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Hipótese Na Pesquisa Qualitativa

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    s s i f o / r e v i s t a d e c i n c i a s d a e d u c a o n . 7 s e t / d e z 0 8 i s s n 1 6 4 6 4 9 9 0

    Outros artigos

    As hipteses nas Cincias Humanas consideraes sobre a natureza, funes e usos das hipteses

    Jos DAssuno Barros [email protected]

    Universidade Federal de Juiz de Fora (Juiz de Fora, Brasil) e Universidade Severino Sombra (USS) de Vassouras (Brasil)

    Resumo:Este artigo busca desenvolver uma reflexo acerca do uso de hipteses nas pesquisas cientficas e na elaborao de textos nas Cincias Humanas. Busca se apresentar, na primeira parte do texto, a natureza e importncia das hipteses nas Cincias Sociais e Humanas, trazendo exemplos da Histria, Sociologia, Urbanismo e outros campos do conhecimento. As hipteses so discutidas como recursos necessrios para as cincias sociais e humanas que se baseiam em problemas. Na seqncia do artigo, so pontuadas as funes das hipteses para cada pesquisa em particular, e para o Conhecimento Cientfico como um todo. A principal inteno do artigo trazer uma contribuio para alunos e professores dos campos de conhecimento relacionados s cincias sociais e humanas, oferecendo algumas sugestes prticas e meios para o entendimento e o esclarecimento sobre como as hipteses podem ser utilizadas nestes campos. Para clarificar a explanao, o principal exemplo apresentado no texto refere se a um problema histrico pertinente Conquista da Amrica, no sculo XVI, buscando mostrar como, no campo das cincias humanas, um mesmo problema pode ensejar muitas hipteses de trabalho e diferentes solues.

    Palavras chave:Hiptese, Cincias Humanas, Conhecimento cientfico, Ensino de metodologia.

    Barros, Jos DAssuno (2008). As hipteses nas Cincias Humanas consideraes sobre a natu

    reza, funes e usos das hipteses. Ssifo. Revista de Cincias da Educao, 07, pp.151162.

    Consultado em [ms, ano] em http://sisifo.fpce.ul.pt

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    Uma das questes chave para o Ensino de Cincias Sociais levar o aluno a compreender a interseo entre recursos tericos e metodolgicos, e sua aplicao prtica em uma Pesquisa. Aspectos como o uso de Hipteses nas Cincias Sociais no so fceis de serem ensinados, a no ser j na prtica direta de Pesquisa, de modo que todo esforo de sistematizao que busque trazer exemplificaes que facilitem o aprendizado destas interrelaes mostra se um contribucto importante para as Cincias da Educao em sua dimenso mais prtica e operacional. O presente artigo, alm de atender interesses voltados para o Ensino de Metodologia Cientfica, dirige se em especial a estes alunos que iniciam os caminhos de investigao em cincias sociais. Busca se, mais particularmente, oferecer lhes elementos para compreender e esclarecer aspectos pertinentes ao uso de Hipteses nas Cincias Sociais e Humanas (Histria, Sociologia, Antropologia, Geografia, Urbanismo e outras).

    Comearemos por dizer que, em uma pesquisa em modelo acadmico, e em um texto que se destine a apresentar os resultados desta pesquisa, a Hiptese pode desempenhar uma importncia fundamental. Para sustentar esta proposio, vejamos, em primeiro lugar, de onde se origina a necessidade de utilizao nas cincias humanas.

    A investigao cientfica no Ocidente, e no diferente com as cincias sociais e humanas, tem se edificado basicamente em torno da inteno de resolver problemas bem delineados, que grosso modo constituem o ponto de partida do prprio processo de investigao. Com a Histria, desde que ela assumiu o projeto de ser uma cincia, no tem sido muito diferente, e tampouco o em cincias humanas diversificadas como a Sociologia, a Antropologia, a Geografia, a Economia e outras mais. Para dar o exemplo da Histria, essa necessidade de problematizao foi se fazendo cada vez mais caracterstica da historiografia ocidental sobretudo

    a partir do sculo XX, quando se superou a Histria Narrativa ou Descritiva do sculo XIX em favor de uma Histria Problema. J no existe maior sentido, para a historiografia profissional de hoje, no gesto de narrar simplesmente uma seqncia de acontecimentos, ou de descrever certo cenrio histrico, se esta narrativa ou esta descrio no estiverem problematizadas.

    Problematizar lanar indagaes, propor articulaes diversas, conectar, construir, desconstruir, tentar enxergar de uma nova maneira, e uma srie de operaes que se fazem incidir sobre o material coletado e os dados apurados. Problematizar, nas suas formulaes mais irredutveis, levantar uma questo sobre algo que se constatou empiricamente ou sobre uma realidade que se imps ao pesquisador.

    A formulao de hipteses, no processo de investigao cientfica, precisamente a segunda parte deste modo de operar inaugurado pela formulao de um problema. Antes de tudo, a hiptese corresponde a uma resposta possvel ao problema formulado a uma suposio ou soluo provisria mediante qual a imaginao se antecipa ao conhecimento, e que se destina a ser ulteriormente verificada (para ser confirmada ou rejeitada). A hiptese na verdade um recurso de que se vale o raciocnio humano diante da necessidade de superar o impasse produzido pela formulao de um problema e diante do interesse em adquirir um conhecimento que ainda no se tem. um fio condutor para o pensamento, atravs do qual se busca encontrar uma soluo adequada, ao mesmo tempo em que so descartadas progressivamente as solues inadequadas para o problema que se quer resolver.

