura assegurar respostas adequadas Constituio.

    Pois bem, o que se prope a apresentao de uma teoria da deciso

    representativa do mbito discursivo por meio do qual se busque critrios

    para o exerccio da atividade jurisdicional, adequando-a a contornos

    democrticos, impostos pelo constitucionalismo contemporneo.

    2.4 Entre a ponderao e a integridade: uma breve aluso s

    regras, aos princpios e a busca por respostas adequadas

    Constituio.

    Retomando, resumidamente se observa que, na terminologia de Alexy,

    o problema da racionalizao das decises judiciais passa pela edificao

    de uma frmula que se mostre capaz de estancar a arbitrariedade

    interpretativa existente no instante em que, ante uma eventual coliso de

    valores em um determinado caso, o intrprete escolha aquele que deve

    prevalecer.

    a chamada frmula da ponderao, que tem aplicao naquilo que o

    autor denomina de casos difceis. A frmula visa sanear a eventual coliso

    de princpios para que, feita sua precisa aplicao, seja apurada a regra de

    direito fundamental atribuda. Diga-se, por oportuno, que para Alexy existe

    distino fundamental entre regras e princpios:

    [...] princpios so normas que ordenam que algo se realize

    na maior medida possvel, em relao s possibilidades jurdicas

    e fticas. Os princpios so, por conseguinte, mandamentos de

    otimizao que se caracterizam porque podem ser cumpridos em

    diferentes graus e porque a medida de seu cumprimento no s

    depende das possibilidades fticas, mas tambm das

    possibilidades jurdicas. [...]. Por outro lado, as regras so

    normas que exigem um cumprimento pleno e, nessa medida,

    podem sempre ser somente cumpridas ou no. Se uma regra

    vlida, ento obrigatrio fazer precisamente o que se ordena,

    nem mais nem menos. As regras contm por isso determinaes

    no campo do possvel ftico e juridicamente59.

    A problemtica : como distinguir casos fceis e difceis60? Como

    uma norma pode ter sua aplicao diferida em diferentes graus? A natureza

    59 ALEXY, Robert. Teoria da Argumentao Jurdica: a Teoria do Discurso Racional como

    Teoria da Justificao Jurdica. Trad. Zilda Hutchinson Schild Silva. So Paulo: Landy, 2001, p.

    12.

    60Idem.

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    de mandados de otimizao dos princpios no confere margem de

    discrio incontrolvel ao aplicador?61 possvel, a partir das premissas de

    Alexy, racionalizar o ordenamento jurdico e a democracia? Fausto Santos

    de Morais demonstra preocupao similar:

    No novidade dizer que a noo de princpio jurdico proposta

    por Robert Alexy tenha sido endossada no mundo jurdico como

    critrio diferenciador entre as espcies normativas, o que teria

    assegurado, no plano metodolgico, a segurana de como se

    aplicar o Direito. A premissa seria: quando no fosse possvel

    resolver os problemas mediante a aplicao das regras jurdicas,

    por subsuno, deveria o intrprete considerar os princpios

    jurdicos envolvidos, ponderando-os nos moldes da mxima da

    proporcionalidade.

    Essa questo para colocar em evidncia uma discusso sobre as

    possibilidades da interpretao e pode ser apresentada nos

    seguintes termos: a concepo de princpio jurdico de Robert

    Alexy como mandamento de otimizao diluiria a deontologia

    dos critrios plasmados na historicidade do Direito,

    condicionando-a ao ato de vontade do intrprete62.

    Princpios, tidos como mandados de otimizao, para Alexy, no esto

    ligados a um nvel deontolgico, mas a um nvel axiolgico, o que pode

    gerar preferncias subjetivas63. De mais a mais, atentando-se que a tcnica

    ou frmula da ponderao seria o mecanismo apto a solucionar colises, h quem sustente que se v em Alexy, alm de uma matematizao do

    discurso jurdico, um artificialismo, at porque do resultado da ponderao,

    primeiro, remanesce forte discricionariedade e, segundo, ao fim sempre

    extrada uma regra, fato que caracterizaria uma atividade subsuntiva.

