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HIPERTEXTO'
Christoph Tiircke
Uma "sociedade do conhecimento" não é composta por muitos "conhecedores"
m a s sim po r pessoas que não sabem como podem concentrar o conhecimento,
reunido em técnicas, aparelhos, arquivos e bibliotecas, em unidades transparentes
ou ao m e n o s acessíveis. O problema não é novo. Trabalha-se nisso desde que se
percebeu que a ciência moderna , ao não mais ser tutelada pela teologia, não se
concentrava, automaticamente, numa unidade de pesquisa amparada pela razão,
mas ameaçava antes dispersar-se num grande número de conhecimentos distintos.
Contrár ios a esse risco, Diderot e DÀlembert , já em 1750, assumiram a direção do
gigantesco projeto de construção de uma enciclopédia com a intenção de "amealhar
os conhecimentos espalhados pela superfície terrestre; de apresentar o sistema geral
desses conhec imentos aos homens com os quais vivemos e transmiti-los aos que
estão p o r vir, para que o t rabalho dos séculos passados não fosse inútil para os
séculos vindouros; para que nossos netos se tornassem não apenas mais cultos mas
t ambém mais vir tuosos e felizes". Eles reuniram o trabalho de 150 colaboradores e
72 mil artigos numa "Árvore genealógica das ciências", a qual parecia brotar de três
forças básicas espirituais: a memória, a razão e a força da imaginação; junto à qual
eles o rdena ram todo tipo de história (e também a história da natureza) à memória ,
as artes e capacidades manuais à força da imaginação e áreas tão heterogêneas como
teologia e ciências naturais, moral e lógica, pneumatologia e matemática, à razão.
No entanto, para que eles não se emaranhassem nas ramificações precárias dessa
árvore, concordaram em realizar uma ordenação alfabética de contribuições com
referências abundantemente cruzadas de outras palavras-chave, termos genéricos e
conceitos subordinados , ou seja, pelo método que prevaleceu em todo dicionário
desde então como o mais prático. Mas isso à custa de que o "Entrelaçamento das
"Trad. Antôn io Zuin .
ciências" tal como desejado por Diderot, permaneceu superficial e esporádico. Ele já
padecia da enfermidade básica de todos os dicionários posteriores, os quais
representam, novamente, a disparidade que desejam superar. Quanto mais imprescin-
díveis eles se to rnavam para o estudo das línguas estrangeiras e das disciplinas
científicas, tanto mais eles se revelavam insuficientes para tal empreitada. Por mais
que juntem os fatos, tanto mais se pr ivam do contexto interior. Hegel desejou
reconstituir tal contexto num ato de força espiritual singular e apresentou u m a
enciclopédia filosófica que deixava provir, facilmente, a estrutura lógica do universo
e as formas da natureza, do espírito humano, da sociedade, da arte, religião e filosofia.
Contudo, o todo, para o qual ele os juntou, foi alcançado por meio do supr imir de um
volumoso e incontável número de detalhes. Hegel sabia muito, mas n e m de longe ele
sabia tudo. A luz de sua enciclopédia, a de Diderot e de DÀlember t dá a impressão de
ser como uma pedreira, para nâo falar de outras enciclopédias.
Entretanto, à luz de cada d ic ionár io surge a pa ranó ia de u m a encic lopédia
a rduamente t rabalhada para se tornar u m sistema filosófico. O m u n d o não cabe
numa única cabeça e muito m e n o s se equilibra apenas e m uma.
E se houvesse uma única máquina capaz de processar o m u n d o c o m o texto?