    Pode se dizer que a Hiptese uma assero provi-sria que, longe de ser uma proposio evidente por si mesma, pode ou no ser verdadeira e que, dentro de uma elaborao cientfica, deve ser necessariamente

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    submetida a cuidadosos procedimentos de verificao e demonstrao. Constitui se em um dos elos do processo de argumentao ou investigao (na pesquisa cientfica ela gerada a partir de um problema proposto e desencadeia um processo de demonstrao depois da sua enunciao). por isto que, etimologicamente, a palavra hiptese significa literalmente proposio subjacente. O que se pe embaixo precisamente um enunciado que ser coberto por outros, ou por uma srie articulada de enunciados, de modo que a Hiptese desempenha o papel de uma espcie de fio condutor para a construo do conhecimento. Apesar do seu carter provisrio, a Hiptese tem sido a base da argumentao cientfica e desempenha uma srie de funes dentro da pesquisa e do desenvolvimento do conhecimento cientfico, como se ver a seguir

    AS FUNES DA HIPTESE NA PESQUISA

    So vrias as funes desempenhadas pela Hiptese na Pesquisa Cientfica, tanto no que se refere a uma pesquisa

    especfica que est sendo concretamente realizada, como no que se refere ao conhecimento cientfico de uma maneira geral. O Quadro 1 enumera algumas destas funes, organizando na parte sombreada aquelas funes referentes a uma pesquisa determinada ou ao seu Planejamento. Na parte no sombreada esto as funes que a Hiptese desempenha em relao ao desenvolvimento cientfico em geral.

    Em primeiro lugar, a Hiptese estabelece uma direo mais definida para a Pesquisa que est sendo realizada seja fixando finalidades relacionadas a etapas a serem cumpridas, seja implicando em procedimentos metodolgicos especficos. Dito de outra forma, ela possui uma funo norteadora (1). Assim, em uma seqncia investigativa o pesquisador pode se valer de sucessivas hipteses, descartando as que no subsistem demonstrao ou as que no encontram apoio nas fontes ou na articulao de dados empricos. Cada hiptese formulada, por vezes, pode pontuar uma etapa no enfrentamento do problema a ser solucionado, da mesma forma em que cada hiptese ir implicar em mtodos especficos para a sua investigao.

    1. FUNO NORTEADORADar uma direo Pesquisa

    Fixandofinalidadesrelacionadasaetapas

    a serem cumpridas durante a pesquisa.

    Implicandoemprocedimentosmetodol

    gicos especficos.

    2. FUNO DELIMITADORA

    Restringir o campo de Pesquisa

    (a Hiptese ajuda a impor

    um recorte ao Tema)

    3. FUNO INTERPRETATIVAPropor uma possvel soluo

    para o Problema investigado

    7. FUNO UNIFICADORAOrganizar ou unificar

    conhecimentos j adquiridos

    (inclusive atravs de generalizaes constru

    das a partir de uniformidades empricas

    que tenham sido eventualmente verificadas

    em pesquisas diversas)

    5. FUNO COMPLEMENTADORA

    Preencher lacunas do conhecimento

    (ao propor explicaes provisrias)

    4. FUNO ARGUMENTATIVADesencadear inferncias e funcionar

    como pontos de partida para dedues

    (encaminhamento do mtodo

    hipotticodedutivo de raciocnio)

    6. FUNO MULTIPLICADORA

    Se potencialmente generalizvel, permitir uma aplicabilidade adaptada a outras pesquisas

    (possibilitando, desta forma, o avano ou o

    enriquecimento do conhecimento cientfico)

    HIPTESESSUAS FUNES

    PRINCIPAIS

    Quadro 1Funes da Hiptese na Pesquisa e no Conhecimento Cientfico

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    Uma hiptese norteadora precisamente porque articula as diversas dimenses da pesquisa, funcionando como um verdadeiro ponto nodal no qual se encontram o tema, a teoria, a metodologia e os materiais ou fontes da pesquisa. Um bom teste para verificar se estamos no caminho certo no que se refere formulao de hipteses ir j associando cada hiptese aos seus possveis procedimentos de verificao ou s metodologias a serem empregadas, aos materiais a partir da qual esta verificao poder ser empreendida, para alm da sua base terica e da sua articulao com o tema. Bem entendido: se no existem fontes e metodologias adequadas para comprovar a hiptese, ela ser intil, pois no ultrapassar o estado de mera conjectura. Se no existir uma articulao terica, h tambm algo errado (no mnimo, preciso definir todos os termos importantes

    includos nas hipteses). Se a hiptese no est articulada a algum dos aspectos do tema, ou ela irrelevante, ou o recorte temtico da Pesquisa no foi bem formulado com relao ao que se pretendia verificar com a pesquisa. Por isto, para evitar as armadilhas de investir em uma hiptese intil, desarticulada, ou irrelevante isto , uma hiptese que no ir cumprir adequadamente a sua funo norteadora uma excelente estratgia organizar imaginariamente uma espcie de quadro associando as hipteses aos procedimentos metodolgicos, fontes e aspectos tericos com ela relacionados. Digamos, por exemplo, que a sua pesquisa desenvolve se em torno de trs ou quatro hipteses, cada uma delas com os seus prprios procedimentos e possibilidades de documentao comprobatria. O quadro de articulao das hipteses com os demais aspectos da pesquisa poderia ser algo assim:

    hiptese 1hiptese 2hiptese 3hiptese 4

    Fontes a serem utilizadas na comprovao

    Metodologias a serem empregadas

    Articulaes tericas (ex: conceitos com os quais

    a hiptese dialoga)