    61 Na terminologia de Habermas: Dado que os direitos desempenham no discurso jurdico o papel de razes ponderveis entre si, Alexy v nisso a confirmao de sua concepo, segundo a

    qual se podem tratar princpios como valores. In: HABERMAS Jrgen. A Incluso do Outro - Estudos de Teoria Poltica. 3.ed. So Paulo: Loyola, 2007, p. 367.

    62 MORAIS, Fausto Santos de. Entre princpios jurdicos e valores: uma investigao

    histrica sobre esse imaginrio. Revista Eletrnica de Direito e Poltica, Programa de Ps-

    Graduao Stricto Sensu em Cincia Jurdica da UNIVALI, Itaja, v. 9, n. 2, 2 quadrimestre de

    2014. Disponvel em: www.univali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791.

    63 Lenio Streck tece crticas teoria da argumentao de Alexy e as que dela so derivadas. Eis

    a transcrio ilustrativa: independentemente das coloraes assumidas pelas posturas que, de um modo ou de outro, deriva(ra)m da teoria da argumentao de Robert Alexy, o cerne da

    problemtica est na continuidade da delegao em favor do sujeito da relao sujeito-objeto. Isso assim porque a ponderao implica essa escolha subjetiva. E prossegue: em Alexy, h direitos que, em abstrato, possuem peso maior que outros, o que, segundo o autor, encobre o verdadeiro raciocnio que estrutura a compreenso. STRECK, Lenio Luiz. Verdade e

    Consenso. Constituio, hermenutica e teorias discursivas da possibilidade necessidade de

    respostas corretas em direito. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011, p. 232-233.

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    Feita esta breve exposio, passa-se a distinguir a teoria de Alexy cujo trao marcante, tal como se exps, a ponderao de princpios pela

    proporcionalidade, da teoria de Dworkin (Integridade do Direito),

    advertindo, de plano, que no incomum ver em obras jurdicas afirmaes

    de que existiria relativa compatibilidade entre as teorias no que toca

    aplicao dos princpios jurdicos. Talvez isto ocorra porque Alexy parte de

    ensaio de autoria de Dworkin para traar seus arremates acerca das

    diferenas entre princpios e regras no direito. Todavia, extraem-se

    distines proeminentes nas concluses expostas pelos autores.

    Por exemplo, Dworkin no afirma que regras e princpios so

    diferenciados por caractersticas morfolgicas. Pelo contrrio, o autor

    estadunidense salienta que princpios e regras apresentam distino lgico-

    argumentativa. Nesse diapaso, s pelas razes trazidas pelos partcipes do

    debate que seria vivel compreender se a norma invocada assume a

    posio de princpio ou de regra.

    Se o direito prtica interpretativa, conforme traduz Dworkin, todos

    os procedimentos metodolgicos so fixados em razo das controvrsias

    que cada um de ns tem sobre o que direito e at onde legitimada a

    coero estatal. Dworkin separa, ainda, as regras e os princpios das

    diretrizes polticas, sendo que estas ltimas no so mencionadas por

    Alexy. Alm do que, para Dworkin, o fio condutor do debate no reside

    sobre fundamentos ou procedimentos (matemticos) construdos

    abstratamente de forma generalizada. Valem conferir, especificamente

    quanto distino entre princpios e diretrizes polticas, as palavras de

    Dworkin:

