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90 LEíLALl'.rn: HER;-\,..\NDEL formas de resistência diante da perda de soberania, independência e liberdade desvendam o protagonisrno africano perante a partilha e a conquista. Mas os exemplos evidenciam também a impotência bélica dos africanos ante a supre- macia européia. Como bem resumiu o poeta inglês Hilaire Belloc: "Aconteça o , lh d -I ~" 1O . que acontecer, nos temos a rnetra a ora, e e es nao . 10. ApudBOAHEN,A. Adu (coord.), op. cit., p. 30. 4- ((CIVILIZADOS)) L "PRIMITIVOS" NA CONSTITUiÇÃO DO SISTLMA COLONIAL AFRICANO HERNANDEZ, Leila leite. A África na Sala de Aula. São Paulo: Selo Negro, 2005. pp.91-108 A dominação fundada no exercício da violência física. Arte afro-porruguesa encontrada no Benin, no século XVI. I .... l~ Notas sobre o "imperialismo co\oníaI J ) A partilha deu início à conquista, processo por meio do qual se acelerou a violência geográfica, com a exploração ge- neralizada dos diversos espaços geopolíticos do continente africano. A essa fase inicial de perda da soberania dos africa- nos seguiu-se o período da estruturação do sistema colonial. Embora seja hoje consenso que o colonialismo foi re- sultante da concorrência econômica e do expansionismo dos países europeus, vale a pena incorporar como dimensão própria desses processos algumas considerações apresentadas por Hannah Arendt. Em "Imperialismo" a autora identifica três aspectos fundamentais do "imperia- lismo colonial" europeu na sua fase de 1884 a 1914, apresentando-os como prefigurações dos fenômenos totalitários do século xx, quais sejam: o nazismo e o stalinismo. I A novidade da argumentação de Arendt reside em afirmar que o "impe- rialismo colonial" apresenta como traços fundamentais o expansionismo, a bu- rocracia colonial e o racismo. Segundo a autora, uma das mais importantes filósofas do século xx, a compreensão do expansionismo transcende a esfera econômica por ser um "objetivo permanente e supremo da política", portanto, a idéia central do imperialismo "contém uma esfera política traduzida por uma base ilimitada de poder cujo suporte é a força política presente na vocação para a dominação global".2 Daí que o modelo arendtiano, apresentando uma discor- dância explícita da famosa idéia de Lênin de que o imperialismo é o último está- 1. ARENDT, Hannah. "Imperialismo". 111: Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, to- talitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp. 146-338. 2. lbidem, pp. 146-87. I

HERNANDEZ A África na sala de aula

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90 LEíLALl'.rn: HER;-\,..\NDEL

formas de resistência diante da perda de soberania, independência e liberdadedesvendam o protagonisrno africano perante a partilha e a conquista. Mas osexemplos evidenciam também a impotência bélica dos africanos ante a supre-macia européia. Como bem resumiu o poeta inglês Hilaire Belloc: "Aconteça o

, lh d -I ~" 1 O .que acontecer, nos temos a rnetra a ora, e e es nao .

10. ApudBOAHEN,A. Adu (coord.), op. cit., p. 30.

4-((CIVILIZADOS)) L "PRIMITIVOS" NA

CONSTITUiÇÃO DO SISTLMACOLONIAL AFRICANO

HERNANDEZ, Leila leite. A África na Sala de Aula. São Paulo: Selo Negro, 2005. pp.91-108

A dominação fundada no

exercício da violência física.

Arte afro-porruguesa

encontrada no Benin, no

século XVI.

I....l~

Notas sobre o "imperialismo co\oníaIJ)

A partilha deu início à conquista, processo por meio doqual se acelerou a violência geográfica, com a exploração ge-neralizada dos diversos espaços geopolíticos do continenteafricano. A essa fase inicial de perda da soberania dos africa-nos seguiu-se o período da estruturação do sistema colonial.

Embora seja hoje consenso que o colonialismo foi re-sultante da concorrência econômica e do expansionismodos países europeus, vale a pena incorporar como dimensão

própria desses processos algumas considerações apresentadas por Hannah Arendt.Em "Imperialismo" a autora identifica três aspectos fundamentais do "imperia-lismo colonial" europeu na sua fase de 1884 a 1914, apresentando-os comoprefigurações dos fenômenos totalitários do século xx, quais sejam: o nazismo eo stalinismo. I

A novidade da argumentação de Arendt reside em afirmar que o "impe-rialismo colonial" apresenta como traços fundamentais o expansionismo, a bu-rocracia colonial e o racismo. Segundo a autora, uma das mais importantesfilósofas do século xx, a compreensão do expansionismo transcende a esferaeconômica por ser um "objetivo permanente e supremo da política", portanto,a idéia central do imperialismo "contém uma esfera política traduzida por umabase ilimitada de poder cujo suporte é a força política presente na vocação para adominação global".2 Daí que o modelo arendtiano, apresentando uma discor-dância explícita da famosa idéia de Lênin de que o imperialismo é o último está-

1. ARENDT, Hannah. "Imperialismo". 111: Origens do totalitarismo: anti-semitismo, imperialismo, to-talitarismo, São Paulo: Companhia das Letras, 1989. pp. 146-338.

2. lbidem, pp. 146-87.

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92 LErLA LEITE HERNANDEZ

gio do capitalismo, afirma que o "imperialismo colonial" é a expressão política doacúmulo de capital e, por isso; o primeiro estágio político da burguesia.

Esses argumentos de alcance mais geral completam-se com a importanteobservação de que pela distância e dispersão geográfica dos impérios faz-senecessário exportar o poder político obedecendo 3 um processo no qual os ins-trumentos da violência do Estado, a polícia e o exército, são separados das de-mais instituições e promovidos à posição de representantes nacionais nas colô-nias tendo por função controla-l os. Ora, sob essas condições, o imperialismocolonial instrurnenralizou o poder político da burguesia, "inventando" a buro-cracia colonial como seu cmpo político, ao mesmo tempo que atribuía a ela oexercício da violência c da força como essências da ação política.