Essa foi a visão do engenheiro americano Vannevar Bush, que teve a idéia, em 1940,
de gravar tudo que já fora escrito em microfi lme, de a rmazenar tal gravação n u m a
escrivaninha e fazê-la aparecer em dois monitores. Por que dois? Porque dois textos
diferentes poderiam ser vistos s imul taneamente e associados u m ao ou t ro por meio
de um código regis t rado em a m b o s os escri tos nos cantos infer iores da tela. Se
numa outra opor tun idade se reativa o código do texto por meio do pressionar de
u m a tecla, au tomat i camente t ambém surge o ou t ro . Bush n o m e o u seu invento
c o m o Memory extender (Memex). Na verdade, não passou de u m mero recurso
mnemôn ico maquinai que, no entanto, produzir ia algo revolucionário: a l ibertação
do pensamen to h u m a n o de seus espar t i lhos autoculpáveis . Catá logos seguem o
alfabeto, os índices seguem os números , a á rvore genealógica d o c o n h e c i m e n t o
segue os conceitos genéricos e subord inados - c o m o é compl icado e restritivo esse
procedimento! "A mente h u m a n a não trabalha dessa forma. Ela opera por meio de
associações"' . Bush quis recuperar esse processo associativo original d o cérebro
por meio de u m a simulação maquinai . O objet ivo do Memex não seria somente
reduzir gigantescas bibliotecas ao t amanho de escrivaninhas, mas p r inc ipa lmente
elevar textos para u m estado de associação omni la tera l . Nesse es tado eles tan to
representariam quan to possibil i tariam u m pensamen to flexível e emanc ipado dos
esquemas es túpidos de ordenação . Em tal es tado mais e levado o texto merece
t ambém u m n o m e mais elevado: hipertexto.
1 Vannevar Bush, em S. Porombka , "Hipertext", Zur Krilik eines digilalen Mythos ( M ü n c h e n , Wi lhe lm Fink
Verlag, 2001), p. 27.
Essa palavra ainda não existia na era de Bush, mas ele pode ser identificado
como o pai cio hipertexto graças ao seu ousado programa de associação de texto e
cérebro. Entretanto, se as associações vivas são espontâneas, elas nunca são
to ta lmente sem motivos e nunca totalmente transparentes. Não existe nenhuma
regra que explique por que elas aparecem exatamente aqui e agora, desta forma e
não de outra. Elas têm um grau de liberdade, um momento de não-derivabilidade,
por conta do qual são, inversamente, volúveis e fugazes, dependentes do contexto
e da disposição. Se hoje, n u m dia de tempo ruim, me ocorre o texto B por causa do
texto A, e eu associo ambos por meio de um código, então talvez na próxima
semana, depois de u m a ida ao cinema, me venham à mente textos totalmente
diferentes e mais produtivos. Quando as associações são tão fixadas e mecanizadas
em códigos que regressam num pressionar de uma tecla, isso eqüivale a matá-las.
Associação fixada não é mais associação, e quem deseja arrancar dela o segredo do
associar é sugado num regresso sem fim. A tentativa de captar a associação livre
num link evoca a existência de uma armadura infindável de links posteriores, sem
que nunca ocorra a captação. Por isso o Memex de Bush não teve êxito.
Os códigos com os quais se associavam os textos deveriam, por sua vez, ser
o rdenados de a lgum m o d o e, para isso, precisava-se de códigos cada vez mais
complicados, além de que livros de códigos cada vez mais complexos necessitaram
ser escri tos para a tender tal demanda. Bush sequer pôde criar uma "máquina
bibliográfica" funcional .
Doenças infantis de um projeto genial? O fracasso de Bush foi assim
interpretado pelos seus sucessores. Em essência, eles atribuíram o fracasso, tal como
Stephan Porombka demons t rou num brilhante estudo, a defeitos técnicos, sem
suspeitar, de forma alguma, do próprio objetivo: que se produzisse maquinalmente
u m espaço de associação livre de pensamento e de texto. Ted Nelson apostou, nesse
processo, em novos métodos de software nos anos 1960. Todos os documentos ao
alcance deveriam ser registrados e associados a u m "Dokuversum" que "consiste em
tudo o que fora escrito sobre u m determinado tópico [...] no qual se pode ler em
todas as direções que se desejar prosseguir"2 . Em 1965, Nelson criou o n o m e
hiper texto e o atr ibuiu a esse "Dokuversum" (universo documentado) . "Por
hipertexto compreendo a escrita não-seqüencial"3. Essa definição lapidar age até
hoje como u m a fórmula mágica cujo encanto é absolutamente compreensível, caso
se atente contra quem ela se refere: contra Gutenberg, ou seja, contra a própria
cultura do livro e sua forma de ler e escrever rigidamente de modo seqüencial ou
linear, ident i f icando-a como a essência de u m progresso moderno rígido e
repressivo. Quando o discurso do hipertexto também se difunde, concorda-se com
2 Ted Nelson, em S. Porombka , "Hipertext", cit., p. 75. J I b i d e m . p . 71.
a seguinte observação: o fu tu ro deve per tencer ao escrever, ao ler e ao pensar "não
seqüencial" e "não-linear".