    Denomino poltica aquele tipo de padro que estabelece um

    objetivo a ser alcanado, em geral uma melhoria em algum

    aspecto econmico, poltico ou social da comunidade (ainda que

    certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que

    algum estado atual deve ser protegido contra mudanas

    adversas). Denomino princpio um padro que deve ser

    observado, no porque v promover ou assegurar uma situao

    econmica, poltica ou social considerada desejvel, mas porque

    uma exigncia de justia ou equidade ou alguma outra

    dimenso da moralidade. Assim, o padro que estabelece que os

    acidentes automobilsticos devem ser reduzidos uma poltica e

    o padro segundo o qual nenhum homem deve beneficiar-se de

    seus prprios delitos um princpio. A distino pode ruir se

    interpretarmos um princpio como a expresso de objetivo social

    (isto , o objetivo de uma sociedade na qual nenhum homem

    beneficia-se de seu prprio delito) ou interpretarmos uma

    poltica como expressando um princpio (isto , o princpio de

    que o objetivo que a contm meritrio) ou, ainda, se adotarmos

    a tese utilitarista segundo a qual os princpios de justia so

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    declaraes disfaradas de objetivos (assegurar a maior

    felicidade para o maior nmero)64.

    E mais: para o autor, se faz inaceitvel qualquer tipo de

    discricionariedade judicial. Permitir que o magistrado decida de modo

    inovador pode representar a chancela do arbtrio da coero estatal. com

    Dworkin que se apreende que os Tribunais, ao julgar um novo caso, devem

    respeito histria institucional da aplicao daquele instituto e, para

    facilitar sua fala, o autor faz uma metfora: a do romance em cadeia.

    As rupturas devem ser devidamente fundamentadas, consoante a

    integridade do direito, sob pena de ser criado um quadro de anarquia interpretativa, no qual cada juiz ou tribunal julgaria a partir de uma espcie de marco zero, em franco desrespeito ao contraditrio. Eis as palavras do autor a respeito da integridade do direito:

    comea no presente e se volta para o passado na medida em que

    seu enfoque contemporneo assim o determine. No pretende

    recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos

    prticos dos polticos que primeiro o criaram. (...) Quando um

    juiz declara que um determinado princpio est imbudo no

    direito, sua opinio no reflete uma afirmao ingnua sobre os

    motivos dos estadistas do passado, uma afirmao que um bom

    cnico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta

    interpretativa: o princpio se ajusta a alguma parte complexa da

    prtica jurdica e a justifica; oferece uma maneira atraente de

    ver, na estrutura dessa prtica, a coerncia de princpio que a

    integridade requer. O otimismo do direito , nesse sentido,

    conceitual; as declaraes do direito so permanentemente

    construtivas, em virtude de sua prpria natureza65.

    Em decorrncia da passagem acima, denota-se que um direito que seja

    trajado pela integridade propicia a indicao do(s) princpio(s) em face de

    vindouro(s) caso(s) concreto(s), os quais devem ser tratados como um

    evento nico e irrepetvel. Dworkin, ao contrrio de Alexy, no visualiza

    uma coliso de princpios, mas uma concorrncia entre estes em um

    determinado caso. Logo, em cada caso, observando-se os argumentos

    trazidos pelos participantes da relao processual, bem como atentos s

    discusses pretritas sobre aqueles direitos envolvidos, ser possvel

    compreender que o conflito apenas aparente.

    A explicao, como citado, feita atravs da metfora do romance em cadeia66 que serve, ento, para que se possa compreender que cada juiz

    64 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a srio. So Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36.

    65 DWORKIN, Ronald. O imprio do direito. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 274.

    66 DWORKIN, Ronald. O imprio do direito. 2 ed. So Paulo: Martins Fontes, 2003.

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    assume o papel similar de um romancista que escreve um captulo para

    uma obra coletiva. Tem ele - o magistrado - que conhecer os captulos anteriores subscritos pelos demais para se inteirar da narrativa e, a sim,

    procurar construir uma histria que no se dissocie e acima de tudo

    preserve a linha de raciocnio j estabelecida preteritamente. No lhe ,

    destarte, autorizado ignorar o que passou tampouco transformar o livro de autoria coletiva em um conto desconectado. Ao revs, seu captulo tem de ter uma ligao com o passado, propiciando uma abertura com o futuro,

    viabilizando a evoluo da histria e no apenas sua repetio67.

    Esclarecendo e trazendo a pertinncia da discusso para o presente

    artigo, no interior do mtodo de Dworkin h fulgente inquietao com o

    resultado decisrio. Uma deciso para este autor estar justificada no

    apenas quando reverencia a justeza e perfeita aplicao dos procedimentos,

    mas tambm quando respeita a coerncia principiolgica que compem a

    integridade moral da comunidade.