    Articulaes com o tema (ex: fatores levados em

    considerao)

    Quadro 2Tabela para registrar a articulao da Hiptese com outras dimenses da pesquisa

    Mais adiante voltaremos a este quadro, exemplificando com uma situao concreta. Por ora, retornemos s mltiplas funes da Hiptese na pesquisa. Alm de impor uma direo pesquisa relacionando se previamente aos procedimentos metodolgicos e recursos tericos e documentais que sero empregados, as hipteses cumprem a finalidade de restringir o campo de pesquisa, impondo um recorte mais especfico ao Tema. Neste sentido, a hiptese possui uma funo delimitadora (2).

    Assim, por exemplo, estudar a Conquista da Amrica (processo histrico que se d a partir do sculo XVI com a expanso espanhola e portuguesa atravs das grandes navegaes) constitui uma temtica muito ampla, ou mesmo vaga. Para saltar da condio insatisfatria do investigador que tem diante de si um panorama de inmeras possibilidades e entrar na condio de uma investigao concreta a se realizar ser preciso delimitar dentro deste campo temtico um sistema de problema e hiptese. Vejamos alguns desdobramentos desta exemplificao. Na Histria da Conquista da Amrica, um dos problemas mais intrigantes e fascinantes que tm sido enfrentados pelos historiadores o de

    tentar entender como imprios to bem organizados como o dos astecas e o dos incas, habitados por milhes de nativos, foram derrotados por apenas algumas centenas de soldados espanhis em to curto espao de tempo e com to aparente facilidade1.

    As hipteses que tm sido propostas como respostas possveis a este problema so muitas, indo desde a inferioridade do armamento indgena (Las Casas), at as divises polticas no interior desses imprios (Bernal Daz, Cieza de Len); desde os erros de estratgia militar apontados para explicar a derrota de Atahualpa em Cajamarca (Oviedo), at as sofisticadas explicaes dos estudiosos modernos que consideram a derrota dos ndios como conseqncia de sua incapacidade de decodificar os signos dos conquistadores (Todorov) (Bruit, 1994, p. 18).

    Ora, a mera delimitao do problema acima proposto j impe um primeiro recorte ao tema mais amplo da Conquista da Amrica. Com um problema formulado, o historiador abandona esse universo ainda vago e amplo que a temtica da Conquista da Amrica como um todo, e comea a se direcionar para algo bem mais especfico. Em seguida, a escolha de uma ou de algumas

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    hipteses combinadas como solues provisrias ou como caminhos para a pesquisa delimitaro ainda mais o recorte temtico. Desta maneira, quando Todorov formulou a hiptese da rpida e dramtica derrota dos nativos mexicanos como conseqncia de sua incapacidade de decodificar os signos dos conquistadores e de assimilar a alteridade radical com a qual se confrontaram diante da chegada dos espanhis, estava abrindo uma espcie de trilha em uma floresta de possibilidades. Esta trilha, na verdade, conduziria o estudioso blgaro a investigar aspectos relacionados ao imaginrio, ao confronto entre as vises de mundo de conquistadores e conquistados, aos sistemas de signos em confronto. Da mesma forma, este recorte transversal no tema apontaria para a possibilidade do uso de metodologias que dialogam com a lingstica, com a semitica, com a antropologia, ou mesmo com a psicanlise, que so precisamente os campos de saber que colocam em movimento aspectos discursivos, simblicos, comportamentais.

    Tambm a escolha das fontes, que deveriam incluir textos a partir dos quais fosse possvel acessar tambm o discurso dos nativos mexicanos, surgiu aqui de maneira mais ou menos conseqente conduzindo

    Todorov a examinar com especial ateno fontes como aquelas que foram produzidas pelos nativos astecas no perodo imediatamente subseqente Conquista (relatos produzidos por astecas no perodo imediatamente subseqente Conquista; Cantares Mexicanos do perodo, entre outras fontes). Por outro lado, era preciso confrontar estas fontes representativas do ponto de vista asteca, embora em alguns casos com mediaes com fontes representativas do ponto de vista dos conquistadores espanhis, como o caso das famosas Cartas de Hernan Corts ao rei de Castela. Esta combinao de fontes permitiria compreender mais de perto o choque cultural entre as duas civilizaes, e as reaes das partes envolvidas diante deste confronto (Todorov, 1993).

    Articulando convenientemente os aspectos acima considerados, a iluminao de uma problematizao pertinente Conquista da Amrica, a partir de uma hiptese bem colocada e inovadora, conduziu Todorov a produzir um dos mais interessantes livros sobre o assunto escritos nos ltimos tempos. A ttulo de exemplificao, poderia ser elaborado para a Hiptese proposta por Todorov o seguinte quadro:

    Fontes

    . Os Informantes de Sahagun. Cantares Mexicanos. Cartas de Hernn Corts. Crnica de Bernl Daz

    Metodologia

    . Anlise Semitica

    . Abordagem comparativa

    Articulaes Terica

    Conceitos de. choque cultural. alteridade

    Hipteses

    A rpida e devastadora sujeio de milhes de astecas por apenas algumas centenas de conquistadores espanhis explicase, sobretudo, pela incapacidade de os astecas assimilarem o choque cultural produzido no confronto entre as duas civilizaes, e pela sua incapacidade em decifrar os cdigos dos conquistadores.