Mas c o m o isso é possível? Mesmo os m e n o r e s textos, as m e n o r e s palavras,
como " s i m V n ã o " l<ou" fo rmam u m a de te rminada seqüência de letras que se deve
ler exa tamente nessa o rdem, e até m e s m o os maiores entusiastas do h ipe r t ex to
procedem dessa maneira totalmente convencional e bem-compor t ada . Se não fosse
assim, tais entusiastas não en tender iam absolu tamente nada, do m e s m o m o d o que
eles não deixam de falar seqüenc ia lmente , pois a r t i cu lam sons na seqüência
aprendida. Ler e escrever de fo rma não-l inear? Bobagem. Q u e dessa insensatez se
possa fazer algum sentido por u m cur to espaço de tempo, como o protes to con t ra
as es t ruturas de sentido desgastadas, por exemplo, tal como no caso dos p o e m a s
dadaístas, isso não muda nada o fato de que n inguém conseguiria se entender assim
mais d e m o r a d a m e n t e . O n d e se diz u não- l inear" se que r dizer, na verdade , ou t ra
coisa, a saber: não mais em grandes un idades lineares.
Mas com isso se coloca a questão de revide: quão lineares fo ram essas un idades
gutemberguianas , cuja tirania dever-se-ia abolir? Elas e ram m e s m o un idades no
sentido rígido da palavra? Cer tamente , se se compara com o estado atual, no qual
os leitores mais apaixonados se que ixam de que di f ic i lmente conseguem ler u m
livro do início ao f im. Porém, c o m o era antes, q u a n d o c o m e ç á v a m o s a ler u m
romance policial e não sabíamos, até a penú l t ima página, q u e m era o assassino?
Ou quando acreditávamos ter devorado u m romance numa tacada? Provavelmente
esquecíamos de tudo ao nosso redor e pene t rávamos madrugada adentro . Ora , tal
p roced imen to é to ta lmente d i ferente de u m processo linear. Q u e m con ta as
pequenas in terrupções que ocorrem q u a n d o o leitor por u m m o m e n t o se afasta e
se entrega às suas próprias associações; q u a n d o olha novamente duas páginas para
trás, observadas de fo rma imprecisa, e vê de soslaio u m a página para frente para
averiguar se a leitura de fato cont inua de acordo com suas expectativas, para não
talar da ida à cozinha ou ao banhe i ro para se tornar novamente receptível?
O que aparece para olhos de toupeira como u m processo obs t inadamente linear
se revela, por meio da observação u m pouco mais precisa, como u m a oscilação de
uma linha com u m excedente de cont ínuas associações, inevitável q u a n d o de fato
se imagina o que se lê, ou seja, quando há desvios, efemérides, repetições, pausas
para pensar, olhares para trás e para adiante. E se fosse necessário empregar um
conceito chique para tal procedimento , esse conceito seria "navegar" Ora, aquilo
que é válido hoje para a internet , na condição da fo rma mais nobre de movimento ,
não fora imprópr io para as formas anteriores a ela. Q u e m se aproveita da rivalidade
do hipertexto como meio não linear na comparação com o livro não sabe o que
significa ler. Já o tradicional ler nunca fora meramen te linear, bem c o m o o "novo"
ler não deixa de sê-lo. O real processo de pensamento , escreve A d o r n o na Minima
»moralia, seria " t ampouco u m a progressão discursiva de etapa em etapa, assim
como, inversamente, tampouco os conhecimentos caem do céu. Ao contrário, o
conhec imento ocorre numa rede na qual se entrelaçam preconceitos, opiniões,
inervações, autocorreções, antecipações e exageros, em poucas palavras, na
experiência que é densa, fundada, porém de forma alguma transparente em todos
os seus aspectos '1 . Mas tal experiência não se pode representar ao copiar-se a si
mesma. Ela deve traduzir-se nas formas da mímica e dos gestos, da linguagem, da
imagem e do som, os quais ela encontra em seu meio ambiente.
