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Hilda Hilst (1930-2004)
Hilda Hilst nasceu na cidade de Jaú, interior do Estado de São Paulo, no dia
21 de abril de 1930.
Hilda lança desde 1950 inúmeros livros de poemas, pelos quais recebeu
alguns prêmios. "Fluxo-Floema", sua primeira obra em prosa, é lançada em
1970. Passa a fazer parte do Programa do Artista Residente da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), em 1982. Lança "A obscena senhora D".
Em 1984 saem os "Poemas malditos, gozosos e devotos. Com "O caderno
rosa de Lori Lamby", livro que consagra a nova fase iniciada em "A obscena
senhora D".
Sua obra provoca "espanto e indignação" em seus amigos e na crítica.
Lança "Contos d'escárnio/Textos grotescos e Alcoólicos". O quarto livro dessa
fase que causou "espanto e indignação", "Cartas de um sedutor" é lançado em
1991.
Escreveu crônicas semanais; o trabalho se estenderia até 1995. No ano
seguinte publica "Rútilo nada", num livro que também continha "A obscena
senhora D" e "Qadós". "Rútilo nada" recebe o Prêmio Jabuti na categoria
"Contos".
"O caderno rosa de Lori Lamby" é levado ao palco sob direção de Bete
Coelho e tendo no papel principal a atriz Iara Jamra.
Agraciada, em 2003, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA),
na área de literatura, com o Grande Prêmio da Crítica pela reedição de suas
"Obras completas". Hilda Hilst faleceu no dia 04 de fevereiro de 2004, na
cidade de Campinas (SP).
A poesia de Hilda Hilst se encaixa na tradição de autores modernos como
Murilo Mendes e Jorge de Lima. É uma poesia que envolve certa religiosidade
e grande lirismo, numa forma poética que se aproxima das “cantigas de amigo”
e da lírica erótica Greco romana.
Sua poesia reflete um pensamento erótico metafísico a respeito do amor,
celebrando-o, muitas vezes, em tom festivo. Outras vezes sua poesia possui a
tônica dos cânticos bíblicos.
Observe o poema abaixo, no tom de convite ao amado também está
implícita uma idéia do amor carnal como se fosse um rito ou uma liturgia.
Dez chamamentos ao amigo
Se te pareço noturna e imperfeita Olha-me de novo. Porque esta noite Olhei-me a mim, como se tu me olhasses. E era como se a água Desejasse Escapar de sua casa que é o rio E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há tanto tempo Entendo que sou terra. Há tanto tempo Espero Que o teu corpo de água mais fraterno Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento.
Na prosa, a autora opera uma renovação no repertório ficcional, fundindo
diferentes gêneros de forma paradoxal, em que une o grotesco ao “sublime, o
escatológico ao espiritual, o gozo ao martírio”, como bem observa Manuel da
Costa Pinto1.
É possível notar na sua literatura pontos de contato com Clarice Lispector,
pois suas personagens também são mergulhadas na sua interioridade como se
observa em A Obscena senhora D, que, depois da morte do amante passa a
viver no vão da escada se isolando num mundo de lamentos e epifanias.
Sua prosa especula a perda amorosa e a derrelição, isto é, o sentimento
do abandono de Deus, por isso misturam violência e ternura, e não raro
percebemos a presença nonsense e do humor negro.
A obra de Hilda Hilst funciona como uma ponte entre a última fase do
modernismo e a literatura contemporânea, pois junta o intimismo e a busca da
identidade da terceira fase na subjetividade desacorçoada, característica da
literatura contemporânea.