    Quadro 3Articulao da hiptese de Todorov com outras dimenses da Pesquisa

    O exemplo discutido nos oferece, certamente, um bom exemplo das funes norteadora e delimitadora de uma hiptese de pesquisa. Estas funes articulam se, naturalmente, com a funo bsica da Hiptese que a de propor uma possvel soluo para o Problema investigado, e que poderamos denominar funo interpretativa (3). A este respeito, preciso lembrar que um problema cientfico, sobretudo na rea das cincias humanas, nem sempre apresenta uma nica soluo. Isto pode ocorrer com problemas matemticos, mas no com estudos sociais que envolvem complexas questes de interpretao e leituras produzidas na interao entre sujeito e objeto de conhecimento.

    UM PROBLEMA E SUAS DIVERSAS HIPTESES

    Retomaremos como exemplificao o problema da Conquista da Amrica. O Quadro 4 (na pgina seguinte) procura esquematizar o problema proposto o da sujeio de milhes de nativos meso americanos organizados em imprios desenvolvidos como o dos astecas, em to pouco espao de tempo e para apenas algumas centenas de conquistadores espanhis.

    Pergunta se pelo fator ou pela combinao de fatores que teriam favorecido este acontecimento, to significativo para o destino subseqente do continente. No quadro proposto, o Problema apresentado ocupa a

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    parte de cima da imagem, enquanto a parte de baixo, em sombreado, corresponder s diversas hipteses que se apresentam como solues satisfatrias para a questo imaginada, ou ao menos como caminhos de investigao possveis. Basta substituir o segundo termo (depois das reticncias) por qualquer das alternativas propostas, ou por uma combinao de duas ou trs das alternativas propostas, e teremos diversas possibilidades para o mesmo problema. O crculo no topo enquadra o problema proposto, que tambm a primeira parte de uma hiptese a ser redigida. Por debaixo, so apresentadas algumas respostas possveis para o problema, que constituem a segunda parte da redao proposta para a Hiptese a ser formulada. Assim, uma das vrias hipteses indicadas no esquema (a hiptese de Todorov a que j nos referimos) poderia ser redigida da seguinte forma:

    a sujeio de milhes de nativos meso americanos, organizados em imprios centralizados e desenvolvidos como o dos astecas, em curto espao de tempo e para apenas algumas centenas de soldados espanhis, deveu se fundamentalmente dificuldade dos astecas em lidar com a alteridade e com o choque cultural produzido pelo seu contato com os conquistadores.

    Em diversas ocasies uma hiptese apresenta este tipo de formato redacional, particularmente as que buscam compreender as relaes entre um acontecimento ou fenmeno e os fatores dominantes que o tornaram possvel. O prprio problema pode aparecer neste caso como o primeiro termo da hiptese, e a soluo provisria ou resposta antecipada pode corresponder ao termo subseqente. Por ora, o aspecto importante a ressaltar

    Quadro 4A Conquista da Amrica: Um problema e algumas hiptese

    DEVEUSE1. Coragem, Determinao e Habilidade dos espanhis

    2. Superioridade blica dos espanhis

    3. Superioridade dos espanhis em estratgia

    militar4. Divises polticas

    no interior destes imprios que favoreceram ou foram

    exploradas habilmente pelos espanhis

    5. Aspectos da mitologia dos povos mesoamericanos,

    que favore ceram a identificao os conquistadores espanhis com deuses

    6. Choque cultural entre espanhis e meso

    americanos, que teria desfavorecido estes ltimos devido a uma menor capacidade de

    lidar com a alteridade

    7. Doenas transmitidas pelos espanhis

    para as quais os nativos no possuam capacidade de

    resistncia orgnica

    A sujeio de imprios meso-

    americanos extremamente organizados, habitados por milhes de nativos, em to

    pouco espao de tempo e por apenas algumas centenas

    de conquistadores espanhis,

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    com relao exemplificao que propomos que inmeros historiadores tm proposto para o problema da Conquista da Amrica diversas hipteses, como estas ou outras, e, ainda mais freqentemente, combinaes de hipteses que buscariam dar uma explicao complexa ou multifatorial para o problema formulado. Para sustentar as hipteses propostas, estes historiadores tm desenvolvido argumentaes diversificadas, apoiandose em fontes diversas, analisando as com metodologias variadas, e abordando o problema a partir de quadros tericos especficos.

    A bem dizer a formulao de hipteses explicativas diversas para o processo da Conquista da Amrica comea a ocorrer j desde a poca dos acontecimentos. Bernal Diaz, que acompanhou a expedio de Corts, d o ponto de partida nas hipteses que procuram explicar o sucesso da Conquista em termos de uma extrema habilidade e coragem dos conquistadores espanhis, o que compreensvel, uma vez que este historiador e participante da expedio no poderia seno defender o ponto de vista dos conquistadores espanhis. Bem mais tarde, no sculo XIX, veremos ressurgir vigorosamente esta hiptese que buscava essencialmente enaltecer os conquistadores, particularmente com o setor da historiografia que ficou conhecido como responsvel por produzir uma Histria dos Grandes Homens essa histria na qual os grandes personagens histricos eram os principais responsveis pelos acontecimentos. Assim, William Prescott, um historiador que escreve sobre a Conquista da Amrica em 1843 (Prescott, 1909), iria atribuir o sucesso da empresa da Conquista da Amrica s faanhas de Corts e de seus homens, e mesmo no sculo XX, quando ocorreria uma crtica contumaz Histria dos Grandes Homens, esta hiptese ainda estaria sendo reformulada algumas vezes.