A conclusão é óbvia, o emprego da força física sem coibição gera mais força, ea violência administrativa em benefício da força e não da lei (que regula as relaçõescotidianas entre pessoas e grupos) torna-se um princípio destrutivo que só é detidoquando mais nada resta a violar, isto é, quando o terror se torna indiscriminado.

Essas reflexões pedem um ancoradouro teórico que Arendt encontra na fi-losofia de Thomas Hobbes (1588-1679), em especial na noção de obediênciapor coerção que tem a propriedade de marcar a existência de um poder políticofortemente centralizado, "dotado de espada", ou seja, armado para forçar os ho-mens ao respeito e obrigá-Ios à obediência absoluta.'

À diferença dos totalitarismos, no "imperialismo colonial" havia, segundoArendr, um pequeno controle exercido por parte dos representantes do "fatorimperial" composto pelo Parlamento e pela livre imprensa. Ele era "expressopoliticamente no conceito de que os nativos não eram apenas protegidos mas,de certa forma, representados [... ]".3

É rigorosamente verdadeiro que a história dos imperialismos (por exemplo,britânico, francês, belga, alemão e português) tem inúmeras referências de con-flitos nas quais os representantes do "fator imperial" criticam enfaticamente odespropósito da dominação dos administradores coloniais e suas desastrosasconseqüências para as populações africanas. Mas poucas vezes as contendas tive-ram como resultado diminuir o espaço político dos administradores coloniais,ou mesmo, comprovadas as atrocidades cometidas contra os nativos, remover °administrador colonial, como ocorreu em 1897 com Carl Peters, no SudesteAfricano Alemão.

Portanto, historicamente, não se sustenta uma relação causal entre a exis-tência do "fator imperial" e um suposto controle rígido e pontual das adrninis-

3. ARENDT, Hannah. "Imperialismo". In: D"igem do totalitarismo, op. cit., pp. 162-3.

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A AFRrCA NA SALA DE AULA 93

trações coloniais. O que procuramos enfatizar aqui, tomando como instrumen-tal teórico as análises de Hannah Arendt, é o fato de que as práticas políticascriaram e mantiveram relações sociais fundadas na assirnetria, na hierarquia ena extrema desigualdade entre europeus e nativos.

Conforme a autora, um elemento fundamental de enraizamento e sustenta-ção desse domínio foi o racismo. Essa é uma de suas contribuições mais esclare-cedoras, na medida ern que permite explicar que os homens europeus concor-dam quanto aos meios e aos fins da dominação' colonialisra, plenamentejustificados pelo racismo, o qual, provocando a perda do senso de realidade doeuropeu em contato corn outros povos, fornece um conjunto de elementos paraque as sociedades coloniais se ordenem internamente como um organismo regi-do por uma arbitrariedade justificada pela "superioridade da raça branca".

Nessa elaboração, o racismo advém da quebra do valor atribuído ao ser hu-mano, no caso, o negro, que subtraído de suas qualidades substanciais perde apossibilidade de ser tratado como "semelhante" em um "mundo compartilhado".

[...] Sua base e sua justificativa ainda eram a própria experiência, uma terrível experiência

de algo tão estranho que ficava além da compreensão e da imaginação: para os brancos

foi mais fácil negar que os pretos fossem seres humanos. No entanto, a despeito de todas

as explicações ideológicas, o homem negro teimosamente insistia em conservar suas ca-

racterísticas humanas,. só restando ao homem branco reexaminar a sua própria humani-

dade e concluir que, nesse caso, ele era mais do que humano, isto é, escolhido por Deus

para ser o deus do homem negro. Era uma conclusão lógica e inevitável no caminho da

radical negação de qualquer laço comum com os selvagens. [...J4

As três prefigurações do totalitarismo presentes no "imperialismo colonial"do final do século XIX (expansionismo, burocracia colonial e racismo), comoelementos constituintes de uma totalidade, carregam consigo a experiência defundir a prática política às representações. Em outras palavras, o "imperialismocolonial" está comprometido com a construção de um aglurinante ideológicocapaz de fundir a prática das condições de exploração e de dominação com asforrnas de justificá-Ias.

As experiências históricas efetivas demonstraram que o "imperialismo colo-nial" dispunha de mecanismos ideológicos que levavam as massas a se identifi-car com o Estado e a nação imperiais, conferindo justificação e reconhecendolegitimidade ao sistema político e social de seu país. Valia-se de mostras etno-

4. ARE"OT, Hannah. "Imperialismo". 111: Origens do totalitarismo, op. cit., p. 225.

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94 lE1LA LEIT E HERNANDE.J:

gráficas, exposições universais e fe iras mundiais, imensos rituais de massa emgue o Ocidente se auto-representava glorificando uma missão civilizatóriaauto-atribuída. Nessas ocasiões eram exibidas nações e mundos vegetal, animale humano segundo um sistema classificarório que obedecia à escala evolutivaglorificada pela antropologia vitoriana,

Sobretudo as exposições universais, eram as manifestações culturais maisevidentes de afirmação dos grandes impérios, em que representavam a si pró-prios (o mundo "civilizado") e os povos "exóticos" ("selvagens" e "bárbaros")com os quais tinham contato. Tornando evidentes homens e culturas, as dife-renças eram apresentadas COJ1}O critérios para glorificar a missão civilizatória doseuropeus na África.