I)e m o d o que a experiência traduzida não é mais a experiência feita origina-
riamente, mas só assim se torna concreta, da mesma forma como uma peça musical
só é concretizada quando tocada, embora o tocado não seja mais aquilo que fora
imaginado pelo compositor. Ele é menos, mas também mais. Todo texto situa-se
aquém da experiência que ele comunica, mas é apenas por meio do texto e das
estruturas de linguagem que a experiência consegue superar sua limitação monádica.
E tais estruturas não podem existir sem a seqüência sujeito, predicado, objeto
e sem a hierarquia de conceitos genéricos e subordinados. Elas são tão indis-
pensáveis e insuficientes como a ordem alfabética nos dicionários. Sua insuficiência
incomoda, mas ela faz com que o texto aponte para além de si mesmo. Sem provo-
car o leitor para elaboração de seu próprio construto representacional, o qual é
t ampouco tr ivialmente idêntico com a seqüencia de palavras impressas, quanto
com cons t ru to do autor, nenhum texto poderia ser palpitante.
Portanto, exige-se uma dupla resistência. Tão mais é preciso resistir às estruturas
seqüenciais e hierárquicas da língua e do texto por meio da prova constante de sua
insuficiência, tão seguramente elas, por sua vez, formam a resistência que a experiên-
cia precisa para se representar como diferente das seqüências. Cada resistência é
produzida para que possa um dia cessar. Seu ponto de fuga é o estado de recon-
ciliação utópica. A princípio, nele se dispersa toda contradição; e então toda
contradição teria u m bom fim. O inconveniente da visão-hipertexto não é o utópico,
mas sim o p rematuro declínio da tensão: a utopia adquire o preço de liquidação.
Um espaço livre do pensar, ler e escrever não-linear deve ser produzido por meio de
máquinas, mas no velho mundo capitalista.
O "Dokuversum" que produz texto legível em todas as direções, deve instituir
não apenas a l iberdade, mas também já ser sua imagem autêntica. Entretanto, o
texto que se desprende da forma do livro não paira assim tão facilmente sobre todas
as partes. Ele adquiriu, de imediato, uma nova forma. Ele é, desde o princípio, u m
texto programado. Toda liberdade decorrente, toda associação e combinação das
partes do texto totalmente distantes e heterogêneas func ionam cont inuamente
apenas c o n f o r m e u m esquema fixo. Subentende-se que ligar tudo com tudo,
4 T. W. Adorno , Minima moralia, em Cesammelte Schrifien 4 (Frankfur t am Main, Suhrkanip Verlag, 1996),
p. 90; t r aduz ido para o por tuguês pela Âtica, 1992.
34 HIPKRTKXTO
por tanto todos os "e", "ou", "mas", uns com os outros, conduzir ia ao nada. Apenas
palavras-chave to rnam-se aptas e, por tanto , só servem para a lguma coisa q u a n d o
são apuradas por seres inteligentes. Eles têm de compreender algo do con teúdo dos
textos ligados es tando na condição de separar o essencial do n ã o - e s s e n d a l e de
associar com outro essencial, de tal m o d o que possam fixar os resul tados de seu
trabalho de diferenciação e associação em links.
Mas o quan to esses links se deixam ser combinados depende das n o r m a s do
respectivo programa digital, que se compõe , por sua vez, de i n ú m e r a s conexões
0-1, ou seja, em links em minia tura que conduzem o percurso d o impulso elétrico.