    J a hiptese da superioridade blica (2) que em alguma medida deve entrar em qualquer anlise sobre a Conquista da Amrica no poderia rigorosamente, sozinha, explicar a rapidez do processo e a intensidade da devastao, e nem tampouco o fato contundente de que os espanhis tiveram de enfrentar uma descomunal desproporo diante de milhes de astecas contra apenas algumas centenas de soldados espanhis. Essa hiptese, importante mas no suficiente, dificilmente pode ser convincente quando no articulada a outras, como por exemplo a hiptese indicada com o nmero 4, e que postula que divises polticas no interior das sociedades astecas favoreceram ou foram exploradas habilmente pelos espanhis. Alis, existem nuances possveis dentro desta mesma hiptese. Quando se diz que os espanhis souberam explorar as divises existentes nas sociedades mexicanas e as rivalidades recprocas entre alguns povos da regio, coloca se os conquistadores espanhis no centro do palco, como atores principais, e escreve se uma histria do ponto de vista europeu.

    Quando se prope que havia previamente uma guerra civil indgena que enfraquece o imprio asteca, e que da surgem condies para os espanhis impingirem sua dominao, desloca se o conquistador espanhol para uma espcie de papel coadjuvante, e faz se dos astecas e seus inimigos indgenas os atores centrais da trama. A histria contada do ponto de vista asteca, e a chegada dos espanhis entra como um acontecimento externo, e no o contrrio.

    J mencionamos a clebre hiptese de Todorov sobre o choque cultural, que, embora impactante para as duas civilizaes, teria favorecido no fim das contas os espanhis, Afinal, os astecas at o momento da chegada dos espanhis Amrica no conheciam seno povos relativamente parecidos com eles mesmos. J os espanhis, quela altura de sua histria, j conheciam populaes muito distintas das populaes europias, como as asiticas, africanas, islmicas. Os espanhis, por assim dizer, tinham uma inegvel experincia maior com a alteridade.

    Possivelmente, nunca se chegar a uma explicao da Conquista da Amrica que seja considerada mais pertinente do que todas as outras. Na verdade, a elaborao do conhecimento histrico consiste precisamente neste permanente re exame do passado com base em determinadas fontes e a partir de determinados pontos de vista. As hipteses na Histria ou nas Cincias Sociais dificilmente podem adquirir a aparncia de verdades absolutas (se que existem verdades deste tipo), porque h um espao muito evidente de interpretao a ser preenchido pelo historiador ou pelo socilogo na sua reflexo sobre problemas sociais do presente ou do passado. Em tempo: o que pode ser confirmado como afirmaes indiscutveis so determinados dados ou enunciados empricos, mas no as proposies problematizadas que relacionam ou interpretam estes dados empricos.

    Em suma, vimos at aqui que as hipteses desempenham funes importantes para o encaminhamento de uma pesquisa especfica a ser realizada. Elas cumprem simultaneamente os papis norteador (servindo de guias investigao), delimitador (recortando mais o objeto da investigao) e interpretativo (propondo solues provisrias para um problema). Mas, para alm disto, as hipteses ainda desempenham dentro de um trabalho cientfico especfico uma importante funo argumen-tativa (4).

    Assim, de acordo com o mtodo de raciocnio hipottico dedutivo, as hipteses devem atuar como focos para o desencadeamento de inferncias no sentido de que das suas conseqncias vo ser geradas novas proposies, e de que estas mesmas proposies desdobradas da hiptese original tambm iro produzir novas inferncias. Esta formao de uma srie articulada de enunciados, na qual cada um vai precedendo a outros de maneira lgica, consiste no que se denomina

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    demonstrao. alis esta funo argumentativa da Hiptese o que autoriza seu sentido etimolgico de proposio subjacente de proposio que se coloca embaixo de outra. Toda hiptese apresenta grosso modo isto que podemos chamar de uma potncia inferencial (capacidade de dar origem a outras proposies). desta potncia inferencial das hipteses, em articulao s verificaes empricas, que vive o discurso cientfico.

    A funo argumentativa da hiptese desempenhada, por outro lado, no apenas a partir dos desdobramentos de suas conseqncias, mas tambm atravs da articulao destes desdobramentos com outras hipteses, de modo que duas ou mais hipteses combinadas tambm podem produzir novas inferncias. Um exemplo de articulao lgica de enunciados hipotticos apresentado na obra O Suicdio de mile Durkheim (Durkheim, 1999). O problema constitui se em torno de uma indagao acerca da dimenso social do suicdio, examinando o no apenas como um evento individual, mas como um fenmeno social que se expressa atravs do indivduo. Cumpre investigar as motivaes e as implicaes suicdio para a experincia humana. Em primeiro lugar, apresenta se a hiptese de que o suicdio motivado por tenses e ansiedades no aliviadas (a). Depois proposta uma hiptese que logo vir convergir para o problema: a coeso social de um grupo proporciona mecanismos para aliviar ou combater as tenses e ansiedades vivenciadas por alguns indivduos (b). Em seguida, aventa se a hiptese de que determinados tipos de grupos sociais possuem maior coeso social do que outros (uma forma de religio em contraste com outra, por exemplo) (c). Logo, ser possvel prever um ndice menor de suicdios naqueles grupos de maior coeso social quando comparados com o de menor coeso (d).