Pavilhão reproduzindouma cidadela senegalesana Exposição Universalde 1889, em Paris.Cartão-postal da lojade departamentos

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A ÁFRICA N,\ S,\L,\ DE AULA 95

Apesar das diferenças culturais e históricas entre os Estados europeus porum lado e entre os próprios espaços geopolíticos africanos por outro, esse con-junto de elementos pertence ao "imperialismo colonial" refletindo-se nos váriosmomentos de constituição e de desenvolvimento do sistema colonial. Faz-senecessário destacar que, assim como a conquista, a dominação apresenta-sediferenciada historicamente.

Acerca dos sístemas coloníaísConvém expor com clareza que trataremos do tema da África sob domina-

ção colonial de uma perspectiva genérica ou universal que encerra um conjuntode questões de base que ressurge na forma de especificidade histórico-cultural, deacordo com o entrelaçamento das características particulares dos colonialisrnoseuropeus e da diversidade das sociedades africanas. Nessa elaboração, dois esco-pos explicarivos são articulados: por um lado, consideramos as relações, os pro-cessos e as estruturas de apropriação econômica, destacando a propriedade daterra e as relações de trabalho; por outro, levamos em conta os padrões de exer-cício do poder político e a teia de crenças e valores que justificam uns e outros.

Vale enfatizar que o processo de colonização segue a fase final de perda desoberania e se concentra entre 1870 e 1914. Tudo indica que o sistema colonialsegue dois princípios fundamentais da doutrina colonial sistematizados e codifi-cados pelo ministro das Colônias da França, Albert Sarraut, em 1923, que se al-teraram nas décadas subseqüentes, em especial em fins dos anos 1940. O pri-meiro é que as colônias eram consideradas um recurso decisivo para as criseseconômicas dos países metropolitanos. O segundo princípio é que as colôniasdeveriam ser financeiramente autônomas.

Para viabilizã-los colocando em funcionamento o sistema colonial eramutilizados quatro mecanismos básicos: 1) as subvenções e os meios de financia-mento; 2) o confisco de terras; 3) as formas compulsórias de trabalho; 4) a co-brança de impostos. Caracterizemos cada um deles. O primeiro diz respeito aum conjunto de subvenções e meios de financiamento traduzido por garantiasde empréstimos para o setor privado metropolitano mediante incentivos paraque este tomasse em suas mãos o essencial da atividade econômica centrada nocomércio de produtos africanos e europeus. Por sua vez, parte substancial docomércio ficava em mãos de companhias devidamente subsidiadas pelos em-préstimos de uma rede bancária quase monopolista.

Esse mecanismo também incluía os meios de financiamento para osgrandes proprietários como subvenções para instalações, crédito agrícola para

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96 LEILA L.EI TE HIHNA.N D EZ

compla de equipamentos e subsídios para desmatarnento, mecanização e plan-tio. Havia ainda grandes facilidades de pagamento e isenção de taxas aduaneiraspara a importação de implemenros agrícolas.

Deliberadamenre essas medidas incentivavam a exploração das diferentesregiões africanas enquanto o Estado metropolitano reservava para si os direitosalfandegários, sua maior fonte de receita. Os investimentos e, como conseqüên-cia, o crescimento econômico das colônias concentravam-se no litoral, ao longodos eixos de escoamento de produtos no interior, em torno de alguns pequenoscentros.

Essa mudança na economia africana trouxe problemas aos comerciantes lo-cais que foram inteiramente dominados no mercado pelas companhias, tornan-do-se seus intermediários, ou ficando restritos a agir nas zonas tradicionais cha-

J

madas "excêntricas", da rede comercial, isto é, as que continuavam a efetuar atroca de noz-de-cola por gado e peixe seco, por exemplo. Mais ainda, o sal passaa não vir mais do deserto e sim dos portos do litoral, e o destino do ouro não émais o deserto e sim o mar. Significa dizer que o intercâmbio comercial in-ter-regional africano sofreu profundas alterações no curso de sua atividade eco-nômica diária, o que contribuiu de forma decisiva para que a agricultura desubsistência fosse, cada vez mais, deixada em última posição.

Quanto ao segundo mecanismo básico para o funcionamento do sistemacolonial, este se refere ao confisco de terras, sobretudo das mais férteis, tornan-do-se legal, por decreto, em torno de 1930. Essa situação catastrófica para osafricanos ocorria de duas formas. A primeira, por meio de guerras continuadas,por exemplo, ao sul do continente, entre os bôeres e os xhosas de 1811 a 1864.Nesse processo, em grande número dos casos, além de as terras serem confisca-das, eram capturadas milhares de cabeças de gado.

A segunda forma de confisco, "legalista", era desvinculada das tradições edos valores africanos de várias regiões. Nesta, as autoridades coloniais exigiamdos africanos registros de propriedade ignorando não só o significado da terra pa-ra a maior parte das comunidades culturais, como o papel dos chefes de terra.O problema é que, em relação à quantidade numérica, os chefes de terra eramas chefias tradicionais mais comuns exercidas nos "territórios linhageiros", es-paços geográficos constituídos por aglomerados populacionais formados pormuitos grupos de familiares com afinidades culturais comuns (tradições, costu-mes, hábitos, língua e, por vezes, religião). Simbolicamente, o território linha-geiro significava o espaço de ligação entre os seres vivos, os mortos e os aindapor nascer. Envolvendo a metáfora de tudo o que já foi realizado e o que virá aser, encerra um sentido de continuidade que sustenta e reforça o coletivo. Por

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.A ÁfRiCA :,<A SAL/\ DE AULA 97

sua vez, deve-se considera! também que o africano estava potencialmente habi-litado a ocupar a terra segundo normas ancestrais que organizavam e sacraliza-vam essa relação, destacando-se o princípio de impropriedade do solo.