Veja, agora, o conto Teologia Natural 2 :
A cara do futuro ele não via. A vida, arremedo de nada. Então ficou
pensando em ocos de cara, cegueira, mão corroída e pés, tudo seria comido
pelo sal, brancura esticada da maldita, salgadura danada, infernosa salina,
pensou óculos luvas galochas, ficou pensando vender o que, Tiô inteiro
afundado numa cintilância, carne de sol era ele, seco salgado espichado, e a
cara-carne do futuro onde é que estava? Sonhava-se adoçado, corpo de
melaço, melhorança se conseguisse comprar os apetrechos, vende uma coisa,
Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada, se
levasse concha, ostra, ah mas o pé não aguentava o dia inteiro na salina e
ainda de noite à beira d'água salgada, no crespo da pedra, nas facas onde
moravam as ostras. Entrou em casa. Secura, vaziez, num canto ela espiava e
roia uns duros no molhado da boca, não era uma rata não, era tudo o que Tiô
possuia, espiando agora os singulares atos do filho, Tiô encharcando uns
trapos, enchendo as mãos de cinza, se eu te esfrego direito tu branqueia um
pouco e fica linda, te vendo lá, e um dia te compro de novo, macieza na língua
1 Pinto, Manuel da Costa. Literatura Brasileira Hoje. Publifolha, 2005.
2 "Pequenos Discursos. E um Grande". In: Ficções - SP: Quíron, 1977.
foi falando espaçado, sem ganchos, te vendo, agora as costas, vira, agora
limpa tu mesma a barriga, eu me viro e tu esfrega os teus meios, enquanto
limpas teu fundo pego um punhado de amoras, agora chega, espalhamos com
cuidado essa massa vermelha na tua cara, na bochecha, no beiço, te estica
mais pra esconder a corcova, óculos luvas galochas é tudo o que eu preciso,
se compram tudo devem comprar a ti lá na cidade, depois te busco, e
espanadas, cuidados, sopros no franzido da cara, nos cabelos, volteando a
velha, examinando-a como faria exímio conhecedor de mães, sonhado
comprador, Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía,
muda, pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.
O conto mostra o narrador em terceira pessoa que em meio às falas do
personagem se mistura a consciência desse.
As falas, tanto do personagem, Tiô, quanto do narrador, constroem uma
consciência fragmentada, que assemelham-se a recortes da realidade. O
personagem parece falar e rivalizar consigo mesmo.
A temática do conto é áspera, de uma realidade doída e incômoda. Nosso
personagem, num desespero de causa, que só a sua inconsciência pode
explicar, tem a ideia de vender a própria mãe, porque precisa de dinheiro.
“Tiô. Que coisa? Na cidade tem gente que compra até bosta embrulhada.”
A violência certamente está na aproximação da mãe com a palavra “bosta”,
com uma mercadoria, ou com qualquer coisa que se possa vender na feira.
Entretanto, a ternura aparece quando o personagem insiste em repetir que um
dia vai buscar a mãe de volta. A dureza da cena entra em paradoxo com o
cuidado com que o personagem carrega a mãe nas costas para vendê-la na
feira.
“Tiô amarrou às costas numas cordas velhas, tudo o que possuía, muda,
pequena, delicada, um tico de mãe, e sorria muito enquanto caminhava.”
A consciência entrecortada por imagens e por pensamentos revelam um
personagem do qual podemos duvidar da sanidade mental, sua loucura
coaduna com uma realidade esgarçada, múltipla, e ao mesmo tempo difícil,
que é o retrato dos anos finais do século XX.
Júlio Cortázar (1914-1984)
Literatura latino americana e a literatura contemporânea no Brasil
A história da literatura latino-americana tem seu marco no século XVI,
mais precisamente durante a época dos conquistadores, podendo ser dividida
em quatro períodos:
I. O período colonial: visto como uma espécie de apêndice das produções
literárias estrangeiras;
II. O segundo período: surge a partir dos movimentos de independência do
início do século XIX, traduzido por uma temática bem específica: a
patriótica.
III. O terceiro período: reflete a consolidação nacional e que experimenta
seu apogeu;
IV. O quarto período: é a maturidade chegando mesmo a se destacar e
ganhar espaço dentro da literatura universal.
Com a revolução mexicana, iniciada em 1910, vemos um retorno dos
escritores latino-americanos a suas diferentes características e a seus próprios
problemas sociais. A partir dessa data e numa proporção cada vez maior, os
escritores latino-americanos começam a inserir temas universais em sua
produção literária, produzindo, no decorrer dos anos, uma literatura que foi
capaz de despertar a admiração internacional.
A literatura produzida na América de colonização espanhola hoje exerce
influência direta na nova geração de escritores da literatura contemporânea.