O texto conectado que tais links possibili tam deve ser incr ivelmente amplo, mas se
diferencia quali tat ivamente de u m "Dokuversum". Ele p e r m a n e c e cons tan temente
parcial e, apesar de todas as a f i rmações opostas , fechado. Apenas com a chave
correta é que ele se deixa abrir. É preciso dominar seu software para fazê-lo expandir
novos textos e associações, e isso significa t r aba lho duro . Ent ra r a legremente ,
acrescentar seus própr ios textos e idéias e cont inuar , dessa manei ra , a escrever o
texto universal, tal como as crianças p rocedem na escola com as histórias abertas:
exa tamente isso n e n h u m software vai permi t i r . É por isso que mu i to s jogos de
computador , os quais os p rogramadores de hiper texto exper imen tam com prazer,
têm desde o princípio o gosto insosso do substi tuto. Em vez de oferecer ao leitor
uma história pronta, tal como fazem o romance tradicional ou a revista de histórias
em quad r inhos (o leitor p o d e aceitá-los ou colocá- los de lado) , os jogos de
c o m p u t a d o r apresen tam- lhe um texto do qual ele deve p roduz i r sua própr ia
história: ele mesmo tem de salvar a princesa, esclarecer o assassinato, redescobrir
a cultura desaparecida, reativar uma memór i a supr imida e até m e s m o escolher as
tarefas que deseja solucionar.
O leitor de um livro não fora sempre u m mero sequaz b e m - c o m p o r t a d o do
autor? Agora ele se torna u m criativo co-autor. Entretanto, sua cr ia t ividade total
consiste apenas na escolha de possibilidades, todas elas, a f i rmadas de an temão. A
associação livre, a favor da qual o proje to de h iper tex to foi pos to em marcha , é
espontânea e livre apenas q u a n d o aberta, a qualquer m o m e n t o , para o imprevisto.
A práxis do hiper texto consiste em reduzir a l iberdade de escolha ao previsto;
o que ocorre aos par t idos , às companh ia s telefônicas, aos seguros de saúde, aos
detergentes e aos aparelhos de televisão, tanto mais acontece ao hiperespaço: abre-
se u m labirinto total; são quase infinitas as possibil idades de nele se movimentar .
Porém, todos os caminhos já são dados de an temão e n e n h u m deles c o n d u z para
fora. O programa de computador é a versão high tech da providência .
Cer tamente , t rata-se de u m re ino de l iberdade bem miserável, n o qual u m
contemporâneo que clica o mouse e olha fixo para a tela dispõe, ad libitum, de todos
os c o m a n d o s e conexões já p rede t e rminados p o r um p rog rama de computador ,
como se fosse u m senhor que exercesse sua soberania sobre u m pra to pré-
preparado. Mas por que não ignorar isso? Não é a utopia do hipertexto simples-
mente o carro-chefe extravagante de uma série de conquistas altamente prestimo-
sas? Contudo, é fantástico ter o Goethe ou Nietzsche inteiros num CD e, por meio
de u m a palavra-chave, encontrar qualquer citação desejada. E quando todas as
bibliotecas forem digitalizadas, conectadas e acessíveis por todos, então o
"Dokuversum" não se tornará uma realidade prática utilizável como puro subsídio
sem que se deva preocupar com a utopia associada?
Não se salvará disso tão facilmente. A revolução midiática do século XX atingiu
em cheio o texto. E não cessa de conseguir aliados para o hipertexto, dos quais
McLuhan foi apenas o mais proeminente. Ele também anunciou, tal como Nelson,
o fim da cultura do livro. Entretanto, assim o fez não a favor do texto não-linear,
pois preferiu apostar suas fichas na fita magnética, no telefone e na televisão. Eles
dever iam remediar o prejuízo que veio ao m u n d o por conta do alfabeto e que
atingiu seu ápice com a imprensa. Por meio do texto escrito e suas leituras
taciturnas os seres humanos se isolaram uns dos outros e foram reduzidos ao visual.