De todo modo, essa explicação não deve ser tomada em sentido absoluto,levando à visão equivocada de que os mundos tradicionais africanos eram fe-chados e estáticos até a conquista e a partilha pelos europeus. Vale registrar aquia análise da historiadora francesa Catherine Coquery-Vidrovitch:

Na verdade, essas sociedades supostamente estáveis raras vezes desfrutaram do encan-

tador equilíbrio que se presume ter sido rompido pelo impacto do colonialismo. A

Ãfrica Ocidental, por exemplo, fervilhou de atividade desde as ondas de conquista

dos fulas no século XVIII, e muito antes da criação das unidades de resistência à in-

fluência européia [... ). A bacia congolesa foi palco de convulsões sociais ainda mais

profundas, ligadas à penetração comercial. Nesses casos, a revolução na produção

abalou os próprios alicerces da estrutura política. Quanto ao sul da África, a revolta

dos zulus e sua expansão tiveram repercussões que chegaram à África Central. Até

onde teremos de recuar _para encontrar a estabilidade tida como "característica" do

período pré-colonial: até antes da conquista portuguesa, antes da invasão islârnica,

antes da expansão dos bantos? Cada um desses grandes momentos de decisão marcou

uma reviravolta em tendências de longo prazo, dentro das quais, por sua vez, seria

possfvel identificar toda uma série de ciclos mais curtos como os períodos de recessão

(1724-1740, 1767-1782, 1795-1811 etc.) e a ascensão da economia de comércio es-

cravagisra de Oaomé. Em suma, o conceito estático de sociedade "tradicional" não

consegue resistir à análise do historiador.P

Por fim, outra forma substancial de confisco de terras foi a alienação de ter-ras estatais e de terras coletivas africanas por parte das metrópoles européias queefetivavam a distribuição de concessões a empresas, gratuitamente ou a preçosbaixos, favorecendo a criação de grandes propriedades. Em contrapartida, oscolonos tinham como obrigações residir nessas terras e desenvolvê-Ias.

Cabe lembrar que a distribuição de concessões era complementada pelomonopólio ou pela política de preços protecionista que impunha aos produto-res a obrigatoriedade de negociar com o concessionário o produto de suas reser-vas como ocorria, por exemplo, na compra de borracha, na África EquatorialFrancesa e do algodão em Ubangui-Chari (hoje, República Centro-Africana).

5. COQUERY-VIDROVITCH, Carherine. "The pclitical economy of rhe African peasanrry and mo-des of producrion", P: 91. In: APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai: a Afi'ica na filosofia da cul-tura. Rio de Janeiro: Conrraponro, 1997, p. 179.

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9S LEILA LEITE HEm"AN D EZ

Já o terceiro mecanismo de funcionamen.to do sistema colonial diz respeitoàs formas compulsórias de trabalho. O discurso colonialista costumava afirmarque o trabalho era sempre considerado obrigatório, uma vez que, "obrigação legale moral" do africano, por meio dele não só deveria satisfazer o seu sustento como,gradativameme, "melhorar a sua condição social". Ao africano era reservada a es-colha da forma de cumpri-Ia desde que obedecido o prazo fixado que, nas colô-nias portuguesas, chegava a seis meses ao ano nas culturas especulativas.Í

Mas não há dúvidas de que, se os agentes da administração colonial consi-derassem que o trabalho obrigatório não estava sendo cumprido, o africano eraintimado e compelido a fàzê-Io. Não é pois acidental que a partir daí o trabalhopassasse a ser forçado, sendo, não raro, utilizado como sinônimo ele correcional,uma forma de punição dos "indígenas" considerados vadios.

Em princípio o trabalho forçado só podia ser empregado em serviços de in-teresse público, quando avaliado como indispensável. No entanto, ainda que noplano do discurso fosse limitado ao caráter correcional, historicamente, era uti-lizado sempre que o Estado ou o distrito considerasse sua necessidade para "ser-viços ele interesse público de urgência inadiável". Mas também era freqüentealegarem que seus orçamentos não permitiam arcar com a alimentação e o alo-jamento dos trabalhadores que eram encaminhados para serviços particulares.

Assim, como confirmaram os fatos, era muito difícil distinguir o trabalhoobrigatório do forçado, pois arribas as formas resultavam da manipulação daselites dominantes, em prol de seus interesses, reforçando uma estrutura socialirremediavelmente injusta.

Quanto às metrópoles européias, negavamque o trabalho fosse forçado, ao mesmo tempoque justificavam as formas compulsórias de tra-balho alegando serem imprescindíveis dada a es-cassez da mão-de-obra (exceção referente à Áfricado Sul, ao Quênia, ao Congo e ao oeste africa-no) ou naturalizando a existência das diferentesformas de escravidão doméstica no continente,em cerras sociedades como na Tanganica, ondesó foi legalmente suprimida em 1922.

Parece interessante reiterar que na maioria das vezes o trabalho forçado erajustificado pela "lei divina do trabalho". Segundo o jesuíta A. Castelain:

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6. Essas idéias fazem parte da legislação ultramarina, por exemplo, dos impérios português efrancês.

A ÁFRlCA NA SALA DE. AULA 99

o povo bárbaro que se furte a estas leis nunca se civilizará. Podemos, poreamo, obriga-lo

c, como ele só pode fornecer trabalho em compensação dos serviços que se lhes prestam

para melhorar a ·sua sorte, ternos motivo redobrado para impor e exigir esse trabalho?