    Em outra terminologia: em Dworkin (o mtodo de Hrcules68) se tem preocupao com o resultado da deciso. Esta, para ser justificada,

    deve respeitar a coerncia de princpios que compem a integridade moral

    da comunidade. E princpio no um a priori contido em um texto ou

    enunciado de precedente. O argumento de princpio referido pelo autor em

    comento remete o intrprete totalidade referencial destes instrumentos

    jurdicos. No h, deste modo, como acreditar que se possa distinguir, de

    modo antecipado, um princpio jurdico de um princpio moral ou social69.

    Em suma: o direito como integridade objetiva reconstruir a histria jurdica

    de uma comunidade.

    As crticas dirigidas a Alexy se referem insuficincia de critrio

    seguro para afianar o que faz um determinado texto ser considerado

    princpio e no regra. Alm disso, afirma-se que para este autor, a

    ponderao critrio utilizado para soluo de coliso de princpios um

    67 Em que pese as singularidades da operacionalidade do direito na common law e na civil law,

    vale conferir DWORKIN, Ronald. Uma Questo de Princpio. So Paulo: Martins Fontes,

    2001. p 238.

    68 O juiz Hrcules uma figura metafrica criada por Dworkin. ele - Hrcules - responsvel

    para dizer qual o princpio adequado, quando diante de um hard case.

    Esse juiz ter um trabalho sobre-humano para atingir a resposta correta. Salienta Dworkin:

    Hrcules nos til exatamente porque mais reflexivo e autoconsciente do que qualquer juiz verdadeiro precisa ou, dada a urgncia do trabalho, poderia ser. Sabemos que os juzes reais

    decidem a maioria dos casos de maneira bem menos metdica, mas Hrcules nos mostra a

    estrutura oculta de suas sentenas, deixando-as assim abertas ao estudo e crtica. In: DWORKIN Ronald. O imprio do direito. So Paulo: Martins fontes, 2003, p. 316.

    69 DWORKIN Ronald. O imprio do direito. So Paulo: Martins fontes, 2003, p. 305 e ss.

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    procedimento de cunho valorativo, o que pode vir a gerar

    discricionariedades incontrolveis.

    Ademais, o resultado da ponderao, do qual se extrai uma regra (a

    regra da ponderao), no um problema para Alexy, j que a validade

    disto est condicionada ao procedimento. Isto indica que Alexy no se

    livrou do problema da aporia entre razo terica e prtica. Portanto, sem

    maiores delongas, o grande problema interpretativo do direito (a

    indeterminao e a discricionariedade da deciso judicial) no foi resolvido

    pelo autor, pois continua ele ofertando construes abstratas para

    problemas concretos, posicionando-se naquilo que Dworkin denomina de

    teorias semnticas.

    J Lenio Streck, autor que constitui uma das bases tericas apontadas

    para realizao deste trabalho, desenvolve sua teoria da deciso e sustenta o

    direito fundamental resposta adequada Constituio. Na teoria

    desenvolvida contextualizada no constitucionalismo contemporneo70 - o autor sublinha que a obteno de resposta adequadas Constituio

    direito fundamental, corporificado, dentre outros, no artigo 93, IX, da Carta

    da Repblica, que prev o dever de fundamentao das decises judiciais.

