8

Hermenêutica - Shedd Publicações

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Publicado anteriormente sob o título Ouvindo a Deus. Os ensaios nesse volume representam alguns dos melhores auxílios à disposição daqueles que desejam crescer no conhecimento das Escrituras. Os escritores desses ensaios abordam temas como: História, Cânon, Teologia, Sociologia, Hermenêutica Secular Moderna e Pós-Modernismo e Espiritualidade. Autores: Eugene Peterson, Gordon D. Fee, Craig M. Gay, James Houston, J. I. Packer, Loren Wilkinson.

Citation preview

Page 1: Hermenêutica - Shedd Publicações
Page 2: Hermenêutica - Shedd Publicações
Page 3: Hermenêutica - Shedd Publicações

A teologia e a leiturada Bíblia

J. I. Packer

3

ESCREVI EM OUTRO LUGAR1 a respeito de uma decisão que tomei com meus dezoitos anos – avançados em maturidade! Tendo sido cristão por menos de um ano, falei ao meu capelão universitário em Oxford, um anglicano devoto ritualista, que não queria estudar teologia, porque não ajudaria a minha fé. Por que falei tanta bobagem e de modo tão descortês? Estremeço cada vez que me relembro disso. Tudo bem: a bobagem na boca é evidência de bobagem na mente, e naquela ocasião, a bobagem na minha mente era uma meia-verdade que, sendo tomada por verdade inte-gral, estava funcionando como mentira. (As meias-verdades operam assim; tome cuidado!) Minha ideia era que como a Bíblia contém em si mesma os princípios da sua própria interpretação (verdade), e como o Espírito Santo que a inspirou, ilumina nossos humildes corações para percebermos o seu significado (outra verdade), todos os segredos das Escrituras se curvariam diante de mim, se eu simplesmente orasse e lesse o texto.

Entretanto, trata-se de uma simplificação drasticamente exagerada. Alguns dos segredos da Bíblia certamente se me tornariam claros dessa maneira. Muitos leitores da Bíblia, do passado e do presente, podem dar testemunho de lições preciosas aprendidas por meio de se imergirem no texto e deixarem uma passagem bíblica lançar luz sobre outra. Mas todas as lições, ou, melhor, tudo quanto preciso saber delas? Não! Preciso da ajuda da vida teológica sempre atuante da igreja, e da própria teologia, de outra forma, o meu entendimento falhará em pontos cruciais. O que não consegui captar aos dezoito anos de idade é que Deus quer que aprendamos o que ele ensina na Bíblia, não através de estudo independente isolado, mas através do mútuo contribuir e receber intelectual no convívio da igreja. Envolvidos aí temos sermões, livros, debates, discussões em mesa redonda. Envolve nutrir a mente como um elemento básico no processo de discipular. Em outras palavras, envolve a teologia.

ouvindo revisado.indd 71 12/04/12 15:16

Page 4: Hermenêutica - Shedd Publicações

72

Naqueles dias, imaginava a vida teológica da igreja em termos de clérigos correndo atrás de gatos pretos, num porão escuro (“por que não creem com singeleza na Bíblia e cessam de levantar essas pergun-tas?”), e pensava na teologia como um produto humano desengonçado e falho fruto de mundanismo intelectual e de soberba, um conjunto de complicações desnecessárias que somente serviriam para bloquear o caminho ao entendimento espiritual. Essas ideias eram tolas (poucas tolices existem que não adotei em uma ou outra ocasião), mas a minha observação de congregações, grupos para-eclesiásticos, institutos bíblicos e seminários me convence de que as mentes de muitos cristãos ainda estão dominadas por elas. Meu preconceito ousado contra a teologia como ajuda ao estudo da Bíblia, e minha crença antiga de que o melhor estudo da Bíblia é levado a efeito sem a teologia, parece (por exemplo) estar claramente subjacente nas rotinas ensinadas hoje em dia para o estudo “indutivo” da Bíblia, assim como na geração anterior subjazia no ministério daqueles que se chamavam professores da Bíblia, diferentes dos teólogos. Essas são más notícias.

Nas páginas que se seguem, procurarei dissipar esse preconceito que empobrece, demonstrando de um lado como é instável, impróprio para a igreja e até anticristão empreender o estudo da Bíblia sem lastro teológico, e como por outro lado, a teologia ilumina a altura e a profundi-dade e a largura doutrinária, ética, devocional e apologética da leitura da Bíblia. É um empreendimento além do nosso alcance? Pois bem, vamos ver como progrediremos. Começo com duas perguntas fundamentais.