Esse quadro geral era, no entanto, muitas vezes negado no plano do discur-so em que os europeus declaravam-se contrários, em particular ao trabalho for-çado, segundo eles porque incompatível com a liberdade, a moral e os senti-mentos humanitários próprios de uma colonização civilizatória. A Crã-Breta-nha foi, virtualmente, a única metrópole na qual já em 1908 o trabalho forçadofoi abolido, embora sejam muitas as suspeitas de que por trás de seu humanira-rismo teria havido uma clara preocupação com a monetarização da economia.Mas, embora possa soar como paradoxal, foram justamente em dois elomíniosbritânicos, a União Sul-Africana e o Sudeste Africano Alemão (após a Pri-meira Guerra Mundial, sob domínio inglês), que foram irnplernentadas formasde regulamentação do trabalho das mais opressivas, incluindo mecanismospara "disciplinar" o trânsito dos africanos mediante salvos-condutos e cédulasde identidade, além ele fazer vigorar leis sobre "vadiagem" que davam condi-ções para que a administração colonial sujeitasse os africanos a penas de traba-lho forçado.

Ainda que tenham existido semelhanças entre as práticas coloniais no que serefere à questão do trabalho, pragmaticamente apresentam especificidades. Foibastante diversa a posição de Portugal que tentou estabelecer uma sutil diferençaentre o trabalho em culturas obrigatórias de produtos específicos para exportação,por conta própria ou alheia, durante seis meses por ano a todo africano adulto, eo trabalho forçado, reservado ao direito penal. Outra forma de manutenção dotrabalho forçado foi a migração forçada, cujo principal solicitante era o adminis-trador colonial, eixo principal de um sistema de abastecimento de mão-de-obrapara os plantadores e empresários florestais. Um exemplo clássico são as migra-ções forçadas de Angola e Cabo Verde para São Tomé e Príncipe.

Quanto aos "recrutas voluntários", estes migravam por razões diversas co-mo meio de ganho para pagar impostos; para obter um pequeno excedente paraa compra de alguns bens de consumo corrente; para escapar das secas, epide-mias, fome e mortes; para buscar alternativas ao esgotamento dos solos; ou porcrescentes exigências da administração colonial.

Mas, além de sublinhar esses aspectos, é preciso apontar que, no conjunto,os colonialismos legalizaram as formas compulsórias de trabalho em "Códigos

7. Aplld KI-ZERBO, Joseph. História da Aftica /legra: li. 11,op. cit., p. 142.

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100 LEILA LEITE HERNANDEZ

de Trabalho Indígena" que encerravam um regime de regulamentação do traba-lho, sobretudo do trabalho forçado, que acabou por se constituir em instru-mentos para o controle, dos alistamentos por pane dos recru tadores nomeados.Por exemplo, na África Equatorial Francesa, a partir de 1921, o alistamentonão podia exceder cerca de 33% da população masculina apta que tivesse atin-gido a idade adulta. Já no Congo Belga o limite de recrutamento a partir da dé-cada de 1920 foi legalmente reduzido de 25% para 10%, embora essa determi-nação tenha sido desrespeitada com freqüência sob a justificativa de que ostrabalhos nos cultivos obrigatórios eram educativos.

Não surpreende que esses códigos de natureza juridico-política não tenhamprecipitado mudanças por parte dos administradores governamentais. Elaboradosquando se tornaram indispensáveis em virtude do crescimento da mão-de-obraassalariada, de forma geral, suas prerrogativas deixaram margem a inúmeras ma-nobras para o seu descumprimenro. Sem dúvida os Códigos de Trabalho Indí-gena foram elementos de economias injustas, partes integrantes de uma ordemsocial extremamente desigual. Semelhantes em todos os territórios, os códigosfixavam:

• a duração legal do contrato que era, por exemplo, de no máximo três anosno Congo Belga e de dois anos nas províncias francesas e portuguesas, nãosendo obrigatório que o registro fosse feito na carteira do trabalhador;

• o salário, magro salário, pago em sua maior parte em mercadorias e o res-tante em moeda. Por vezes, boa parte do salário pago em moeda era ar-recadada pelo administrador colonial ou mesmo pelo patrão que o reti-nha em nome de uma economia forçada em proveito do trabalhador,mas que, verdadeiramente, servia como fundo de maneio ou até comomeio de pressão por parte das autoridades;

• a alimentação que quase nunca correspondia à prevista na origem do con-trato ocasionando, muitas vezes, fomes e mortes. Daí a preocupação, entreoutros, de Albert Sarraut, que nos anos 1920 recomendava que fosse con-siderada com especial atenção a necessidade de conservar e aumentar aoferta de mão-de-obra. Afinal, advertia: "temos de fazer negros";as multas pesadas, que eram aplicadas à menor infração.

Além disso, em nome de uma proclamada liberdade do trabalho aumentouo emprego de trabalho diarista, por "tarefa" ou por "peça", persistindo pormuito tempo sem nenhum tipo de controle, o que era um modo de escapar dequalquer regulamentação.

A ÁFRICA NA SALA DE AULA 101

Por fim, mas não menos importante, foi a cobrança de impostos, quartomecanismo de funcionamento do sistema colonial. Articulada às formas com-pulsórias de trabalho, a cobrança de impostos incidiu mais diretamente quandoo montante relativo aos direitos alfandegários deixou de ser considerado satisfá-tório. Eram eles: a) imposto pessoal, incidente sobre todos os colonos europeusdo sexo masculino; b) imposto indígena de capitação, cobrado de todos os africa-nos do sexo masculino; c) imposto de "palhota", isto é, uma taxa cobrada sobreas habitações conforme o número de cômodos ("peças").

É importante assinalar que os impostos de capitação pagos em dinheiroeram fixados de forma arbitrária exagerando-se os números de recenseamento.Aplicando os critérios próprios da administração colonial, caso os impostos nãofossem pagos, eram revertidos em trabalho nos campos de cultivos obrigatóriosou governamentais ou mesmo em trabalho forçado em obras de infra-estruturacomo estradas, portos e linhas férreas.