    Em apertada sntese, Lenio Streck oferta uma teoria da deciso a partir

    de um encadeamento entre Gadamer e Dworkin, implantada no contexto do

    constitucionalismo contemporneo. O autor defende relevncia

    paradigmtica do conhecimento de applicatio que decorre de Gadamer

    (aqui j exposto anteriormente) e como com esta noo o direito se liberta

    da hermenutica tradicional, cujo desejo era separar, em partes, o fenmeno

    interpretativo, acarretando, com isso, reflexos no ambiente da deciso

    judicial. Isto fica claro, por exemplo, quando afirma: no campo do

    70 Para Streck h diferena entre os conceitos de constitucionalismo contemporneo e

    neoconstitucionalismo: possvel dizer que, nos termos em que o neoconstitucionalismo vem sendo utilizado, ele representa uma clara contradio, isto , se ele expressa um movimento

    terico para lidar com o direito novo (poder-se-ia dizer, um direito ps Auschwitz ou ps-blico como que Mrio Losano), fica sem sentido depositar todas as esperanas de realizao desse direito na loteria do protagonismo judicial (mormente levando em conta a prevalncia, no

    campo jurdico, do paradigma epistemolgico da filosofia da conscincia). Assim, reconheo

    que no faz mais sentido continuar a fazer uso da expresso neoconstitucionalismo para mencionar aquilo que essa obra pretende apontar: a construo de um direito democraticamente

    produzido, sob o signo de uma constituio normativa e da integridade da jurisdio. In: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituio, hermenutica e teorias discursivas

    da possibilidade necessidade de respostas corretas em direito. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011,

    p. 35.

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    conhecimento do direito preciso ter presente que nenhum processo

    lgico-argumentativo pode acontecer sem a pr-compreenso71.

    de Dworkin (de sua noo de integridade) que Lenio Streck extrai

    os subsdios pertinentes construo de padres mnimos (a histria

    institucional do direito) que devem compor toda deciso. Em suas palavras:

    Quando Dworkin diz que o juiz deve decidir lanando mo de

    argumentos de princpio e no de polticas, no porque esses

    princpios sejam ou estejam elaborados previamente,

    disposio da comunidade jurdica como enunciados assertrios ou categorias (significantes primordiais-fundantes).

    Na verdade, quando sustenta essa necessidade, apenas aponta

    para os limites que devem haver no ato de aplicao judicial

    (por isso, ao direito no importa as convices pessoais/morais

    do juiz acerca da poltica, sociedade, esportes etc.; ele deve

    decidir por princpios72.

    Refuta, ento, que, dentre as possibilidades de soluo da contenda, a

    escolha da deciso jurdica seja feita atravs de uma escolha discricionria

    do julgador. Apregoa Streck tambm um redimensionamento do papel da

    doutrina, a qual deve atuar como censora das decises tribunalsticas, constrangendo a prtica de arbitrariedades. Sobre este ponto:

    A doutrina deve doutrinar, sim. Esse o seu papel. Alis, no

    fosse assim, o que faramos com as quase mil faculdades de

    Direito, os milhares de professores e os milhares de livros

    produzidos anualmente? E mais: no fosse assim, o que

    faramos com o parlamento, que aprova as leis? Se os juzes (do

    STJ) podem como sustenta o Ministro Barros dizer o que querem sobre o sentido das leis, para que necessitamos de leis? Para que a intermediao da lei?73

    Prosseguindo, Lenio Streck salienta que para ser obtida ou construda

    uma resposta adequada Constituio, so de obedincia obrigatria, no

    momento da afirmao da deciso, cinco princpios que constituem aquilo

    que batiza de minimum applicandi:

    (i) Preservar a autonomia do direito, livrando-o dos predadores externos, como os discursos adjudicativos provenientes da moral, da

    71 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituio, hermenutica e teorias discursivas

    da possibilidade necessidade de respostas corretas em direito. 4. ed. So Paulo: Saraiva, 2011,

    p. 472.

    72 Idem, p. 485.

    73 STRECK, Lenio Luiz. Crise de paradigmas - Devemos nos importar, sim, com o que a

    doutrina diz. Disponvel em: http://www.leniostreck.com.br/site/wp-

    content/uploads/2011/10/10.pdf. Acesso em: 27 de nov. de 2013.