    Naturalmente que esta cadeia de inferncias a partir de hipteses convergentes foi sustentada nesta sntese abreviada de maneira exclusivamente argumentativa. Em uma pesquisa, a demonstrao lgica deve vir imbricada com uma verificao emprica. Os suportes empricos devem precisamente sustentar cada uma das afirmaes com dados concretos. Pode se, por exemplo, propor um mtodo qualquer para a mensurao de aspectos relativos coeso social em um tipo de grupo humano especfico (os membros de uma comunidade catlica, por exemplo). Depois, quantifica se os ndices de suicdio neste grupo. Procede se com as duas operaes anteriores para um outro tipo de grupo que produza uma comparao pertinente (os membros de uma comunidade protestante, por exemplo). O confronto entre os ndices obtidos para cada grupo, tanto os indicativos de coeso social como os que se materializam em taxas de suicdios, permitiro confirmar ou refutar a idia de que as suposies propostas produzem efetivamente uma articulao pertinente (a hiptese articuladora de que a coeso social inversamente proporcional quantidade de suicdios).

    As trs prximas funes a serem comentadas (Quadro 1, parte no sombreada) correspondem ao papel da Hiptese no apenas dentro de uma nica pesquisa tomada isoladamente, mas dentro do conjunto maior da cincia. Falaremos por um lado da potencialidade de algumas hipteses para preencher lacunas do conhecimento, e por outro lado de hipteses que, por algumas razes, acabam fazendo uma interligao entre vrias pesquisas seja por desdobramento de suas possibilidades em outras pesquisas, seja por sua capacidade de aglutinar sries de dados empricos produzidos por pesquisas diversas.

    Em primeiro lugar consideraremos que hipteses bem fundamentadas, mesmo que no possam ainda ser plenamente comprovadas ou refutadas, podem apresentar a significativa funo de preencher lacunas do conhecimento. A hiptese tem neste sentido uma espcie de funo complementadora (5). Notadamente para perodos mais recuados do passado, quando comeam a escassear as fontes e as informaes disponveis, o historiador pode ser conclamado a preencher estes silncios e vazios de documentao, at que a sua interpretao provisria seja substituda por uma outra que tenha encontrado bases mais seguras de sustentao. De igual maneira, o cientista social pode se valer de procedimentos anlogos para preencher os silncios sociais de seu prprio tempo, ou as dificuldades de acesso a fontes e dados.

    Este papel desempenhado pela hiptese no sentido de preencher espaos vazios do conhecimento no estranho Cincia de uma maneira geral. Sabe se por exemplo da existncia dos intrigantes buracos negros do espao csmico, mas como no existem atualmente maiores possibilidades de compreender de forma fundamentada estes fenmenos astronmicos, ou de produzir experimentos para testar a natureza dos buracos negros, os cientistas no raro formulam teorias provisrias sobre a questo. Especula se, tambm em forma de hipteses, sobre a origem do universo (como na clebre teoria do Big Bang). As prprias lacunas de conhecimento concernentes origem do Homem tm gerado sucessivas hipteses na Cincia e na Religio: o homem como criao direta de Deus (Gnesis), o homem como descendente evolutivo do macaco (Darwin), o homem como descendente de um elo perdido que teria dado origem simultaneamente ramificao humana e ramificao dos demais primatas (retificaes na Teoria da Evoluo), o homem como pertencente a uma matriz evolutiva independente da do macaco (pesquisas recentes). Em cada um destes casos, uma hiptese preenche um vazio gerado pela inquietao diante das origens humanas.

    Outro tipo de hipteses que transcendem o mero mbito da pesquisa onde foram geradas refere se quelas que, uma vez propostas, revelam um potencial de aplicabilidade a outras pesquisas. A hiptese vem aqui

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    desempenhar uma funo multiplicadora (6). Quando se desenvolve para um estudo de caso especfico uma argumentao bem fundamentada em torno de determinada hiptese, provando se a sua pertinncia, pode ser que esta hiptese venha a se mostrar aplicvel a outros estudos, beneficiando desta maneira outras pesquisas possveis e o conhecimento cientfico de uma maneira geral. Assim, ao desenvolver a hiptese da importncia predominante do choque cultural na sujeio das sociedades astecas, Todorov abriu a possibilidade de que a mesma hiptese fosse utilizada para compreender a sujeio da sociedade inca, empreendida por Pizarro na regio do Peru, ou outras situaes similares. claro que, para cada caso, devem ser respeitadas as singularidades, o que deve ficar como um lembrete importante relativo s possibilidades de se importar uma hiptese de um para outro campo de pesquisa.

    Por fim, uma ltima funo das hipteses que, em nvel mais amplo, elas podem se prestar organizao ou unificao de conhecimentos j adquiridos, inclusive atravs de generalizaes destinadas a explicar certas uniformidades empricas que tenham sido eventualmente constatadas em pesquisas diversas. Falaremos aqui de uma funo unificadora (7). Pode se dar o caso em que uma hiptese explicativa contribua para dar sentido seja a um certo conjunto de dados, seja a um conjunto de outras hipteses. Um exemplo poder esclarecer este uso das hipteses explicativas.