O que é a teologia?A primeira pergunta com a qual lidarei é: O que é a teologia? A

Teologia (“pensamento e discurso a respeito de Deus”) é uma ciência, uma ramificação de conhecimento a respeito de questões da realidade. O assunto da teologia é Deus, o Criador, o Senhor vivo, conforme ele é no seu relacionamento com tudo quanto não é ele mesmo – inclusive nós mesmos, e até mesmo ressaltando nós mesmos, porque a Bíblia se centraliza em Deus governando, julgando e salvando a humanidade. Assim como qualquer ciência, a teologia, conforme ela existe hoje, é um empreendimento cooperativo contínuo com uma história de desenvolvi-mento e um conjunto de técnicas estabelecidas de investigação. O que dá coesão ao empreendimento e lhe dá identidade contínua é o conjunto de perguntas às quais visa responder. A física pergunta: Como funciona

ouvindo revisado.indd 72 12/04/12 15:16

Page 5: Hermenêutica - Shedd Publicações

73

o sistema natural do mundo? A biologia pergunta: Como funcionam as várias formas da vida? E a teologia pergunta: Como é que Deus opera?

Cada ciência tem seu método apropriado para responder à sua própria pergunta. A física e a biologia chegam perto para olhar, fazem observações, montam experiências e deduzem os resultados: “sub-metendo a Natureza ao questionário” segundo a expressão de Francis Bacon, a fim de descobrir o que acontece em condições e circunstâncias diferentes. A teologia, entretanto, escuta, julga e deixa a Bíblia falar, segundo as suas próprias categorias a respeito da totalidade da vida, e depois interage com tudo aquilo que tanto a igreja, quanto o mundo e cada estudante individualmente tem dito e está dizendo, e também tem feito e está fazendo. Cada ciência procura a verdade; mas enquanto a física e a biologia buscam a verdade empírica a respeito da criação, a fim de aproveitá-la tecnologicamente para o benefício dos seres humanos, a teologia busca a verdade revelada a respeito do Criador, a fim de conhecê-lo por meio de relacionamento numa vida de adoração e obediência, a fim de empregar a verdade para a glória divina e a fim de corrigir e dirigir nossos pensamentos e caminhos a seu serviço.

Chegando mais perto do âmago do assunto: a teologia é um organismo de pensamento, um complexo de disciplinas (ou seja: de procedimentos dos quais cada um tem suas próprias regras e recursos) que se alimentam mutuamente. Como todas as coisas na teologia têm vínculos com todas as demais, não se compreende nada na teologia, na primeira ocasião em que nos encontrarmos com ela; somente depois de termos explorado as suas ligações e percebido o que ela pressupõe e subentende é que começamos a dominá-la adequademente. Alguém já disse que os romances de Jane Austen, lavrados de modo tão belo e sutil, devem primeiramente ser lidos pela quarta vez; em outras palavras, é somente na quarta leitura que se pode apreciá-las devidamente – e o mesmo tipo de coisa precisa ser dito a respeito do nosso estudo de verdades teológicas.

A teologia, com sua rede de ligações internas, às vezes é descrita como um círculo ou (melhor) um espiral em ascensão, sendo esta a ideia: até você ter passado pela totalidade daquilo de que cada item é uma parte, seu entendimento do referido item é certamente deficiente. Quando, porém, você voltar ao item depois de fazer esse giro, você o entende pelo menos um pouco melhor do que o entendia antes. Fazer esse giro ou ir ao derredor do círculo envolve aproveitar todas as disciplinas que perfazem o organismo da teologia, a fim de ver qual aplicação o seu

ouvindo revisado.indd 73 12/04/12 15:16

Page 6: Hermenêutica - Shedd Publicações

74

conteúdo e hipóteses operacionais têm para a percepção específica que foi seu ponto de partida.

O organismo da teologia era habitualmente analisado como um quadrilátero. Em primeiro lugar vinha a teologia bíblica (a exegese dos textos e a síntese dos resultados). Depois se seguia a teologia sistemática, inclusive a ética. A história Eclesiástica, inclusive a teologia histórica, era a disciplina número três, e a teologia prática que abrange a vida espiritual, os cuidados pastorais, a pregação e a adoração formava a retaguarda. Essa análise clássica, entretanto, é demasiadamente densa para ser confortável. Ficará mais clara, se distinguirmos dentro da teologia as dez disciplinas que se seguem.