Vamos ver, abaixo, alguns dos escritores da literatura latino americana mais
importantes no cenário mundial da literatura.
O argentino Julio Cortázar foi um dos escritores que, por seu talento e
originalidade, e com um destaque especial, pelo seu antirromance experimental
Rayuela (1963), obteve imediato reconhecimento internacional, sendo
considerado um dos grandes nomes da literatura contemporânea.
Aos 37 anos, discordando da ditadura imposta na Argentina, Julio Cortázar
segue para França, passando a ser, então, um escritor portenho, nacionalizado
francês.
Seu estilo alia o atrevimento literário e a aventura estética ao compromisso
político em defesa dos povos do terceiro mundo, tendo, por objetivo, subverter
não apenas a linguagem, mas sim a nossa visão de mundo, propondo-nos
novos e inusitados universos, bem diferentes daqueles que a nossa visão
comum habituou-se a enxergar.
Apesar de Cortázar ter feito parte do boom da literatura hispano-americana
contemporânea, ele não foi o primeiro a se lançar no universo da literatura. O
pioneiro dessa façanha foi o escritor responsável pela revolução do conto na
América hispânica, explorando mundos históricos, incluindo os que fazem
referências a mitos: Jorge Luis Borges, o escritor que foi imortalizado em O
Nome da rosa, de Umberto Eco, ao ser transformado, de uma forma fabulosa,
em personagem.
Veja abaixo uma tradução do conto La Continuidade de los parques, do autor, em
que ele subverte a estrutura da narrativa fazendo com que a história saia das
páginas do livro e alcance a vida real.
A continuidade dos parques Começara a ler o romance dias antes. Abandonou-o por negócios
urgentes, voltou à leitura quando regressava de trem à fazenda; deixava-se
interessar lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Nessa
tarde, depois de escrever uma carta a seu procurador e discutir com o capataz
uma questão de parceria, voltou ao livro na tranqüilidade do escritório que dava
para o parque de carvalhos. Recostado em sua poltrona favorita, de costas
para a porta que o teria incomodado como uma irritante possibilidade de
intromissões, deixou que sua mão esquerda acariciasse, de quando em
quando, o veludo verde e se pôs a ler os últimos capítulos.
Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos
protagonistas; a fantasia novelesca absorveu-o quase em seguida. Gozava do
prazer meio perverso de se afastar, linha a linha, daquilo que o rodeava, a
sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo
do alto respaldo, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que além
dos janelões dançava o ar do entardecer sob os carvalhos.
Palavra por palavra, absorvido pela trágica desunião dos heróis,
deixando-se levar pelas imagens que se formavam e adquiriam cor e
movimento, foi testemunha do último encontro na cabana do mato. Primeiro
entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, a cara ferida pelo
chicotaço de um galho. Ela estancava admiravelmente o sangue com seus
beijos, mas ele recusava as carícias, não viera para repetir as cerimônias de
uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos
furtivos, o punhal ficava morno junto a seu peito, e debaixo batia a liberdade
escondida. Um diálogo envolvente corria pelas páginas como um riacho de
serpentes, e sentia-se que tudo estava decidido desde o começo. Mesmo
essas carícias que envolviam o corpo do amante, como que desejando retê-lo
e dissuadi-lo, desenhavam desagradavelmente a figura de outro corpo que era
necessário destruir. Nada fora esquecido: impedimentos, azares, possíveis
erros. A partir dessa hora, cada instante tinha seu emprego minuciosamente
atribuído. O reexame cruel mal se interrompia para que a mão de um
acariciasse a face do outro. Começava a anoitecer.
Já sem olhar, ligados firmemente á tarefa que os aguardava, separaram-se na
porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao Norte. Do caminho
oposto, ele se voltou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu por sua
vez, esquivando-se de árvores e cercas, até distinguir na rósea bruma do crepúsculo a
alameda que o levaria à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O capataz
não estaria àquela hora, e não estava. Pelo sangue galopando em seus ouvidos
chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois uma varanda,
uma escadaria atapetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém
no segundo. A porta do salão, e então o punhal na mão, a luz dos janelões, o alto
respaldo de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um
romance.