    Vrias pesquisas sobre crescimento urbano, tomando como campo de estudos as cidades americanas, levaram alguns estudiosos da chamada Escola de Chicago e outros socilogos percepo de um certo padro de crescimento das cidades, particularmente no que concerne distribuio da populao (Burgess, Park & McKenzie, 1925). Diante das uniformidades empricas percebidas, alguns autores procuraram formular hipteses que correlacionassem estes fenmenos entre eles Ernest Burgess, que elaborou a sua clebre hiptese dos crculos concntricos.

    Para sustentar sua hiptese original, Burgess idealizou seu famoso ideograma de desenvolvimento urbano, onde o crescimento se verifica em torno de um ncleo de pontos focais que se constitui predominantemente pelas atividades comerciais e industriais. O esquema naturalmente vlido no mbito das cidades tipicamente americanas da modernidade (mas no no mbito das cidades europias, por exemplo), e baseiase nos processos de etnic sucession e da residential invasion. A idia bsica a de que a cidade organiza a populao a partir de zonas concntricas, residindo a alta burguesia nos subrbios perifricos, e neste caso a progresso social evoluiria do centro para a periferia, de maneira que cada grupo social vai abandonando espaos mais prximos do centro e conquistando os arredores mais valorizados socialmente.

    O que Burgess fez, neste caso, foi construir atravs da mediao de uma hiptese adequada uma generalizao que enquadraria as vrias uniformidades empricas percebidas. Dito de outra forma, o socilogo da Escola de Chicago tratou de organizar a realidade sob a forma do que pode ser chamado de um tipo ideal complexo. Goode e Hatt (Goode & Hatt, 1968, pp.7783) alertam para o fato de que este tipo de hiptese no deve vir acompanhado da pretenso de generalizaes absolutas, devendo se deixar claro desde o incio que o padro percebido a partir de uma dada recorrncia de casos verifica se em determinadas condies (e no em outras). Por outro lado, Lakatos e Marconi (2000, p. 149) assinalam de maneira bastante pertinente que o principal papel das hipteses deste tipo o de criar instrumentos e problemas para novas pesquisas. Assim, a hiptese dos crculos concntricos proposta por Burgess teria dado origem a outras, como a dos crculos mltiplos proposta por Harris e Ullman e a do crescimento axial proposta por Hoyt. Foi a partir de transformaes e retificaes no modelo primordial proposto por Burgess que os chamados ecologistas socioculturais, como Hoyt (1939), propuseram a imagem de uma cidade dividida em setores triangulares como as fatias de um bolo observando que em diversos casos setores triangulares inteiros perdem prestgio social medida que se aproximam da periferia.

    J a Hiptese dos ncleos mltiplos, por outro lado, questiona a prpria idia de um centro nico, o que corresponderia na verdade a um modelo de visualizao que nem sempre condiz com a vida urbana. Assim, Harris e Ullman (1945) procuraram assinalar a natureza compsita da cidade, que estaria fundada sobre ncleos diferenciados. Buscavam conciliar desta forma, contestando as no essencial, a idia original de Burgess acerca de uma evoluo concntrica e a proposta de crescimento por fatias triangulares aventada por Hoyt.

    Este exemplo pode nos ajudar a perceber que as hipteses tambm tm uma funo significativa como organizadoras, mesmo que provisrias, dos prprios dados empricos produzidos atravs do conhecimento cientfico. Funcionam, neste caso, como compartimentos que retm de maneira organizada e coerente estes dados, ou como criadoras de sentido que imprimem novos significados a conhecimentos construdos a partir de pesquisas diversas. Neste sentido, algumas hipteses transcendem largamente o mbito mais restrito de sua pesquisa singular, e criam unidades maiores entre vrias pesquisas produzidas. No importa que em um segundo momento estas hipteses sejam substitudas por novas hipteses. O importante que atravs delas o conhecimento cientfico pode transitar livremente, sendo reelaborado de maneira permanente.

    precisamente quando determinadas hipteses conseguem reunir em conjuntos maiores e coerentes uma

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    diversidade de fatos, uniformidades empricas e resultados obtidos em pesquisa e particularmente quando se mostrarem sustentveis ou vlidas as relaes propostas para estes fatos que ocorre a formao de uma teoria. Partindo destas relaes propostas e das hipteses primordiais, so deduzidas novas hipteses, de modo que vai sendo consolidada uma nova teoria (inclusive com a elaborao de novos conceitos, sempre que necessrio).

    Mais uma vez podemos citar o exemplo da Teoria da Origem das Espcies de Charles Darwin. O que o naturalista ingls fez foi precisamente reunir uma srie de fatos e dados construdos a partir da observao da natureza sob a orientao de algumas novas hipteses, como a da luta das espcies e a da seleo natural. Em seguida, sendo validadas por um determinado setor de cientistas as suas observaes sistematizadas (no sem enfrentar resistncias), o conjunto de hipteses proposto saltou para o status de teoria considerada aqui como um corpo coerente de hipteses e conceitos que passam a constituir uma determinada viso cientfica do mundo.