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    poltica e da economia, assim como os predadores internos, como os subjetivismos, axiologismos e pragmatismos de toda a espcie74;

    (ii) Estabelecer condies hermenuticas para a realizao de um controle da interpretao constitucional, exatamente porque o fato de no

    se ter um mtodo que chancele a correo da interpretao, no autoriza o

    intrprete a tomar decises solipsistas;

    (iii) Garantir o respeito integridade e coerncia do direito: a fundamentao das decises judiciais e o respeito histria institucional do

    direito so elevados condio de direito fundamental;

    (iv) Estabelecer que a fundamentao das decises um dever fundamental de juzes e tribunais: continuar a afirmar, a partir disso, que a

    hermenutica a ser praticada no Estado Democrtico de Direito no pode

    deslegitimar o texto jurdico constitucional produzido democraticamente,

    bem como que h forte responsabilidade poltica dos juzes e tribunais no

    ato de motivar (art. 93, IX, CF); o juiz deve pormenorizar as condies

    pelas quais compreendeu, pois apenas assim cada cidado ter garantido o

    direito de aferir se sua causa foi julgada a partir da Constituio, bem como

    controlar se a resposta a ele conferida est ou no constitucionalmente

    adequada;

    (v) Garantir que cada cidado tenha sua causa julgada a partir da Constituio e que haja condies para aferir se esta resposta est ou no

    constitucionalmente adequada: a finalidade desta ltima proposta a

    preservao da fora normativa da Constituio, bem como do carter

    deontolgico dos princpios75.

    Por derradeiro, Streck lista seis hipteses onde haveria possibilidade

    de no aplicao da lei:

    a) quando a lei (o ato normativo) for inconstitucional, caso em

    que deixar de aplic-la (controle difuso de

    constitucionalidade stricto sensu) ou a declarar inconstitucional

    mediante controle concentrado;

    b) quando for o caso de aplicao dos critrios de resoluo de

    antinomias. Nesse caso, h que se ter cuidado com a questo

    constitucional, pois, v.g., a lex posterioris, que derroga a lex

    anterioris, pode ser inconstitucional, com o que as antinomias

    deixam de ser relevantes;

    74 STRECK, Lenio Luiz. O direito de obter respostas constitucionalmente adequadas em tempos

    de crise do direito: a necessria concretizao dos direitos humanos. Disponvel em:

    http://periodicos.ufpa.br/index.php/hendu/article/viewFile/374/601. Acesso em: 27 de nov. de

    2013.

    75 Cf. ABBOUD, Georges. Jurisdio constitucional e direitos fundamentais. So Paulo: RT,

    2011, n. 9.3, p. 449 et seq.

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    c) quando aplicar a interpretao conforme Constituio

    (verfassungskonforme Auslegung), ocasio em que se torna

    necessria uma adio de sentido ao artigo de lei para que haja

    plena conformidade da norma Constituio. Neste caso, o

    texto de lei (entendido na sua literalidade) permanecer intacto; o que muda o seu sentido, alterado por intermdio de

    interpretao que o torne adequado a Constituio (trabalho,

    aqui, com a distino-diferena entre texto e norma);

    d) quando aplicar a nulidade parcial sem reduo de texto

    (Teilnichtigerklrung ohne Normtextreduzierung), pela qual

    permanece a literalidade do dispositivo, sendo alterada apenas a

    sua incidncia, ou seja, ocorre a expressa excluso, por

    inconstitucionalidade, de determinada(s) hiptese(s) de

    aplicao (Anwendungsflle) do programa normativo sem que

    se produza alterao expressa do texto legal. Assim, enquanto na

    interpretao conforme h uma adio de sentido, na nulidade

    parcial sem reduo de texto, ocorre uma abduo de sentido;

    e) quando for o caso de declarao de inconstitucionalidade com

    reduo de texto, ocasio em que a excluso de uma palavra

    conduz manuteno da constitucionalidade do dispositivo;

    f) quando e isso absolutamente corriqueiro e comum for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princpio,

    entendidos estes no como standards retricos ou enunciados

    performativos76.

    Portanto, para Streck, a fundamentao das decises assume papel de

    grande relevo no Estado Democrtico de Direito, no por ser simplesmente

    um dever do aplicador do direito, mas sim por se tratar de um direito

    fundamental de todo jurisdicionado77.