Há aqui algo mais para além da reversibilidade dos impostos em formascompulsórias de trabalho. Cumpre observar que a cobrança de impostos eraum mecanismo que influiu de forma decisiva na criação de mercados; no cres-cimento da economia de troca, uma vez que compelia os africanos a buscartrabalhos assalariados; na prorrogação de certas atividades predatórias; no pro-longamento da mono cultura, mesmo que por vezes, como foi o caso do algo-dão, em um momento em que a superprodução ocasionava uma contínua de-preciação do produto; e no continuado abandono das atividades agropastorisde subsistência.8

As estruturas de podero que permanece freqüentemente pouco considerado em boa parte dos es-

tudos sobre o continente africano sob a dominação européia é a identificaçãodas estruturas administrativo-jurídicas voltadas para atender aos objetivos e àsimposições pr6prios dos sistemas coloniais, em particular manter a ordem, evi-tar despesas e constituir uma reserva de mão-de-obra para transporte de cargas,construção de estradas e ferrovias e para fins comerciais.

Gostaríamos de sugerir que a estrutura de poder variava segundo a extensãoe dispersão do domínio, a heterogeneidade, a riqueza do pomo de vista econô-mico, além das razões propriamente históricas dos países colonizadores, em par-

8. A respeito desse tema, vale consultar os Capítulos XlII e XIV de BOAHEN, Adu A. (coord.), op.cit., pp. 323-60.

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102 LErLA LEnE HERNANDEZ

ticular de suas estruturas e seus sistemas políticos. O que talvez possa ajudar acom preender o vínculo entre a nação colonizadora e o território colonizado afri-cano seja a identificação de dois modelos distintos de estrutura de poder. O pri-meiro, fortemente centralizado, verticalizado e hierarq uizado, em nome da uni-dade do império, desenvolvido em particular por Portugal, pela França e tambémpela Bélgica que procuravam compensar certa inferioridade dernográfica e militarperante algumas potências européias como Grã-Bretanha e Alemanha.

O segundo modelo tem como exemplo a estrutura administrativo-jurídicaimperial da Grã-Bretanha voltada para o controle de territórios de maior densi-dade populacional, maiores -instalações produtivas e preponderância do comér-cio. Era, no seu conjunto, uma estrutura de domínio menos autoritária ehierarquizada deixando inclusive pequenos espaços de representação política

Ipossíveis de ser ocupados pelos africanos.

Uma das diferenças básicas entre os dois modelos residia no fato de que domais centralizador faziam parte o ministro das Colônias, o governador ou resi-dente-geral, o Conselho do Governador-Geral (órgão consultivo), o governador,o Conselho do Governador, os administradores distritais e as chefias locais. Prag-maticamente, ao ministro das Colônias cabia decidir as linhas gerais do comandoa começar pela deliberação do que era justo ou injusto, permitido ou proibido,com as demais instâncias de poder apenas reiterando suas decisões.

Já no segundo modelo, abaixo do secretário de Estado para as Colônias edo governador e acima do administrador de Distrito e das chefias locais, existiamdois Conselhos, um Executivo e o outro Legislarivo, ambos marcados pela hete-rogeneidade de sua composição. O Conselho Executivo, a partir de 1940,passou a ser constituído também por africanos designados que iniciaram umpequeno controle sobre os assuntos relativos à governança, em particular sobreos impostos. Por sua vez, o Conselho Legislativo, só desde 1948, passou a serintegrado por membros nomeados. Embora dependesse da aprovação do gover-nador e do secretário de Estado para as Colônias, tinha funções legislativas.

É importante chamar a atenção para o fato de que os Conselhos significa-ram verdadeiros nichos de poder. Se por um lado não ameaçavam o monopóliodo poder de coação do Estado, por outro, significaram um espaço, ainda querestringido e controlado, de ação política dos africanos, influindo mais tarde nacena política relativa ao processo de conquista das independências.Í

9. Cabe ressaltar que esse processo diferiu radicalmente do ocorrido na África do Sul, onde a lei de1936, que regulamentava a representação africana, foi suprimida dos regisrros eleitorais da Colô-nia do Cabo, tomando a participação política dos povos "autóctones" restrita à eleição de umnúmero limitado de brancos como representantes dos "interesses indígenas".

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A ÁFRiCA NA SALA, DE AULA 103

Colocada a diferença, cremos ser necessário registrar a existência em ambosos tipos de estrutura de poder do "administrador de distrito" e do chefe local.O distrito era considerado a instância administrativo-jurídica mais próxima dapopulação, mesmo quando a circunscrição era subdividida em unidades menores.O administrador de distrito, também conhecido como "chefe de residência" ou"comandante de círculo", era um verdadeiro "deus do mato". Exercia a autorida-de tomando e executando decisões com elevado grau de concentração de poder,assumindo as funções de um administrador caracterizado pela polivalência sendoao mesmo tempo recrutado r, engenheiro civil, fiscal de saúde, fiscal de ensino,juiz, chefe militar, chefe de polícia e o responsável pelo controle financeiro.

Por fim, mas não menos importante, existia o chefe local, tradicional oudesignado que se constituía no elemento nuclear da estrutura administrativa,exercendo funções de instrumento auxiliar do administrador distrital para ope-rações de recenseamento, recrutamento de mão-de-obra e recolhimento de im-postos. Significa dizer que, quando o chefe tradicional era transformado emchefe designado, as novas funções para as quais era cooptado pela burocraciacolonial, sobretudo nos governos diretos próprios das políticas coloniais assimi-lacionistas, acarretavam uma diminuição ou mesmo violação de suas atribuiçõese seus poderes tradicionais fundados, no plano religioso, em um caráter sagradoe, no plano da realeza africana, no seu caráter cultural.