    Foi tambm o que fizeram os socilogos da Escola de Chicago ao reunirem suas hipteses, dedues, e explicaes para certas uniformidades empricas em uma teoria da Ecologia Urbana que por sinal tem elementos de transposio para o campo social de alguns aspectos da Teoria da Origem das Espcies proposta por Darwin. Aqui se percebe que uma teoria pode dar origem a outras, atravs da incorporao de novas hipteses ou de novos desdobramentos de hipteses, ou atravs da transferncia de certos sistemas hipotticos e conceituais para outros campos de aplicao (do campo natural para o social, por exemplo).

    De resto, deve ser lembrado que um enunciado terico deve ser considerado sempre em relao teoria qual ele se articula. Um enunciado que em um momento, ou dentro de um determinado referencial terico, pode ser considerado uma hiptese, em outro momento pode ser considerado uma lei, e em um terceiro momento ser encarado como uma conjectura. Assim, a hiptese da seleo natural, por exemplo, considerada lei dentro da Teoria da Origem das Espcies de Darwin, considerada um princpio que deve ser combinado a outros fatores na Teoria Sinttica ou Moderna da Evoluo, e considerada uma conjectura ou hiptese refutada na Teoria do Planejamento Bio molecular Inteligente de Michael Behe (Behe, 1997).

    Para alm dos usos discutidos neste artigo acerca das hipteses de pesquisa, que na prtica historiogrfica e sociolgica adquirem tanta relevncia, o quadro de funes atrs elaborado procurou destacar o papel decisivo das hipteses na Pesquisa Cientfica de um modo geral tanto no que se refere a um trabalho especfico que se realiza (uma Tese, um texto argumentativo, um Projeto de Pesquisa), como no que se refere a aspectos mais

    amplos do conhecimento. O enfoque nas Cincias Humanas buscou trazer a este conjunto de observaes as especificidades da Histria, Sociologia e outros campos de saber.

    Notas

    1. Sobre isto, chama ateno Fernndez Armesto em seu artigo Aztec Auguries and Memories of Conquest of the Mxico (1992). Ver tambm Restall, 2006.

    2. Entre as fontes produzidas pelos prprios astecas em momento prximo Conquista esto, por exemplo, os depoimentos produzidos sobre a orientao do franciscano Bernardino Sahagun, que em 1579 coordena a feitura em nuatl de uma primeira verso destas fontes que ficaram conhecidas como Os Informantes de Sahagun. Estes relatos foram publicados, e possuem, inclusive, traduo em portugus (Leon Portilla, 1987). Cinco anos mais tarde, Sahagun produz uma nova verso, retificando a anterior, na qual j aparece um discurso menos autntico de um ponto de vista estritamente asteca, o que deve ser atribudo aos interesses franciscanos naquele momento, bem articulados com setores espanhis ligados Conquista (Sobre isto ver Cline, 1988). Portanto, as diferenas entre uma e outra deixam rentrever aspectos ideolgicos produzidos na interao entre a Igreja e a Coroa Espanhola. Tambm as Cartas de Hernan Corts ao Impera-dor da Espanha, relatrios que trazem o ponto de vista dos conquistadores, mereceram publicaes (Cortez, 1996). Igualmente sintonizadas com este ponto de vista so as crnicas de Bernal Daz, que participou da expedio de Corts e publicou uma Historia Verdadera de la Conquista de la Nueva Espana (1632). Para mais um apoio ao ponto de vista asteca, pode se buscar os Cantares Mexicanos, produzidos na mesma poca (Bierhorst, 1985).

    3. o caso do livro de Hugh Thomas intitulado Mon-tezuma, Corts e a Queda do Velho Mxico, que ao basear sua anlise em fontes espanholas, sem filtrar seu ponto de vista termina por reforar esta mesma hiptese de valorizao da habilidade dos conquistadores como fator principal que assegura a rapidez com que os espanhis submetem os astecas (Thomas, 1995).

    4. Este o ponto de vista transmitido por Bernal Daz, quando aborda a questo da aliana dos espanhis com povos indgenas inimigos dos astecas.

    5. Esse o ponto de vista, e o modo de narrar, que apaEsse o ponto de vista, e o modo de narrar, que aparece nos cantares indgenas (Bierhorst, 1985).

    6. Assim, indiscutvel que milhes de nativos mesoamericanos foram submetidos pelos espanhis nas primeiras dcadas do sculo XVI. Mas as razes e implicaes deste fato sero sempre rediscutidas.

    7. neste sentido que Goode e Hatt afirmam que as hipteses podem formar um elo entre fatos e teorias (Goode & Hatt, 1968, p. 74).

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    Jos DAssuno Barros Doutor em Histria Social pela Uni

    versidade Federal Fluminense (UFF). Professor da Universi

    dade Federal de Juiz de Fora (Juiz de Fora, Brasil) e da Univer

    sidade Severino Sombra (USS) de Vassouras (Brasil). Entre as

    obras mais recentes contam se os livros O Campo da Histria

    (Petrpolis: Vozes, 2004), O Projeto de Pesquisa em Histria

    (Petrpolis: Vozes, 2005) e Cidade e Histria (Petrpolis: Vo

    zes, 2007). O autor possui livro publicado na rea de Metodo

    logia Cientfica direcionada a Histria e Cincias Sociais, no

    qual discute aspectos relacionados a Pesquisa, tal como o que

    apresentado neste artigo (Petrpolis: Vozes, 2007).

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