    76 STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei uma atitude positivista?. Disponvel em: http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/download/2308/1623. Acesso em: 29 de nov.

    de 2013.

    77 A questo relativa fundamentao, proteo do texto legislativo e tambm ao casusmo

    decisrio, ainda que sob outro vis, qual seja o da Retrica Constitucional, foi bem visualizada

    tambm por Joo Maurcio Adeodato na seguinte passagem: Assim a questo passa a ser como proteger o legislativo e o texto, seu produto. No se pode voltar a Bugnet ou Demolombe. S

    que o constrangimento a fundamentar, componente essencial do Estado democrtico e das

    funes do judicirio, no parece ser levado muito a srio, mormente nas ltimas instncias.

    (...).

    A estratgia poltica do judicirio tem sido casustica, na medida em que as fundamentaes tm

    variado a ponto de ser difcil seguir um vetor qualquer de racionalidade para unificao da

    jurisprudncia em geral, a includa a jurisdio constitucional. Pode ter relao com esse

    contexto o fato de o modelo de escolha dos membros do Supremo Tribunal Federal ser

    semelhante ao europeu, tambm conservador: o tribunal constitucional escolhido pelo

    executivo e chancelado pelo legislativo, o que traz um carter notoriamente poltico cpula do

    judicirio, como se v dos recentes desdobramentos no Brasil. E nem apenas constitucional.

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    Tudo quanto foi exposto, notadamente no que se refere adequada

    fundamentao, de to relevante motiva a insero no Projeto do Novo

    Cdigo de Processo Civil (atualmente sob anlise da Cmara dos

    Deputados - PL 8.046/10) de dispositivo que, com o devido respeito, diz o

    bvio, at porque o bvio, por vezes precisa ser dito: a fundamentao tem

    que ser exaustiva, coerente e adequada, demonstrando os porqus da

    aplicao ou no de precedentes e posies pretritas. Com efeito, eis o que

    dispe o artigo 499, 1, do Projeto do Novo Cdigo de Processo Civil78, o

    qual, saliente-se mais uma vez, explicita aquilo que nos parece implcito79.

    3 CONCLUSES

    Diante do que fora escrito, pode-se afirmar que o entendimento da lei e sua

    interpretao so experincias, realizadas, segundo Gadamer, num mesmo

    momento: a applicatio. Assim, conquanto o ato interpretativo seja produtor

    de sentido (e no reprodutor, simplesmente), o intrprete no o cria (ou no

    deve faz-lo) ao seu bel-prazer, pois essa produo sofre os refluxos da linguagem e da historicidade, mesmo porque a interpretao moderna

    pautada por uma fuso de horizontes.

    Da a relevncia da hermenutica filosfica, que no se sustenta o

    subjetivismo e que apregoa que o intrprete de suspender seus pr-juzos,

    para efeito de compreender adequadamente o texto normativo objeto de

    interpretao.

    O problema da jurisdio constitucional brasileira, nesses tempos de transio, parece ser: o

    judicirio nem v o texto ontologicamente, como cone do objeto, e o vincula a uma

    interpretao pretensamente fixa, como na exegese francesa da transio do sculo XVIII para o

    XIX, nem o concretiza por via de um projeto e de procedimentos hermenuticos especficos.

    Tem os defeitos da reificao racionalista e os do casusmo irracionalista: concepo

    reificadora, trato casustico, uma esdrxula incompatibilidade estratgica. Esse jurisdio vem

    constituindo a parte mais significativa da retrica constitucional no Brasil. (In: ADEODATO,

    Joo Maurcio, A retrica constitucional sobre tolerncia, direitos humanos e outros fundamentos ticos do direito positivo. So Paulo: Saraiva, 2010, p. 210-211).