1. Exegese. A exegese é a atividade que lança os alicerces. A exegese procura responder à pergunta: Esse texto, passagem ou livro da Bíblia foi escrito para transmitir o quê? O que o escritor humano estava dizendo aos leitores que tinha em mente, a respeito de Deus e dos seres huma-nos debaixo da soberania de Deus e, portanto, a respeito de si mesmo e deles mesmos? Somente depois de a exegese ter demonstrado o que uma passagem significava como comunicação no nível humano, é que podemos ter a esperança de discernir as verdades universais a respeito de Deus e do homem nela embutidas, aplicar aquelas verdades à nossa própria situação e, assim, ver o que ela agora significa como uma palavra da parte de Deus até nós. A interpretação, o processo de mostrar o sig-nificado das Escrituras, como a Palavra de Deus aos leitores em nossos dias, começa com a exegese e é completada pela aplicação.

2. Teologia bíblica. A teologia bíblica é a disciplina que sintetiza e or-ganiza as descobertas da exegese de modo temático e também histórico. Procura responder a perguntas tais como: Qual é a mensagem total de cada escritor bíblico a respeito disto e daquilo e de Deus e da piedade? Qual é a mensagem total da Bíblia inteira a respeito dessas questões? Através de quais etapas essa mensagem foi revelada? Qual porcentagem da revelação total é pressuposta pelo autor individualmente ao dizer aquilo que diz? Todas as questões a respeito do inter-relacionamento entre o ensino de uma parte das Escrituras e o ensino de outra parte são examinadas pela teologia bíblica. É uma disciplina unificante e integrante.

Aqui devemos mencionar duas modas da atualidade que turvam as águas para a teologia bíblica. Uma delas é a insistência de que cada igreja e teólogo trabalha na base, não da Bíblia na sua totalidade, mas de um “cânon dentro do cânon”. Quanto a isso – penso eu – basta comentar

ouvindo revisado.indd 74 12/04/12 15:16

Page 7: Hermenêutica - Shedd Publicações

75

que ao fazerem isto, não demonstram virtude, mas sim fraqueza que poderia ser superada com atenção maior à teologia bíblica. A segunda é o hábito de forçar a teologia de determinado autor de um livro da Bíblia a contradizer a outro, e de representar verbalizações diferentes da mesma verdade como se fossem mutuamente exclusivas. Se pesarmos na balança a verdade que toda a Escritura, em última análise, é o produto de uma única mente, se nos lembrarmos de que é possível dar aos mesmos pensamentos roupagens verbais diferentes, sem elas cessarem, por isso, de serem os mesmos, e se examinarmos com franqueza as evidências em favor de teologias supostamente incompatíveis, provavelmente acaba-remos sendo céticos quanto a essa moda, a ponto de desejarmos que aqueles teólogos bíblicos profissionais que atualmente caçam harmonias internas com tamanha diligência, se cansem logo da sua brincadeira in-frutífera. A unidade teológica do Novo Testamento e, na realidade, da totalidade da Bíblia canônica, é um dos fatos mais notáveis no tocante a ela, e anseia-se pelo dia em que os estudiosos voltarão a celebrá-la.

3. A teologia histórica. A teologia histórica está no âmago da história do Cristianismo (a fórmula “história eclesiástica” é realmente por demais estreita para abranger a história do povo de Deus, que vive segundo a Pala-vra de Deus, no mundo de Deus). Examina como os cristãos, no passado, consideravam este ou aquele elemento na fé bíblica e como entendiam, afirmavam e defendiam globalmente aquela fé. Quais eram as suas per-guntas? As suas respostas? As suas certezas? Os seus problemas? Quais desafios enfrentavam, e quais influências, tanto conscientes quanto ir-reconhecidas, os afetavam nos seus pensamentos? Os crentes examinam essas questões não apenas por terem interesse amigável por aqueles que antes deles estavam em Cristo, mas porque a sabedoria os manda aprender com as realizações do passado. Os estudantes modernos de física ou de biologia não precisam reinventar essas ciências, pois recebem do passado, juntamente com as técnicas desenvolvidas no decurso das pesquisas, uma bagagem enorme de conclusões solidamente baseadas nestas, a partir das quais, no devido tempo, iniciarão os seus próprios trabalhos de experimentação. Os conhecimentos herdados lhes oferecem uma “partida eletrônica”. E assim acontece com a teologia. A herança acumulada durante dois mil anos de debates e descobertas dentro da igreja é chamada “tradição”. Não é infalível e, às vezes, precisa de cor-reção crítica à luz das Escrituras infalíveis nas quais se baseia. Mas nem por isso deixa de ter valor permanente como uma tentativa preliminar,

ouvindo revisado.indd 75 12/04/12 15:16

Page 8: Hermenêutica - Shedd Publicações