Gutenberg se firma como a incorporação da alienação social. A ligação eletrônica
entre locais distantes deve anulá-la, e aquela comunicação imediata que acolhe
todos os sentidos, e outrora demarcava a ligação tribal primitiva, deve restabelecer-
se n u m nível mais alto e numa dimensão global. Por meio do telefone, do rádio e
da televisão "o sistema nervoso central é ampliado numa rede mundia lmente
unificada" e o "processo de conhecimento criativo, coletiva e corporativamente à
toda sociedade humana"5 , como se essa extensão técnica já tivesse, por si própria,
uma qualidade moral e social e permitisse à humanidade dar as mãos para uma
nova proximidade e cordialidade.
Para que isso se torne crível, deve-se, entretanto, esquecer rigidamente como
se realiza, de fato, a união da humanidade por meio da eletricidade. Órgãos
isolados, pr inc ipa lmente o olho e o ouvido, são conectados a um aparelho que
t ransmite estímulos e impulsos apenas quando ele os decompõe de acordo com
uma regularidade mecânica, quando os canaliza, filtra, para serem sons separados
ou cortes imagéticos das perspectivas centrais ou, quando a técnica já possibilita,
para serem sensações táteis mensuráveis. A participação ou a comunicação
eletrônica consiste em uma dispersão de acontecimentos pontuais, os quais são
ligáveis ou desligáveis. Eles são igualmente separados tanto do meio ambiente
concreto do emissor quanto do receptor. Um lugar onde ambos se encontram não
é mais especificável. Os meios eletrônicos ganham sua força de abrangência
mundia l e de poder conectar a humanidade, apenas a expensas de que eles, com
perfeição, descontextualizam e isolam os sentidos e as vivências numa medida que
nunca fora atingida na época da imprensa.
5 S .Porombka."Hiper tex t" ,c i t . ,p . 11.
Aquilo que surge c o m o a superação da a l ienação gu t embergu iana revela-se
c o m o sua mera potencial ização. O in imigo está em toda par te , até m e s m o nas
própr ias novas mídias . Só que seu p ionei ro não pode admi t i r tal fato. Tão mais
in tensamente ele deve proje tar seu in imigo in te rno para fora e atestar cons tan-
temente à cul tura da escrita um caráter seqüencial forçoso e isolador, c o m o se a
lírica, a literatura e a dialética nunca tivessem provado a imensa variedade espiritual
que se encontra na escrita. Não por acaso a força de pode r conectar a h u m a n i d a d e
atribuída aos novos meios de comunicação al imenta-se do venerável lema concer-
nente ao apogeu da imprensa: "Todos os h o m e n s se t o r n a m irmãos". Beethoven
precisava de u m a sinfonia inteira para t ransmit i r tal força congenia lmente . Hoje,
os meios eletrônicos devem fazer isso d iar iamente por conta própria. Sugere-se que
eles sejam essa mensagem.
De u m ambiente espiritual totalmente diferente part iu u m ataque geral filosófico
ao livro escrito de forma tradicional. Para Gilles Deleuze, o livro é o centro de todas
as estruturas hierarquicamente lógicas; seu inimigo é a árvore lógica: de u m tronco
brotam dois galhos, dos quais outros dois se or iginam na mais bela ordem até chegar
aos menores ramos. "De um se or iginam dois. Toda vez que nos d e p a r a m o s com
esta fórmula, mesmo se Mao a usasse c o m o estratégia ou se ela fosse compreend ida
tão 'dialeticamente' quanto fosse possível, fazemos isto ut i l izando o pensar clássico
mais antigo e mais refletido, o qual é totalmente desgastado. A natureza não procede
assim, pois as raízes se to rnam raízes mes t ras com u m r iquíss imo n ú m e r o de
ramificações laterais e circulares; em todo caso, elas não são dicotômicas"6 . Elas são
rizomáticas. O rizoma (tal como o título do famoso panf le to de Deleuze e Guattari ,
de 1976, que corresponde propr iamente ao t e rmo tubérculo, carocinhos) se espalha,
concomitantemente , para todos os lados e, c o m o "a natureza" procede dessa forma,
deve finalmente dar cabo ao chatíssimo "livro-raiz" e à sua lógica binária autoritária.