    78 Eis o dispositivo: 1 No se considera fundamentada qualquer deciso judicial, seja ela

    interlocutria, sentena ou acrdo, que: I se limita indicao, reproduo ou parfrase de ato normativo; II empregue conceitos jurdicos indeterminados sem explicar o motivo concreto de sua incidncia no caso; III invoque motivos que se prestariam a justificar qualquer outra deciso; IV no enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a concluso adotada pelo julgador; V se limita a invocar precedente ou enunciado de smula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o

    caso sob julgamento se ajusta queles fundamentos; VI deixar de seguir enunciado de smula, jurisprudncia ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existncia de distino no

    caso em julgamento ou a superao do entendimento. 2 No caso de coliso entre normas, o

    rgo jurisdicional deve justificar o objeto e os critrios gerais da ponderao efetuada.

    79 TOVAR, Leonardo Zehuri. Levando o planejamento tributrio a srio - no existe

    planejamento de prateleira: a impensvel equiparao entre texto e norma, Revista Tributria e

    de Finanas Pblicas, vol. 119/2014, p. 259, Nov 2014.

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    Essa contribuio j importante se for lembrado que a

    irracionalidade das decises judiciais um grave problema, mesmo porque

    no vivel sustentar que a interpretao um ato de vontade, como fazem

    muitos, talvez por desconhecimento da teoria Kelseniana80 e tambm

    porque, no cotidiano forense brasileiro, v-se uma preocupao voltada ao

    atendimento de metas, algo que reserva a to relevante instituio, pouco a

    pouco, o papel de cumprimento de estatsticas. Da, mais uma vez, a

    relevncia do tema escolhido para efeito de construir as condies para

    evitar que a jurisdio constitucional (ou o poder dos juzes) se sobreponha

    ao prprio direito. Parece evidente lembrar que o direito no e no pode ser aquilo que os tribunais dizem que .

    possvel ainda dizer que equivocadamente a doutrina de Robert

    Alexy, por desconhecimento, pode gerar decises incontrolveis, j que,

    como resumidamente se exps, no uma aplicao de princpios, mas de

    regras, matematizando seu discurso e criando artificialismos no

    procedimento pelo autor proposto.

    Relevante, por isso, a contribuio de Ronald Dworkin, autor que,

    critica e no aceita a discricionariedade judicial e para tanto afirma a

    necessidade de uma coerncia de princpios componentes da integridade

    moral de uma comunidade, desenvolvendo aquilo que denominou de

    Direito como Integridade.

    No contexto brasileiro detm grande destaque a doutrina de Lenio

    Luiz Streck, o qual, atravs da promoo de uma simbiose entre as teorias

    de Gadamer e Dworkin, tendo como parmetro o constitucionalismo

    contemporneo, sustenta a possibilidade de outorga de respostas

    constitucionalmente adequadas. Evidencia, para isso, o que chamou de

    minimum applicandi, quando da afirmao da deciso judicial e seis

    hipteses pelas quais pode o julgador no aplicar uma lei, conferindo ainda

    80 Para Kelsen, vontade e conhecimento uniam-se para dar origem interpretao. A

    interpretao do direito era, ento, plurvoca, admitindo vrias interpretaes possveis para

    cada caso, todas de igual valor, limitada apenas pela larga tela do direito posto. O direito

    desempenhava, ento, papel de uma moldura que, em presena da vontade do interprte, daria

    origem a um quadro que representava justamente o direito a ser aplicado (In: FERREIRA,

    Nazar do Socorro Conte, Da interpretao Hermenutica Jurdica - uma leitura de

    Gadamer e Dworkin, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre: 2004, p. 77). Kelsen,

    complementa-se, salientava que se interpretao fosse considerada vlida ela pode ser aplicada,

    porquanto o ato de escolher qual das mltiplas possibilidades interpretativas discricionrio,

    cabendo ao aplicador do direito (os intrpretes autnticos, quais sejam, os juzes) o direito de

    escolha. Logo, o direito seria nica e exclusivamente um ato de criao dos magistrados (In:

    CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito processual constitucional. Interpretao

    como ato de conhecimento e interpretao como ato de vontade: a tese kelseniana de

    interpretao autntica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002).

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    especial relevo necessidade de fundamentao das decises, direito

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