Pelo exposto, é bastante compreensível a avaliação das chefias locais feitapelo administrador colonial francês Robert Delavignette, segundo o qual

[... ] não há colonização sem política indígena; não há política indígena sem comando

territorial; e não há comando territorial sem chefes indígenas que atuem como cor-

reias de transmissão entre a autoridade colonial e a população.l''

A instituição das chefias locais como parte da burocracia colonial visavainstaurar um espaço marcado pela efetividade da dominação, capaz de manteruma ordem relativamente estável e equilibrada. Mas é importante anunciardesde logo que as chefias, sobretudo as tradicionais, eram por si mesmas consi-deradas incômodas e arriscadas aos olhos da administração colonial. Daí o fatode as depurações terem sido contínuas, de forma que as chefias mais recalcitran-tes eram eliminadas e substituídas por chefias designadas que deveriam conviverno espaço e no tempo dos "civilizados". Nesse sentido, o papel atribuído à che-

10. Apud BOAIIEN, A. Adu (coord.), op. cit., p. 328.

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fia local reforçava e, em grande parte das vezes, ampliava a indiscriminada rejei-ção sociocultural por parte dos africanos.

Esse aspecto, como é fácil perceber, cria condições paIa que, em particular,no modelo de dominação mais centralizado a utilização de chefias locais tenhaincomodado a ponto de imperar a idéia de que deveriam ser suprimidas, comoocorreu no império colonial francês, em 1910.

As políticas de assimilação e de díterencíaçãoÉ importante registrar q·ue a despeito das contradições e variações de senti-

do, as políticas coloniais foram definidas, grosso modo, como de assimilação (porexemplo, 110S impérios português, francês e belga) ou de diferenciação (comonos impérios inglês e alemão). A política cultural de assimilação, defendendo osprincípios tradicionais das histórias das nações colonizadoras, tinha como obje-tivo converter gradualmente o africano em europeu, o que significava que a or-ganização, o direito consuetudinário e as culturas locais deveriam ser transfor-madas.ii

Utilizavam-se para isso do ensino na língua da metrópole, aliás, a única ofi-cial; da religião e da moral que seriam cristãs; dos costumes, das tradições e dosmodos de vida ligados à pátria européia e não ao passado africano; e da divisãoda sociedade em "civilizados, assimilados e indígenas".

Quanto aos "civilizados", gozavam de igualdade de direitos políticos comos da metrópole européia. Por sua vez, os "assimilados", na maioria das vezes,contavam com representações no Conselho-Geral, também chamado Conselhodo Governador; tinham um representante parlamentar na Assembléia Nacio-nal; e, em geral, conservavam usos e costumes próprios do "estatuto pessoal",por exemplo, o direito à poligamia.

Em contrapartida, os "indígenas", a grande maioria da população, eram re-gidos pelo Estatuto do Indigenaro que, em geral, sobreviveu até após a SegundaGuerra Mundial, tendo por eixo o regulamento geral do trabalho que institucio-nalizava formas compulsórias como os trabalhos forçado e obrigatório, além deincluir a fiscalização das condições de vida do africano e a aplicação de castigoscorporais.

Teoricamente, todos os "indígenas" poderiam ascender à categoria de "assi-milados", o que era regulamenrado por decreto que enumerava os requisitos

11. Acerca desse tema, consultar "A idade de ouro dos estrangeiros". ln: KI-ZERBO, Joseph. Históriagemi da Afi'ica negra: v. li, ai'. cit., pp. 103-56.

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necessários. Tomando corno exemplo o império português, era preciso que fos-sem atendidas as seguintes condições:

1Q - saber ler e escrever a língua portuguesa; 2º - possuir os meios necessários à sua

subsistência e à das suas famílias; 3º - ter bom comportamento atestado pela autori-

dade administrativa da área em que reside; 4Q - diferenciar-se pelos seus usos e costu-

mes do usual da sua raça.12

Significa dizer que o próprio processo de assimilação, privilegiando o cará-ter autoritário e coercitivo do sistema colonial, utilizava mecanismos para in-corporar um número muito pequeno de africanos que, ascendendo à categoriade assimilados, poderiam se tornar mais coniventes com o colonizador e suaid I . E I . '1 - c - i3I eo agia. m poucas pa avras, a assuru açao rerorçava a segregaçao.

Já com referência à política colonial de diferenciação adotada em particularpela Grã-Bretanha, embora fiel ao projeto civilizatório ocidental da África comoperiferia, tinha como ponto básico para sustentá-Ia um conjunto de mecanis-mos e instrumentos voltados para viabilizar o "governo indireto" idealizado eimplernentado desde 1'850 e codificado em fins do século XIX e início do séculoXX por Frederick Lugard, administrador colonial responsável pela Nigéria doNorte (território dos hauçás e dos peuls). Essa política baseava-se em generali-zar os bens da civilização britânica ao mesmo tempo "mantendo e protegendoas sociedades indígenas".

A ambivalência que definia a própria natureza da política de diferenciação(ou associação) era resolvida na prática, em primeiro lugar, incorporando-se re-presentantes das sociedades africanas (as chefias tradicionais ou designadas) naadministração indireta das colônias. Em segundo lugar, introduzindo a educa-ção inglesa com o objetivo de tornar os africanos aptos a "entrar na economiamoderna", para a qual seriam necessariamente cooptados pela força da mudan-ça inerente à sua própria dinâmica, com o objetivo de "melhorarem" as suaspróprias sociedades. Dito de outro modo, nessa política articulavam-se e movi-mentavam-se como feixes contraditórios: estimular igual oportunidade par:!todos e respeitar a "pureza e o orgulho raciais".

12. MARQUES, A. H. Oliveira (coord.). História de Portugal desde os tempos mais antigos até a presi-dência do senhor General Eanes, vol. 111.Lisboa: Palas, 1986, P: 525.

13. MEMMI, Albcrr. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Paz e

terra, 1967, p. 30.