Até "as palavras de um Joyce, às quais se atribui, com razão, a palavra "ramifica-
bilidade", rompem a unidade linear das palavras, e até m e s m o a un idade linear da
l íngua, para produz i r uma unidade cíclica da frase, do texto ou do conhece r em
movimentos iguais" . De tal unidade se salva apenas por uma coisa: "o princípio da
pluralidade". Não sejam um ou muitos , sejam a plural idade. De acordo com esse
lema deve-se pensar, ler ou fazer política. Não há nada para se compreender n u m
livro, mas muito do que se pode se servir.
Q u e estas frases sigam u m a gramát ica to t a lmen te convencional ; que elas
confrontem o pensar dualístico e rizomático n u m a rigidez dualística; que n e n h u m a
destas pluralidades exaltadas c o m o r izoma ou"pla tô"se ja pr inc ipa lmente identifi-
6 G. Deleuze e F. Guat tar i , Rhizom (Berl im. Merve Verlag, 1976), p. 8. Edição brasileira: Milplatôs (Süo Paulo, Editora 34 ,2002) .
7 Ib idem, p. 10.
cável se não for considerada unidade; isso nunca atrapalhou Deleuze e seus fãs. Foi
suficiente "rizoma" - como "não-linear" - ter se tornado uma palavra mágica, um
eco do maio parisiense de 1968. Naquele tempo, quando os partidos comunistas e
os sindicatos se enrijeceram hierarquicamente e o risco para o capitalismo parecia
part i r unicamente das ações espontâneas dos estudantes e trabalhadores, surgiu
a imagem de u m a nova guerrilha crítico-radical. Ela vicejava de uma expe-
riência de totalidade, na qual se sentiu antecipadamente aquilo que hoje significa
"globalização".
A extensão dessa guerrilha é espantosa. "Um rizoma pode ser quebrado e
destruído em qualquer lugar, mas ele sempre se espalha ao longo de suas próprias
l inhas ou de outras"8 . Ora, nos anos 1960, essa colocação foi considerada pelos
estrategistas militares antes mesmo de formulada. Eles elaboraram a descen-
tralizada ARPANET para o pentágono com o objetivo de que um primeiro ataque
soviético não paralisasse as centrais de informações militares. A ARPANET foi uma
peça de guerr i lha de alta tecnologia, inventada no centro da maior potência
mundial , que se tornou revolucionária não apenas no sentido técnico. Ela converteu
a resistência descentralizada, o último recurso dos humilhados e oprimidos contra
a supremacia do ocupante, em um recurso poderoso. Essa foi uma rebelião
silenciosa, mas de u m alcance que se torna evidente apenas de forma gradativa.
Assim se iniciou a volta neoliberal do capitalismo high tech, a guerrilha de cima. A
ARPANET nunca precisou captar o temido ataque atômico soviético. Em vez disso,
ela foi aberta para o tráfego público. Dela originou-se a internet. De defesa militar,
/ela se t ransformou em ofensiva civil, cuja vitória sobrepuja toda vitória militar. Um
r izoma tornou-se hegemônico.
Com isso o hipertexto teve um salto qualitativo, pois desde então ele não se
dissemina apenas pelos CDs, mas também por meio de linhas telefônicas e
transmissões via satélite. A massa de dados da internet, para a qual todos que não
podem renunciar ao e-mail e à observação do mercado eletrônico são sugados,
tende realmente para o "Dokuversum" previsto por Ted Nelson, só que de outra
maneira. As hiper-histórias, embora inflacionadas nesse novo ambiente digital, são
degradadas a um playground adventures. O próprio hipertexto, por sua vez, se torna
sério e cada vez mais se converte em apodítica alternativa de ou ser deixado para
trás, ou ser clicado, por bem ou por mal, entre as massas de dados. Ninguém
acredite que isso deixe totalmente intocada sua forma de pensar. Talvez o saltar
brusco de u m link para outro ocasione estímulos acelerantes, talvez acione a busca
para conceitos precisos. Em geral, entretanto, ele torna o pensamento mais fugaz e
sem fôlego. Copiar um texto manualmente , de fo rma correta, exige dos alunos
atuais incomparavelmente mais concentração do que a exigida dos seus pais. Ler "de
M Ibidem, p. 16.
forma não-l inear" é a grande sensação para todos que não têm paciência para o
romance mais longo. Uma vez incapazes de se a p r o f u n d a r no texto, se a p r o f u n d a m
no computador . Olhar constante e f ixamente para a tela do mon i to r al iado à falta
de movimento resulta, atualmente, no sur to de crianças c o m sobrepeso e problemas
de visão.