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Por sua vez, essa perspectiva era sustentada pela convicção de que a mudan-ça econômica, social e política deveria ser atrelada às próprias instituições afri-canas, pois seria mais eficiente construir partindo das próprias noções rradi cio-nais de justiça e ordem do que arriscar impor padrões europeus compreensíveisapenas por uma minoria. Siruetizando essas idéias, afirmava o cientista inglês JulianHuxley que como os brancos consideravam-se superiores aos negros pensavamsaber o que era melhor para eles, o que, no C;1S0 do império inglês, significavalevá-los a se desenvolver apreendendo ao máximo as formas de pensar e os méto-dos de gestão europeus, mantendo os modos de vida próprios dos africanos.

Numa aplicação concreta, a política colonial de diferenciação atrelada àquestão cultural traduzia-se nas escolas, em que, com a importante ação dosmissionários, as crianças africanas eram obrigadas a seguir o mesmo currículodas crianças européias, porém sendo também alfabetizadas nas suas línguas ma-ternas. Assim, conforme o historiador Ki-Zerbo:

Em particular, os rudimentos de leitura e escrita eram adquiridos para a língua ma-

terna. Este sistema, se por vezes limitava as perspectivas dos alunos, tinha a incompa-

rável vantagem de não os desenraizar do seu meio. Em geral, de resto o sistema in-

glês, que resultava de um postulado menos "generoso" e "humanista" do que o

sistema francês, só aparentemente assim era. Apresentava a vantagem de não dividir asociedade africana, pois não se encontravam cidadãos e indígenas. 14

Além disso, devem-se recordar os principais traços dos sistemas coloniais ale-mão e belga no continente africano. Eles apresentam uma combinação dos meca-nismos próprios do colonialismo como as subvenções e concessões a grandescompanhias, o confisco de terras, as formas compulsórias de trabalho e a cobran-ça de impostos. Mas essas semelhanças completam-se com características particu-lares levando-se em conta duas dimensões, a primeira relativa às particularidadesde cada um dos impérios e a segunda que considera a efetiva política adotada portoda metrópole européia em relação a cada um de seus territórios africanos.

Os territórios sob dominação alemã até fins da Primeira Guerra Mundial,quando foram redistribuídos para a França e a Inglaterra pelo mando da Socie-dade das Nações, apresentavam administrativa e juridicamente um misto deadministração direta e administração indireta, por vezes, em um mesmo espaçogeopolítico, como em Camarões e no Sudoeste Africano. Já no Togo, emRuanda e no Burundi a administração foi sobretudo indireta, enquanto na Re-

14. KI-ZERIlO, J. Histári.: da AFiell negra: VQI. li, op. cit., p. 124.

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pública Oriental Alemã a administração foi predominantemente direta, assimi-ladora, com quadros compostos por suaílis.

A especificidade ocorreu em razão de duas características implementadasnos Camarões, precursoras do moderno totalitarismo alemão. A primeira foi ainiciação dos filhos dos chefes locais na inflexível tradição do exército alemão. Asegunda ficou por conta das grandes companhias exploradoras dos territóriosque incluíam a criação de couldelarias pata a "apuração das raças locais".

Cabe registrar que no caso do Congo Belga foram combinadas as políticasde assimilação e de diferenciação. Por exemplo, a Carta Colonial, de 1908, queestabelecia o estatuto político-administrativo da colônia aproximava-a do sis-tema francês, com a diferença de considerar o direito consuetudinário no julga-mento dos tribunais. No entanto, a semelhança torna-se mais forre se conside-rada a política cultural assimilacionista que, como a portuguesa e a francesa,com fortes características parernalistas, julgava que era missão dos belgas a evo-lução dos africanos aos padrões europeus, processo muito lento, à escala de sé-culos.J5

Por sua vez, quanto à escolaridade formal, a administração belga aproxima-va-se da britânica, utilizando-se das línguas mais faladas na região como o ki-suaíli, o kiluba e o kikongo, entre outras.

Havia inúmeras variações locais nesse padrão, cujos detalhes não alteram anatureza do sistema. Nesse sentido, lembramos que também no Congo vale atese de que o imperialismo europeu sufocou a cosmogonia africana e tambémos impulsos nativos para a modernização. O mecanismo mais recorrente foi aviolência física em alto grau, impondo aos africanos uma degradação pessoal si-nistra como poucas vezes a história registrou. Foram muitos os requintes decrueldade utilizados para que se obtivesse um fornecimento sempre crescente detoneladas de borracha.

Há uma estreita relação entre o sentido histórico do sistema colonial e apossibilidade de certo grau de generalização a partir de um quadro comparativodas várias experiências colonizadoras no continente africano. Em relação à fasede consolidação do sistema colonial, entre 1900 e 1914, salta aos olhos a seme-lhança dos processos, em maior ou menor grau, alicerçados no exercício das vi-olências institucional e simbólica, marcados na maioria das vezes pelo despro-pósito e pela irracionalidade da dominação.

Porém, é preciso reiterar a importância fundamental de desenvolver pes-quisas voltadas para apreender como ocorreram as aplicações das políticas colo-

15. KI·7.ER130,]. História da If(iica negra: uol. 11,op. cit., pp. 140-7.

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niais assimilacionista ou de diferenciação consideradas as variações administra-tivo-jur ídicas próprias da dominação de cada metrópole européia. Da mesmaforma é preciso compreender as particularidades histórico-estruturais .de cadadomínio recuperando-se, com isso, características decisivas da história pré-colonialdo continente africano. Dito de outra forma: muita pesquisa histórica se faznecessária para ampliarmos o nosso conhecimento acerca da natureza e do sig-nificado das colonizações, assim corno dos diferentes impactos que acarretaramnas diversas sociedades africanas. Por fim, a essência desse argumento chama aatenção para as possibilidades de identificar as relações entre os colonialismos eos processos e as estratégias de luta para a consecução das independências.

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