Ted Nelson se considerou u m guerri lheiro. Sua defesa de u m "Dokuversum"
foi u m a defesa para o livre acesso a dados , PCs para todos e luta con t ra o
monopó l io e a política de restr ição da IBM. Desse modo , ele t a m b é m é o pai dos
hackers. Eles t êm seus méritos. O ato de pene t ra r nos dados secretos das g randes
f i rmas ou dos militares é u m ato de guerr i lha a mos t ra r que toda codi f icação é
decodificável, que n e n h u m código é to ta lmente seguro. Ainda assim, é subversivo
de m o d o limitado, apenas enquan to sua in tenção não for nada mais do que u m
livre navegar pelos dados .
Os m é t o d o s de guerr i lha não são fac i lmente ident i f icados c o m o subversão
crítica. A internet mostra o que ocorre q u a n d o eles se t r ans fo rmam em d o m í n i o
público. Plantas que se espalham r izomat icamente p o d e m ser podadas . Não por
acaso, o ja rd im foi o ant igo ideal da na tureza pacif icada. A internet , en t re tan to ,
deixa-se represar apenas de fo rma parcial, não se consegue dominá- la totalmente.
Ela se t r ans fo rmou no meio principal e no s ímbolo do capi ta l i smo neol iberal
espalhado de m o d o global. Em tais condições , lê-se o Rizoma c o m o car t i lha da
desregulação. E a "não-linearidade", glorif icada c o m o recurso radical contra todo
progresso linear falso, se revela como o seu melhor lubrificante.
DA SUPERPRODUÇÃO SEMIÓTICA: caracterização e implicações estéticas
Fábio Akcelrud Durão
I .
Uma das armadi lhas mais traiçoeiras no estudo contemporâneo da indústria
cultural está na facilidade de adotar uma postura moralizante, na tendência quase
natural a u m a condenação in toto, que resulta do impulso, advindo da visão crítica,
para a lamentação a respeito do valor ou da qualidade dos produtos culturais de
massa. Em oposição a isso, é sempre bom lembrar que o aspecto determinante
no f u n c i o n a m e n t o da indústria cultural, sua força motriz, a princípio não tem
nada a ver com a qual idade ou mesmo a natureza das coisas, porque essa força
mo t r i z é econômica: qualquer que seja o conteúdo a ser veiculado, o mais
impor tan te é que ele gere lucro, que leve à acumulação de capital1. Para muitos
crí t icos do concei to de "indústria cultural", no entanto, essa lógica teria como
pressupos to u m a natureza monolít ica da mídia: ela seria dominada por u m a
racional idade malévola e maquiavélica, que faria dos consumidores meros fan-
toches em suas garras manipuladoras . Tais críticos con t ra -a rgumentam que a
pulverização dos gêneros e a abundância de escolhas desmentem uma pretensa
homogene idade no conceito forjado por Adorno e Horkheimer. Segundo Paulo
Puterman, por exemplo, a
possibilidade real e atual que a tecnologia apresenta de colocar à disposição do
espectador quinhentos canais de tevê em sua casa é muito mais um reflexo do
processo de segmentação verificado na sociedade do que uma imposição da
Cf. Detlev Claussen,"I ;ortzusetzen: Die Aktualitiil der Kulturindustriekrit ik Adornos" ,em Frithjof Hager e
H e r m a n n 1'fütze (eds.), Das unerhòrt Moderne (Lüneburg, zu KJanipen, 1990); Chris t ine Resch e Heinz
Steinert , "Kul tur industr ie : Konflikte uni die Produkt ion der gebildeten Kasse", em Alex Demirovic (ed.),
Modelte kritischer Gesellschajtstheorie (Stuttgarl, Metzler, 2003).